ensaio fotogrรกfico por Filipe Cartaxo
ser multidรฃo
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Rua Augusto Viana, s/n - Reitoria, Canela, Salvador/BA - CEP: 40110-909 Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor Paulo César Miguez de Oliveira ESCOLA DE BELAS ARTES Av. Araújo Pinho, 212, Canela, Salvador/BA - CEP: 40110-909 Diretora Nanci Novais MIOLO V.2 PERIODICIDADE: ANUAL dez/2019 Edição Tiragem: laboratório de livros www.tiragem.ufba.br Coordenação Flávia Goulart Taygoara Aguiar
Tratamento de imagens Gabriella Correia Revisão Bernardo Machado Laura Castro Comunicação e redes sociais Gabriella Correia Larissa Monteiro Santana Maria Carolina Barbosa Rebecca Cerqueira Zulmira Alves Correia Agradecimentos Alinhavo Empresa Jr da EBA/UFBA Arlindo Souza de Carvalho Daiane Oliveira Erica Ribeiro de Andrade Evandro Sybine Flávia Garcia Roza Lanussi Pasquali Laura Castro Mila Maria Regina Sebastião Peixoto
Editor-chefe Taygoara Aguiar Curadoria e Direção de arte Lia Cunha Produção gráfica Larissa Monteiro Santana Lia Cunha Taygoara Aguiar Diagramação e projeto gráfico Larissa Monteiro Santana Lia Cunha Maria Carolina Barbosa Rebecca Cerqueira Taygoara Aguiar Zulmira Alves Correia
design,cultura e inovação
FAB LAB
núcleo de protótipos e modelagem digital
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da USP, 2012.
Lia Cunha e Taygoara Aguiar
editorial 28
(1) O texto completo da chamada aberta e suas referências, podem ser vistos no seguinte link: https://bit.ly/2KBpphE
A revista MIOLO é produzida por designers e artistas que trabalham com diferentes linguagens. Um esforço coletivo que parte do desejo de fazer circular experimentos poéticos por meio de publicações periódicas. Trata-se de uma publicação especializada que apresenta processos artísticos a partir de uma ótica soteropolitana. Para tanto, seleciona por meio de chamadas abertas na internet — e-mail, site e redes sociais — trabalhos de pesquisadores, escritores, designers e artistas do Brasil e do mundo. Sem deixar de lado artigos mais alinhados com os rigores acadêmicos, e em busca de manter a unidade da publicação e a coerência do discurso enunciado, na curadoria dos textos, ensaios artísticos e outras obras que integram esse número da MIOLO, priorizamos ideias passíveis de dialogarem entre si no corpo da revista. Trabalhos que forçam os limites entre as linguagens e brincam com os ruídos presentes na matriz da comunicação, estejam eles nas ambiguidades da palavra escrita ou nos saltos entre a materialidade do texto impresso e a imaterialidade do vídeo digital. O projeto gráfico deste volume surge em paralelo à diagramação. Um planejamento flexível que nos permite materializar o conceito de cada trabalho levando em consideração a estrutura da revista, da página e seus espaços em branco. Fotografias e poesias visuais foram inseridas, junto ao conteúdo textual no corpo da revista, de modo a construir uma relação não hierárquica. Tais estratégias consistem em um conjunto de conceitos operatórios que fazem
da MIOLO uma publicação na qual seus elementos — formais quantos estruturais — são recursos estéticos/poéticos, que geram ruídos na malha da revista, emprestando, assim, singularidade a cada exemplar produzido por meio de interferências manuais e técnicas artesanais de impressão. A revista se estrutura a partir de quatro seções intercambiáveis: Entrevista, Perfil, Respiro e Ensaio. A proposta, apresentada por Laura Castro para este volume, nos revelou que a seção de entrevistas poderia ser um espaço promissor para a realização de exercícios de linguagem e forma. Tiramos proveito da polissemia da palavra ensaio, para agrupar tanto conjuntos de imagens fotográficas organizadas em torno de um conceito, quanto textos de opinião, baseado em referências, sobre um assunto específico. Os respiros, por sua vez, possuem a função de intermezzo; são obras colocadas entre outras obras que cumprem um papel organizacional dentro da estrutura da revista, ao mesmo tempo que funcionam como intervalos que propõem alterações no ritmo de leitura. O sumário, cartografado por Maria Carolina Barbosa, representa graficamente a distribuição dessas partes no corpo da publicação. Com o tema “UM CORPO PARTILHADO”1, neste segundo volume da revista MIOLO, nós, equipe e colaboradores, buscamos conhecer novas estratégias de diálogos que permitissem uma reconfiguração das relações entre pessoas, cidade, trabalho, produção e consumo. Uma discussão sobre como as experiências estéticas podem interferir na partilha do
sensível contemporânea; como elas criam deslocamentos e rupturas em um corpo comum recheado2 por diferentes corpos.
dos “respiros” foram pensadas em um regime de parceria entre a equipe da revista e as pessoas que nos enviaram suas obras.
Tendo como referência a revista Navilouca — editada por Waly Salomão e Torquato Neto em 1971 e publicada em 1974 — buscamos uma aproximação com poetas locais com as quais dividimos nossas inquietações. Este diálogo nos conduziu através de experimentações gráficas que serviram como matéria-prima para divulgação da nossa chamada aberta nas redes sociais. As peças produzidas através destas experiências orientaram não apenas o projeto gráfico deste volume, mas também o tom poético dos textos enviados.
Compreendemos a prática editorial como experiência de ensino-aprendizagem. Através da elaboração de vivências, procuramos experimentar as técnicas gráficas incorporadas ao projeto da revista, abrindo, deste modo, clareiras para que as estudantes cultivassem suas poéticas além do espaço da publicação. São frutos destes processos a exposição Respiros Poéticos, de Zulmira Correia — orientada por Laura Castro e Evandro Sybine —, e os perfis de Gabriela Correia compostos, respectivamente, a partir de uma visita a uma antiga tipografia no centro histórico da cidade e através de saídas fotográficas com poetas que colaboraram com o projeto desde os momentos iniciais.
Parafraseando o designer canadense Bruce Mau, nosso processo criativo buscou substituir a divisão de trabalho pela síntese, curadores e autores por colaboradores e parceiros, executar tarefas por negociar espaços, produção máxima por feedback máximo, e forma aplicada ao conteúdo por forma e conteúdo simultaneamente evoluindo e enriquecendo um ao outro (MAU, 2000). Neste sentido, buscamos o diálogo constante com os autores e autoras das obras que compõem a revista. A depender da abertura e disponibilidade de cada parte envolvida, estes diálogos interferiram em diferentes níveis na configuração dos trabalhos, seja esteticamente, ou nas questões relacionadas à edição de conteúdo. Assim, tanto a diagramação dos textos, quanto a escolha das imagens dos ensaios fotográficos, ou ainda a escolha das técnicas para a composição
Deixamos aqui o convite para que você se engaje na discussão e interfira na publicação ao encontrar brechas e lacunas como esta3:
(2) Um dos textos seminais utilizados na construção do conceito dessa edição foi o poema abaixo, intitulado: “Momento VIII”, de Arnaldo Antunes (2000). O corpo existe e pode ser pego. / É suficientemente opaco para que se possa vê-lo. / Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo. / O corpo existe porque foi feito. / Por isso tem um buraco no meio. / O corpo existe, dado que exala cheiro. / E em cada extremidade existe um dedo. / O corpo se cortado espirra um líquido vermelho. / O corpo tem alguém como recheio.
(3) Por favor, compartilhem seus respiros e insiram a #miolorevista. Vamos amar acompanhar essa produção.
respire aqui
Sem título ensaio
Tiago Ribeiro
respiro
Arlindo Souza de Carvalho
perfil entrevista
diagramação:
Palavra Amolada: do extremo sul da Bahia ao sertão de Pernambuco
33
Laura Castro e Mariana de Matos diagramação: Larissa Monteiro
35
Sem título Leonardo França diagramação: Zulmira Correia
45
Encruzilhadas: Livros de Artista, Design e Poética em Salvador Taygoara Aguiar
47 Cabidela Traquitanas Alex Simões diagramação: Taygoara Aguiar
58
Laura Castro diagramação: Larissa Monteiro
60
Respiros poéticos: percursos, poesia e materialidades
Impossibilidades, descabimentos e inoperâncias
Zulmira Correia
Pedro Bomba
63
diagramação: Lia Cunha
71
Sem título Túlio Carapiá e Clara Cerqueira
74
Insurgências/resistência e re-existências: modos de resistir e reinventar relações
A Arte do Bordado: entre a decoração e a reivindicação
Lia Krucken e Ludmila Britto
diagramação:
diagramação: Zulmira Correia
Maria Carolina Barbosa
75
83
Naira Lise e Mariela
Exata Precisão Camila Rezende
Tão perigosa quanto bonita
diagramação:
Lygia Peçanha
Maria Carolina Barbosa
diagramação:
89
Maria Carolina Barbosa
94 Corpos Híbridos: a integração entre os modos de produção industrial e artesanal na edição independente e livro de artista. Circe Clingert diagramação: Rebecca Cerqueira composição tipográfica: Circe Clingert e Rebecca Cerqueira
96 O Muro Raiça Bomfim diagramação:
Corpos (Im)possíveis: a festa fora do tempo em um lugar chamado lugar nenhum Amanda Rocha diagramação: Larissa Monteiro
Inimagem Gabriella Correia diagramação: Taygoara Aguiar
112
103
Maria Carolina Barbosa
101 Resumo das transcrições e gravações não autorizadas em um consultório médico Maria Luiza Maia diagramação: Maria Carolina Barbosa
110
palavra amolada: do eXtremo sul da bahia ao sertão de pernambuco LAURA CASTRO E MARIANA DE MATOS
ATXUHÚ KAÍ é uma tipografia criada pela comunidade escolar da Aldeia Kaí, na Terra Indígena Comexatiba. “Atxuhú” significa “linguajar” em patxohã, a língua dos Pataxó. O ATXÚHU KAÍ foi construído a partir de um encontro de saberes com a artista indígena Rita Pataxó que desenvolve uma série de carimbos artesanais em madeira.
“O encontro, além do que se pode imaginar, dinamita qualquer projeção prévia” Laura Castro <lauracastro.ar@gmail.com>
7 de mai de 2019 00:41
para Mariana de Matos
minha deusa, quero te convidar pra uma experiência de escrita aqui e-mail a e-mail
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escrever um texto para uma revista aqui da UFBA, de um professor da Belas Artes que tem uma pesquisa sobre livros de artista, uma figura bem massa. Inicialmente pensei em fazer uma entrevista com você para publicar. passou um tempo, mil trampos y eu comecei a me preparar para vir aqui te fazer esse convite e também dar espaço pra ver que o que nasce, aqui, na rede, que pode povoar também nosso encontro aqui aovivo, mais pra frente, o nosso desejo de experiência. então pensei que a gente podia fazer uma ativação aqui pela troca de emails. UM MODO DIALÓGICO PERFORMÁTICO DA ENTREVISTA. com perguntas dos dois lados. com textos, pedaços de prosa, de poema do que a gente quiser daí podemos dar um nome e assinar junto na revista. fiquei muito tempo sem saber como começar hoje li o seu POESIA PRA PIXO POESIA É ORÁCULO (você escreve eu te leio ao acaso) sou tomada por uma punhalada quando leio o poema do lado:
Eu que fui na rua atrás de fogo pra vir lhe escrever esse texto. Pois fui visitada pela lembrança da faca só lâmina. A Miolo desta edição tem um tema: o corpo partido Hoje, no portão da casa de um amigo, me lembrei desse poema de Cabral. Pensei na escrita como essa faca só lâmina, sem cabo. Isso de se cortar quando corta algo. Foi uma metáfora que fez muito sentido principalmente na época que estava escrevendo o doutorado e voltou, ali, naquele instante, como um elo possível para um começo de conversa. para acessar um pedacinho desse corpo partido, esse corpo partido que é dentro da escrita inscrever presença e ausência a um só tempo. Depois da experiência do seminário com os pataxó venho pensando muito no grafocentrismo, tensionado questões entre escrita, imprensa e oralidade. E agora te escrevendo fiquei pensando de como é ter um corpo partido na experiência da escrita?! de como são as mulheres que afiam facas?! Enviarei sem revisar, tá? Porque seguimos conversando Y vale a experiência e o calorzinho do agora O texto quente. Vai o corte da faca desse corpo partido Te envio um áudio amanhã Estou na linha, na escuta. beijo grande, Laura
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Maré de Matos <maredematos@gmail.com> para Laura Castro
16 de mai de 2019 12:20
pois eu te li em trechos no meio de deslocamentos e fiquei tentando capturar o sentido mas depois me abri pra possibilidade de compreender o que acompanha o corpo, porque reverbera, durante os caminhos? de lá (semana passada) até agora, cruzei o mapa e cheguei (junto com a chuva) aqui no sertão do pajeú. pra caçar poesia das mulheres e plantar inquietações como safra. partilho contigo os sinais: agora entendo porque o tempo me trouxe aqui também pra essas trocas: aqui se faz poesia enquanto a poeta se corta: aqui se tensiona os limites da escrita e da oralidade : aqui a poesia desafia porque desafia a realidade; gosto de colocar as palavras de territórios diferentes pra conversar e ver que língua sobra dessa troca agora, entre pajeú e bahia (porque é dinâmica a vida), como admitir (com simplicidade) que a poesia desafie a complexidade dos dias? ; imagine só, daqui de mundo novo (distrito de São José do Egito), a Severina Branca conversa com Cabral: “Eu perdi a noção dos meus pecados Pela fome com facas de perjuras Que cortava minha alma com agruras E sangrava o meu peito já ferido O silêncio da noite é quem tem sido Testemunha das minhas amarguras.” (Severina Branca) ,te espero
Em ter, 21 de mai de 2019 às 08:57, Laura Castro <lauracastro.ar@gmail.com> escreveu:
Maré, Hoje sonhei com Rose e assim que acordei nas redes, vi uma foto de vocês no Pajeú. Já desejava te escrever nesta terça-feira de Ogum, mais um sinal das facas, por isso vim aqui logo fazer acontecer essas linhas antes do café-da-manhã, me nutrindo da nossa conversa.
Imagino a intensidade dos teus deslocamentos sertanejos aí em Pernambuco, a procura de mulheres poeta. Que grande! Me conta mais sobre isso do jeito que você quiser? Uma foto grafia um impresso uma impressão? Eu segui o rastro do silêncio da noite de Severina Branca, fiz trilhas virtuais de seus passos e tive vontade de ouvir sua voz. Que tanto de língua é essa que você tem ouvido por aí? Que desfia e desafia a realidade? Penso em Pajeú e meu imaginário depõe contra mim: penso num Rio cortando terra, como a sanfona de Gonzagão narra: o Rio Pajeú vai desaguar no São Francisco: o Rio São Francisco vai bater no mei do mar. Mas talvez esteja aí o ponto. Caminhar na realidade desses territórios, no passo dialógico da procura e do encontro, nos provoca cortar tudo que se concebe antecipadamente, nos possibilita romper/atualizar/mover com os imaginários povoados pela distância. me entende? De novo me vem a experiência com os pataxó confrontada com toda sorte de imagens engessadas dos indígenas que nos chegam pelos livros, pelo vocabulário repetido do mundo não-indígena. Y agora novamente me chega a imagem da escrita-faca, dessa vez grafando o rosto de um parente pataxó, A pintura corporal indígena é também uma grafia, é poesia, não é? Esse corpo partido fica no meu sentimento como a experiência mesmo de se transmutar na voz, na palavra, em todo e qualquer risco não alfabético, mas que deixa marcas. É o corte que inscreve o corpo ou a sutura a escrita da cicatriz? Relendo de novo a convocatória da Revista Miolo descobri que não era sobre corpo partido o tema dessa edição, mas sobre o corpo partilhável, o que eu achei bem bonito e senti que tinha a ver sobretudo com os caminhos poéticos que aconteciam do lado daí. Eu fico aqui de faca e ouvido afiados Espero te ler em breve E alimentar nosso diálogo. Um beijo grande.
