ANGÉLICA MIQUELIN DO NASCIMENTO
CRÔNICA, ROMANCE OU REPORTAGEM: A NATUREZA HÍBRIDA DE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
Londrina 2014
ANGÉLICA MIQUELIN DO NASCIMENTO
CRÔNICA, ROMANCE OU REPORTAGEM: A NATUREZA HÍBRIDA DE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Orientadora: Profa. Dra. Maria Cecília Guirado de Carvalho
Londrina 2014
ANGÉLICA MIQUELIN DO NASCIMENTO
CRÔNICA, ROMANCE OU REPORTAGEM: A NATUREZA HÍBRIDA DE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________ Orientadora: Profª. Drª. Maria Cecília Guirado de Carvalho Universidade Estadual de Londrina - UEL
____________________________________ Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf Universidade Estadual de Londrina - UEL
____________________________________ Prof. Dr. Silvio Demétrio Universidade Estadual de Londrina - UEL
Londrina, _____de ___________de _____.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Deus pela força nos momentos difíceis. À minha querida mãe, Célia Regina Miquelin, por todo apoio e suporte para que eu concluísse mais essa etapa da minha vida. Às minhas irmãs Aline e Alessandra Miquelin, pelas risadas e pelo amor incondicional que completa a família das quatro mulheres. Ao amigo e namorado querido, Diego, que mesmo estando longe, sempre esteve perto nos momentos em que precisei. Aos colegas de classe e aos companheiros que quero levar para a vida inteira: Fiama, Wellington e Fabrício. Aos mestres que me formaram ao longo desses quatro anos de graduação. Em especial, aos queridos convidados para compor a banca avaliadora deste trabalho: Márcia Buzalaf, Silvio Demétrio e José Maschio. E agradeço também à mulher que me fez descobrir Gabriel García Márquez de um jeito completamente único e apaixonante, partilhando leituras, risadas e muito aprendizado. Obrigada Maria Cecília Guirado de Carvalho, ou Ciça como sempre a chamei. Ciça coordena o projeto “Imagens midiáticas da América Latina: textos jornalístico-literários de Gabriel García Márquez”, devo a ela e ao seu projeto todo o conhecimento impresso nas próximas páginas deste trabalho.
“Não se passaria muitos anos antes que eu comprovasse na própria carne, até chegar a crer, como creio hoje mais do que nunca, que romance e reportagem são filhos de uma mesma mãe”. Gabriel García Márquez
NASCIMENTO, Angélica Miquelin do. Crônica, romance ou reportagem: A natureza híbrida de Crônica de uma morte anunciada. 2014. 85p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social-Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014.
RESUMO
Este estudo versa sobre as peculiaridades do hibridismo entre realidade e ficção em Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez. Ao recriar a história de um assassinato ocorrido em 1951, o autor utiliza técnicas narrativas aprendidas no ofício de repórter e no trabalho literário. Como obra híbrida, o texto transita entre a crônica, o romance e a reportagem. A classificação em um dos gêneros que comporta essa miscelânea depende da avaliação dos elementos ficcionais agregados à história real. Resgatando e adaptando o fato quase 30 anos após o crime, Gabo toca em questões culturais que espelham a realidade social em que cresceu e formou-se jornalista e escritor. As reflexões são guiadas pela narratologia, mas transcendem os estudos da narrativa ao ampliar a percepção sobre o universo mágico e – ao mesmo tempo – real de García Márquez.
Palavras-chave: Jornalismo. Literatura. Gabriel García Márquez. Crônica de uma morte anunciada. Narratologia. .
NASCIMENTO, Angélica Miquelin do. Chronicle, Romance or Report: The hybrid nature of Chronicle of a death foretold. 2014. 85p. Work of Course Conclusion (Graduation in Social Comunication - Journalism) – State University of Londrina, Londrina, 2014.
ABSTRACT
This study is about the peculiarities of hybridity between reality and fiction in Chronicle of a death foretold, by Gabriel García Márquez. Recreating the story of a murder, which happened in 1951, the author uses narrative techniques learned in his job as a journalist and in the literary work. As a hybrid work, the text transits between the chronicle, the romance and the report. The classification in a genre that contains such miscellany depends on the evaluation of fictional elements added to the real story. Rescuing and adapting the fact almost 30 years after the crime, Gabo touches cultural issues that show the social reality in which he was born and became journalist and writer. The reflections are guided by the narratology, but they transcend the narrative studies by enlarging the perception about the magic and – at the same time – real universe from García Márquez.
Palavras-chave: Journalism. Literature. Gabriel García Márquez. Chronicle of a death foretold. Narratology.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
A má hora
A má hora: o veneno da madrugada
A revoada
A revoada: o enterro do diabo
Cem anos
Cem anos de solidão
Crônica
Crônica de uma morte anunciada
Gabo
Gabriel García Márquez
GGM
Gabriel García Márquez (referência)
Notícia
Notícia de um sequestro
Prensa
Prensa Latina
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9
2
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA .................................................................................................... 12
2.1
AS MAGIAS DE ARACATACA E A FORMAÇÃO DO REPÓRTER ..................................... 14
2.2
UM CARIBENHO NA EUROPA: A VIDA COMO CORRESPONDE INTERNACIONAL ......... 20
2.3
PERSEGUIÇÃO, EXÍLIO E LEGADO ............................................................................ 25
3
DISCURSOS ENTRE O REAL E O IMAGINADO: A PERMEÁVEL FRONTEIRA ....................................................................................................... 30
3.1
A SENSIBILIDADE DO NEW JOURNALISM E O REALISMO MÁGICO ............................... 36
3.2
CRÔNICA, ROMANCE OU REPORTAGEM? ................................................................. 43
3.3
LIVRO-REPORTAGEM, ROMANCE-REPORTAGEM E FICÇÃO JORNALÍSTICA................ 50
4
UMA NARRATIVA QUASE REAL ................................................................. 56
4.1
O DISCURSO JORNALÍSTICO EM CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA ...................... 62
4.2
ANÁLISE DOS RECURSOS TÉCNICO-LITERÁRIOS ...................................................... 67
4.3
PERFORMATIZAÇÕES DO REAL: OS PERSONAGENS DE GABO ................................... 70
4.4
ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA ................................................................................. 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 79
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 82
9
1 INTRODUÇÃO
Gabriel García Márquez foi um homem sensível, alguém capaz de traduzir o real de uma forma mágica e o mágico de uma forma real. O jovem García Márquez era um aspirante a escritor quando entrou para o mundo do jornalismo. Nesse imenso universo de signos em que flutua a prática jornalística, Gabo ou Gabito - como era carinhosamente chamado pelos amigos - tornou-se um exímio caçador de palavras. Mas, o reconhecimento não veio da noite para o dia; foram anos de redação, centenas de textos reescritos, editados, cortados, rasgados, além de várias experiências sentidas e observadas pelo caribenho que moldou seus personagens à luz de modelos vivos, alegres, sofridos e em geral latinoamericanos. Além de uma pesquisa sobre a formação e a técnica do jornalista-escritor, este trabalho também é uma singela homenagem ao homem que encantou o mundo retratando a fantástica e trágica realidade da América Latina. Com o Nobel de Literatura, conquistado em 1982, ele obteve a consagração como escritor. Aqueles que o conhecem muito além das repetitivas, fragmentadas e até mesmo equivocadas notícias sobre a sua morte, em 17 de abril de 2014, sabem que várias de suas obras literárias foram concebidas graças a sua atuação como repórter. Gabo lia muito, gostava de boa literatura. O colombiano devorou livros de Franz Kafka, Ernest Hemingway, Liev Tolstói, Joseph Conrad, Antoine de Saint-Exupéry, Sófocles, Arthur Rimbaud, Virginia Woolf e William Faulkner, dentre tantos outros. Era estudante de Direito, mas não tinha vocação para as leis. Apesar de pretender, em um primeiro momento, ser apenas literato, para sobreviver passou a produzir textos para os jornais colombianos El Universal, El Heraldo e Espectador, foi corresponde internacional na Europa e mesmo após o reconhecimento como escritor nunca deixou de ser jornalista. A magicidade das fantásticas histórias de Gabo não apaga o traço de um escritor que passou por uma redação, que viveu as suas histórias e que sabe retratá-las com maestria. Cada sinal tipográfico registrado na literatura, a ordenação das ideias, a seleção das palavras estão, direta ou indiretamente, influenciados pelo tino do repórter García Márquez. O próprio Gabo afirma: “Não existe uma linha em nenhum dos meus livros que eu não possa relacionar a uma experiência real. Sempre existe uma referência a uma realidade concreta.” (MARTIN, 2010, p. 207). As peculiaridades do hibridismo entre realidade e ficção são o norte das investigações deste Trabalho de Conclusão de Curso.
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O objetivo desta pesquisa é levantar reflexões sobre as características híbridas de Crônica de uma morte anunciada (1981), uma narrativa que está entre a realidade e a ficção. Sendo assim, a hipótese do trabalho se firma na premissa de que para escrever essa obra, Gabriel García Márquez utiliza as técnicas apreendidas em sua dupla formação: jornalista e escritor. O segundo capítulo dessa monografia apresenta uma imersão na vida e na formação do jornalista-literato. Sonhando em ser escritor, Gabo se aventura na realidade do jornalismo, ofício que lhe forneceu objetos, técnicas e experiências necessárias para se tornar um grande narrador da realidade fantástica. No terceiro capítulo vários autores são chamados para discutir as aproximações e distanciamentos dos dois gêneros – jornalismo e literatura - que permanecem intimamente ligados na obra do caribenho. García Márquez escrevia jornalismo literário antes dos americanos inventarem o new journalism. Desde que teve a chance de dedilhar reportagens para o jornal Espectador, Gabo procurou retratar o que via com a poesia da boa escrita. Nesse capítulo também são tecidas considerações sobre a corrente americana e o realismo mágico, encerrando o raciocínio com pontuações sobre crônica, romance e reportagem e as narrativas híbridas que se originam do cruzamento entre esses gêneros. No quarto capítulo apresenta-se a história de Crônica de uma morte anunciada, obra baseada em um fato real, ocorrido em 1951. Cayetano Gentile, amigo de juventude de García Márquez, foi morto a facadas por dois irmãos no vilarejo de Sucre (Colômbia), onde morava a família do caribenho. Em Crônica o escritor García Márquez e o jornalista García Márquez trabalham juntos para recontar a história de um crime ocorrido há 30 anos. A tragédia narrada pelas precisas palavras de Gabo é personificada por seres reais, que realmente protagonizaram uma história semelhante. O livro foi adaptado para o cinema em 1987, mas a tradução cinematográfica não faz justiça à beleza narrativa da obra escrita. O apoio teórico para a análise de Crônica fundamenta-se na narratologia jornalística, que para Motta "procura entender como os sujeitos sociais constroem os seus significados através da apreensão, compreensão e expressão narrativa da realidade" (2004, p. 11). Essa visão permite pensar as narrativas como frutos de uma realidade social, ou seja, as narrativas refletem a sociedade em que foram concebidas. Yves Reuter, estudioso da narratologia no campo linguístico, vê as narrativas como produtos da organização textual com bases e princípios de composição comuns. Conceitos eficientes para estudar os recursos literários que Gabriel García Márquez utilizou na composição de sua obra.