Em qua, 12 de jun de 2019 às 13:31, Maré de Matos <maredematos@gmail.com> escreveu:
- eu que acreditei que o tempo do sertão era justo com nossas trocas, fui deslocada pelas vastas tempestades a experiência no sertão transbordou todos os limites imaginados, juro, de fontes de saber, de locução, de resistência pelas palavras, a oralidade e memória tão aliadas, uma surpresa sem fim fui em busca das poetas e antes da palavra poeta encontrei tantas mulheres das palavras, que ora refutaram o nome poeta, ora se acolheram no nome poeta,uma anti- lógica narrativa, primeiro a poesia e o tempo, depois a pauta política, depois o título: há muito que se aprender no sertão e há muito que se ensinar às hegemonias severina branca, poeta de 75 anos, analfabeta, declamadora impressionante (te mando uma fotografia e um áudio pra que ouça a voz que atravessa os tempos) o sertão tava muito verde e também como disseram lá: o rio que há muito não sangrava (passava de seu limite). paisagem surpreendente pra seca que querem, sabedoria surpreendente pro limite de quem descreve acho que o livro e a palavra escrita tem também esse poder: enclausurar indígenas e negros e nos distrair do som que sai da boca da poesia dita partilha, que tem o princípio da escuta, não é? sinto que fui ao sertão encontrar e aprendi sobretudo que o que antecede o encontro é o reconhecimento precisamos percorrer outros territórios e expandir o vocabulário desse português tão tímido se posto ao pé de tantas existências percorrer carinhosamente nossas diferenças. é matéria de poesia, não é? me perdoe pela desordem no tempo, hei de fazer as pazes com os prazos pra dar tempo às palavras. te escuto muito bem daqui, viu?
Em seg, 1 de jul de 2019 às 14:48, Laura Castro <lauracastro.ar@gmail.com> escreveu:
maré, é bonito perceber aquilo que emergiu dos diálogos que traçamos no caminhar dessa troca de palavras. fico cá pensando no poder que tem todo dedo de prosa, todo encontro. de como é dele que nasce a faísca do possível. do tempo que passou, talvez estejamos agora menos no tempo da faca e mais no devir agulha que costura agora nossas experiências partilhadas. me parece que há aqui dois encontros em relevo, recorrentes: o meu na mata-mar dos pataxó no Extremo Sul da Bahia y o seu com as poetas nas brenhas do Sertão Pernambucano. penso que a experiência disso que chamamos Edições Zabelê, um projeto com o qual nos propusemos viver a escola indígena da Aldeia Kaí, em Cumuruxatiba, e a partir dela criar um livro, foi a experiência mais radical que vivi de criação no campo das artes na perspectiva de uma partilha do sensível. nossa estratégia de ação foi a realização de uma residência artística com uma série de oficinas na escola, entre escritas e visualidades, que resultou no livro lançado agora em 2019, “Kijetxawê Zabelê: Aldeia Kaí”. Primeiro vem o nome da escola, depois o da comunidade, um título-endereço que durante um tempo chamamos de livro-lugar. falo no plural porque realizamos isso a partir de um grupo de artistas que tem umbigo na Sociedade da Prensa e principalmente no nosso jeito de fazer livros de modo experimental, levantando e provocando tudo que for matéria de edição, que parecer coerente no percurso de escuta e escrita, de impressos e impressões. mas quando falo da partilha do sensível, de tudo que vivi e viverei nas andanças e ensinanças com os pataxó, para além de todas as etapas e modos do processo criativo que ali se engendrou, na Aldeia Kaí, pra mim o mais poderoso foi o afeto que se criou dessa relação. Afeto este que nasce no seio da poesia, da poesia vivida. Tamykuã Pataxó, uma irmã querida que fiz nesse processo, liderança da juventude no território, diz que a única coisa que a colonização não conseguiu matar foram os encantados. E foram eles o meu elo de conexão com as crianças ao ponto de, entre histórias e desenhos, construirmos encantados de papelão, na escala dos kitokes, e vivermos um livro vivo na mata, juntas, entre risadas e encantamentos. Foi dessas experiências que resultaram em YAMANI, a história da mãe dágua, uma das partes que compõe nosso livro, caso tenha curiosidade de ver está disponível em www.edicoeszabele.com.br O Extremo Sul é todo rodeado pela monocultura do eucalipto, Maré. As nascentes já começaram a secar. As grandes empresas de celulose, que abastecem as gráficas
de papel, estão ali, pilhando ainda o território. Ao passo que a expansão das religiões neo-pentecostais representam grande risco para as cosmologias afroindígenas, afinal de contas, não interessa ao capital a dimensão sagrada dos recursos naturais, a Iara, a caipora, o curupira. De modo que desde que este trabalho aconteceu na minha vida, eu não paro de me perguntar O QUE PODE UM LIVRO? Tenho tido muitas respostas a essa pergunta, mas ela se refaz sempre feito pele de cobra, indomável e nunca se satisfaz. por isso sempre a faço de novo. Hoje cedo deu de aparecer um bilhete que Xica, uma das crianças da Kaí, com quem tenho amizade desde 2016, que ela me deu no lançamento do nosso livro este ano. Ela dizia: nunca vou esquecer do que passamos. Sempre me emociono quando leio isso porque a lembrança daquilo que perdura no corpo, da experiência estética de criação dessas histórias, desse livro vivo partilhado, na mata, é pra mim a prova de fogo do afeto. Afetar e ser afetado. Resistir poeticamente. Viver a força dos encantados no corpo. Falar da mãe dágua. E isso redimensionou meu fazer e principalmente meu desejo de fazer livros em situações de co-autoria. Com os pataxó aprendi profundamente o significado do livro vivo. te escrevo da UFBA, estou debaixo de uma mata bem perto da Escola de Dança. A mata chia e eu sinto algo sobrenatural no topo do meu orí. Por um segundo tenho vontade de subir nas árvores e isso me dá uma saudade das crianças. Os ônibus lá fora sonoramente me trazem de novo para a cidade. Como é bom estar permanentemente em trânsito. Te mando uma foto em seguida de Tamykuã e do nosso livro vivo. Um beijo grande, Laura
Em qua, 10 de jul de 2019 às 13:05, Maré de Matos <maredematos@gmail.com> escreveu:
Laura, amada, ao te ler sinto parte do meu corpo em uma conexão extraterritorial. Aqui, agora, faz muito frio e uso um aquecedor pra dar conta de inventar um outro micro-clima. É curioso perceber que estas nossas trocas foram marcadas por um endereçamento, uma experiência geosensível, porque no meio desta terra que você percorreu e da terra do sertão que nadei, tem muitos símbolos que a colonização felizmente não matou. Fiquei pessoalmente encantada pela descrição dos gestos e atividades e com muita vontade de trabalhar coautoria, coedição, com partilha. Daqui, a incursão poética pelo sertão começou com o desejo de conhecer as poetas além do historiado. Este desejo se completa com a viagem porque quando chegamos pra registrar a presença destas poetas, entendemos justamente pelo vocabulário poético do pajeú, que a maioria delas, não se entendem nem se circunscrevem poetas. Logo, se abre uma janela em relação à esta pesquisa. Tem um preâmbulo que nos convida a um passo anterior, pra entender do que se trata este campo (que projetam pouco, que projetam seco mas que tem tanto e é verde). Assim, logo, entendemos mais do que é próprio deste território. Geográfico, histórico, situacional, social. Precisamos de uma pedagogia híbrida que dê conta de tocar as peles das mulheres, que surpreendem em todo contato. O princípio da oralidade como costura prática e estratégica de comunicação, as motivações poéticas tão imersas na ordem da vida; celebrações de nascimento e despedidas; a narrativa dos máximos e mínimos. Acionamos carros de som, rádio, vasculhamos antologias, disponibilizamos números, pesquisadoras do próprio pajeú, assim se forme a bússola complexa da nossa busca. O encontro, além do que se pode imaginar, dinamita qualquer projeção prévia. As existências múltiplas das poetas, ensinam de maneira sutil, que não há como mensurar rigorosamente suas complexidades, nem em uma página, sua humanidade. A motivação da pesquisa nasceu por supor que a potência da poesia destas mulheres, era maior do que se tinha notícia, e nesta incursão, esta suposição é tudo que se confirma. Concordo contigo, que neste momento, tecemos mais que o tempo das afiadas facas. Mas fica a impressão deste rastro, deste registro, que só desenha a forma, a partir da partilha da vida, no campo das experiências. Penso que tanto você no sul da bahia, quanto eu no pajeú em Pernambuco, colocamos à prova, o peso do livro em relação à asa da palavra. Em anexo, te mando esboços visuais do poesia pra pixo, que nasceu com desejo de ir pra rua. Com muito carinho, maré
ai de mim na cerimônia do chá xamã trocando a pele das manhãs em tardes da noite nu no quimono do corpo pele respirando tigres dragões manga espada ipês amarelos bananeiras em flor falando língua de não de sei não de não sei tanta gente tomando a vida devotadamente puta numa dupla múltipla penetração
leonardo frança
@ w w w l e of ra n ca
ENCRUZILHADAS
Antes de tudo está o futuro - Lara Perl, 2018. Editora Gris
imagem: Lara Perl, 2018. Um livro é uma sequência de espaços. Cada um desses espaços é percebido em um momento diferente — um livro é uma sequência de momentos. (Ulisses Carrión, 1975)
LIVROS DE ARTISTA, DESIGN E POÉTICA EM SALVADOR. TAYGOARA AGUIAR
Fique São - Laura Castro, 2018. Editóra e Duna editora
Marear - Taygoara Aguiar, 2018. Incubadora de Publicações Gráficas e Tiragem: laboratório de livros
imagem: Lia Cunha, 2018.
imagem: Caixa de Fósforos, 2018.
SEQUÊNCIA 1: imagens da produção do Experimento Zero, Feira Tijuana (SP) e Incubadora de Publicações Gráficas da RV. (1) Promovida pela livraria e galeria RV Cultura e Arte, a Incubadora de Publicações Gráficas se constituiu posteriormente como um selo editorial. Com o apoio do Governo do Estado, selecionou propostas de dez autores e autoras de livros de artistas e coletivos para participar de atividades formativas ministradas por pesquisadoras e pesquisadores de livros de artistas de várias cidades do país. Após o período de formação cada artista ou coletivo produziu uma tiragem de, no mínimo, 50 cópias de suas obras. SEQUÊNCIA 2: Imagens alternadas da boneca do livro O Armarinho e da sua versão finalizada. SEQUÊNCIA 3: Antes de tudo está o futuro (Lara Pearl, 2018); Sob os pés de quem anda (João Meirelles, 2017); Astroneto (Neto Machado, Jorge Alencar e TANTO, 2017); Noite (Zé de Rocha, 2016) SEQUÊNCIA 4-5: Legè, Matisse, Delacroix, Sonia Delaunay e Mallamé.
Neste ensaio, será apresentada uma amostra significativa de livros de artista soteropolitanos produzidos entre 2013 e 2019. Refletiremos sobre a importância da poética na formação do designer, contudo, tomarei um pequeno desvio para fazer breves considerações sobre livros de artista: o que são esses livros? Por que são chamados assim?
CENA 1: Abertura Esse texto-montagem é sobre cruzamentos e interseções entre a produção de livros de artistas em Salvador/BA e a realização de projetos colaborativos de designers e artistas, cujos caminhos se encontraram nos espaços-encruzilhadas das feiras de publicações independentes locais e da Incubadora de Publicações Gráficas 1.
CENA 2: Livros de artista Por volta do final do séc. XIX o termo “livre d’artist” já era usado para se referir a um tipo de publicação de luxo, produzida por artistas renomados, para o consumo da então recente burguesia industrial francesa (DRUCKER, 1995). Até a primeira metade do século XX — influenciados por movimentos como o futurismo, poesia concreta pop-arte, minimalismo e arte conceitual —, escritores, autores e
SEQUÊNCIA 6: páginas do livro A Ave (Wladimir Dias Pino, 1956). SEQUÊNCIA 7: Livro Sol (Almandrade, 2ed. 2016); Reduchamp (Augusto de Campos e Júlio Plaza, 2ed. 2009); Homenagem a Man Ray (Paulo Bruscky, 1996); Vazio (Almandrade).
artistas visuais adotaram estratégias poéticas que tinham no objeto livro um campo com potência de expansão para além dos aparentes limites estabelecidos pela anatomia hermética dos livros funcionais.
Contudo, foi a partir da década de 1970 que o termo “livro de artista” passou a ser usado para referenciar um tipo de obra que não poderia ser classificada facilmente como manifestação das artes visuais e, apesar de se aproximar do formato livro, muitas vezes possuía características particulares que a diferenciava do que se entendia como tal (HELLION, 2003).
Várias autoras e autores2 se arriscaram a definir limites e classificações para esse tipo de arte. Para Derdyk (2013), talvez essa busca de contornos mais estáveis para algo de natureza tão transitória e móvel, seja de fato o grande mérito de todo o debate teórico que cerca este gênero. “Há tantas definições para livros de artista quantas forem
as poéticas experimentadas” (NEVES, 2012, p. 90), portanto, usaremos esse termo como um “guarda-chuva” sob o qual abrigam-se várias formas, processos e teorias relacionadas aos caminhos e experimentações realizadas com o objeto livro em Salvador, nos últimos anos.
SEQUÊNCIA 8-9: imagens de mão folheando os livros de Silveira (2001), Cadôr (2016) e Derdyk (2013).
(2) Paulo Silveira (2001) faz um excelente resumo do pensamento de autores e autoras como: Riva Castleman (1994), Johanna Druker (1995), Anne MoeglinDelcroix (1997), Clive Phillpot (1982). Mais recentemente, Edith Derdyk (2012) e Amir Cadôr (2016) se destacaram entre outros pensadores do livro de artista no Brasil.
SEQUÊNCIA 10: imagens do vídeo Dia de Produção, da editora Tiragem. Disponível em: https://vimeo. com/180166427
SEQUÊNCIA 11: mãos interagindo com a revista Di Bolso e o livro de Santos (2012). Imagens dos ateliês da EBA/UFBA. (3) Resultado da fragmentação do sistema de produção. Faz com que o trabalho de cada indivíduo seja apenas uma pequena parte de um processo que interessa a milhões de pessoas separadas por milhares de quilômetros. Para Santos (2012), este tipo de alienação ocorre quando “a percepção desse grande espaço torna-se, então, fragmentária, enquanto espaço circundante só explica uma parcela de sua existência”. (4) Fundada em 1933 na Carolina do Norte/EUA, segundo Santos (2016, p. 54), “A instituição prezava uma abordagem mais pragmática e livre, que pudesse fornecer ao estudante meios para reconhecer sua linguagem individual e desenvolver seu próprio processo metodológico”.
SEQUÊNCIA 12: TCCs de Design-EBA/UFBA. “Rever” (Taygoara Aguiar, 2007); “As mulheres Abayomi” (Adilson Passos, 2015); “Meus Heróis” (Polianna Silva, 2016); “Fabrincando” (Tamires Lima, 2012).