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Entender como as relações humanas produzem sentido, por meio das narrativas, torna-se importante para compreender a complexidade do ato de narrar, pois “[...] os seres humanos têm uma predisposição cultural primitiva e inata para organizar e para compreender a realidade de modo narrativo” (MOTTA, 2004, p. 07). E quando o ato narrativo se torna uma profissão, como no caso do jornalista ou do escritor, os significados tomam uma dimensão maior e mais importante na medida em que a narrativa é reproduzida e divulgada. Este trabalho se justifica como uma contribuição à discussão dos limites entre realidade e ficção na produção de obras jornalísticas. Crônica é literalmente uma reportagem literária, reportagem porque é narrada como tal; literária porque possui elementos ficcionais e também incorpora recursos narrativos da literatura. Mesmo confundindo-se entre o real e o imaginado, a leitura atenta de Crônica de uma morte anunciada faz pensar a necessidade de um jornalismo diferente, que fuja da tradicionalidade do lead, mas que não incorpore o extremo da ficção literária. Para fugir da simples informação é necessário dar mais espaço à reportagem, às histórias contadas de maneira simples e verdadeira, sem esquecer a poesia da vida cotidiana e a sensibilidade de quem a descreve.
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2 GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA O jornalismo é uma arte da palavra, em que esta possui um valor próprio. O modo de dizer é um elemento capital para que o jornalismo, como qualquer outro emprego da palavra, seja ou não uma arte. Quando a utilização da palavra, em um jornal, tem apenas um fim pragmático não é jornalismo. [...] O que faz o gênero jornalismo não é o meio de expressão, é o modo de expressão, é a natureza da expressão (LIMA, 1960, p. 42).
O aspirante a escritor publicou seu primeiro conto, A terceira resignação, no dia 13 de setembro de 1947, no jornal bogotano Espectador, incentivado pelas palavras do colunista Eduardo Zalamea Borba, que ansiava por novos nomes na literatura colombiana e se entusiasmou com o talento das primeiras publicações literárias do caribenho. Foi Zalamea Borba quem divulgou o apelido pelo qual o mundo o conheceu: Gabo. Gabriel García Márquez entrou para o jornalismo em 1948. Sua primeira experiência em uma redação se deu no jornal El Universal, onde conheceu um de seus mestres: o editor Clemente Manoel Zabala. Fugindo do Bogotazo - os sangrentos protestos iniciados com assassinato do então presidente colombiano Jorge Eliécer Gaitán - García Márquez vai para Cartagena de las Índias onde dá início à carreira jornalística. García Márquez, nessa época, parecia conceber o jornalismo apenas como um meio para um fim e como uma forma inferior de escrita. Apesar disso, foi contratado como jornalista, precisamente devido a seu prestígio literário preexistente, justo depois do seu 21º aniversário (MARTIN, 2010, p. 156).
Gabo ainda não via na profissão uma oportunidade para publicar suas histórias, começou a escrever artigos jornalísticos porque precisava de dinheiro para se sustentar em Cartagena. Ele considerava o jornalismo uma forma inferior de escrita, pois sonhava com a fama e a consagração de escritor. Para mim, estava claro que o jornalismo não era o meu ofício. Eu queria ser um escritor diferente, mas tentava isso pela via da imitação de outros autores que não tinham nada ver comigo. Assim, naqueles dias eu estava numa pausa de reflexão, porque depois dos meus três primeiros contos publicados em Bogotá, e tão elogiados por Eduardo Zalamea e outros críticos e bons e maus amigos, eu me sentia num beco sem saída. Zapata Olivella insistiu contra meus argumentos, dizendo que jornalismo e literatura acabavam sendo a mesma coisa, e um vínculo com o El Universal poderia me garantir três destinos ao mesmo tempo: resolver a minha vida de maneira digna e útil, me colocar num meio profissional que era por si só um ofício importante, e trabalhar com Clemente Manuel Zabala, o melhor professor de jornalismo possível e imaginável (GGM, 2005, p. 309 e 310).
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Almejando um lugar ao sol junto aos grandes escritores que lhe serviam de inspiração, o jovem e inexperiente jornalista sofreu na mão do editor, até encontrar seu estilo inconfundível de narrar a realidade fantástica: Após algumas poucas horas de ansiedade, em que esteve enfeitiçado pela própria retórica, apresentou-se para mostrar a sua primeira coluna ao chefe. Zabala leu e disse que estava muito bem escrita, mas que não dava para publicar. Para começar, era muito pessoal e excessivamente literária; e, em segundo: “Você não reparou que estamos sob regime de censura?” Na mesa de Zabala havia um lápis vermelho, que ele pegou. Quase imediatamente, a combinação do talento inato de García Márquez e do zelo profissional de Zabala produziu artigos interessantes, instigantes e originais desde a primeira linha. Todas as colunas assinadas por García Márquez no Universal apareceram na seção “Punto y Aparte” [“Novo Parágrafo”] (MARTIN, 2010, p. 158).
Com o emprego de jornalista, García Márquez achou um caminho fora da profissão jurídica. Nessa época, o estudante tropeçava entre as aulas de advocacia, a embriaguez dos livros e o exagero das farras. O caribenho que não tinha vocação para as leis entrou na universidade para fazer a vontade do pai, Gabriel Eligio, mas nunca terminou o curso. Em setembro de 1948 viajou para Barranquilla. Lá, conheceu os jornalistas Germán Vargas, Alvaro Cepeda e Afonso Feunmayor, boêmios debatedores de literatura. O contato com o “Grupo de Barranquilla” idealizado pelo crítico catalão Ramón Vinyes ajudou Gabo em sua formação literária e o inspirou a escrever seu primeiro romance La casa. Gerald Martin, biógrafo oficial de García Márquez, afirma que no primeiro romance do jovem escritor já estão presentes os “[...] germes de Cem anos de solidão (1967), com os temas da solidão, do destino, da nostalgia e da violência, todos esperando pelo tom distintivo e pela devida perspectiva, que ainda estavam a uma década de sua descoberta” (2010, p.167). Depois de passar seis semanas se recuperando de uma pneumonia em Sucre, onde viviam seus pais, no fim de 1949, García Márquez foi tentar a sorte em Barranquilla. Com a promessa de que Afonso Fuenmayor moveria “céus e terra para lhe conseguir um trabalho no El Heraldo” (MARTIN, 2010, p.174). Em seu novo emprego, conquistou mais autonomia com sua coluna diária “La Jirafa”: Continuou a usar seu pseudônimo, Septimus, assumido em Cartagena e intitulou sua coluna diária de “A Girafa”, um tributo secreto à sua musa adolescente, Mercedes, admirada por seu belo pescoço alongado. Desde o começo, essas colunas carregavam um esplendor novo, mesmo que – ainda havia censura na época – tivessem conteúdo pouco substancial (MARTIN, 2010, p. 181).
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Em suas “jirafillas”1, Gabo escrevia sobre tudo, de Eva Perón ao tédio dominical. As palavras escritas pelo jovem jornalista já apresentavam duas de suas principais características: a exímia descrição que envolve o leitor e a ironia de quem brinca com as mazelas da vida: Uma mulher com importância - Janeiro de 1950 [...] Eva se converteu em uma das mulheres mais interessantes do mundo atual, desde que não compartilhemos com a ideologia e os sistemas postos em prática por seu marido. Hoje – segundo as alarmantes notícias do telégrafo – Eva é uma mulher tão segura de si mesma e de uma personalidade tão definida, que sofreu, em público e sem se envergonhar, um ataque de apendicite aguda. Grave ataque, que já deve ter se convertido em uma espécie de enfermidade nacional, obrigatoriamente garantida através de um decreto executivo a todos os cidadãos da Argentina (GGM, 2006, p. 129). Chateação do domingo - Fevereiro de 1950 Perguntam-me porque a “jirafa” não vadia às segundas-feiras e eu respondo [...]: “A ‘jirafa’ não vadia nas segundas-feiras porque teria que ser escrita na tarde de domingo, e isso é substancialmente impossível.” [...] o domingo é um dia vertebralmente equivocado, inútil, que deve ter entrado de contrabando quando os astrônomos tomaram as medidas do tempo humanamente suportável. [...] Por isso não me acostumo a escrever aos domingos. Porque entendo que a semana é uma roupa que fica muito grande em todos os homens. [...] Mas por muito que se ajeitem os costumes, por muito que bordem enfeites e inventem debruns à folgada roupa da semana, a tarde de domingo sempre sobrará para o homem da cidade e dele se arrastará como um rabo fantástico e absurdo (GGM, 2006, p. 151).
Em meio à agitação da vida em Barranquilla, García Márquez se deleitava com boleros, vallenatos2 e livros. Foi com o grupo de Barranquilla que conheceu Virginia Woolf, discutiu Faulkner e se entusiasmou com Hemingway. O grupo também lhe conferiu apoio para perseguir o sonho literário depois de sua primeira experiência com La casa. Mas, faltava-lhe um insight, algo que mudasse sua perspectiva sobre o mundo que ele tentava descrever em palavras.
2.1 AS MAGIAS DE ARACATACA E A FORMAÇÃO DO REPÓRTER
O escritor García Márquez despertou de verdade depois de retornar a cidade de sua primeira infância, a esquecida Aracataca. Luisa Santiaga, sua mãe, o procurou em Barranquilla para que ele a acompanhasse até o esquecido povoado e ajudasse a negociar a
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Tradução: “Girafinhas” Vallenato: música popular da Colômbia, típica da região caribenha.
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venda da casa de seus avós. E lá foi Gabo, visitar o passado que mudaria sua vida para sempre. O efeito desse retorno às coisas passadas foi assombroso. Cada rua parecia lançá-lo num túnel do tempo, de volta à casa onde nascera. Era essa a Aracataca da sua infância, as casas caindo aos pedaços, as ruas empoeiradas, a igreja esfacelada e diminuta, parecendo de brinquedo? As movimentadas avenidas verdes de sua memória estavam desertas, como se jamais fossem ter vida novamente. Tudo e todos que ele via pareciam cobertos de poeira e envelhecidos de uma maneira que ele jamais poderia ter imaginado; todos os adultos pareciam doentes, extenuados e derrotados; seus contemporâneos, mais velhos do que a idade que de fato tinham; as crianças, sem alegria e barrigudas; e parecia que os vira-latas e os urubus haviam tomado conta da cidade. Foi como se todos estivessem mortos, e apenas Gabo e sua mãe estivessem vivos. Ou, tal qual um conto de fadas, como se ele próprio estivesse morto e só então voltasse à vida (MARTIN, 2010, p. 183).
Reviver Aracataca foi um divisor de águas para García Márquez. Ele desistiu imediatamente de La casa e começou a pensar em um novo livro: A revoada: o enterro do diabo, considerado “o seu primeiro texto sério”. Para ele, essa viagem foi a experiência mais importante de sua vida, pois voltar à Aracataca trouxe “[...] a confirmação definitiva de sua vocação literária” (MARTIN, 2010, p.183). Anos mais tarde, García Márquez diria: “O que realmente me aconteceu naquela viagem para Aracataca foi a compreensão de que tudo que havia ocorrido na minha infância tinha um valor literário, que só naquele momento eu estava valorizando. No momento em que escrevi A Revoada, compreendi que queria ser um escritor e que ninguém poderia me impedir, portanto a única coisa que me restava era tentar ser o melhor escritor do mundo (MARTIN, 2010, p. 184).
A Revoada é o “[...] mais autobiográfico dos romances de García Márquez. Os personagens centrais compõem uma trindade sagrada, formando uma romanesca aventura familiar de três vertentes, baseada em Gabito, Luisa e Nicolás” (MARTIN, 2010, p. 193). A nova narrativa não incluía somente a casa resgatada de suas lembranças infantis, mas todo o povoado que tanto o impressionará ao retornar adulto: nascia Macondo. O trem fez uma parada numa estação sem povoado, e pouco depois passou na frente da única fazenda bananeira do caminho que tinha o nome escrito no portal: Macondo. Esta palavra tinha chamado minha atenção desde as primeiras viagens com meu avô, mas só depois de adulto descobri que gostava da sua ressonância poética (GGM, 2005, p. 23).
Em meio à empolgação com a escrita do novo romance, Alfonso Fuenmayor convence Gabo a colaborar com Crónica, uma nova revista semanal impressa nas oficinas do El Heraldo. Crónica nasceu em 29 de abril de 1950 e morreu em junho de 1951. Escrevendo girafas diárias e as matérias para revista semanal, quase todos os textos de García Márquez,
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neste período, eram tocados “em algum grau pela graça da descoberta e da criação” (MARTIN, 2010, p. 195). No dia 23 de janeiro de 1951, Gabo recebeu um bilhete de Mercedes Barcha. No bilhete ela contava que Cayetano Gentile, seu amigo de infância, havia sido morto em Sucre. A história do assassinato foi convertida em livro em 19813. Cayetano Gentile fora morto pelos irmãos de Margarida Chica, companheira de quarto de Mercedes em Mompox. Durante sua primeira noite de núpcias, Margarida revelara ao marido que não era mais virgem, e ele a devolvera à sua família como um produto estragado. Um dos rumores em Mompox é que ela havia sido estuprada por um policial durante La Violencia e que não dissera a verdade com medo de represálias. Então Margarida contou que sua virgindade havia sido tirada por Cayetano Gentile, que, de fato, fora seu namorado. A verdade jamais será conhecida. Seus irmãos decidiram imediatamente restaurar a honra da família, matando o alegado ofensor na praça principal de Sucre, na frente da cidade inteira (MARTIN, 2010, p. 198).
Assustado com a violência de Sucre, pois “a morte de Cayetano fora politicamente motiva”, Gabriel Eligio procurou a ajuda do filho duas semanas após o assassinato. Eligio queria providenciar a mudança da família García Márquez para Cartagena e solicitou a ajuda do primogênito para instalar e manter a mãe e os irmãos na nova cidade. Há contragosto, o jornalista negociou a saída do El Heraldo e procurou o El Universal “com o rabo entre as pernas” (MARTIN, 2010, p. 199 e 200). García Márquez ficou em Cartagena até finalizar A revoada. Com a ajuda de Alvaro Mutis, enviou uma cópia do romance para Buenos Aires e em dezembro de 1951 voltou para Barranquilla, pois não aguentava mais viver com a família. No entanto, o primeiro romance finalizado foi uma grande decepção para o aspirante a literato: o livro, de publicação quase certa, foi recusado. Na carta enviada pela editora Losada, os avaliadores lhe sugeriram procurar outra profissão. O comitê em Buenos Aires enviara uma carta devastadora do seu presidente, Guillermo Torre, um dos principais críticos espanhóis no exílio e cunhado de Jorge Luis Borges, a quem García Márquez tanto admirava. A carta concedia ao novo escritor algum talento poético, mas declarava que ele não tinha futuro como romancista, e sugeria, sem nenhuma delicadeza, que ele procurasse outra profissão (MARTIN, 2010, p. 204).
Com o orgulho ferido, Gabo fez uma pausa em suas atividades de escritor e jornalista, aceitou a proposta de Julio César Villegas e foi peregrinar pelo interior do país como vendedor de livros. Entre as farras regadas a muita bebida e canções de vallenato, as 3
Objeto específico dessa monografia, Crônica de uma morte anunciada é discutida, quanto ao gênero e estilo, no capítulo 3 e analisada no capítulo 4.
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expedições como livreiro lhe permitiram um contato muito intenso com a cultura popular da Colômbia, experiência que certamente influenciou suas obras. Com o retorno à Barranquilla, Alvaro Cepeda Samudio convida García Márquez para dividir a direção do Nacional, jornal que Samudio queria modernizar ao “exemplo americano”. Os dois passavam dias e noites na redação, mas poucas edições foram publicadas. Gabo recordaria aqueles tempos como um dos piores de sua vida (MARTIN, 2010, p. 210). Há tempos, García Márquez aguardava uma oportunidade de reportar os fatos à sua maneira, sem depender de agências e de telegramas. Queria ser repórter. Levando consigo os originais de La casa e de A revoada: o enterro do diabo, em janeiro de 1954 ele retorna à capital e vai tentar a sorte no Espectador. Em uma nova fase, o caribenho dá um voo mais alto e, como repórter, mergulha na realidade política da Colômbia dos anos 50. Há muitos anos Gabo acalentava a oportunidade de poder ser repórter, mas El Universal e El Heraldo viviam de telegramas internacionais, dados seus recursos, e, para ser mais exato, devido ao dominante regime de censura raramente faziam reportagens sérias. Sua missão, de muitas maneiras, era publicar toda e qualquer coisa que não fosse a habitual propaganda conservadora. Os donos do Espectador eram feitos de material flexível. E agora tinham à disposição um jovem escritor fascinado pela variedade do povo de seu país, pelo que esse povo fazia e pelo que acontecia com ele. Um homem que amava histórias e transformava a própria vida numa história sempre que possível; e que agora aproveitaria a oportunidade para transformar a vida de outros em narrativas que prenderiam a imaginação do país (MARTIN, 2010, p.221).
No Espectador, Gabo também se aventurou na crítica de cinema e uma obsessão pelas imagens em movimento começou a germinar dentro dele. Foi pioneiro na escrita de uma coluna regular sobre as histórias cinematográficas. Sua visão sobre a ‘sétima arte’ era mais literária e humanística do que técnica, mas o olhar do crítico já observava “os valores frívolos e profundamente comerciais do sistema hollywoodiano”, com exceção de Orson Welles e Charles Chaplin (MARTIN, 2010, p. 218). O colombiano apreciava o jeito europeu de compor as narrativas cinematográficas. Uma arte crítica, realista e adaptada à cultura latino-americana era o que ele desejava para o desenvolvimento de um cinema nacional na Colômbia. Com o aprimoramento do olhar começou a pensar as questões técnicas que lhe ajudariam na produção de roteiros anos mais tarde.
18 García Márquez estava surpreendentemente preocupado com as questões técnicas – roteiros, diálogos, direção, fotografia, som, música, edição, atuação - , o que talvez dê uma pista do que mais tarde chamaria de “carpintaria” das suas obras literárias: os “truques do ofício” profissionais que nunca teve muita vontade de compartilhar, pelo menos não em termos do romance. Ele insistia que os roteiros deviam ser econômicos, consistentes e coerentes; e que os close-ups e as tomadas longas deveriam receber a mesma atenção. Desde logo se preocupou com o conceito da história bem-realizada, uma obsessão que permaneceria com ele pelo resto de sua carreira e explicaria sua continuada reverência por livros como As mil e uma noites, Drácula, O conde de Monte Cristo e A ilha do tesouro – obras da literatura popular brilhantemente narradas. Era isso que ele buscava no cinema também (MARTIN, 2010, p. 218 e 219).
Em 9 de julho de 1954, Gabo presenciou um massacre. Tropas do governo colombiano jorraram tiros de metralhadora contra estudantes que faziam uma manifestação em Bogotá. As mortes em massa colocaram um fim na trégua entre o novo governo militar e a imprensa liberal. Horrorizado pela cena que se passara diante de seus olhos, García Márquez, que desde seu início no jornalismo mantinha opiniões políticas radicais, se comprometeu “não apenas com uma ideologia política específica – o socialismo - mas também, pelo menos durante alguns anos, com uma maneira particular de enxergar e interpretar a realidade, e com uma maneira específica de expressá-la e comunicá-la tecnicamente” (MARTIN, 2010, p. 221). Entra em cena o repórter García Márquez. O talentoso jornalista que desvendou o naufrágio do destroier Caldas, entrevistando o único sobrevivente da tragédia: o marinheiro Luis Alejandro Velasco. A grande-reportagem de Gabo, publicada em 14 episódios no Espectador, provou que o naufrágio não fora causado por uma tempestade como alegavam as autoridades militares, mas afundou porque estava carregado de mercadoria ilegal trazida dos Estados Unidos. A história de Relato de um Náufrago foi eternizada em livro no ano de 1970. A segunda surpresa, que foi a melhor, eu a tive no quarto dia de trabalho, quando pedi a Luís Alexandre que me descrevesse a tormenta que ocasionou o desastre. Consciente de que sua declaração valia seu peso em ouro, responde-me com um sorriso: “Mas não havia tormenta”. E assim foi: os serviços meteorológicos nos confirmaram que aquele tinha sido mais um dos fevereiros mansos e diáfanos do Caribe. A verdade, nunca publicada até então, era que o navio adernou por causa do vento no mar agitado, soltou-se a carga mal estivada na coberta e oito marinheiros caíram no mar. Essa revelação implicava grandes erros: primeiro, era proibido transportar carga em um destróier; segundo, foi por causa do excesso de peso que o navio não pôde manobrar para resgatar os náufragos; terceiro, tratava-se de contrabando: geladeiras, televisores, máquinas de lavar. Estava claro que a história, como o destróier, levava também mal amarrada uma carga política e moral que não tínhamos imaginado (GGM, 1999, p. 5 e 6).
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García Márquez foi vigiado pelo Partido Comunista da Colômbia, entrou em contato com membros da organização, mas ficou combinado que a sua atuação seria mais efetiva se ele continuasse fazendo um jornalismo engajado, que não o comprometesse diretamente com a ideologia partidária. Ele não desafiou diretamente o regime militar, mas, [...] de relato em relato, assumiu um ponto de vista que implicitamente subvertia os relatos oficiais e, desse modo, desafiou o sistema vigente de forma mais eficaz do que qualquer um de seus colegas esquerdistas mais pronunciados, guiado apenas pela rigorosa investigação, reflexão e comunicação das realidades do país. Em resumo, foi uma sistemática e brilhante demonstração do poder da arte de contar histórias e da importância fundamental da imaginação, mesmo na representação de material factual (MARTIN, 2010, p. 227).