CENA 3: Design e poética. O cenário soteropolitano do livro de artista contemporâneo é fruto de uma série de diálogos que desencadearam processos de produção colaborativos. Tais processos possibilitaram que artistas se aproximassem do pensamento projetual do design, ao mesmo tempo que os designers interessavam-se em investigar os elementos de suas próprias condutas criadoras.
como “alienação do espaço do homem3”, e “torna o homem estranho ao seu trabalho, estranho ao seu espaço, à sua terra, transformada praticamente em fábrica”. Quando se trata da formação de designers, este processo gera uma grande lacuna no que tange o autoconhecimento e a compreensão clara do papel deste profissional no processo de produção como um todo. De fato, salvo raras exceções como a Bauhaus e o Black Mountain College4 , as principais escolas do pensamento projetual do Design ignoraram um fator crucial para a realização do projeto: a pessoa designer e sua poética, ou seja, o autor ou autora da criação e os elementos de sua conduta criadora. Mas como isso se reflete na formação deste profissional?
Investigações poéticas desencadeadas a partir de processos e trocas comumente desestimuladas nos cursos universitários de Design do Brasil, cujos currículos especializantes muitas vezes priorizam a especialização, em detrimento da arte e de uma visão projetual mais holística.
A especialização crescente da formação acadêmica está ligada ao que Santos (2012, p. 28) classifica
Uma poética “é um determinado gosto convertido em programa de arte, onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma pessoa tornada expectativa de arte” (PAREYSON, 1997, p. 17). Sinto que ao abrir mão de investigar profundamente os seus gostos e os
meios físicos que prefere utilizar ao criar suas obras, o designer, a priori, não está totalmente instrumentalizado
ajudando o talhante a conceber uma tabuleta mais apelativa, através da escolha de caracteres e cores menos vulgares e rudimentares, quer ajudando a elite a compreender os verdadeiros problemas que podem fazer progredir a ideia de coletividade (MUNARI, 2015, p. 113).
SEQUÊNCIA 14: imagens de mãos folheando os livros Artista e Designer, de Bruno Munari (2015), e Design Visual: 50 anos, de Alexandre Wolner (2003).
para posicionar-se enquanto indivíduo agente da conduta criadora. Deste modo assume, em muitos casos, o papel de mediador do desejo do outro. Assim, caso siga a cartilha do pensamento acadêmico do design contemporâneo, apropria-se de ferramentas de diagnóstico da psicologia e ciências sociais (canvas, dinâmicas de grupo, mapas mentais, painéis semânticos etc.) para fundamentar projetos que equalizem, da forma mais adequada possível, os desejos, viabilidade orçamentária e limitações técnicas (dos outros). Tendo em vista sempre o que se enxerga a partir da “lente do desejo” das pessoas que serão afetadas pelo projeto de Design (IDEO, 2009, p. 5).
SEQUÊNCIA 13: imagens de mãos folheando o livro Business Model Generation, de Alexander Osterwalder (2013) e a cartilha da IDEO (2009).
Em ambas as situações está implícito o apagamento do sujeito da criação. No primeiro caso, é comum priorizar inovação e empreendedorismo, conceitos muitas vezes mal-interpretados e facilmente cooptados pela lógica da “sociedade do desempenho” (HAN, 2017b).
SEQUÊNCIA 15: imagens de mãos colando notas adesivas em um mural. 51
No segundo exemplo, o aparente domínio das verdades universais faz transparecer a crença em um rigoroso conjunto de regras, metodológicas e estético-formais, importadas da Alemanha na segunda metade do século XX, que estimulavam a independência do Design em relação à Arte. SEQUÊNCIA 16: imagens de mãos folheando Duarte (2013)
No extremo oposto, caso tenha sido formado em uma escola mais racionalfuncionalista, o sonho do designer (se chega realmente a sonhar) é eliminar, tanto quanto possível, o analfabetismo cultural de todos os estratos sociais, quer o faça
Ao pensar as relações entre Design e Arte a partir da ideia que o Desenho industrial era o modo de ser da criação artística moderna, o designer tropicalista Rogério Duarte entendia
o uso “como condição por experiência” no Design, em contraposição à atitude contemplativa. Duarte (2013) considerava que a estética das formas mecânicas da produção industrial era a arte da modernidade, e acreditava que a produção artística não estaria mais voltada para a contemplação, pois o uso — que a priori pressupõe necessidade — seria a força de arranque do processo criativo modernista.
ruptura de equilíbrio no interior de um sistema, o impulso de restaurálo. Se consideramos que todas as relações são sistemas, teremos a necessidade como móvel de toda ação, seja de procurar alimento, abrigo ou amor. A necessidade, com a nitidez que lhe caracteriza, exclui o gratuito”. (DUARTE, 2013, p. 190)
SEQUÊNCIA 17: Beta Archtecton, Malevich (1926) e Bichos, Lygia Clark (1950). SEQUÊNCIA 18: imagens de capas de discos e poster criados por Rogério Duarte.
SEQUÊNCIA 19: imagens de de mãos interagindo com os livros da Incubadora de Publicações Gráficas (2018). Territórios Movediços (Luma Flôres e Felipe Rezende); Marear (Taygoara Aguiar); Templo (Pedro Marighella); Escuro (Lia Cunha e Leonardo França).
SEQUÊNCIA 20: imagens de mãos interagindo com os livros da Incubadora de Publicações Gráficas (2018). Diário do pó (Leandro Estevam); Multidão (Lucas Moreira e Editora Gris).
Foi a intuição do uso como único meio de comunicação estética que levou um Malevich à construção das arquiteturas, ou uma Lygia Clark a construir os Bichos. Só que nos dois casos a relação falhava por não haver a necessidade do objeto; era uma tentativa de criar o uso na gratuidade, a relação permanece no plano do absurdo (DUARTE, 2013, p. 188).
É o próprio Rogério Duarte que nos faz questionar a afirmação acima, quando explica que “necessidade”, “É quando se estabelece uma
Ao concordar com a ideia de necessidade como impulso para a restauração do equilíbrio das relações humanas, somos tomados pelo seguinte questionamento: a função poética ou estética de objetos como as Arquiteturas e os Bichos já não fariam parte das necessidades humanas tanto quanto amar, morar ou se alimentar?
Acredito que a apropriação pelo uso de objetos que questionem as lógicas hegemônicas, cuja função poética se sobreponha à necessidade de possuir, pode ser uma estratégia para manter
as relações (sistemas) fora do “plano do absurdo” e assim, restabelecer o equilíbrio interno dos sistemas (relações) cotidianos.
Talvez a necessidade da arte — entendida como experiências disparadoras de reflexão e questionamento da vida em sociedade — possa ser, em alguns casos, justamente o motor de partida de uma poética-projetual que se instaura a partir da investigação individual do designer, enquanto ator da sua conduta criadora.
SEQUÊNCIA 21: imagens de de mãos interagindo com os livros da Incubadora de Publicações Gráficas (2018). Longe, um mar movendo em meus ouvidos (Yohanna Marie); Travessia (Agnes Cajaíba); Vagalume (Clara Cerqueira eTúlio Carapiá) e Levante, o sistema caiu (Daniel Lisboa)
dos outros seres humanos com o seu ambiente. Contudo, essa investigação individual não pode ser confundida com um processo solitário de isolamento. Pelo contrário, se dá alternadamente entre socialização e introspecção reflexiva, movimentos que possibilitam ao eu a experiência do outro em sua alteridade, do eros que o resgata de seu inferno narcisista levando-o, em pensamento, a trilhar o intransitado (HAN, 2017a).
SEQUÊNCIA 22: imagens da exposição Respiros Poéticos (Zulmira Correia, 2019) e de outras experiências para a revista Miolo 2. SEQUÊNCIA 23: imagens da artista Lia Cunha imprimindo gravuras em metal para o livro Escuro (2018), e trechos de um dos vídeos da série Muda (2018) SEQUÊNCIA 24: imagens das feiras híbridas soteropolitanas Tabuão (2016), Paraguassu (2017), Ladeira (2017) e Pedra Papel Tesouro (PPT).
Sinto que ao conhecer a si mesmo no plano individual e se comprometer com os princípios poéticos de sua conduta criadora, desde sua formação, o designer estará mais apto para mediar a interação
CENA 4: Encruzilhadas. Peço licença para tomar respeitosamente de empréstimo o conceito de encruzilhada das
religiões de matriz africana, para as quais estes espaços são regidos por sua própria divindade. SEQUÊNCIA 25: imagens do Ativa Atelier, a mais recente encruzilhada, no bairro do Rio Vermelho. SEQUÊNCIA 26: imagens das feiras Tiijuana de 2014 e 2018.
SEQUÊNCIA 27: imagens de trabalhos de design de Lia Cunha, Tiago Ribeiro, Juliana Rangel e Leandro Estevam.
(5) As Editoras Duna e Gris, além do coletivo Tanto, são exemplos de iniciativas soteropolitanas que se apropriam do livro como estratégia de produção artística colaborativa.
Exu, senhor das encruzilhadas, abre os caminhos. Contudo, “a noção de caminho assentada no signo Exu se compreende enquanto possibilidade, e não como certeza” (RODRIGUES JUNIOR, 2018, p. 78).
O universo de encruzilhadas das feiras de publicações independentes possibilitou tanto o consumo fetichista, quanto as trocas de saberes e fazeres. Potencializou encontros entre percursos criativos de diferentes autores e autoras. O designer canadense Bruce Mau, ao falar de seus trabalhos, realizados no hemisfério norte nas décadas de 1990 e 2000, ilustra bem as características das abordagens plurais adotadas nesses cruzamentos soteropolitanos.
Ao contrário do que pensa a lógica ocidental, nas encruzilhadas um caminho não se torna viável em detrimento de outros. “A encruzilhada esculhamba a linearidade e a pureza dos cursos únicos, uma vez que suas esquinas e entroncamentos ressaltam as fronteiras como zonas pluriversais, onde múltiplos saberes se atravessam, coexistem e pluralizam as experiências e suas respectivas práticas de saber” (Idem).
“A nova abordagem substitui a divisão de trabalho pela síntese, clientes e contratações por colaboradores e parceiros, executar tarefas por negociar espaços, produção máxima por feedback máximo, e forma aplicada ao conteúdo por forma e conteúdo simultaneamente evoluindo e enriquecendo um ao outro” (MAU, 2000, p. 327). De fato, por meio da formação de coletivos e pequenas editoras5 no período entre 2013 e 2019, houve uma guinada na direção da prática coletiva e das trocas interdisciplinares, no campo do livro de artista. A Tiragem e a Sociedade da Prensa são exemplos que ilustram essa tendência local.
SEQUÊNCIA 28: imagens de mãos interagindo com os livros 101 (Duna e Tanto, 2017) e Experimento Zero (Tiragem, 2016).
O selo editorial Tiragem: laboratório de livros surge como um projeto de extensão da EBA/UFBA em 2014. Na prática, passou a atuar como um coletivo, cuja formação dinâmica e não hierárquica reuniu artistas e designers interessados em produzir livros naquele momento em Salvador.
SEQUÊNCIA 29: imagens do Festival de Ilustração da Bahia (2014) e da Incubadora de Projetos Gráficos (2018).
CENA 5: Tempo e memória como poética Estes caminhos me levaram a compreender a importância da investigação poética individual no Design e me colocaram diante de uma grande incógnita: Quais seriam os elementos principais da minha conduta criadora enquanto designer?
No mesmo ano, por ocasião da realização do Festival de Ilustração da Bahia, a Sociedade da Prensa — coletivo do bairro do Santo Antônio que já produzia encontros e realizava projetos autorais em colaboração com outros artistas — organizou uma pequena feira de arte impressa juntamente com a produção do Festival. Sinto que este evento foi o pedido de licença para inaugurar os diversos outros caminhos6 que se abriram para o livro experimental soteropolitano desde então.
Penso que ainda seja cedo para afirmar — mesmo porque responder a essa questão é algo mais familiar ao crítico do que a quem cria –, no entanto, arrisco descrever o que enxergo daqui da entrada dessa trilha entre encruzilhadas.
(6) Esta feira, organizada no Festival de Ilustração da Bahia foi o embrião da Feira Tabuão (2016) e, posteriormente, das Feiras Paraguassu (2017) e Ladeira (2017). Em 2018, as pessoas que organizaram esses eventos atuaram como instrutores e instrutoras da Incubadora de Publicações Gráficas da Galeria RV. Paralelamente a essas encruzilhadas, porém sem nenhuma ligação direta, a artista visual Daniela Steele organizou uma série de exposições — entre 2015 e 2018 — em Salvador e em Portugal que possibilitou importantes cruzamentos entre artistas locais, do Brasil e do mundo. SEQUÊNCIA 30: imagens de mãos interagindo com o livro Diza (Taygoara Aguiar, 2018).
Referências:
SEQUÊNCIA 31: imagens de mãos interagindo com o livro Marear (Taygoara Aguiar, 2018).
CADÔR, Amir Brito. O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. CARDOSO, Rafael. Design, cultura material e o fetichismo dos objetos. Arcos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 5, p.14-39, 1998.
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De onde estou já posso perceber que, neste caminho, as minhas lembranças e experiências operam como guias para a produção de livros de artista. Contudo, me interessa particularmente que tais livros possam ser, de preferência ao mesmo tempo, frutos dos registros afetivos dos espaços de minhas memórias, enquanto imaginação criativa; e campo para experimentações coletivas acerca da escultura do tempo impresso, em busca de uma poética projetual (ou um projeto de poética?).
CARRIÓN, Ulisses. A nova arte de fazer livros. Belo Horizonte: C/arte, 2011. DERDYK, Edith (org). Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Senac, 2013. DRUCKER, Johana. The century of the artists’ books. New York: Granary Books, 1995. DUARTE, Rogério. Marginália1. Frankfurt, Portikus: Bom Dia Boa Tarde Boa Noite, 2013. HAN, Byung-chul. Agonia do Eros. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017a.
HAN, Byung-chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017b. HELLION, Martha. El origen del libro de artista moderno. In: HELLION, Marta et al. Libros de artista. Amsterdam: Turner, 2003. Cap. 1. p. 15-21. IDEO (EUA) (Ed.). Human Centered Design: Kit de ferramentas. 2. ed. San Francisco, 2009. MAU, Bruce. Life Style. London: Phaidon, 2000, p. 327. MUNARI, Bruno. Artista e designer. Lisboa: Edições 70, 2015. NEVES, Galciani. Entre páginas e não páginas: breve inventário de livros de artista. In: DERDIK, Edith (org). Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac, 2013. PP: 61-91. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PASSERON, René. Da estéticza à poiética. Porto Arte, Porto Alegre, v. 8, n. 15, p.103-116, 1997.
PHILLPOT, Clive (Ed.). Books, bookworks, book objects, artists’ books. Artforum, New York, p.77-79, 1982. RODRIGUES JUNIOR, Luiz Rufino. PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS. Periferia, [s.l.], v. 10, n. 1, p.7188, 12 abr. 2018. UFRJ. SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Editora da Usp, 2012. 96 p. SANTOS, Victor Hugo Carvalho. Metodologias projetuais de design e design de interiores: conexões no processo criativo. 2016. 166 f. Dissertação (Mestrado) - Artes Visuais, Escola de Belas Artes/UFBA, Salvador, 2016. SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
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VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: BARBOSA, João Alexandre (Org.). Variedades. 3. ed. Rio de Janeiro: Iluminuras, 2007. p. 179-192.