Seu sucesso como jornalista se contrapôs à venda quase inexpressiva de A revoada. A obra foi publicada por uma pequena editora com uma tiragem de quatro mil cópias. O livro “pertencia, não somente a um momento, mas a um modo narrativo que ele deixaria para trás: ao mesmo tempo estático e atormentado pelo tempo, fatalista e mítico” (MARTIN, 2010, p. 228). Com as reportagens engajadas, Gabo atraiu atenção do governo reacionário. Havia rumores de planejavam represálias contra ele. Quando surgiu a oportunidade ir trabalhar na Europa, não pensou duas vezes. “A intenção da viagem pode muito bem ter sido um breve autoexílio sob o disfarce de uma missão jornalística” (MARTIN, 2010, p. 229). Aqueles não eram os tempos mais indicados para sonhar. Desde o relato do náufrago tinham me aconselhado a ficar um tempo fora da Colômbia, até a situação ficar mais aliviada, sem as ameaças de morte, reais ou fictícias, que chegavam por diferentes caminhos. Foi a primeira coisa em que pensei quando Luis Gabriel Cano me perguntou de chofre o que eu ia fazer na próxima quarta-feira. Como não tinha plano algum, ele me disse com a fleuma costumeira que preparasse meus papéis para viajar como enviado especial do jornal para a Conferência dos Quatro Grandes, que aconteceria na semana seguinte em Genebra (GGM, 2005, p. 471).
Assim, a formação do repórter continua na assustadora e instigante experiência pela Europa. Como correspondente internacional, pelo Espectador e depois pelo El Independiente, o caribenho conheceu o velho continente e reportou suas impressões e angústias ao deparar-se com a civilização europeia, não em semanas, como era o previsto, mas em anos.
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2.2 UM CARIBENHO NA EUROPA: A VIDA COMO CORRESPONDENTE INTERNACIONAL
Paris foi a primeira parada de Gabo. Da capital francesa ele pegou um trem para Genebra, onde seria realizada a Conferência dos “Quatro Grandes” – União Soviética, Reino Unido, França e EUA. Os primeiros textos enviados por telegrama foram desanimadores, pois mostravam uma indiferença do povo e dos próprios participantes do encontro ante a importância das discussões para selar a paz, ou a guerra, dez anos após o término do segundo conflito mundial. García Márquez se sentiu perdido em meio às dificuldades culturais e materiais da tarefa que lhe destinaram. Depois da Conferência viajou para Roma para cobrir o Festival de Cinema de Veneza. A solução encontrada para a produção jornalística foi a narração subjetiva, Gabo apresentava a leitura – caribenha - que fazia do velho mundo. “O que ele mais descobriria em Genebra, Roma e Paris não era a Europa, e sim a América Latina” (MARTIN, 2010, p. 241). Inevitavelmente, ele estava mais impressionado do que demonstrava - e ainda mais nervoso e intimidado. Podia ter se tornado um repórter temido em Bogotá, mas aquela imagem disfarçava uma personalidade que ainda era tímida e acanhada. A despeito do costeño “provocador”, as primeiras semanas na Europa tiveram um profundo impacto em García Márquez, como suas frequentes referências em artigos escritos quase um quarto de século depois demonstrariam – bastante apropriadamente, no Espectador (MARTIN, 2010, p. 240 e 241).
O jovem queria aproveitar a viagem para conhecer a Europa Oriental e comparar os dois lados da “Cortina de Ferro, Ocidente e Oriente”. Para poder tirar umas ‘férias’, Gabo queria escrever uma história substancial, que alimentasse as páginas do Espectador por alguns dias. Escreveu “O escândalo do Século” sobre a morte de Wilma Montesi, filha de um carpinteiro, assassinada dois anos antes. A história envolvia “a decadência da classe alta, corrupção policial e manipulação política”. García Márquez visitou o quarteirão e a casa onde Montesi vivera, a praia a 42 quilômetros de distância onde seu corpo aparecera e uns dois bares onde os habitantes locais pudessem ter alguma informação para dar. Para todo o resto, ele usou outras fontes com grande eficiência, fez as próprias pesquisas onde foi possível e escreveu uma de suas reportagens mais vigorosas. Ao anunciar a série, o Espectador declarou: “Durante um mês visitando os locais onde o drama aconteceu, Gabriel García Márquez descobriu os mais minuciosos detalhes da morte de Wilma Montesi e do subsequente julgamento” (MARTIN, 2010, p. 243).
Depois de cobrir o caso Montesi e o Festival de Cinema, Gabo vai para Viena. Em Viena conheceu “Frau Roberta” transformada em “Frau Frida” no conto Me alugo para sonhar, uma clarividente colombiana que ganhava a vida vendendo sonhos. O conto está
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presente no livro Doze Contos Peregrinos (1992), que reúne mais 11 histórias sobre latinoamericanos que estão longe de sua terra natal e vivenciam as mais diversas experiências de vida e de morte. García Márquez, como latino supersticioso que era, saiu apressado da capital austríaca quando a clarividente lhe disse que havia sonhado com ele e lhe aconselhou a fugir da cidade. Gabo embarcou em uma viagem para adentrar a cortina de ferro. Passou pela então Tchecoslováquia e pela Polônia, país que ainda carregava cicatrizes do holocausto nazista. Na visita à Auschwitz, chorou diante dos resquícios do massacre promovido por Adolf Hitler. Voltando a Roma, García Márquez fez contato com o complexo Cinecittà, uma “fábrica de sonhos” composta por teatros e estúdios, responsáveis pela maior parte da produção cinematográfica italiana. Foi estudar cinema no Centro Sperimentale4. Admirador do neorrealismo italiano desde as colunas que escrevera no Espectador, Gabo queria aprender mais sobre a elaboração de roteiros com um de seus ídolos, o roteirista Cesare Zavatinni. Ocorre que a redação de roteiros era apenas uma seção de interesse menor no curso de direção de cinema. Talvez de forma previsível García Márquez tenha ficado logo entediado, com exceção das aulas de edição de Dottoresca Rosado, que, como ela insistia, eram a “gramática do cinema”. A verdade é que ele jamais se interessou por nenhum tipo de educação formal, e, se não fosse realmente compulsório, não prestava atenção; [...] (MARTIN, 2010, p. 249).
Tentando aprender cinema, Gabo entendeu que era hora de voltar para a literatura. Estava entediado e, quando “um latino-americano fica entediado na Europa e não sabe o que fazer, ele pega um trem para Paris” (MARTIN, 2010, p. 250). Na capital francesa, o colombiano fez muitas amizades. A cidade luz era abrigo de vários escritores latinoamericanos em exílio devido aos regimes ditatoriais que assolavam o terceiro mundo. Plinio Apuleyo Mendoza, jornalista colombiano que entrevistou García Márquez em Cheiro de Goiaba (1982), era um dos vários latino-americanos embriagados pelas ideias e novidades do velho continente; Mendoza foi a pessoa que mais lhe ajudou nos momentos de dificuldade e se tornou seu melhor amigo ao longo dos anos. Em Paris, Gabo perdeu o emprego duas vezes, passou fome, viveu uma tórrida aventura amorosa e escreveu dois romances. O emprego foi perdido porque Rojas Pinilla fechou o Espectador em janeiro de 1956. O correspondente subestimou a notícia dizendo que não era sério, mas os cheques pararam de chegar. Foi contratado pelo El Independiente, jornal lançado em 15 de fevereiro para substituir o que fora fechado pelo 4
Tradução: Centro de Cinema Experimental
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ditador. Mas, antes que terminasse de publicar sua primeira reportagem – dividida em 17 partes, pois tinha quase 100 páginas - o jornal também foi fechado exatamente dois meses depois de abrir. Desempregado García Márquez começa a escrever A má hora: o veneno da madrugada (1962). A história é inspirada na cidade ribeirinha onde ele encontrou Mercedes, sua futura esposa, pela primeira vez. Sucre: “É um vilarejo no qual não há mágica. É por isso que a minha escrita é sempre uma espécie de literatura jornalística” (GGM in MARTIN, 2010, p. 257). Longe de Mercedes, Gabo se envolveu em um conturbado romance com Tachia Quintana. Tachia engravidou, mas não teve o bebê. O relacionamento terminou, em parte pela pobreza que assolava o caribenho desempregado. Sem trabalho, García Márquez estava vivendo com o dinheiro da venda da passagem que lhe mandaram após o fechamento do El Independiente. Havia abandonado A má hora para se dedicar a Ninguém escreve ao Coronel (1961). A história, superficialmente inspirada nos conflitos do relacionamento com Tachia, foi finalizada pouco depois de sua partida para Madri. A essa altura o colombiano já não tinha um tostão. [...] García Márquez viveu em Paris durante 18 meses apenas com o dinheiro de sua passagem aérea, a esporádica caridade de amigos e algumas de suas parcas economias para sobreviver, e sem nenhum recurso para voltar à Colômbia. Nessa altura, entretanto, ele falava francês, conhecia Paris e tinha uma variedade de amigos e conhecidos, entre eles, um ou dois franceses, latino-americanos de diversos países e certo números de árabes; [...] (MARTIN, 2010, p. 275).
Com a ajuda do amigo Hernán Vieco, que lhe emprestou 120 mil francos para que pagasse sua conta no hotel, Gabo sobreviveu ao inverno de 1956/1957. Em um passeio no começo do novo ano, o caribenho tem uma grata surpresa ao se deparar com Hemingway, autor que, de alguma forma, havia inspirado Ninguém escreve ao Coronel. García Márquez, muito tímido para abordá-lo, porém bastante excitado para simplesmente não fazer coisa alguma, chamou do outro lado da rua: - Maestro! O grande escritor – cujo romance sobre um velho, o mar e o peixe grande parcialmente inspirara o romance recém terminado do jovem, sobre um velho, uma pensão do governo e um galo de briga – levantou sua mão e gritou de volta, “numa voz levemente pueril: ‘Adios, amigo!’” (MARTIN, 2010, p. 277).
Em maio de 1957 Plinio Mendoza retornou à Paris e encontrou García Márquez “tão magro quanto uma vara e mais estoico”. Os dois amigos, que compartilhavam
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ideais esquerdistas, se aventuraram em uma viagem pelo Leste Europeu a fim de conhecer melhor o socialismo praticado na União Soviética. A experiência na Europa também contribuiu muito com a formação política de Gabo. Embora isso não apareça tão explícito em sua obra literária, seu coração era comunista. García Márquez passaria grande parte de sua vida cercado por companheiros comunistas e – mais frequentemente – ex-comunistas. Entre os últimos havia os arrependidos, que permaneceram à esquerda, e os ressentidos, muitos dos quais mudaram rápido para a direita. García Márquez concluiria relutantemente que o socialismo democrático era preferível, pelo menos em termos pragmáticos, ao comunismo (MARTIN, 2010, p. 280).