Este ensaio é um exercício de linguagem que se apropria do conceito de montagem para propor múltiplas experiências de fruição — impressa e audiovisual. Acesse o vídeo através do QRcode ao lado, ou digite: vimeo.com/362783214
t r a q u i veja bem por onde anda: há de
modo
objetos
desordenado
e
espalhados
indecentemente
perigoso.
são restos de notícias que escuto todos os dias não
consigo
pôr
porque
e leio e vejo também. ordem
na
casa
não
há
nenhum
menos ainda em progresso. o que me dá aflição não é o terror que vem de cima, mas o silêncio pontual quando podia um grito dizer o nosso desespero, mas não.
há tanto barulho
os decibéis explodindo porque
eles
não
o próprio silêncio que aquiesce
com o horror autoritário que
t a n a s todos
os
o caos não é meu, é nosso.
sentido em pôr ordem,
cômodos ao sair, cuidado ao atravessar a própria garganta. vai que uma traquitana derrubada enquanto lia um jornal lhe faz cair e gritar:
por
todo o tempo,
nossos tímpanos
querem escutar
medra em nossas esquinas.
a l ex s i m @alexsimm1
daniel lisboa @lambesdomal
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Nota introdutória: deixo aqui, caro leitor, um pouco do meu processo de metamorfoses de descobrimentos. De mim e de outros. Um corpo de múltiplas vozes, tomadas de formas, próprias, delas, que encontraram em mim um modo de se expandir, de existir, enquanto poesia, enquanto materialidade. É a própria escrita que me trouxe para este momento, uma forma particular de respiro, meu eu, minha alma, tudo num só, em mim. Respiro porque sinto, sinto tantas coisas. Respiro porque estou viva, um corpo de múltiplas veias enraizado em sílabas.
ZULMIRA CORREIA
1. Respiros são seções entre uma matéria e outra dentro da revista. 2. Arlindo Souza de Carvalho, trabalha na Gráfica J Coutinho na Ladeira do Taboão.
Esta experiência foi inicialmente pensada coletivamente durante o planejamento do segundo número da revista MIOLO, da editora de livros experimentais, Tiragem: laboratório de Livros. Naquela ocasião me foi apresentado o livro de Guilherme Cunha Lima, O Gráfico Amador, e a vasta possibilidade do designer enquanto artista e também poeta. Nesse viés, escrevemos o projeto “Respiros Poéticos”, em parceria e orientação de Laura Castro.
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Inicialmente, o objetivo era descobrir a cidade, coletar dados, entrevistar mestres tipógrafos da cidade de Salvador e vivenciar o local de trabalho destes. Essa perspectiva veio da necessidade de fortalecer os elos entre a universidade e a comunidade, sobretudo na troca com outros saberes, no caso dos mestres gráficos. Assim, também surgiram as primeiras poesias, dos trajetos, das pessoas. O resultado das experimentações com tipografias artesanais e poesias visuais iriam gerar diagramações para serem usadas nos respiros1 da revista MIOLO, por isso, o nome da experimentação me pareceu claro desde o princípio: Respiros Poéticos.
O primeiro suspiro foi na cidade, quando entrevistei o mestre tipógrafo Arlindo2, no Taboão. Ali também foi minha descoberta como escritora, como poeta, como alguém que acessa a poesia nas suas diversas materialidades. Geralmente os designers são chamados para diagramar textos e/ou conteúdos produzidos por outras pessoas. O desafio era atuar como escritora, a experimentar outros campos artísticos, como
a literatura, e torná-la parte do meu processo criativo. Além de pensar a poesia para o espaço da página através da inter-relação de diferentes formas artísticas, das relações intermidiáticas, criando diálogo conceitual entre o elemento visual e as palavras. Inspirada pela descoberta recente do movimento do Gráfico Amador, comecei a trabalhar segundo a perspectiva de experimentação gráfica tipográfica, de processos, linguagens e outras formas de fazer. Segundo Lima (2014), entre os anos de 1954 e 1961, um grupo de intelectuais, ilustradores, escritores, editores, poetas e artistas, autodenominado Gráfico Amador, produziu em Recife, mais de 30 obras que vieram a se tornar marcos na história contemporânea da literatura, da arte e do design do Brasil. O grupo desejava publicar seus próprios escritos e o circuito editorial não era acessível. Esse coletivo trabalhava com a prensa manual e tipos móveis, publicando textos literários — especialmente poesias —, e algumas tiragens eram até assinadas. Ao longo dos anos, o Gráfico Amador, publicou autores como Carlos Drummond de Andrade, Ariano
Suassuna e João Cabral de Melo Neto, todos membros do coletivo. Para Bonan (2017, p. 4), o Gráfico Amador representa uma tentativa, em pleno anos 1950, de busca por um design “nacional”, mais próximo à linguagem da cultura popular, em um momento em que a influência construtiva se fixava no Brasil no campo estético. “Uma oficina que explora as técnicas de impressão manual e reverencia a ilustração, que por sua vez salta aos olhos pela sintonia com a cultura popular pernambucana, em oposição às tendências construtivas que chegavam ao Brasil, por influência da Bauhaus e da Escola de Ulm” (BONAN, 2017, p. 6).
Embora tenha durado poucos anos, o Gráfico Amador, influenciou a relação da literatura com as artes gráficas no Brasil. Em sua obra é possível notar a escolha dos tipos, uso dos espaços em branco e disposição de linhas e do texto na página. Sendo assim, Respiros Poéticos pretendeu experimentar processos de criação que envolvessem o diálogo entre design, artes visuais e poesia, dentro da experimentação em diagramação, tipografias artesanais e poesia.
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Conheci Arlindo numa tarde de maio. Eu cheguei, ele estava sentado, escondido em um mundo que ninguém vê.
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Foi muito gentil quando eu disse que queria entrevistá-lo e saber mais sobre tipografia. Algo se iluminou no olhar dele; aquela vontade de ensinar a alguém interessado em ouvir o que ele tinha a dizer. E ele falou muito. Falou sobre sua trajetória, sobre os tipos e até ligou as máquinas. Seu Arlindo tinha um sorriso de menino, por isso eu tive que escrever uma poesia sobre ele e seu sorriso, sobre seu orgulho de ser quem era, pois era ali, naquele cantinho empoeirado na Ladeira do Taboão, que ele tinha se encontrado. Seu Arlindo tinha me falado que trabalhava com tipografia desde 1978, quando entrou no curso do SENAI, e desde então vive de impressão tipográfica, já há mais de 40 anos. Trabalhou em várias gráficas, como a Gráfica Central e a Gráfica Melo e Melo. Atualmente recebe pedidos de cartões de visita, calendários, e, principalmente, notas fiscais.
Arlindo não deixou de mencionar o processo que a tipografia enfrenta perante o avanço da tecnologia das gráficas rápidas... e isso o entristeceu. Ele contou que as demandas vêm diminuído há cerca de 10 anos, sem perspectiva de mudança. Além disso, seus filhos não quiseram seguir o mesmo ramo que ele, assim, Arlindo previu que a herança tipográfica terminará com ele. Estive perto também quando ele imprimiu alguns de seus trabalhos. Senti a vibração das máquinas, o som, tudo ligado. Arlindo desenvolveu um trabalho demorado, minucioso, afetivo. O cliente escrevia o que queria e ele montava tudo. Um trabalho criativo de diagramação, de pensar espaços, entrelinhas. Foi interessante vivenciar a relação tão particular que Arlindo desenvolvia com as máquinas, a rapidez, o senso de diagramação. Uma relação de afeto, como se cada pedaço da gráfica fosse parte dele e ele, dela. Justamente por isso, como poderia ele ir embora se era lá onde havia se encontrado? Achado um mundo seu, sustentado de infinitos, de tipos.
O processo de experimentação começou a tomar um rumo diferente em junho. Era o último mês do semestre, as demandas estavam com prazos apertados, então comecei a me distanciar da proposta inicial de visitar mestres tipógrafos e descobrir a cidade. Esse foi o mês em que eu fui de encontro a mim. Escrevi uma poesia por dia, como um diário, como um respiro por dia, num movimento de me resgatar da insônia, da mecânica da rotina, dos pensamentos inquietos. Queria despertar meu olhar para outras coisas ao redor. Queria ver o sol nascer, a lua chegar, mas estava tão corrido que eu não conseguia parar. Nesse tal movimento de minhas palavras para comigo, às vezes eu até me questionava: O que é o tempo? Você sente a duração do dia e da noite? A rotina é tão mecânica, nada muda nunca. Isso não me espanta, já senti um parafuso na nuca. É meu sistema ligado vinte e quatro horas por dia. Nesse processo, de desacelerar meu sistema, escolhi fazer um livro de poesias bordado. O bordado é uma arte afetiva, demorada. Ali, em meu processo de costura, de linhas e agulhas, eu conseguia
parar em meu dia. Limpava minha consciência e pensava nos percursos da costura, do seu encontro com o tecido. Essa relação com o bordado teve relação direta com minhas vivências dentro de outro projeto da EBA, a Teciteca3, sob a orientação da professora Priscila Lolata. Dessa maneira, as experimentações poéticas se desenvolveram mais da minha escrita, do meu trajeto formativo como estudante de design dentro da Escola de Belas Artes. Esses processos, são desdobramentos de duas experiências de ensino de pesquisa que têm a ver com a revista MIOLO, através da investigação de tipografias artesanais e mestres tipógrafos em Salvador, e da Teciteca e sua prática afetiva de bordados. De tal forma, o projeto passou a ser pensado como um percurso poético, um itinerário formativo. Mas, por fim, nesse processo, de acesso a mim, veio rastejante, ao meu encontro uma energia de outro mundo. Eu.
3. A Teciteca é uma atividade de pesquisa, ensino e extensão do Núcleo Griot, um programa vinculado ao curso de Design da Escola de Belas Artes (EBA), que esteve ativa até o segundo semestre de 2015, e retornou às atividades sob a orientação da professora Priscila Lolata. A Teciteca se articula com o ensino de graduação e a extensão universitária por meio da promoção de diversas atividades educativas. A pesquisa da Teciteca tem foco na catalogação de tecidos/ não tecidos produzidos de modo artesanal, nos territórios de identidade do Recôncavo, Portal do Sertão e Região Metropolitana de Salvador, para o desenvolvimento de uma biblioteca de acervo têxtil em versões física e virtual.
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Retornei aos tipos em agosto, quando realizei experimentações com tipos móveis na Sala de Gravura com a ajuda do professor Evandro Sybine. Na ocasião, o professor me emprestou uma variedade de tipos, me ensinou e orientou na hora da impressão. Foi um momento de liberdade de criação artística, de possibilidades de diagramação e de materiais diversos (mesmo a ideia sendo usar apenas papel vegetal). O uso desse tipo de papel partiu da vontade de experimentação quanto à transparência dele, e possibilidade de sobreposição de palavras, do visto e não visto. O resultado desse percurso deu origem à exposição nomeada de “Respiros Poéticos: percursos, poesia e materialidade” na Galeria do Aluno, nos dias 5 a 20 de setembro de 2019.
Uma investigação pessoal que levou ao meu amadurecimento poético enquanto designer e artista, presente dentro dessa experimentação com composição tipográfica, experimentação em técnicas de impressão e outras linguagens. Nesse sentido, Aloísio Magalhães foi um referencial importante. Aloísio, como um designer intuitivo, que possui investigações em diversas linguagens e mídias, uma formação única com a literatura dentro do Gráfico Amador, através da feitura dos livros, postura experimental em técnicas e composição tipográfica. Esse caráter de experimentação é sua marca perante a geração de designer modernista da qual faz parte, e continua sendo sua marca até hoje. Para mim, foi assim, possibilidades infinitas, palavras que me cercavam, minha voz, principalmente. Vinha de lá, de longe de cá, no calcanhar no pé do ouvido serpenteando meus ossos a dobra do pescoço. Até mim. Em mim. Eu. Referências
O processo de experimentação despertou o interesse para outras linguagens e afinidades estéticas, cuja a importância da investigação, processos e percursos expandiu minhas competências além do projeto funcional. Percebo, hoje, como um caminhar em minha busca do que me interessava, a escolha de elementos que falavam de mim.
BONAN, Amanda. Gráfico Amador. Catálogo da exposição realizada na CAIXA Cultural São Paulo. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Circuito. 2017. Itaú Cultural. In: Chico Homem de Melo - Ocupação Aloisio Magalhães (2014). 2014. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=gFnZw4o4P4I>. Acesso em 21 set. 2019. LIMA, Guilherme Cunha. O Gráfico Amador: as origens da moderna tipografia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Verso Brasil. 2014.
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Impossibilidades, descabimentos e inoperâncias. Vídeoinstalação 4’35’’ Belo Horizonte, Brasil, 2018 https://bit.ly/2qkXwTW
PEDRO BOMBA
sobre aquilo que não tem efeito e é ineficaz. sobre aquilo que não opera. sobre aquilo que não é plausível diante de uma qualidade apropriada, oportuna. inicio aqui um certo exercício de tentar preencher as condições necessárias de ser e existir. tornar a coisa num ato imaginário capaz de alcance.
[1. rasgar uma pedra] estou ao centro da cena enquanto o espectador está diante da imagem. aqui temos um plano aberto com um número considerável de objetos em cena. contar suas quantidades é capaz de distrações. a luz explode atrás mas o que importa são as mãos e o concreto. quero com isso rasgar a pedra ou melhor, rasgar uma rocha, rasgar o concreto. quero rasgar a concretude.
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que som sai, então? que som? é possível ouvir então o rasgo de pedra se por ventura soprar um vento trazendo linguagem.
[2. empurrar o vento] retorno à primeira cena. desta vez aplico a ausência. é a mesma e é outra imagem. o fato é que agora a inoperância está no plano do invisível. quero, portanto, criar uma ligação entre o ambiente em que a imagem se encontra no momento da captura e o ambiente em que se encontra o espectador no momento desta projeção. diante disso quero aqui levantar a presença
que vento que vento? q no momento que vento sai
daquilo que é sabido por todos nós. farei, no entanto, a ação de empurrar o vento. quero deslocá-lo contrariar a sua força. não são mãos que estão suportando. estas mãos empurram o ombro do vento querem criar deslugares. que som sai, então? que som? que som sai no momento de empurrar o invisível?
[3. assoprar o som] mais uma vez estou ao centro da cena. agora no intuito de um certo descabimento. na intenção de criar a inoperância exata de uma vibração. através de uma corrente de ar provocada intencionalmente farei a ação de assoprar o som, ou seja, de afastar por milésimos a presença dele. fazer de uma maneira capaz de retirar todo tipo de som da imagem deixá-la como uma fotografia parada estática guardando a ausência e a memória. no entanto, pelo fato de ter criado anteriormente uma ponte entre o ambiente da imagem e o ambiente da projeção não terei condições de retirar o som do ambiente da projeção.
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sendo assim, a questão chave é: que vento sai, então? que vento? que vento sai no momento do sensível? que vento sai da imagem? que vento sente?
sai então? que vento sai da sensível? i da imagem?
clara cerqueira túlio carapiá @claracerqueira_f @tuliocarapia
INSURGÊNCIAS
RESISTÊNCIAS RE-EXISTÊNCIAS MODOS DE RESISTIR E REINVENTAR RELAÇÕES
Lia Krucken Ludmila Britto
insurgir v. (1836) 1 t.d. e pron. revoltar(-se) contra um poder estabelecido; levantar(-se), sublevar(-se), erguer(-se) | <alguns estados insurgiram-se contra a União> 2 pron. p.ext. expressar com atitudes ou palavras desacordo em relação a (algo); opor-se, reagir <i.-se contra abusos> | <i.-se contra a injustiça fiscal> 3 t.i.int. obsl. surgir, vindo do fundo; emergir, sair, erguer-se <o monstro insurgiu (do mar)> ETIMOLOGIA lat. insūrgo, is, rēxi, rēctum, gĕre, de in- + surgĕre ‘levantar-se sobre ou contra’
Fonte: trechos selecionados do aplicativo Dicionário de Português licenciado para a Oxford University Press, consulta em 10 de junho de 2019.