Em Moscou, depois de muita burocracia García Márquez conseguiu permissão para visitar os túmulos de Lênin e Stálin. Para Plinio esse foi o momento em que “[...] a primeira faísca de O outono do patriarca se acendeu”. Da experiência soviética ele tirou impressões boas e ruins, mas é inegável que tenha ficado “[...] completamente desiludido com tudo o que viu – ‘perdemos nossa inocência’, diria mais tarde - e aos poucos acabou por acreditar que todos os regimes comunistas eram amaldiçoados pelo mesmo código genético repressor [...]” (2010, p. 286 e 287). Com a Revolução Cubana (1959), Gabo voltou a ter esperança na bandeira vermelha, o colombiano manteve uma longa e polêmica amizade com Fidel Castro e fez incontáveis visitas a Cuba. Em novembro de 1957 mudou-se para Londres, queria aprender inglês e para isso desejava ficar o maior tempo possível na cidade britânica. O caribenho estava vivendo de colaborações para alguns jornais colombianos e artigos escritos para a revista venezuelana Momento, editada por Plinio Mendoza. Em um pequeno quarto de hotel começou a escrever contos que fariam parte da coleção Os funerais da Mamãe Grande (1962). Não aprendeu inglês. Enviou uma carta para sua mãe informando que não tinha dinheiro, mas pretendia voltar à Colômbia até o Ano Novo, pois Mercedes já havia lhe esperado por um longo tempo. No entanto, foi surpreendido por uma oferta de emprego fixo na revista Momento, saiu de Londres não para Colômbia como pretendia, mas para Venezuela. Menos de um mês após sua chegada à Caracas, García Márquez presenciou a rebelião que depôs o ditador Pérez Jiménez. Na cobertura das discussões sobre a formação do novo governo, Gabo começa a se fascinar pelo poder. Ao lado de Plinio Mendoza ele entrevista o mordomo do Palácio Miraflores, o homem havia servido todos os presidentes da Venezuela. A entrevista lhe revelou a necessidade de escrever um livro sobre um ditador, pois
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não existia nenhum. Ironicamente, grande parte de O outono do patriarca (1975), foi escrito na Espanha sob o regime de Francisco Franco. Antes de visitar a família em Cartagena, Gabo foi para Barranquilla se casar com Mercedes Barcha. Entraram na igreja em 21 de março de 1958, passaram por Cartagena e voltaram à Caracas. Plinio Mendoza e García Márquez pediram demissão após Carlos Ramírez MacGregor, dono da revista Momento, escrever um editorial condenando os ataques ao então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, que visitou a Venezuela menos de quatro meses depois da deposição de Pérez Jiménez. “O incidente recebeu cobertura internacional e foi considerado um sinal histórico da hostilidade a que haviam chegado as relações entre os Estados Unidos e os países latino-americanos” (MARTIN, 2010, p. 307). O conterrâneo Mendoza, que tinha muitos conhecidos em Caracas, conseguiu um emprego para Gabo como editor-chefe da revista Venezuela Gráfica conhecida como “Venezuela Pornográfica” pelas vedetes que estampavam suas páginas. No primeiro dia de 1959, estoura a Revolução Cubana. Vibrantes, os dois amigos agarram uma oportunidade única e de última hora, entram em um abarrotado avião e aterrissam em Cuba para reportar o levante de Fidel Castro. Mais tarde García Márquez diria que o evento havia mudado a ideia que ele tinha para O outono do patriarca, que agora concebia como o julgamento de um ditador recém-deposto, narrado por meio de diálogos em torno de um cadáver (MARTIN, 2010, p. 313).
Diante da tendenciosa imprensa norte-americana, o governo cubano viu a necessidade de montar uma agência de notícias que apresentasse os fatos da perspectiva latino-americana, nasce a Prensa Latina. Em abril de 1959, o mexicano Armando Suárez propôs que Plinio e Gabo montassem um escritório da Prensa Latina em Bogotá. Os colombianos não pensaram duas vezes. Em 12 anos como jornalista, foi a primeira oportunidade de fazer exatamente o tipo de trabalho que queria, sem censura nem compromissos – pelo menos ele pensava assim. O escritório da nova Prensa Latina ficava na Carrera 7 – a Sétima Avenida: esse fato, por si só, já deve ter soado revolucionário! [...] (MARTIN, 2010, p. 315).
No ano da revolução, García Márquez escreveu “[...] o conto mais importante que já fez”: Os funerais da Mamãe Grande. Era algo novo, um dos principais textos de sua trajetória literária e política. Uma história “[...] que uniu duas nuances literárias – ‘realista’ e ‘mágica’ – pela primeira vez e pavimentou o caminho para toda a obra madura
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do escritor na segunda metade do século [...]” (MARTIN, 2010, p. 319 e 320). Nesse conto, Gabo faz uma sátira da própria Colômbia, que segundo ele era o país latino-americano mais indiferente à revolução. Imersa nos intermináveis conflitos entre conservadores e liberais, o escritor não via perspectivas de mudança em sua terra natal. Em setembro de 1960, Jorge Masetti, argentino fundador da Prensa Latina, disse que não poderia mais manter dois jornalistas na Colômbia. Plinio preferiu ficar em Bogotá e Gabo foi para Cuba se atualizar sobre os métodos da agência e ajudar no treinamento de outros jornalistas. No começo de 1961, Masetti envia García Márquez para o escritório da Prensa em Nova York. Os Estados Unidos haviam rompido relações com Cuba em 3 de janeiro daquele ano. Não era uma boa hora para um comunista, ligado a Cuba ir para a terra do Tio Sam.
2.3 PERSEGUIÇÃO, EXÍLIO E LEGADO
A família García Barcha chegou aos EUA dias antes da posse do presidente John Kennedy. Já havia mais de cem mil refugiados cubanos em Miami e o governo americano planejava uma invasão com os próprios cubanos exilados. Os latinos eram enviados à campos clandestinos na Guatemala para treinamento, o plano de invasão era um segredo de Estado, no entanto, “quase todo mundo em Miami sabia a respeito”. A família passou apenas cinco meses em Nova York, mas ele relembraria o período como um dos mais estressantes de sua vida. Moravam no hotel Webster, perto da Quinta Avenida, no coração de Manhattan. Os funcionários da Prensa Latina viviam sob pressão constante dos refugiados cubanos e da histeria anticastro. Ofensas pelo telefone de contrarrevolucionários gusanos (“vermes” – termo que a revolução usava) eram uma ocorrência diária, às quais o pessoal do escritório respondia de modo rotineiro: - Vá dizer isso a sua mãe, idiota! (MARTIN, 2010, p. 331).
Ameaças eram frequentes e a situação foi ficando insuportável. Numa noite, sozinho no escritório da Prensa Latina, Gabo ouviu uma voz caribenha dizer: “Prepara-se, cretino, a hora chegou. Vamos pegá-lo agora’. García Márquez deixou uma mensagem no teletipo que dizia: ‘Se não desligá-lo antes de sair é porque fui assassinado’. Uma mensagem de Havana respondeu: ‘Certo, compañero, mandaremos flores” (MARTIN, 2010, p. 332).
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Com as constantes ameaças por telefone, a espionagem da CIA 5 e a alarmante confusão em Cuba com a invasão da Baía dos Porcos que se somava às disputas de poder por parte dos comunistas ortodoxos, o colombiano percebeu que era hora de partir. Cruzou os EUA de ônibus em uma penosa viagem de 14 dias. “Passaram por Maryland, Virgínia, as duas Carolinas, Geórgia, Alabama e Mississipi. Para García Márquez, a jornada teve a vantagem de levá-lo através do país de Faulkner, um sonho acalentado havia tempos. [...]” (MARTIN, 2010, p. 336). A família instalou-se no México e lá permaneceu de 1961 a 1966. Para viver o colombiano trabalhou com jornalismo popular e escreveu roteiros para cinema. Na Cidade do México, Gabo também se dedicou à literatura. Em um insight dentro do carro, quando levava a família para um passeio beira mar em Acapulco, o escritor concebeu a inspiração avassaladora para dedilhar a sua obra mais famosa. Deu meia volta no carro e se enterrou em um quarto durante um ano e meio para escrever o Nobel Cem anos de solidão. Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo (GGM, 1994, p. 7).
A obra caiu nas graças do povo e a fama do caribenho se espalhou pelos quatro cantos da Terra. O livro vendeu feito “cachorro-quente” nos países de língua espanhola, alcançou bons números na Inglaterra e na Itália, mas não se destacou tanto na França. Em Cheiro de Goiaba, Plinio pergunta à García Márquez por que os leitores europeus enxergavam a magia das palavras, mas não acreditavam na realidade que inspirava as histórias narradas por ele. O colombiano responde: Certamente porque o seu racionalismo os impede de ver que a realidade não termina no preço dos tomates ou dos ovos. A vida cotidiana na América Latina nos demostra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias. [...] Depois de escrito Cem anos de Solidão, apareceu em Barranquilla um rapaz confessando que tem um rabo de porco. Basta abrir os jornais para saber que entre nós acontecem coisas extraordinárias todos os dias. Conheço muita gente inculta que leu Cem anos de Solidão com muito prazer e com muito cuidado, mas sem surpresa alguma, pois afinal não lhes conto nada que não pareça com a vida que eles vivem (GGM, 1993, p. 39).
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CIA: sigla em inglês para Central Intelligence Agency, em tradução: Agência Central de Inteligência. É o órgão do governo norte-americano responsável pelas informações e investigações pertinentes a segurança nacional dos Estados Unidos da América (EUA).
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Cem anos levou o Nobel de Literatura em 1982. A obra narra personagens e situações que representam o cotidiano mágico da Latino-América. Vestido em um liquiliqui6 branco, no discurso proferido em Estocolmo, na Suécia, Gabo chamou a atenção para os problemas que assolam a vida dos latino-americanos. Me atrevo a pensar que é esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão (GGM, 2011, p. 25).
Em 1967 García Márquez vai morar em Barcelona em meio à explosão do boom da nova ficção latino-americana. Depois da temporada na Espanha a família volta para a Colômbia “recarregar as baterias tropicais”, antes de se instalar novamente na Cidade do México, onde passou a maior parte da vida (MARTIN, 2010, p. 428). A Colômbia não voltou a ser o seu lar, mas a realidade vivida e observada na terra natal nunca saiu de seus textos, jornalísticos ou literários. Enquanto pode se recordar de suas memórias, García Márquez eternizou suas lembranças semeando histórias em papel e distribuindo-as em dezenas de livros. Ele pôde escolher entre o sonho de ser escritor e a oportunidade de ser jornalista, mas não escolheu, optou em se tornar um grande jornalistaliterato trabalhando com “crônicas humanas da história”. (SCHERER, 2012, p.1). Famoso, Gabo decidiu voltar sua vitalidade para a literatura e afirmou que não abandonaria a arte literária enquanto fosse capaz de praticá-la. “Até pouco tempo, havia sido uma vocação, uma compulsão, uma ambição, algumas vezes um tormento. Agora ele começaria de fato a apreciá-la” (MARTIN, 2010, p. 511). Ao longo da vida, entre contos avulsos e livros, García Márquez escreveu mais de 30 peças literárias. As que mais se destacaram após a publicação de Cem anos de Solidão foram: A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada (1972), O outono do patriarca (1975), Crônica de uma morte anunciada (1981), O amor nos tempos do cólera (1985), O general em seu labirinto (1989) – inspirado na figura de Simón Bolívar,
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“[...] conjunto de túnica e calça de linho branco usado pelos camponeses latino-americanos nos filmes de Hollywood” (MARTIN, 2010, p. 517).
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Notícia de um sequestro (1996), a autobiografia Viver para contar (2002) e seu último romance Memórias de minhas putas tristes (2004). A paixão pelo cinema o levou a estruturar a Fundação para o Novo Cinema Latino-americano (FNCL), que aliada a nova Escuela Internacional de Cine y TV7(EICTV) em Havana, “ajudaria a unificar a produção e o estúdio de filmagem no continente latinoamericano” (MARTIN, 2010, p. 558). A fundação presidida pelo próprio García Márquez começou a funcionar em dezembro de 1986. Presando pela formação de novos narradores comprometidos com a realidade do continente, em 1994 também inaugurou a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano8 (FNPI) idealizada por Gabo e administrada por seu irmão, Jaime García Márquez. A FNPI, sediada em Cartagena de las Índias, oferece cursos, oficinas, seminários, prêmios e organiza redes de apoio para que os jornalistas latino-americanos compartilhem conhecimentos e experiências. Em janeiro de 2006, García Márquez recebeu a imprensa para a “última declaração”. O escritor que encantou o mundo, com as imagens mágicas da América Latina já não conseguia se recordar muito bem das próprias obras. Aos 79 anos, Gabo anunciou que não iria mais escrever. Se um escritor morre quando deixa de escrever, García Márquez morreu há oito anos, mas por uma ironia do destino, o adeus foi prolongado e o mago deixou este mundo em 17 de abril de 2014 (ABAD, Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 20/04/2014). [...] sua memória imediata estava fragilizada, e Gabo se mostrava claramente angustiado com isso e sobre a fase em que parecia ter entrado. Depois que conversamos sobre seu trabalho e seus planos por algum tempo, declarou que não tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico: “Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não podem esperar mais nada de mim, não é?” (MARTIN, 2010, p.660 e 661).
Sim, Gabo escreveu bastante. Além de seus escritos literários, os textos jornalísticos também foram reunidos em livros, rendendo cinco volumes divididos por datas e temas: Textos Caribenhos (1948-1952), Textos Andinos (1954-1955), Da Europa e da América (1955-1960), Reportagens Políticas (1974-1995) e Crônicas (1961-1984). Ao todo a coletânea conta com mais de 3.700 páginas de conteúdo jornalístico que saíram das mãos do caribenho. Na leitura das obras de Gabriel García Márquez, visualiza-se que o seu maior legado está na capacidade de retratar o real e o imaginado de uma maneira tão simples, 7 8
Tradução: Escola Internacional de Cinema e TV Tradução: Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano. Mais informações no site: www.fnpi.org.
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clara e poética que até as narrações mais fantásticas parecem verossímeis em sua incansável ordenação de palavras.
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3 DISCURSOS ENTRE O REAL E O IMAGINADO: A PERMEÁVEL FRONTEIRA
Iniciando as reflexões entre a atividade jornalística e a literária é necessário apontar o primeiro elo comum: jornalismo e literatura buscam descrever o mundo por meio de palavras. O jornalismo descreve o mundo real, e a literatura reinventa o mundo à maneira que o escritor bem entender. "A linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do real concreto" (MOISÉS, 1990, p.105). Nesse sentido, toda tentativa de descrever o real não será o real concreto, tanto na narrativa jornalística como na literária, o emprego das palavras está sujeito à subjetividade do julgamento humano. “Na narrativa imitamos a vida, na vida, imitamos as narrativas” (MOTTA, 2004, p. 5). Na acepção geral: “[...] literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, reportagens, livros didáticos, receitas de cozinha etc.” Assim, as belas9 letras representam um pequeno setor dentro de um vasto campo de palavras. O traço distintivo desses textos “[...] parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário.” (ROSENFELD, 2000, p. 11 e 12). Alceu Amoroso Lima afirma que a literatura é a “Arte do que pode ser”10. O fazer literário difere da ciência e da moral por apresentar o que poderia ser possível, enquanto a ciência trabalha com o “que é” e a moral com o que “deve ser” (1960, p. 28). Essa narratividade é o ponto essencial da confluência entre jornalismo e literatura: “é algo que inclui tanto a vivência literária quanto a jornalística” (BULHÕES, 2007, p. 40). Segundo Yves Reuter, “[...] o contar é sempre acompanhado de saberes, valores e efeitos” (2007, p.128). Assim, jornalismo e literatura são vertentes narrativas que carregam ideologias e visões de mundo em que o narrador exerce a escolha sobre o que é dito e sobre a maneira de dizer. A realidade, para Motta, “[...] é sempre um modelo de mundo, uma construção, tanto na ficção como na história” (2004, p. 16). Na falta de livros que reflitam especificamente sobre a realidade do jornalismo na época em que Gabo se embriagava nos ares das redações colombianas, ou nos quartos alugados na Europa, os autores selecionados para discutir os meandros intrínsecos ao jornalismo e à literatura são, em maioria brasileiros, mas se tratando de América Latina,
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Grifo do autor Grifo do autor
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pode-se observar que os modelos adotados na atividade jornalística são os mesmos, provenientes da França e das agências norte-americanas: Nos vinte meses seguintes, ele escreveria 43 textos assinados e um número bem maior de contribuições não assinadas para o Universal. A maior parte deles ainda fazia parte de um tipo de jornalismo, claramente antigo, de comentários e de criação literária, mais para entretenimento do que para informação política – de fato, mais próximo do gênero de crônicas diárias ou semanais, que não estaria fora de moda num jornal latino-americano dos anos 1920. Por outro lado, uma das tarefas de García Márquez era esquadrinhar os telegramas que chegavam pela máquina de teletipo, para selecionar novos temas e propor tópicos e sugestões para matérias e extrapolações literárias, tão importantes no jornalismo daquela época. Essa prática diária deve ter lhe dado certa experiência sobre a maneira pela qual os eventos da vida cotidiana eram transformados em “notícias” e em “histórias”, que imediatamente desmistificam a realidade comum, além de oferecer um antídoto poderoso para as suas recentes excursões nas obras de Kafka. Naquela época, jornalistas de quase todos os lugares eram obrigados a adotar a abordagem “mãos à obra” e a “arregaçar as mangas” das práticas jornalísticas dos Estados Unidos, e, desde o começo, García Márquez embarcou nelas como um pato na água. Isso faria dele um tipo muito diferente de escritor entre a maioria dos seus contemporâneos latino-americanos, para os quais a França e a maneira francesa de fazer as coisas ainda eram o modelo a seguir, numa época em que a própria França começava a perder o domínio sobre a modernidade (MARTIN, 2010, p.159).
É válido relembrar que, até o início do século XX, jornalismo e literatura se confundiam dentro das páginas dos jornais. Mas, a industrialização da segunda metade do século XIX também atingiu as redações da imprensa, que transformou a produção de seus conteúdos e o ofício de seus agentes (LIMA, 2004). A opinião separada do texto jornalístico, e a obsessão informativa que quer responder as básicas perguntas do lead (quem? o que? onde? como? quando e por quê?) deixou o texto órfão de identidade. A fórmula realmente tornou a imprensa mais ágil e menos prolixa, embora a subjetividade não tenha diminuído. A opinião ostensiva foi apenas substituída por aspas previamente definidas e dissimuladas no interior da fórmula. Para a socióloga Gaye Tuchman, por exemplo, a objetividade nada mais é do que um ritual de autoproteção dos jornalistas. E a pasteurização dos textos é nítida. Falta criatividade, elegância e estilo. É preciso, então fugir dessa fórmula e aplicar técnicas literárias de construção narrativa (PENA, 2006, p.15).
Segundo Bullhões, o percurso dos gêneros no jornalismo aparenta ser oposto ao caminho da literatura. Enquanto a literatura superou o caráter normativo “com a negação de regras e prescrições”, as exigências profissionais e mercadológicas do jornalismo “acabaram por sedimentar a delimitação de padrões expressivos e estilísticos” (2007, p. 39). Felipe Pena ressalta que “apesar das limitações estilísticas, o trabalho na imprensa tem características fundamentais para a formação de um escritor” (2006, p. 17).
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García Márquez e vários outros jornalistas-escritores confirmam o argumento de Pena. As antigas redações eram verdadeiros laboratórios para as mentes fervilhantes dos que almejavam sucesso literário. O caribenho utilizou as páginas diárias para exercitar a criatividade e encontrar um estilo narrativo. As precisas, irônicas e opinativas palavras de Gabo, migraram dos jornais para os livros. Roberto Nicolato (2006) observa que a partir do século XX, o jornalismo foi influenciado pelo pensamento racional e científico e procurou se distanciar da literatura para firmar-se como identidade autônoma e estável, enquanto a literatura incorporou o discurso da desconstrução. Mas no momento em que o texto jornalístico evoluiu da notícia simples para a reportagem, os jornalistas sentiam-se inclinados “[...] a se inspirar na arte literária para encontrar os seus próprios caminhos de narrar o real” (LIMA, 2004, p. 174). O cadáver estava com a cabeça coberta por um capuz endurecido pelo sangue seco, colocado ao contrário, com os buracos da boca e dos olhos na nuca, e quase estraçalhado pelos orifícios de entrada e saída dos seis tiros disparados a não mais de cinquenta centímetros, pois haviam deixado tatuagens no pano e na pele. As feridas estavam distribuídas pelo crânio e no lado esquerdo da cara, além de uma muito nítida, com um tiro de misericórdia, na testa. No entanto, só foram encontradas cinco cápsulas de nove milímetros junto ao corpo empapado pelo capim silvestre. A equipe técnica da polícia judicial já havia tirado cinco jogos de impressões digitais (GGM, 1996, p.140 e 141).
O espírito literário nunca deixou as redações. Amoroso Lima vê o próprio jornalismo como um gênero literário. Ele classifica a escrita jornalística na literatura em prosa, incluindo os textos jornalísticos na categoria de apreciação, uma apreciação de acontecimentos. Entretanto, para ser literatura o texto tem que "empregar a expressão verbal com ênfase nos meios de expressão"; mas "sempre que esse [jornalismo] reduzir o meio (a palavra) a um simples instrumento de transmissão, deixará de ser jornalismo para ser apenas publicidade ou propaganda, ou noticiário, ou anúncio" (1960, p. 23). Para ser literatura o jornalismo precisa ser poético; a palavra deve ser valorizada. Não basta informar. É necessário informar com qualidade, clareza e graça. Porém, transmitir informação continua sendo o principal objetivo da atividade jornalística. Diferente de Lima, alguns autores defendem a completa separação entre jornalismo e literatura. Nilson Lage é um desses pensadores, segundo ele as duas narrativas diferem, pois:
33 Enquanto, na literatura, a forma é compreendida como portadora, em si, de uma informação estética, em jornalismo a ênfase desloca-se para os conteúdos, para o que é informado. O jornalismo se propõe processar informação em escala industrial e para consumo imediato. As variáveis formais devem ser reproduzidas, portanto, mais radicalmente do que na literatura (LAGE, 1985, p.35).