1. Em entrevista para Shipley (2010, p. 654) 2. Exposição coletiva realizada em 2018 no Agora’s Platform for Latin American Artivists, em Berlim. Obras: (1) Relações coloniais, instalação da porto-riquenha Melanie Rivera Flores. (2) Misstake, performance da brasileira Andressa Cartegiani. (3) Eu sou o Portfólio, autotatuagem ao vivo da brasileira Pêdra Costa 3. insurgencias.net
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Por meio de imagens falamos de quatro coletivos politicamente engajados, que buscam mudança social e representam formas de resistência e re-existência. A atuação destes coletivos, assim, podem ser descritas como insurgentes, no sentido de rebelarem-se como resposta a situações que ferem os direitos humanos, promovendo uma reflexão sobre o direito à livre expressão e a questões relacionadas a gênero, ao racismo, dentre outras. Para falar de seu potencial em provocar mudanças epistemológicas e socioculturais, emprestamos a expressão “criatividade da prática” apresentada por Mbembe (2010)1, como “as formas com as quais as sociedades compõem e inventam a si próprias no presente”.
o contexto contemporâneo que a prática possibilita é essencial para refletirmos sobre possibilidades de atuação de artistas e designers, bem como sobre a pesquisa e o ensino nas Artes e no Design (além de outras áreas).
Mbembe (2010) também evidencia que precisamos entender “o social” como uma questão de composição e experimento; e não tanto como uma questão de ordem e contratos. Perceber a capacidade das sociedades em produzir continuamente algo novo e singular, ainda não pensado e que ainda está para ser acomodado dentro de sistemas e linguagens conceituais estabelecidos, é uma condição para a possibilidade de qualquer teoria, aponta o autor (ibidem).
¡n[s]urgênc!as2 nasce em 2018 com 12 artistas latino-americanos politicamente engajados, que também são migrantes, morando em Berlim. Esse coletivo aborda gênero, raça, censura política e liberdade de expressão, dentre outros temas. A iniciativa foi idealizada pela curadora Paz Ponce, por meio da Agora, plataforma para artivistas latino-americanos, e abriga diversas modalidades de projetos. O objetivo é abrir espaço para compartilhar a diversidade de processos artísticos e abordagens que se manifestam sobre o tópico de insurgências, referindo-se ao sentido de urgência e emergência de práticas artísticas socialmente conscientes, bem como posições ativistas do sul. A troca intensa entre os artistas relacionamse tanto às práticas e “histórias do sul” — às vezes compartilhadas, outras muitas vezes desconhecidas —, quanto ao desenvolvimento de estratégias para produzir arte e viver como artista na diáspora. Esta troca está relacionada a estratégias de sobrevivência, como evidencia uma das artistas do coletivo, Pêdra Costa, em entrevista à Mombaça (2019): “Não acho que [no Brasil] deixamos o período colonial. Nós continuaremos a lutar e sobreviver com ferramentas que viemos desenvolvendo, com conhecimento invisível”.
É sobre este aspecto que a pesquisa sobre os coletivos é especialmente importante. Entender as iniciativas e os novos entendimentos sobre
As conversas internas da rede de artistas acontecem em espanhol e português. Esta escolha idiomática reflete o posicionamento insurgente
O autor completa que estas práticas estão sempre adiante de qualquer conhecimento que podemos produzir sobre elas. Podemos dizer, então, que a “criatividade prática” constitui um tipo de saber, de natureza prática e coletiva, fortemente situado no contexto em que as comunidades vivem e que (re-)criam para si.
do grupo, no sentido em que abriga culturas que conversam diretamente, sem ter que “passar” por outras línguas, ainda que, claro, em diálogo com o local, que neste caso é a cidade de Berlim. Nas suas ações, o coletivo aborda identidade, resistência, solidariedade e a vida de artistas na diáspora. O projeto tem suporte da Secretaria de Cultura de Berlim. “Mudar a cara da arte e dos artistas”: é com este propósito e a necessidade de um espaço de refúgio que Village Unhu é fundado em 2009, em Harare, Zimbábue. Village Unhu, desde então, oferece espaço para artistas, na forma de uma plataforma de conversas, programas de residências, workshops, ateliês, e curadoria de exposições, envolvendo pintura, desenho, gráficos, esculturas e instalações multimídia. A iniciativa foi criada pelo casal Misheck Masamvu e Georgina Maxim. Desde 2012 seus projetos têm se ampliado para responder à necessidade de espaços de arte móveis, que possam ir às comunidades, como ônibus vintage e contêineres de metal. Existe mesmo essa coisa de um coletivo? – Georgina Maxim pergunta de forma
provocativa, em sua estada no Brasil, como artista residente da Vila Sul, do Goethe Institute, em 2019. E ela mesma responde: coletivos são pessoas decididas a trabalhar juntas e mudar o sistema da arte, mudar a imagem que temos dos artistas e, além disso, contaminar a comunidade com o desejo de mudança. É preciso criar espaços alternativos às galerias tradicionais que promovem somente determinados tipos de arte, nos diz Maxim. Desigualdade, gênero e racismo são alguns dos“conteúdos fortes” e necessários de se abordar nos trabalhos do coletivo. Através da performance, os integrantes do Mowoso (aqui vestidos de Sapeurs: Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes, que pode ser traduzido como “Sociedade dos Ambientadores e das Pessoas Elegantes”) insurgem em uma realidade marcada pela exploração e por diversas formas de colonização. Os Sapeurs radicalizam um certo estilo de se vestir/comportar em voga entre a juventude urbana congolesa, que deseja fugir da pobreza que os rodeia, geralmente mudando-se para uma metrópole e,
Figura 1. ¡n[s]urgênc!as. Fonte: arquivo de ¡n[s]urgênc!as, 2018.
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Figura 2. Fundadores da Village Unhu, no Zimbábue: Gareth Nyandoro, Misheck Masamvu e Georgina Maxim. Fonte: Village Unhu (2019) e Muchuri (2018).
mais especificamente, Paris. Esta performance e o ensaio fotográfico são uma crítica cultural, social e econômica, que se constrói a partir dos contrastes. Como destaca Santos (2019, p. 93), embora os congoleses possuam uma longa história de cuidados com a aparência e gosto pela vestimenta, a SAPE ou a sapelogie é um fenômeno moderno, que surge enquanto tal, logo após as independências congolesas, na década de 1960. Como bricoleurs e artistas, eles se apropriam da obra de outros artistas (nesse caso, os estilistas que desenharam as roupas), e “produzem subjetividades que envolve também a criação de uma “pessoa pública”, ou, “pessoa-para-o-espetáculo”, que surge nas apresentações dos ‘sapeurs’”, aponta Santos (2019, p. 102). Ao se proclamar publicamente como um homem extraordinário vestindo roupas excepcionais, o sapeur se transforma em tal, continua a autora. No entanto, o cotidiano dos sapeurs em Paris é difícil, tanto em relação a questões legais referentes à permanência
no país, à residência e a ofertas de emprego qualificado. A sapelogie, com suas roupas e performances, dramatiza e questiona o próprio fluxo em meio ao qual ela acontece, reforça Santos (2019, p. 102): “os sapeurs inventam novas formas de refletir e viver a mobilidade, valorizando-a ao mesmo tempo em que reafirmam o pertencimento ao país de origem”, a República Federativa do Congo. O Coletivo Mowoso, atuante entre 2007 e 2011, desenvolveu práticas assentadas na realidade cotidiana urbana africana, transbordando as tradicionais concepções teóricas eurocêntricas/ocidentais, que tentam a todo custo categorizar os fazeres artísticos africanos a partir de olhares e eixos hegemônicos, evidencia Lemu (2019). Em 2005, o caso de racismo ocorrido no jogo entre os times São Paulo e Quilmes4 — da Argentina — ganhou espaço nas diferentes mídias, que noticiaram o jogador argentino
Leandro Desábato fazendo ofensas racistas ao jogador Grafite. O incidente com Grafite mobilizou o coletivo Frente 3 de Fevereiro5, a partir de então, a realizar intervenções nos estádios de futebol durante diferentes jogos. Como aponta Mesquita (2008), “o futebol aparentemente idealizado como uma manifestação popular coletiva, como um jogo onde não existe preconceito racial, transformou-se em espaço de investigação do grupo”. O coletivo produziu grandes faixas – como aquelas imensas bandeiras que as torcidas organizadas exibem nos estádios para representar e festejar seus times – para serem exibidas, estrategicamente, em diferentes jogos. As faixas do grupo são, então, desenroladas pelas próprias torcidas, e trazem mensagens que tensionam questões sobre racismo, como “Brasil Negro Salve”, “Onde estão os Negros?” e “Zumbi somos Nós”. Além de trazer reflexões acerca do racismo no Brasil, o grupo propulsiona verdadeiras
performances coletivas, realizadas pela força e potência da multitude. É importante salientar que o Frente sempre escolhe partidas transmitidas em rede nacional para fazer suas ações. A disseminação/expansão da intervenção ocorre por meio das transmissões televisionadas, que multiplicam as imagens captadas — atuando como uma espécie de registro expandido — e possibilitam diferentes leituras/interpretações. O coletivo Frente 3 de Fevereiro foi criado após a morte de Flávio Sant’Ana, morto pela polícia do Estado de São Paulo — em 3 de fevereiro de 2004 — após ter sido confundido com um assaltante, envolvido em um roubo de carros. Flávio, dentista, jovem negro de 28 anos, foi executado com tiros à queima-roupa. Desde então, este grupo heterogêneo — formado por artistas visuais, atores, músicos e pensadores/profissionais de diferentes áreas — discute questões relacionadas ao racismo no Brasil.
Figura 3: Sapeurs do Congo Brazzaville Firenze Luzolo, Guy Matondo e Ukonda Pangi. 2010. (Foto: Miguel Juárez). Fonte: Lemu (2019).
4. Jogo da Taça Libertadores da América ocorrido em 13 de abril de 2005. 5. Para mais informações sobre o coletivo, acessar: http://www. frente3defevereiro. com.br/
Figura 4. Manifestação “Bandeiras”, da Frente 3 de Fevereiro. Fonte: Frente 3 de Fevereiro, 2006
Uma palavra para mudar o discurso Por fim, retomamos aqui o potencial da “criatividade da prática”, proposto por Mbembe, na criação de novos discursos (como na oficina apresentada na Figura 5). A prática de insurgências colaborativas pode ampliar nosso horizonte, enriquecer subjetividades e provocar “o encontro do inesperado e do diverso” (Llansol, 2014), que possibilitam ver outros caminhos. Como nos diz Krenak (2019, p. 28), precisamos contar uns com os outros e ampliar nosso horizonte existencial para “adiar o fim do mundo”, contando sempre mais uma história: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar.”
Agradecimento As autoras agradecem a artista Georgina Maxim, do Zimbábue, pela partilha de experiências coletivas do contexto africano e pela rica conversa sobre o desejo de mudança e aos integrantes da iniciativa ¡n[s]urgênc!as, em Berlim. Agradecemos a Lea Rodrigues, Village Unhu e Frente 3 de Fevereiro pelas fotos. Lia Krucken agracede ao Programa Nacional de Pós-doutorado — PNPD/CAPES — pelo suporte à pesquisa e ao Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia/PPGAV.
Referências KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig. O ensaio de música. In: Lisboaleipzig: o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Assírio e Alvim, 2014. WAGNER, Richard. Art and the Revolution. 1849. RAUNIG, Gerald. Art and Revolution: Transversal Activism in the Long Twentieth Century. Los Angeles: Semiotext(e), 2007. https:// selforganizedseminar.files.wordpress. com/2011/08/gerald-raunig-art-andrevolution-transversal-activis AUSTIN, John, L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médica. 1990. LEMU, Massa. Creativity of practice in African townships: a framework for performance art. In: The Burlington Magazine. May 2019. Disponível em: <http:// contemporary.burlington.org.uk/journal/ journal/creativity-of-practice-in-africantownships-a-framework-for-performanceart> Acesso em: 20 de Maio de 2019. MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: Arte Ativista e Ação Coletiva (1990-2000) - Dissertação de Mestrado. São Paulo: Departamento de História da Universidade de São Paulo/FFLCH-USP, 2008. MUCHURI, Tinashe. Village Unhu - The Project Space Cultivating a Community of Artists in Harare. In: Contemporary And (C&), 28/03/18. Disponível em: <https://www.contemporaryand.com/
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respire aqui
A E T R A DO O D A D R BO
A AR TE DO DO BOR DA
ENTRE A DECORAÇÃO E A REIVINDICAÇÃO NAIRA LISE E MARIELA HERNÁNDEZ
A
ssim como outras práticas artesanais, o bordado tem o poder da atuação coletiva. Grupos de bordado aproveitam espaços para compartilhar e trocar saberes sobre técnicas e dividir suas motivações e histórias. Além do fazer coletivo, o bordado artesanal tem em suas características a sustentabilidade econômica e a transmissão do conhecimento geracional. Para Queiroz (2011), a relação que as artistas-artesãs estabelecem entre si é um “espaço entre iguais”, onde se encontram e comunicam, mesmo não estando agrupadas em associações. Essa natureza comunitária é mantida na contemporaneidade, uma vez que o compartilhamento continua sendo, na maioria dos casos, uma característica intrínseca à prática. 84
Uma das tendências do bordado decorativo na contemporaneidade é a transformação do bastidor em chassi de tela, sendo este o produto final que será colocado à venda. Na sessão “Imóveis” do G1 foi publicada em 19 de outubro de 2016 uma matéria apostando no bordado em bastidor como um “toque de delicadeza a decoração” (BORDADO..., 2016). Em matérias de portais virtuais de revistas sobre decoração e outros sites do gênero, observamos a apresentação recorrente de bordados em bastidor como objetos de arte decorativa. Na Casa Claudia de 14 de fevereiro de 2017, Marina Conte afirma que “Nos últimos tempos, o bordado, técnica tão usada pelas nossas avós para dar mais graça aos tecidos e que andava meio abandonada,
voltou com tudo”. É, portanto, uma tendência com abrangência ampla e cuja produção e projeção pode manter o caráter coletivo. O bastidor é uma peça importante para o bordado. Ele tem a função de tensionar o tecido, deixar o ponto firme e facilitar o trabalho da bordadeira. Nos bordados em bastidor utilizados para decoração, chamados também de quadros bastidores, o utensílio se transforma em moldura, como o chassi das telas de pintura, assumindo diversos formatos que não só o redondo mais tradicional. Os bordados, que normalmente se desprendiam dos bastidores para serem roupas, bolsas, tapetes, colchas, toalhas e outros objetos domésticos, passam a ser pensados e desenhados como elementos de decoração, para ficarem expostos junto com suas armações. Atualmente, diversos grupos de bordado trabalham um leque amplo de técnicas e modalidades que tratam o bastidor com propósito decorativo. Dentre eles, podemos citar o Clube do Bordado, criado no Brasil em 2013 e comandado por mulheres. Dentre seus objetivos está incentivar a valorização do bordado e encorajar o empoderamento feminino por meio do fazer manual. O grupo iniciou-se com encontros semanais de amigas para bordar e compartilhar experiências e foi despertando o interesse em outras pessoas, chegando a oferecer periodicamente cursos e oficinas de bordado. As coleções de moda e objetos decorativos produzidos pelo Clube ganham cada dia mais projeção através da mídia e graças a parcerias com organismos públicos e privados.