Vitor Nechi garante que o "[...] jornalismo não é literatura e deve ater-se aos fatos”. Segundo ele, quando se fala em jornalismo literário se deve pensar na "[...] adoção de um estilo literário, e não ficcional, na escrita." O texto deve ter como norte a realidade ou a "noção que se tem da realidade", pois a "[...] ficção pode funcionar como mote da literatura, mas não do jornalismo" (2009, p. 108). A distinção entre jornalismo e literatura fundamenta-se na premissa de que o jornalismo deve ser imparcial e reproduzir a realidade tal como ela é. Já a literatura é vista como ficção, algo que foge da realidade. Nelson Traquina observa que essa argumentação “[...] defende uma relação epistemológica com a realidade que impede quaisquer transgressões de uma fronteira indubitável entre realidade e ficção” (2001, p. 67). Para Amoroso Lima, o termo ficção agrupa múltiplos sentidos, “[...] pois evoca falsidade, a invenção, o arbítrio, quando o que há é uma estilização da realidade e a descoberta de uma realidade outra, que pode ou não ir mais ao fundo da realidade em si.” A ficção é o universo dos símbolos, da criação, da invenção e da introdução de novas formas de ver o mundo (1960, p. 36). A ficção oferece liberdade criativa ao escritor, enquanto o jornalista fica preso aos moldes do texto, que ‘aparentemente’, retrata a realidade. Todavia, existem narrativas híbridas que misturam as narrativas factuais historiografia e jornalismo - e as imaginárias - contos, romances e literatura em geral. Quanto às narrativas factuais, Motta esclarece: “Os relatos históricos ou jornalísticos estão impregnados de subjetividades, mesmo quando fazem um esforço para serem objetivos” (2004, p. 20). Ao juntar os elementos presentes em dois gêneros diferentes, transformo-os permanentemente em seus domínios específicos, além de formar um terceiro gênero, que também segue pelo inevitável caminho da infinita metamorfose. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de Jornalismo, nem de Literatura, mas sim de melodia (PENA, 2006, p.21).
Edvaldo Pereira Lima (2004) afirma que há uma íntima relação unindo jornalismo e literatura, narrativas separadas pela tênue fronteira que distingue e define realidade e ficção. Uma união que se fortalece na medida em que o jornalismo absorve
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elementos do fazer literário e os transforma para melhor retratar o real e quando os autores de ficção se inspiram na narrativa jornalística para dar verossimilhança aos textos imaginados. Num primeiro momento, o jornalismo bebe na fonte da literatura. Num segundo, é esta que descobre, no jornalismo, fonte para reciclar a sua prática, enriquecendo-a com uma variante bifurcada em duas possibilidades: a da representação do real efetivo, uma espécie de reportagem – com sabor literário – dos episódios sociais, e a incorporação do estilo de expressão escrita que vai aos poucos diferenciando o jornalismo, com suas marcas distintas de precisão, clareza, simplicidade (LIMA, 2004, p.178).
García Márquez diz: “[...] jornalismo escrito é um gênero literário” e a atividade jornalística é o “[...] melhor ofício do mundo” (2011, p. 88). A diferença entre a narrativa jornalística e a literária está no compromisso com o real. O jornalista relata o que viu e o que viveu: O jornalista é o homem da notícia. Seu comentário sobre o acontecimento não é como o do poeta, ou do romancista ou do sociólogo: um estudo do fato em si ou para o exprimir, num poema ou num relato. O jornalista leva o fato ao conhecimento público. Informa. Comunica aos outros. Tudo mais está ligado a essa finalidade primacial (LIMA, 1960, p.46).
A essência do jornalismo vem da apreciação dos fatos, que são decodificados pelo jornalista e transcodificados para o receptor em mensagem jornalística. O texto é o reflexo do que o repórter entendeu sobre aquela realidade. Para Amoroso Lima, “[...] fazer da informação um gênero literário, é o sinal do bom jornalista. Fazer de um gênero literário, como o jornalismo, uma simples informação, é o sinal de um mau jornalista” (1960, p. 47). Como jornalista e como escritor García Márquez descreveu o mundo à sua maneira, inebriando-se na fantasia das peculiaridades cotidianas, observando atentamente cada precioso detalhe para se contar uma boa história. Motta afirma que “[...] nossas maneiras de descrever e de contar o mundo físico e humano são sempre percepções particulares destes mundos, formas de perceber e de contá-los” (2004, p.15). García Márquez, ao contrário dos jornalistas que buscam imparcialidade, sabia dominar a subjetividade para ficar mais próximo do leitor.
35 Regulado pelas dificuldades materiais e culturais da sua tarefa, ele decidiu começar a buscar sua base jornalística. A maioria de seus artigos permanece intencionalmente superficial e bem-humorada – como se, sem poder cobrir seriamente a notícia, se recusasse, ele mesmo, a levá-la a sério. Logo deparou com o fato de que jamais, durante sua temporada na Europa, seria capaz de fazer a investigação direta que o tornara célebre na Colômbia, nem, consequentemente, dar furos espetaculares. Mas, de modo gradual, aprenderia como obter o melhor de cada circunstância, como fazer parecer que seu material era original, como olhar para “o outro lado da notícia” e, igualmente, como conceber suas histórias para impressionar melhor o leitor de seu país (MARTIN, 2010, p.240).
3.1 A SENSIBILIDADE DO NEW JOURNALISM E O REALISMO MÁGICO Em 1981, um ano antes de ganhar o Nobel, Gabo anunciou que iria publicar um livro que ninguém sabia que ele estava escrevendo: era a madura Crônica de uma morte anunciada. Madura porque o autor esperou 30 anos para publicar a história do assassinato de Cayetano Gentile, morto a facadas em 1951. García Márquez chegou a afirmar que sua Crônica não estava distante do new journalism americano (MARTIN, 2010). O new journalism, ou novo jornalismo, é a corrente mais conhecida do gênero jornalismo literário. Este gênero híbrido dá margem há várias interpretações, que variam de país para país (PENA, 2006). Vitor Nechi (2009) destaca que é importante não confundir os dois termos, pois o new journalism representa apenas uma fase do jornalismo literário. Romper a tradição limitadora do lead e aprofundar a narrativa são pressupostos do jornalismo literário. Pena supõe que esse gênero seja uma estrela de sete pontas, na qual cada ponta corresponde a um princípio norteador da narrativa: Potencializar os recursos do jornalismo: aproveitar o conhecimento adquirido no jornalismo diário e desenvolver novas estratégias narrativas, sem esquecer os bons e velhos princípios da “apuração rigorosa, a observação atenta, a abordagem ética e a capacidade de se expressar claramente [...]”; Ultrapassar os limites do fato cotidiano: assim, o jornalista “rompe com duas características básicas do jornalismo contemporâneo: a periodicidade e a atualidade”; Contextualizar a informação da forma mais abrangente possível: para tanto, “é preciso mastigar as informações, relacioná-las com outros fatos, compará-las com diferentes abordagens e, novamente, localizá-las em um espaço temporal de longa duração”;
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Exercitar a cidadania: “Quando escolher um tema, [o jornalista] deve pensar em como sua abordagem pode contribuir para a formação do cidadão, para o bem comum, para a solidariedade”; Romper com as amarras do lead: o jornalista tem liberdade para trabalhar a narrativa e estruturá-la sem a obrigatoriedade de responder às seis famosas perguntinhas que dão direcionamento ao primeiro parágrafo da matéria; Fugir das fontes oficiais: sem tempo “os repórteres sempre procuram os personagens que já estão legitimados neste círculo vicioso. Mas é preciso criar alternativas, ouvir o cidadão comum, a fonte anônima, [...]”; Perenidade: o jornalismo literário não é efêmero; “diferentemente das reportagens do cotidiano, que, em sua maioria, caem no esquecimento no dia seguinte, o objetivo aqui é a permanência” (PENA, 2006, p. 13-15).
Voltando ao new journalism, a corrente ganhou expressividade nas redações americanas na década de 1960, com as reportagens literárias e os romances jornalísticos de Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote, Norman Mailer entre outros. Essa corrente deu um passo para uma reflexão mais abrangente do que pode ser considerado jornalismo “ao introduzir monólogos interiores dos personagens de suas matérias e fluxos de consciência, até então só empregados na literatura de ficção” (LIMA, 2004, p. 131). Pena recorda que essa tendência narrativa é mais antiga, teve início no começo do século XVIII com Daniel Defoe, apontado por alguns historiadores como o “primeiro jornalista literário moderno”. Defoe escreveu romances conhecidos como Robinson Crusoé (1719), MollFlanders (1722) e o Diário do ano da peste (1722), no qual reconstitui a epidemia de peste bubônica em Londres. Em 1725, começa a atuar na imprensa escrevendo “uma série de reportagens em que misturou jornalismo e literatura, utilizando as técnicas narrativas de seus romances para tratar de fatos reais” (2006, p. 52 e 53). Em 1946, John Hersey deu sua contribuição ao gênero com o livroreportagem Hiroshima. Hersey descreve o ataque atômico sob a perspectiva de seis personagens reais, estruturando a narrativa de forma novelística, interligando os acontecimentos e descrevendo as situações vividas pelos protagonistas momentos antes e depois da bomba arrasadora. Truman Capote usou a mesma estratégia para escrever A sangue frio, em 1965. Lima recorda que o new journalism só foi chamar a atenção dos literatos quando chegou ao livro-reportagem, primeiro com Capote e depois com Norman Mailer, que
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em 1968 escreveu Os exércitos da noite. Segundo o próprio escritor o livro narra a “história como romance, romance enquanto história” (2004, p. 197). Como representante legítimo da corrente, Tom Wolfe assevera que os textos do novo jornalismo são tão fascinantes e envolventes como o conto e o romance, porque empregam quatro recursos realistas, “[...] subjacentes à qualidade de desenvolvimento emocional dos mais potentes textos em prosa, sejam eles de ficção ou não-ficção”: 1. Descrição cena a cena - "contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica"; 2. Registro de diálogos completos – que exige a necessidade, a astúcia e a sorte do repórter em adentrar a vida dos entrevistados com uma distância que lhe permita testemunhar e registrar momentos que posteriormente serão retratados na narrativa. De modo que "Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro [...], que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso"; 3. Narração sob o ponto de vista em terceira pessoa - “apresentar cada cena ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da cabeça do personagem, experimentando a realidade emocional da cena como o personagem a experimenta"; 4. Descrição do status de vida das personagens - "registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, [...]” etc. São detalhes que quando bem trabalhados colocam a narrativa jornalística "junto ao centro de poder do realismo" (2005, p. 53-55).