A revista Casa e Jardim, em uma matéria de 13 de setembro de 2016, traça um perfil de algumas bordadeiras contemporâneas, que “[...] aprendem e aperfeiçoam-se sozinhas, rascunham seus próprios desenhos e propõem criações livres, sem saber nomes de pontos ou técnicas” (MELLO, 2016). Como observado pela autora, grande parte das pessoas que estão produzindo esse tipo de trabalho são mulheres, e as temáticas abordadas por elas são, muitas vezes, sobre o ser mulher na sociedade. Elas utilizam símbolos e outras formas de expressão que lhes permitem transmitir nos bordados suas próprias narrativas, discutindo questões feministas dentro de uma prática até então tratada como imagem de submissão, por estar ligada ao confinamento domiciliar da mulher e aos estereótipos conservadores de feminilidade (SIMIONI, 2010). Segundo Queiroz, o bordado contemporâneo subverte valores estabelecidos tradicionalmente: O bordado surge já como um espaço libertador, mesmo quando encerrado no espaço privado, e progressivamente foi se convertendo em atividade lucrativa na atualidade, e assim uma dupla libertação pelo acesso ao espaço público. O bordado se converte em espaço enunciativo para o grupo de mulheres artesãs na atualidade, além de ser um campo da formação de renda (monetária) e uma forma de expressão. (2011, p. 16)
O Plano Setorial do Artesanato Brasileiro de 2015 cita a produção coletiva do bordado como uma das modalidades do nosso artesanato, não só enquanto produção, mas também em sua comercialização. E não deixa de mencionar o tipo de produção contemporânea “não tradicional”:
O Plano Setorial do Artesanato engloba tanto o artesanato tradicional, aquele produzido a partir de uma técnica que um grupo detém e que é passada de geração em geração, como também um tipo de artesanato mais recente, que envolve outros materiais e design mais contemporâneo (MEC, 2015, p. 2).
O bordado contemporâneo vai adicionar novos materiais e estilos de design até então não associados ao bordado tradicional. Nesse sentido são representativas as obras da artista sul-africana Danielle Clough, que utiliza raquetes de tênis como suporte; a brasileira Rosana Paulino, que trabalha na série Bastidores (1997) com a técnica de transferência de imagem sobre tecido; e a peruana Juana Gómez que, nos seus estudos de paisagens ultrapassa as margens dos bastidores, brincando com o espaço que transita entre o bi e o tridimensional. Ainda no âmbito das relações entre arte decorativa e bordado, A CASA (Museu do Objeto Brasileiro) — cujo foco está nos objetos de matriz artesanal, semiartesanal e industrial — realizou em maio de 2017 uma mostra, com curadoria do designer têxtil Renato Imbroisi, cuja expografia reproduzia uma casa, com suas portas, janelas e cômodos, formada e preenchida por mais de 200 peças bordadas vindas dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Nessa exposição, algumas peças foram expostas em bastidores de variados tamanhos, revelando assim a possibilidade modular do bordado em bastidor, algo muito pertinente na decoração.
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O BORDADO COMO LINGUAGEM DE RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA: América Latina é rica em trabalho artesanal oriundo dos povos tradicionais e seus saberes. Em decorrência da colonização e da colonialidade, muitas dessas técnicas sofreram invisibilização e apropriação, em favor dos países colonizadores. Na história do continente podemos reconhecer numerosos povos que produziram — e ainda produzem — diversos tipos de arte têxtil, com uma riqueza inigualável de materiais e técnicas (QUEIROZ, 2011).
A 86
A colonização trouxe para o Brasil as práticas artesanais dos países europeus. Segundo Silva (1995), os engenhos de açúcar das áreas rurais foram locais que favoreceram a difusão das artes manuais. As senhoras de engenho, que tinham o bordado enquanto ocupação doméstica, passavam as técnicas europeias para as mucamas que lhes serviam. Assim, essas práticas foram sendo transmitidas de geração em geração e se tornando tradicionais em algumas famílias e regiões. Posteriormente, no decorrer da industrialização, o bordado foi fonte de sustento para mulheres da classe menos abastada, por ser um trabalho manual que gozava de certa demanda e atraia consumidores de maior poder aquisitivo.
Na América Latina, o bordado também tem agido como uma expressão de resistência. Nos anos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), mulheres chilenas produziram as Arpilleras, expressão que surgiu para se referir ao trabalho de um grupo de bordadeiras de Isla Negra, região litorânea do Chile, que utilizava suportes rústicos, como sacos de cânhamo, e costurava à mão, compartilhando nesse espaço de tecido suas histórias e as das suas comunidades. Elas denunciaram abertamente para o mundo injustiças e torturas do período ditatorial. Segundo Roberta Bacic (2012) as Arpilleras se tornaram também uma fonte de renda graças à atividade cooperativa. As Apilleras chilenas tiveram entre seus expoentes a artista Violeta Parra, que fez diversos trabalhos de bordado em formato de grandes telas, com temáticas regionais e de protesto. Em 1964, Parra expôs suas obras no Museu de Artes Decorativas do Louvre (Musée des Arts Décoratifs), se tornando a primeira artista latino-americana a fazê-lo. No Brasil, esse tipo de trabalho de denúncia é realizado por alguns grupos, dentre os quais podemos citar o Movimento Atingidos por Barragens (MAB), uma organização nacional que tem como objetivo defender os
Figura 1: My memories of the dictatorship Brazilian arpillera, Fátima da Costa, 2012. Foto: Tony Boyle, © Conflict Textiles. Figura 2: Homenaje a los caídos / Homage to the fallen ones Chilean arpillera, Anônimo, 1970. Foto: Colin Peck, © Conflict Textiles
direitos das populações atingidas pela construção de barragens, em defesa da água e da energia como bem público. Estimulados pelos contatos que tiveram com ativistas dos direitos humanos da Argentina e do Chile, membros deste grupo participaram de oficinas de Arpilleras políticas. A partir disso, difundiram a prática através de oficinas dirigidas a mulheres de todo o Brasil, que sofrem as consequências da exploração desmedida dos recursos naturais, principalmente os hídricos, para a produção de energia elétrica.
Em 2015, o MAB participou da exposição Arpilleras: Bordando a Resistência, que reuniu no Salão de Atos do Memorial da América Latina obras de países da América Latina e da Europa. Em 2017, o coletivo de mulheres do movimento lançou o documentário Arpilleras: Atingidas Por Barragens Bordando a Resistência, com direção de Adriane Canan, onde são contadas algumas dessas histórias. Tanto o bordado feito com fins decorativos quanto os expressivos bordados que discutem conflitos sociais e políticos são manifestações artísticas pensadas para atingir públicos amplos. Sendo assim, agem como poderosas vias de transmissão de imagens, discursos e saberes dos coletivos e indivíduos que as produzem. O reconhecimento do impacto que essas mensagens têm no imaginário coletivo e na discussão de valores sociais colaborará para o aprofundamento do seu estudo, defesa e preservação.
Figura 3: roda de bordado no Ativa Atelier. Foto: Marcos de Sá.
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Referências:
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BACIC, Roberta. História das Arpilleras. In: ARPILLERAS da resistência chilena (Catálogo de exposição). Brasília: Biblioteca Nacional, 2012. Disponível em: <https://arpillerasdaresistencia. files.wordpress.com/2012/01/ catalogo-eletronico-arpilleras1.pdf>. Acesso em: 25 de agosto de 2019
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BORDADO traz delicadeza para a decoração. G1, 19out. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/especialpublicitario/zap/imoveis/noticia/2016/10/ bordado-traz-delicadeza-para-decoracao. html>. Acesso em: 11 de abril de 2019.
MAB –Movimento dos Atingidos por Barragens. Arpilleras bordando a resistência. [S.l.: s.n.], s/d. Disponível em:<https://arpilleras. wixsite.com/ofilme/o-filme>. Acesso em: 25 de agosto de 2019.
BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial da Cultura. Plano Setorial do Artesanato 2016 a 2025. Disponível em: <http://pnc. cultura.gov.br/wp-content/uploads/ sites/16/2017/07/Plano-Setorial-deArtesanato-completo-2017..pdf>. Acesso em: 28 de maio de 2019.
________. Exposição “Arpilleras: Bordando a Resistência” (Catálogo). São Paulo: MAB, 2011.Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br
CLUBE DO BORDADO. Olá! Nós somos o Clube do Bordado! S.l.: Clube do Bordado,2016. 2:54 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/ channel/UCcWSVke-I7-iqfN854gCl6g>. Acesso em: 26 de agosto de 2019. CONTE, Mariana. Bordado volta com tudo e faz sucesso na decoração. Casa Claudia, 13 fev 2017. Disponível em: <https://casaclaudia.abril.com.br/ moveis-acessorios/bordado-volta-comtudo-e-faz-sucesso-na-decoracao/>. Acessoem: 11 de abril de 2019. FREIRE, Ralyanara. Bordado Arpillera e a luta de mulheres contra o Belo Monte. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO 11 & 13TH WOMEN’S WORLDS
CAMILA REZENDE
EXATA PRECISÃO
Laconismo? Modo de expressar-se através de poucas palavras, de maneira concisa ou breve; exatidão; concisão: o laconismo não pode prejudicar a clareza1 Exatidão: 1 - Fidelidade ou veracidade do que é narrado. 2 - Certeza, pontualidade, precisão. Precisão: 1 - Exatidão, regularidade na execução. 2 - Falta ou carência de alguma coisa necessária, imprescindível ou útil. 3 - Necessidade, urgência, indispensável. 4 - Momento preciso, ocasião inevitável. 5 - Necessidades naturais. 6 - Não poder passar sem, não poder prescindir de. 7 - Fixo, exato, determinado, certo. 8 - Claro, distinto, formal. 9 - Precisar, requerer, carecer. 10 - Concisão, laconismo. (1) As definições empregadas não são transposições exatas do dicionário Aurélio, mas adaptações precisas.
Preciso (necessito) acordar. Que horas são? Já são 7:16, se passaram precisos (exatos) 16 minutos que eu deveria levantar. Pronto! Tô pronta! Preciso (careço) das chaves. Achei! Precisava (requeria) encher o pneu dessa bicicleta. Não vai dar tempo! Preciso (urgência) ir mais rápidzo. Droga! Sempre paro neste sinal. Nossa! Aquela frase na parede que não enxergo daqui. O que será que está escrito lá? PRECISO (necessidade natural) saber o que é. Vou atravessar, PRECISO (ocasião inevitável) ler agora!
“Ver o sol se por
”
vermelho...
O que será que significa? Deve ser algo político! Será vermelho algo relacionado ao comunismo? Ou será que é só uma pessoa amante do pôr do sol? Várias hipóteses! Mais tarde pesquiso essa frase no Google. Ótimo, a aula acabou mais cedo, já vou almoçar. Preciso (indispensável) xerocar o texto. Preciso (não poder passar sem) terminar de ler esse texto até o final da tarde. Pronto, acabei. Vou jantar. Preciso (necessito) dormir. Ah! Deixa eu pesquisar a frase no Google: “Ver o sol se por vermelho...” É uma música? “Às vezes eu só quero descansar Desacreditar no espelho Ver o sol se pôr vermelho”
Gente! É uma música! Quem será que escreveu isso na parede? Será que conhecia essa música? Será que é esse o contexto? E o comunismo? Mas isso faz sentido para mim, às vezes só quero descansar! Preciso (regularidade) descansar mais! Exatamente! E desacreditar no espelho? Acho que sim, mas não em todos os momentos, principalmente naqueles em que ele me responde de forma clara (precisa). Será? E sobre “ver o sol se por vermelho...”? A pessoa esqueceu do acento chapeuzinho no “o”. Mas voltando... será que já vi o sol se pôr vermelho? Deixa eu me lembrar... Nossa! Preciso (necessito) dormir, amanhã tenho que acordar cedo. Mas e esse trecho no final da música? “Sigo o sol na cidade A te procurar Nada de meu nesse lugar A cidade vai pensar Que nada aconteceu em vão [...]” Gente! Nada tem a ver com nada. Essa música não deve ter nada a ver com a frase! Nada de meu nesse lugar? Que lugar? A cidade vai pensar? A cidade pensa? Que nada aconteceu em vão! E se tudo for em vão? Tô aqui perdendo tempo lendo isso. Preciso (urgência) dormir. Mas também PRECISO (necessidade natural) tirar uma foto dessa frase. Só posso ir no sábado. Vou tirar a foto daqui do outro lado da rua. Foi daqui que a vi pela primeira vez! Vi, mas não a enxerguei. Inacreditável! Como assim? Esse escada passou no momento EXATO (PRECISO) que eu bati a foto. A frase não apareceu! De novo não a enxergo. Preciso (imprescindível) bater novamente com precisão (exatidão). Pronto! Tá pronta! Precisava disso!
“Ver o sol se por vermelho...”
2. DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção?. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 28.
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Na tentativa de cartografar o surgimento de uma fotografia que me é cara, comecei a refletir sobre as coisas ditas e não ditas, sobre o texto escrito e não escrito, o corpo e as palavras, o corpo da cidade e as palavras que nele habitam. Sobre as corporificações do cotidiano, a arte de existir em meio aos trajetos da rotina – sobre o afeto da arte e de como precisamos dele! Escolhi essa fotografia para discorrer exatamente sobre tudo isso, pois, de todas as imagens que carrego em minha mente, essa foi precisa. Os motivos de sua precisão tateiam as inquietações do como: como escrever sobre os afetos da arte? Como passar uma referência que é minha para o Outro? Como traduzir em palavras o sentimento e o contexto em que essa imagem existiu? Como tornar tudo isso possível? A escolha da fotografia foi emotiva – inundada pela influência do tempo. Exatidão para mim é temporal. Dentro do exato se encontra o preciso. Preciso! Sempre me incomodou essa palavra: como pode significar duplamente necessidade e exatidão? Por que precisamos? O que precisamos? Percebo o tempo permeando ambos os conceitos (precisão/exatidão) e não consigo decifrar a precisa necessidade da existência deles – se o tempo não existisse. O porquê da escolha dessa fotografia tem a ver também com afeto. Ela me afeta, pois é para mim o acontecimento de uma mudança de ordem. Mas que ordem? A ordem do precisar! Foi o exato momento em
que questionei, em meio à rotina das tarefas, a lógica de hierarquização das coisas que preciso. Por que preciso ir mais rápido para chegar a tempo? Por que não atravessar a rua, ir contra o fluxo do tempo, para ler aquela frase e ser afetada por ela? A primeira tentativa falha de capturar a frase me remete à arte — não a enxergo como algo isolado, mas como algo que existe nas coisas —, não a vejo, mas sei que ela está lá. É assim também com o afeto das emoções. Não vejo a emoção me afetar, mas quando sou acometida por ela sei que algo existe. Está em mim? Sou eu? É algo externo? As palavras de Didi-Huberman me impulsionam a um princípio de compreensão. Para ele, a emoção é um movimento ao mesmo tempo “em mim” — mas sendo algo tão profundo que foge à razão — e “fora de mim” — sendo algo que me atravessa completamente para, depois, se perder de novo. “É um movimento afetivo que nos ‘possui’ mas que nós não ‘possuímos’ por inteiro, uma vez que ele é em grande parte desconhecido para nós”2. O que é a emoção senão esse grande emaranhado de desconhecimento? No cerne dessas questões encontro um diálogo com Gilles Deleuze, quando afirma em uma de suas entrevistas que a emoção não é da ordem do eu, mas da ordem do evento. Esse evento me afetou. Ele ainda me afeta. A afetação “denuncia que algo está acontecendo e que nosso saber é mínimo nesse
O que é a emoção emaranhado de
Na tentativa de praticar esse desconhecimento com o Outro, percebo o quanto este movimento é impreciso, uma vez que, não dominamos essa compreensão em nós mesmos, e em meio à dubiedade buscamos a exatidão. Ao pensar na arte, por exemplo, enquanto geradora de emoções – afunilando mais especificamente a análise para a fotografia (que foi o meu contexto de escolha para produzir este ensaio artístico/filosófico) – é possível entender essa incerteza a partir da multiplicidade de afetos que ela gera: 1) a emoção que impulsionou a pessoa que escreveu a frase na parede; 2) a primeira afetação que essa frase me causou; 3) o sentimento atual de visualizá-la em fotografia; 4) a afetação de quem acessa a fotografia a partir da mediação deste texto; 5) a experiência de fruição da fotografia sem o texto; 6) a emoção da pessoa que escreveu a frase se um dia a vir na fotografia; 7) os afetos que a frase ocasiona impressa e expressa ainda na parede do cotidiano da cidade; 8) oito se deitado representa graficamente o infinito, quantas possibilidades
mais seriam possíveis de traçar sobre os trajetos das afetações da arte? Como precisá-los diante de suas imprecisões? A partir desses trajetos enxergo a emoção da linguagem da arte. As relações intersubjetivas da vida social constroem as nossas emoções; e os afetos das relações influenciam como sentimos e atribuímos valor e significado às coisas em nossa vida. Tal como a linguagem da arte, as emoções são influenciadas pela cultura em que o indivíduo está inserido e exigem uma aprendizagem. Dialogando com a ideia de Calvino, “[...] ao se dar conta da densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia, a linguagem se revela lacunosa, fragmentária, diz sempre algo menos com respeito à totalidade do experimentável”4. A partir do momento que as emoções são da natureza do experimentável, logo sua compreensão não acessa a totalidade. É imprescindível, portanto, uma arte DA emoção, uma arte COM emoção e a emoção NA arte; pois: “cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”5. É na desordem da emoção que se estabelece uma Outra ordem. Fugimos constantemente dessa reordenação e evitamos exacerbadamente que a alteridade presencie esse evento. Logo esse! Que permite Outros sentidos de afetos que precisamos.
3. FONSECA, Tania M.G.; NASCIMENTO, Maria L.; MARASCHIN, Cleci. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012, p. 24. 4. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 90. 5. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 138.
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acontecer. Sinaliza a força de expansão da vida e da atividade que podemos viver. A tensão se instala. O que se passa?”3 Essa fotografia me evoca esse questionamento: o que se passou em mim, o que me moveu a atravessar? Não seria esse o mesmo questionamento de quando uma emoção nos arrebata? “O que se passa?”
senão esse grande desconhecimento?
TÃO PERIGOSA QUANTO BONITA LYGIA PEÇANHA Águas-vivas, medusas, mães d’água. Imagine um ser que morou na imensidão e caiu. Imagine um ser que nunca viu sua queda. Não teve impacto. Não deixou nenhum corpo marcado. [Escutamos um zumbido agudo seguido de um estalar de língua] Aquilo que não possuí certezas ou inquietações cai sem fazer estardalhaço ou deixar qualquer vestígio da queda e morre constantemente porque a morte é transposição. Vive-se no estado que antecede a morte. Sem cheiro. Fecal. Mole. Se movimenta através do vento ou da corrente marítima. Não sabe nadar, andar ou voar. [Ouçam] Há apenas duas estruturas de um corpo: a boca e o ânus. A boca como centro do corpo O ânus como centro do corpo Envoltos por um suco gástrico que inebria Ácido penetrante O seu desequilíbrio provém das perturbações causadas pelo medo ou pela dúvida, prenúncios constantes de vômito. Ao tempo que sua existência é somente possível na tentativa de experimentar os próximos momentos em vibrantes ondas elétricas, expele o gozo pleno de algo que morrerá em seguida, mas não morre. Morrerá ainda, na areia, evaporando toda água de seu corpo que é boca, ânus e ácido. Doce e translúcida enfim.
respire aqui
A desintegração dos processos inteiros de produção propostos pela indústria se chocam com a resistência das mãos que criam, moldam e reproduzem. Esta resistência se manifesta nas múltiplas margens de produção do impresso, as quais o limite da página nem sempre delimita o espaço de atuação. Com as variações possíveis fora da convenção, as formas do livro inevitavelmente se ampliam e os formatos vigentes se estendem. As dobram do livro se encontram com a multiplicidade de técnicas possíveis, das quais uma parte depende da execução manual. Do fazer com as próprias mãos. Onde o contato sutil entre o corpo humano e o corpo do livro deixam marcas e traços característicos. E assim a relação híbrida gerada pelo embate dos corpos, e a relação de sentido em elementos da produção artesanal, reage ao estritamente industrial e ao estabelecido e segmentado pela necessidade de expansão. Embora o fazer manual seja comum nas escolhas feitas por alguns artistas ou editores independentes, encontram antecedentes em diferentes contextos pré-industriais tanto na Europa como nas Américas. A produção do livro, até a consolidação do capitalismo editorial, é artesanal1. A partir da revolução industrial, ao contrário de uma ruptura definitiva dos modos de produção, práticas artesanais e industriais coexistem, e em alguns momentos criam relações híbridas, seja nos processos de criação ou execução2. Característica relativamente fácil de perceber, por exemplo, se recordarmos a diversidade de modos de produção do impresso no contexto brasileiro.
O que segundo Mario Camargo, permite que se faça uma história do impresso apenas com as técnicas vigentes no momento presente. Como a xilogravura no cordel, os ateliês de litogravura ou de tipografia, práticas que encontram paralelos em outros países da América Latina. Os livros El tiempo en las raices, respiro, Pequeno livro de mal criações para crianças bem criadas e dear lover, goodbye tem algo intimamente relacionado, quando se trata do embate dos materiais, modos de produção do livro, estratégias e encontros possíveis, onde agora o industrial e o artesanal geram um contexto que ultrapassa as fronteiras de um ou de outro modo. Característica que inevitavelmente expande os diálogos e campos de criação. El tiempo en las raices, livro resultado da residência artística de Dani Eizirik em Oaxaca/México, traz apontamentos gráficos sobre a experiência do artista que acompanhou cinco famílias que produzem artesanalmente o mezcal em paralelo com a produção industrial. Essa relação cultural ultrapassa o tema e se transmite nos elementos e formas escolhidas na produção do livro. O miolo em papel pólen impresso em offset se contrapõe ao papel artesanal Amate
Figura 1, 2: Daniel Elzirik, El tiempo en las raices. Riacho, Oaxaca/MX, 2018.
1. Ver: FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henry-Jean. O aparecimento do Livro. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulistana - Hucitec, 1992.
2. Ver: CARDOSO, Rafael. O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 18701960. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CAMARGO. Mário. Gráfica: arte e indústria no Brasil: 180 anos de História. 2. ed. São Paulo: Bandeirantes Gráfica. 2003.
Figura 3, 4. Fernando Ferreira, Pequeno livro de mal criações para crianças bem criadas. Crivo, Belo Horizonte/MG, 2016.
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3. Ver: López, C., A. Quintana Isaías, M.V. Meeren. Papel amate. CONABIO. Biodiversitas 82:11-15, 2009
(álmatl) da capa (Figura. 1, 2). O papel Amate, para além do aspecto utilitário, é um signo importante para a cultura mexicana. Se trata do mesmo papel utilizado como suporte de escrita dos povos ameríndio mesoamericano no contexto pré-hispânico3. Ao tencionar materialmente estes dois suportes, onde o papel Amate evidência as marcas características e a irregularidade visível das fibras da madeira, são claramente manifestas as relações entre as diferentes culturas de produção se estendendo à mescla entre as técnicas. Dessa forma, o corpo do livro carrega a marca dos processos, em uma proposta de encontro com os contextos artesanal e industrial trazidos no próprio texto.
À primeira vista, o Pequeno livro de mal criações para crianças bem criadas (Figura 3, 4) traduz perfeitamente o que diz Amir Brito Cadôr já nas primeiras linhas sobre o signo infantil em livros de artista: “Existem livros que são destinados aos pequenos, e que são atraentes, agradáveis e interessantes para pessoas de qualquer idade” (CADÔR, 2012, v. 2, p. 60). Essa seria a síntese declarada de para que veio o livro do ilustrador Fernando Ferreira. Diria que, além da visualidade, o livro traz de alguma forma tensionamentos culturais interessantes da produção do livro. Sabe-se que não se produzem industrialmente livros em pop-up no extenso território brasileiro, e que os que são vendidos por aqui são enviados normalmente por grandes editoras para serem executados na China4. No entanto, o processo de criação do livro de Fernando Ferreira surgiu da exploração dessa técnica, sendo a produção manual parte importante de como foi concebido o objeto e das possibilidades de reprodução. Com a vontade de tornar o livro acessível, e de trazer os processos de produção ao nosso contexto, o livro foi executado a muitas mãos. Quantas se disponibilizaram à materialização desse projeto de 80 páginas coladas uma a uma, impresso em offset, 11 pop-ups montados manualmente e uma tiragem de 200 exemplares. Atividade possível em grande parte da parceria entre o coletivo de experimentação gráfica PHONTE88, o autor, e a íntima relação de cada um dos envolvidos com o fazer manual, além do apoio da editora CRIVO. Respiro, da artista visual, fotógrafa e encadernadora Helena Giestas, segue uma premissa parecida
do encantamento gerado pelo Pequeno livro de mal criações..., o que permite criar um paralelo a partir de que “existem livros de artista que não foram feitos para crianças, mas que contêm jogos ou brincadeiras, adotam formatos, cores e outros elementos encontrados em livros para crianças, e por isso podem ser entendidos e usados por elas. (CADÔR, 2012, v. 2, p. 60) As figuras saltam da página, gerando uma variação do que seria o pop-up. O formato escolhido permite ler a descida de um morro em contraposição à planície onde, em cada um dos quadros, um personagem em cima de uma bicicleta gera a sensação de movimento (Fig. 5). Respiro estende a apresentação da obra para o espaço móvel sendo o formato um registro da exposição de mesmo nome em versão de pequeno livro. A fotografia que gera cada página, somada ao recorte das figuras e as dobras do formato sanfona, formam um conjunto integrado ao qual o tratamento manual é fundamental, onde o corpo se desloca no espaço e se estende a página. Dear lover, goodbye, é um livro de artista da autora Flavia Kitasato, vinculada à edições BREU. Os 10
exemplares impressos em jato de tinta pigmentada, parafinado folha a folha e costurado manualmente, traz propositalmente as grossas e ao mesmo tempo bem fixadas marcas do processo de execução. As características de tiragem, a escolha do tipo de impressão, a transparência amarelada das folhas parafinadas em contraposição à transparência do papel vegetal (Fig. 6) aos processos anteriormente citados, reflete uma relação simbiótica entre o manual e a máquina simbolizado pela impressão digital. A apropriação dos modos de produção como parte da criação de sentido refletidos na materialidade do impresso trazem inevitavelmente uma relação híbrida, ou por vezes simbiótica, que potencialmente se estende para além do objeto, o que perpassa pelos exemplos citados. Estes espaços de atuação afirmam a inevitável utilização dos recursos manuais, não só como aparato de criação, mas também execução da obra editada. Tornando-as acessíveis a partir da geração autônoma de cada exemplar da tiragem ou dos tensionamentos em torno de outros fazeres. O que traz para além da forma, sentido ampliado do porquê da utilização dos modos de produção nos livros de artista
4. Ver: HASLAM, Andrew. O livro e o designer II: Como Criar e Produzir Livros. São Paulo: Rosari, 2007.
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5. Helena Giestas, Respiro. Hena Giestas, Campinas/SP. 2016.
Fig 6. Flavia Kitasato, Dear lover, goodbye. São Paulo: Edições Breu, 2018. 102
ou de editoras independentes. Estes dois circuitos de produção permitem ver soluções físicas e transformações possíveis nos modos estabelecidos. Propostas que chocam com o livro convencionalmente estabelecido. O fazer artesanal em paralelo ao fazer industrial cria fronteiras hibridas e estratégias de criação e execução que não são particulares a esta época mas que nos volta às origens da produção do livro, o que a partir de um olhar ao passado permite entender as práticas do presente e as possíveis estratégias de produção. Referências: CADÔR, Amir Brito. O signo infantil em livros de artista. Pós: 3, Belo Horizonte UFMG, v. 2, n.3, p. 59-72, 2012.
FEBVRE, Lucien; MARTIN, HenryJean. O aparecimento do livro. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulistana, Hucitec, 1992.
CAMARGO, Mário. Gráfica: arte e indústria no Brasil: 180 anos de História. 2. ed. São Paulo: Bandeirantes Gráfica. 2003.
HASLAM, Andrew. O livro e o designer II: Como Criar e Produzir Livros. São Paulo: Rosari, 2007.
CARDOSO, Rafael. O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960. São Paulo:Cosac Naify, 2005.
López, C., A. Quintana Isaías, M.V. Meeren. Papel amate. CONABIO. Biodiversitas 82:11-15, 2009.
@raibomfimc
O MURO É UM CORAL NA CIDADE, ORGANISMO VIVO DESENHADO NO OCEANO DE CONCRETO. AS PÉROLAS QUE O MURO GUARDA SÃO UM DEVIR DE VIVAS OSTRAS: SÓ BRILHAM PRA QUEM TEM OLHAR DE CONCHAS.
II
UM M U RO OS C S E PA ORP RA OS EM D OIS ES DE U M L A PA Ç O S . E S CO D O, N O QU DE E DE O HÁ DEN T RO U . I M P E T R O, D O QU E E ENT HÁ FOR IV A. RE C ORP HÁ M O S, U I TA UMA MULHER GRITOU S DI TA M VISA BÉM NO MEIO DA TARDE: S, MUI PON TA S T E S. DESEJO! CO R POS PENETRAR O MURO Q AT R AEM UE SE COM VOZES SAB EM D ULTRASSÔNICAS; O MU AS V RO I A S. ESQUADRINHAR AS LINFAS INFI LT R A POR ENTRE A ARGAMASSA; M UM V ÍNCU NO MUR ESCAVAR NO CONCRETO FA Z E O L M D A O, UM CORPO PULSANTE; P Ó. DUR E ZA ENCONTRAR NO MURO. UM CORAÇÃO.
III
O MURO
ALGUÉM QUER IMPLODIR O MURO, DINAMITÁ- LO DE DESEJOS; TORNAR EM ESTILHAÇOS OS LIMITES INVISÍVEIS, LANÇAR OS PEDREGULHOS CONTRA O ÓBVIO DA CIDADE; CONSTRUIR UMA TRILHA ENTRE A CALÇADA E O SONHO FUNDAR NO MURO UMA LIGAÇÃO.
I
raiça bomfim
AMANDA ROCHA
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Em 2012, iniciei um processo com meus diários pessoais, em que suas páginas, assim como cartas, objetos e pedaços de tecido compunham um vestido. Eu estava morando no Rio e me propus o desafio de costurar esse vestido a partir de memórias afetivas de lá e de Salvador. Posteriormente, esse processo foi acompanhado de registros audiovisuais que fiz com alguns amigos e amigas, e que geraram performances na rua. O vestido, objeto central deste projeto que chamei de Rio Afetivo, compreendia minha relação com as coisas que “não deram certo”, com a angústia que eu tinha de não ter conseguido completá-
lo, com a dificuldade de estar naquela cidade e de me sustentar de diversas maneiras. Foi quando eu comecei a me apropriar das faltas, a encarar o abismo de frente, e mergulhar neste processo de composição-decomposição, que configurava uma narrativa pessoal fragmentada, por vezes ficcional, de onde era necessário abrir mão de uma perspectiva arborescente para uma visão rizomática do processo criativo. Mais tarde, em 2014, tomando a escrita como ponto de partida, desenvolvi minha pesquisa de mestrado, intitulada Diários Visuais Sonoros. Nela me debrucei
sobre diários, meus e de outras artistas, passando pela revisão do conceito de escrita, e contemplei a possibilidade de uma escrita íntima que, desvinculando-se de compromissos com a verdadeconfissão e com antigos formatos, se lançava no campo experimental da invenção, ou autoinvenção. Este conceito, Diários Visuais Sonoros, abrange diversos meios que se interrelacionam numa linguagem híbrida, que gerou objetos poéticos, como livros, vestíveis, vídeos, fotografias e outros. Os vestidos-diário, também chamados de vestíveis, nem sempre tinham formato de vestido propriamente. Assumiam outras dimensões, volumes, texturas e um caráter relacional. Para além da maleabilidade que o tecido traz, a escrita é também um trabalho lítico, tátil, que pelo corpo se investe contra o vazio, borrando os limites entre o dentro e o fora. Nos vestíveis, o caráter corpóreo da escrita revela um diário vivo, transitório, inacabado, por sua íntima relação com as superfícies, como se vê nos primórdios da história da escrita, nas pedras, papiros e pergaminhos. Meu interesse então começa a se direcionar para essas estruturas
que revestem o corpo, como suas extensões, e a sua relação com a subjetividade de quem as veste. Em algum momento percebi que enquanto fazia os vestidos, eles “me faziam”, eles eram meu devir-outra, caleidoscópica, dessemelhante a mim. São registros tridimensionais de momentos da vida, como peças rituais de transformação do eu. Observei que existia um movimento reflexivo de transformação a partir da interação entre sujeito e objeto pela expansão do corpo. Este processo, denominado embodiment, cujas traduções são diversas, começou a ser estudado no campo da fenomenologia, a partir de Maurice Merleau-Ponty, na década de 40, e foi desenvolvido posteriormente por outros autores, como o pósfenomenologista Don Ihde e a teórica contemporânea do teatro, Erika Fischer-Lichte. Esta última, irá aprofundar e situar o conceito de embodiment nos estudos da performance, buscando dissolver as dicotomias corpo e mente, palavra e gesto, na compreensão da capacidade de afecção entre sujeito e objeto, de um corpo como processo. Os vestíveis me convidavam a vesti-los e a despir-me, a me virar ao avesso, o que suscitou o desenvolvimento de algumas
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1. O filósofo Michel Foucault aborda a temática das tecnologias de si, conceituando: “Tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformálos com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade”. (FOUCAULT, p.323.1982)
ações performáticas. O lugar da performance, que até então era latente, ganhou um relevo maior na minha trajetória. Sendo no contexto onde eu ou outra artista realizava uma ação, numa proposta de coautoria, o corpo se apresentava como centro de cruzamento de forças, subjetividades e afetos. Era na presença do corpo de uma pessoa que o vestível era escrito e se dava à leitura simultaneamente; por outro lado, na sua ausência, se assemelhava a uma crisálida, como indício de um processo único. A aproximação com a dança e com o teatro contribuiu para a elaboração de novas perguntas, que tangenciam a relação objetocorpo e suas possíveis configurações híbridas; a compreensão do ritual e da experiência no processo criativo para ações performáticas; sua implicação na coletividade como forma de tecnologia de si1; a relativização da fronteira entre arte e não-arte, a aproximação da arte com a vida e sua dimensão ética e política. São questões que alimentam minha atual pesquisa de doutorado em dança, tendo como tema Corpos (Im)possíveis: Objetos híbridos performáticos a partir de Lygia Clark. Nela, me proponho partir da
observação e análise dos trabalhos e escritos mais recentes da artista brasileira, que foi também referência na minha pesquisa de mestrado, na qual é observada a emergência de corpos híbridos, que se configuram das proposições de relação com objetos criados pela artista, bem como sua potência performativa. Atuante nas décadas de 60 e 70, Lygia Clark reflete questões próprias do contexto histórico social daquela época, de um momento político autoritário do qual é possível perceber ainda hoje seus ecos e reverberações. Ela nos legou um material potente e singular que aponta para um processo de ressignificação da própria Arte, de onde é possível perceber a estética como posicionamento político de insubordinação às forças de redução dos sujeitos. A arte estaria no lugar da experiência. As relações éticas e políticas teriam maior influência no processo de criação, que se descondiciona da concepção ocularcêntrica da obra de arte para se propor uma abertura cinestésica. A obra se torna proposição de relação. Criações que partem do próprio cotidiano dos artistas, em suas deambulações interessadas na transformação do ser, na celebração do corpo e suas possibilidades e no estreitamento das distâncias que
separam os sujeitos. Os últimos trabalhos de Lygia Clark guardam uma conexão com a dimensão do ritual, que estaria na origem do que temos hoje por “performance”, numa espécie de ritual sem mito. As práticas ancestrais em seus rituais, costumam compreender objetos sagrados, que sendo vestes, adereços ou estruturas habitáveis, buscam em suas diversas finalidades uma conexão com o espiritual. Estas tecnologias espirituais, por assim dizer, são objetos que fendem o cotidiano para uma necessidade pungente de comunhão, de autocuidado, de percepção ampla do mundo, e – embora não guardem pretensão artística – se constituem de uma beleza singular, imanente, onde o prazer estético está associado aos processos normais do viver². É na experiência de ritual³, que o sujeito pode se tornar um outro,
se transformar naquele instante, temporária ou permanentemente, como nos ritos de passagem. Lygia Clark de algum modo se aproximou desse lugar, realizando operações desterritorializantes importantes dentro da própria arte. O limite tênue entre o que é vestível e o que é habitável mostra que o corpo também se trata de um espaço e vice-versa. A vida que atravessa desertos de impossibilidades, se auto organiza em possíveis impossíveis modos de ser, modos de se habitar. Talvez a arte seja uma festa onde diferentes subjetividades encontrem meios de partilhar outras formas de existir. Penso os vestíveis como tecnologias de transformação 4, por sua capacidade de influenciar e modificar os modos de vida. São tecnologias que ultrapassam
2. Como pontua o filósofo norte-americano John Dewey, em Arte como Experiência. 3. Richard Schechner aborda a questão do ritual e da performance em “Ritual do Introduction to Performance Studies”, que integra o livro Performance e Antropologia de Richard Schechner (2012), organizado por Zeca Ligiéro. 4. Tecnologia de transformação é um conceito da pesquisadora japonesa Eiko Ikegami, abordado por Christine Greiner em seu livro Leituras do Corpo no Japão, de 2015.
a noção do pensar separado do corpo e assumem, sim, um pensar-sentir que é corpo e que se estende a suas linguagens. Essas tecnologias trazem a questão o corpo e seus limites, e o repensar da própria existência. Os movimentos do ser no tempo e no espaço compõem o visível de um corpo, que é pele, tecido, superfície, volume e devir. Assim, enquanto se percebe os limites do corpo e sua efemeridade, é também reconhecida sua plasticidade e força retórica; sua permeabilidade, como espaço “entre”.
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O movimento de emancipação do corpo é análogo ao movimento de emancipação do sujeito. Assim, volto meu olhar para práticas urbanas em cruzamento com práticas xamânicas de povos originários, subtropicais, buscando contemplálas como ambientes onde o exercício criativo do corpo e seu entorno se dá de modo libertador, diverso ao do colonialismo. Questiono de que modo o desabamento das estruturas psiquicamente coloniais não seria um caminho. Diante deste desconhecido si mesmo - na era da informação, da sociedade do desempenho, das tecnologias avançadas, das viagens interplanetárias – observase um movimento de retorno a um estado de inocência, frente a eminente anestesia que nos assombra, resultado de uma sensação de impotência política. Os Corpos (Im)possíveis como tecnologias de transformação, situam-se num contexto de desabamento, de precariedade. São
tentativas de resiliência perante a crises, situações-limite vividas no nosso tempo, que nos convidam a devir outra, outro, outres. A crise apresenta-se como situação de vulnerabilidade, ou de desamparo, da qual nos fala Vladimir Safatle (2015). A situação de desamparo que impulsiona o sujeito a inventar-se, é o lugar de onde surge a consciência da própria vulnerabilidade, sem expectativas de ganhos; é o que impulsiona o sujeito a ser agente transformador(a), que abdica da necessidade de sustentação de suas propriedades, e até mesmo, do que vem constituindo-o como um indivíduo distinto da sociedade. Talvez a questão não seja mais ser ou não ser, mas, “por que não ser?”, já que não ser não é uma questão de escolha, mas sim, de estar subjugado(a) a alguma forma de imposição alheia, de negação heterônoma dos possíveis, mesmo quando esta negação é interiorizada e exercida pelo próprio sujeito a despeito dele(a) mesmo(a). Ser não requer sujeição, mas descascamento, desconstrução, potência de negatividade, ou seja, a negação da ação automática, a força de não fazer. De tudo que não sabemos sobre o Ser impossível, talvez possamos inferir que é um ser cansado(a), oriundo de um desabamento, parecido(a) com o super humano de Nietzsche ou com o Índio de Caetano Veloso portando a mais avançada das tecnologias, e que talvez more num lugar chamado Lugar Nenhum, onde seja possível viver de modo contemplativo.
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RESUMO DAS TRANSCRIÇÕES E GRAVAÇÕES não AUTORIZADAS EM UM CONSULTÓRIO MÉDICO
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MARIA LUIZA MAIA
Mirtazapina, meio comprimido por cinco dias e depois um inteiro, pra ansiedade e insônia. Clonazepam, uma gota pela manhã, uma à tarde e uma à noite, até enquanto o primeiro não faz efeito, depois suspender e uso se e somente se necessário. Dimenidrinato pros enjoos, quando precisar. Cafeína pra quando sentir esse sono todo, que é efeito colateral do anterior. Domperidona e rabeprazol pro refluxo, logo depois de acordar e antes de comer. Suplemento de vitamina D e C, as taxas deram muito baixas nos exames. Vai ter que tomar um sumplemento com 675 vitaminas e 854 minerais, tá desnutrida e raquítica. Pode tomar o clonazepam sublingual quando tiver outra crise, vamos ver se funciona.
Ondansetrona pros enjoos a partir de agora, o outro é muito fraco. A gente tem que entrar com modafilina agora porque esse sono já está mais que disfuncional. Nossa próxima tentativa é a vortioxetina, os outros não parecem fazer o mesmo efeito de antes. Trazodona pra dormir à noite e ver se para de sentir esse sono todo durante o dia. Começa com um terço do comprimido e depois vamos aumentando mais um terço a cada semana. Suspende o último antidepressivo, vamos tentar então a desvalanfaxina, dessa vez teremos resposta. Alguma dúvida? Sim. Pois não? Queria saber como ainda tenho rins e fígado que funcionam.
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É de gente que se constrói corpo. De colagens de membros achados ao longo do tempo, de partes de si esquecidas há anos atrás, de desejos fixados na pele como uma pintura imortal. Em meio ao caos das sensações o corpo estranha, se quebra e se remonta aos poucos em significações, nos semblantes em constante mutação, na dilatação dos poros, o suor. Gabriella Correia
ensaio fotográfico por Gabriella Correia
inimagem Em partes há de se convir que os corpos exclamam, por si, as memórias dos relatos de outros corpos, a ilusão da captura do que quer que contemple em registros, os pedaços das histórias escutadas, tudo aquilo que conseguimos lembrar. Do que ouvimos aos risos, aos olhares mareados, às pressas dos horários de pico, à imersão das saudades pungentes.
inimagem i·ni·ma.gem
neologismo 1 Jogo surrealista. 2 Técnica de colagem surrealista. 3 Recortar seções de imagens pré-existentes para criar uma nova imagem.
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Laura Castro é escritora de bloquinhos, blogs e paredes, movida pelo desejo de experimentar diferentes possibilidades materiais da escrita. É autora de Oarmarinho e Fique são, ambos de 2018; Pé de palavra, de 2016; Telefone tocou novamente, de 2014; Fio condutor, de 2013; e Cabidela: bloco-de-máscaras, de 2011. Trabalha com publicações independentes e investiga processos de autopublicação. Atualmente é Professora do campo das Artes no Instituto de Humanidades, Artes & Ciências Professor Milton Santos (IHAC) na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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Leonardo França é um artista do corpo que faz do estilhaçamento seu modo de atuação no mundo. Produz colaborativamente com vários artistas da dança, cinema, música, artes visuais e teatro. Graduado em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), atualmente desenvolve uma pesquisa de mestrado na mesma instituição. Em sua atuação estilhaçada assume diferentes posições como diretor, curador, dançarino, ator e performer. Suas criações ganham múltiplas configurações como espetáculos, instalações, livros e curtasmetragens. O livro objeto A brecha e o muro (2014), e o livro-pele ESCURO (2018) — em parceria com a artista visual Lia Cunha — são suas publicações que expandem relações entre dança, corpo, livro e escrita.
Alex Simões é poeta e performer. Publicou trans formas são (Organismo Editora, 2018), Contrassonetos (Mondrongo, 2015), (hai)céufies (Esquizo, 2014) e Quarenta e Uns Sonetos Catados (Domínio Público, 2013). Realiza quando em vez as performances você tem seda?, a cappella de Waly e poesia chã, entre outras. Tem poemas em antologias, coletâneas e revistas nacionais e internacionais, alguns traduzidos para o inglês e o espanhol. Participa de importantes eventos literários e em diversos saraus e eventos multilinguagens na Bahia e fora dela, desde os anos 1990. Tem um blog: toobitornottoobit.blogspot.com.br
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Raiça Bonfim move-se no campo das artes como criadora, produtora e professora, transitando entre performance, teatro e literatura. É mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, e atualmente está como professora da Escola de Teatro da mesma universidade. Interessa-se principalmente pelas interseções entre corpo, cidade, arte, mulher e bruxaria. Frequentemente, assume as experiências relacionadas à voz como ponto disparador de seus processos criativos e pedagógicos, em conexão com os sentidos emanados por uma poética da água. Tem quatro livros lançados: 10 Pontes (2011), O que é uma casa? (2012), 12 Lâminas (2013) — os três em parceria com Vânia Medeiros e a Conspire Edições —, e Sete saltos para se afogar (2017), publicado numa parceria entre a editora Pipoca Press e o Festival de Ilustração e Literatura Expandido, além de ter poemas seus publicados nas coletâneas Outras Carolinas: Mulherio Da Bahia (2017), da Editora Penalux, e Mulheres Poetas e Baianas (2018), da Editora Caramurê.
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Os textos dessa revistas foram compostos com as tipografias: PT Serif, Gotham e Red Hat Display. A tiragem de 200 exemplares foi impressa em risografia, reprografia, serigrafia e tipografia na Riso Ativa, na EDUFBA, na Escola de Belas Artes/UFBA e na Gráfica Coutinho. Os papéis utilizados foram Pólen Bold 90 g/m2, Colorplus Los Angeles 80 g/m2 e Sundance Natural White 216 g/m2. Finalizada na Finish. Verão de 2019