Empregando esses quatro recursos, a narrativa jornalística se tornou mais atrativa ao leitor e mais instigante ao jornalista. Entretanto, questionou-se o grau de realidade dessas histórias, como era possível retratar os momentos com tanta precisão? Segundo Wolfe, isso só se tornou viável por meio da exímia reportagem investigativa (2005, p. 38). Nesse sentido, Amoroso Lima afirma que no jornalismo é “preciso que a palavra corresponda ao fato e seja o mais transparente11 possível, precisamente para revelar e não esconder o fato.”
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Grifo do autor
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(1960, p. 55). Mas, os críticos acusavam esses jornalistas de darem ênfase a forma e perder a substância. As coisas mais importantes que se tentava em termos de técnica dependiam de uma profundidade de informação que nunca havia sido exigida do trabalho jornalístico. Só através das formas mais investigativas de reportagem era possível, na não-ficção, usar cenas inteiras, diálogo extenso, ponto de vista e monólogo interior. Por fim, eu e outros seríamos acusados de “entrar na cabeça das pessoas”... Mas exatamente! Entendi que essa era mais uma porta em que o repórter tinha de bater (WOLFE, 2005, p. 38).
Para Wolfe (2005) o realismo não é só uma postura literária. A partir de sua introdução na literatura inglesa ainda no século XVIII, a arte foi elevada a um nível transformador. Exemplificando, o autor compara o abandono da técnica realista, tanto nos textos de ficção como de não ficção, a um engenheiro que deseja melhorar a tecnologia das máquinas abandonando a eletricidade. Lima observa que o romance de realismo social reproduzia o real de uma forma semelhante ao que os jornalistas fariam com o desenvolvimento da reportagem décadas depois. Foi “do realismo social longamente gestado na Europa, transplantado para a América do Norte quando já fenecia, é que o jornalismo extrairia a melhor contribuição para a renovação estilística da narrativa em profundidade” (2004, p. 183). Por meio da experiência e erro, por “instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começaram a descobrir os recursos que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas como seu “imediatismo”, sua “realidade concreta”, seu “envolvimento emocional”, sua qualidade “absorvente” ou “fascinante” (WOLFE, 2005 p. 53).
Até os anos 1940 e 1950, “O Romance não era uma mera forma literária. Era um fenômeno psicológico. Era uma febre cortical”. Assim como García Márquez, muitos jornalistas sonhavam em escrever uma grande obra literária que lhes trouxesse glória e reconhecimento como romancistas. Wolfe recorda que no início da década de 60 uma nova ideia, grande o bastante para inflamar o ego dos repórteres aspirantes a literatos, começou a tomar forma nas redações norte-americanas: “[...] talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance” (2005, p. 16-19). Esse fenômeno completamente novo, principalmente para o jornalismo quadrado produzido nos Estados Unidos, era algo desconcertante, pois “ninguém costumava pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética” (2005, p. 22). A corrente resgatou a tradição do jornalismo literário e o conduziu “[...] a uma cirurgia plástica renovadora sem precedentes” (LIMA, 2004, p. 192). Wolfe conta que os adeptos ao new journalism: “Nunca
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desconfiaram nem por um minuto que o trabalho que fariam ao longo dos dez anos seguintes, como jornalistas, roubaria do romance o lugar de principal acontecimento da literatura” (2005, p. 19). A reportagem estilosa abalou os críticos jornalísticos e literários que, por sua conta, classificaram o estilo como impressionista. Esse destronamento do romance foi culpa dos próprios escritores que não aproveitaram o material humano em transformação a sua volta e abriram espaço para um “desengonçado caminhão-reboque Reo como o Novo Jornalismo” (WOLFE, 2005, p. 51). O material humano em transformação era a efervescência cultural dos EUA na década de 60 e 70, o movimento hippie, o rock, as drogas, poderiam ter sido melhor explorados pelos romancistas que, ao deixarem a realidade de lado, abriram sinal verde para a experimentação jornalística na reportagem. O que me interessava não era simplesmente a descoberta da possibilidade de escrever não-ficção, apurada com técnicas em geral associadas ao romance e ao conto. Era isso – e mais. Era a descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor (WOLFE, 2005, p. 28).
Com uma boa formação literária e gana jornalística, como correspondente internacional García Márquez já buscava retratar a realidade com uma pitada de poesia literária, antes dos repórteres americanos se atreverem a dar um toque de literatura às suas narrativas, até então comandadas pelo lead. O caribenho aproveitava suas próprias experiências no velho mundo para escrever textos contagiantes que ironizavam sua própria sorte. Assim partiu em busca da própria cuisinerie jornalística; se os artigos de Bogotá já tinham mostrado o poder da imaginação educada para acrescentar não apenas a peça de informação que faltava, mas também a pitada literária para apurar seu sabor como parte de destreza profissional, muito antes da emergência do “novo jornalismo” dos anos 1960, nesse momento, quando precisava dele mais do que nunca, sua experiência profissional salvaria Gabo repetidas vezes. É por isso que, desde o início, suas matérias eram tanto sobre ele mesmo, implícita e explicitamente, quanto sobre os eventos que deveria cobrir; e também por que, desde o começo, Gabo mostrara que as notícias não eram feitas pelos próprios ricos e famosos, mas pelos jornalistas que os seguiam por toda parte e os transformavam em “histórias” (MARTIN, 2010, p. 240).
Conforme Bulhões, deve-se deixar claro que o new journalism não foi um movimento, pois não foi idealizado por um grupo coeso que elaborou um “programa ou um manifesto de princípios”. Mas, pode ser chamado de movimento se a palavra for tomada como “sinônimo de agitação, animação e abalo, pois o novo jornalismo agitou o epicentro do
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jornalismo mundial e abalou estruturas fossilizadas da textualidade jornalística” (2007, p. 145 e 146). É sintomático que tal corrente tenha ganhado força no país que desenvolveu e exportou a prática jornalística pré-moldada, similar à linha de produção industrial. Nesse sentido, a nova construção de texto é uma atitude libertária, uma prática de reação à palidez jornalística da época (BULHÕES, 2007). Pensando sobre isso, Nechi (2009) questiona se a empolgação com o jornalismo literário não foi, antes de tudo, um descontentamento com o jornalismo executado de forma mecânica. Enquanto os norte-americanos embarcavam no new journalism, o sul do continente vivia o momento do boom da literatura latino-americana com a ascensão de nomes como Júlio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e claro, Gabriel García Márquez. O auge do movimento foi alcançado com a publicação do célebre Cem anos de Solidão (1967).
[...] Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com os fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o viva, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu outro salto para antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias da sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e a desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra (GGM, 1994, p. 394).
Os escritores do boom conheciam bem as tendências literárias estrangeiras, mas não abraçaram o realismo puro ou o naturalismo do primeiro mundo. Criaram um estilo próprio com “[...] técnicas narrativas capazes de construir um universo simbólico que refundasse o próprio discurso sobre a história”, retratando relatos e crenças da cultura oral ao evocar a memória “através do poder da palavra narrada” (BRANGANÇA, 2008, p. 08). Para Heloisa Hercovitz, os escritores latino-americanos deixaram de lado o realismo tradicional e descreveram “[...] um mundo no qual a fantasia e a realidade fundiram-se para formar uma nova esfera chamada realismo mágico” (2004, p. 177). Quem conhece a América Latina sabe que o realismo mágico não é mera distorção da realidade nem uma simples incursão abstrata a um mundo irracional. Mas anda de braços dados com a crença no sobrenatural herdada dos índios da região e dos escravos africanos, terminando por tornar-se quase uma escolha natural dos povos latino-americanos (HERCOVITZ, 2004, p. 178).
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O termo "magischer Realismus12" foi cunhado pela primeira vez em 1925, pelo crítico de arte alemão Franz Roh. A expressão começou a ser utilizada pelas artes visuais, depois foi transferida para a literatura e associada aos sinônimos "maravilhoso" e "fantástico". Para Carpentier, "[...] o 'mágico' não se refere aos efeitos ou estratégias surreais, mas aos mitos “arcaicos”, mas que ainda perduram [...]” nas terras latino-americanas. (apud Stam, 2008, p. 404 e 405). Lima afirma que o boom e o new journalism possuem a vivacidade da linguagem com ponto em comum. O movimento latino faz referência a um mundo pulsante e “fantástico” e a corrente norte-americana reconstrói a realidade palpável por um olhar sensível e apurado. “Ambos procuram provocar o leitor para um reordenamento tanto intelectual como emocional” (2004, p. 199). Stam recorda que a explosão do boom coincidiu com as intervenções militares neoimperialistas dos Estados Unidos na América Latina, com a Revolução Cubana e com correntes ideológicas nacionalistas e de terceiro mundismo. Assim, o movimento foi revestido de uma "ideologia anti-imperialista panlatina." O autor também observa que a busca pela linguagem descolonizadora ligou os escritores do boom ao novo cinema latinoamericano13. Mas, ao ganhar destaque com o boom, o realismo mágico foi corrompido pela valorização de mercado tornando-se por vezes "[...] dispositivo de marketing para vender produtos culturais superficialmente ‘mágicos” (2008, p. 405 e 406). É importante frisar que o realismo mágico de Gabo começou no jornalismo. Para Hercovitz, “Em muitos destes textos jornalísticos, García Márquez rejeita a razão e descreve uma realidade quase sobrenatural, distanciando-se dos cânones jornalísticos que estabelecem a objetividade como ideal da profissão” (2004, p. 180). Como escritor, o que Lima observa sobre Hemingway, certamente pode ser estendido à García Márquez: “[...] alimenta seu enfoque inicial das fontes profícuas do realismo social literário, mas que ia buscar no jornalismo tanto o aperfeiçoamento dos processos de captação quanto a lapidação da sua técnica de expressão” (2004, p. 188). O realismo mágico não estava interessado na subjetividade onírica do surrealismo, nem na realidade desfigurada do expressionismo. Para Stam, o movimento é o avesso do realismo documental de Daniel Defoe, “no lugar do inventário de objetos e animais 12
Tradução: Realismo Mágico Inspirado pela revolução cubana (1959), o novo cinema latino-americano usou a narrativa cinematográfica como arma crítica aos violentos regimes ditatoriais vigentes no continente. Sem muitos recursos, os cineastas se inspiraram no neorrealismo italiano para compor os filmes. 13
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do autor inglês, acenados como ‘efeito de realidade’, encontramos uma miscelânea de fato e (aparente) imaginação em Márquez para gerar o que pode ser chamado de “efeitos de irrealidade”14 (2008, p. 406). Gabo gostava de hiperbolizar os acontecimentos, tanto no jornalismo como na literatura, talvez esse “exagero” na descrição de situações contribua com os efeitos de irrealidade observados pelo autor. Cem anos de solidão (1967) é a obra que mais caracteriza esse ‘sensacionalismo’ marqueziano. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar. Os forasteiros, evidentemente, pensaram que Remedios, a bela, sucumbira por fim ao seu irrevogável destino de abelhamestra e que sua família tentava salvar a honra com a mentira da levitação. [...] A maioria acreditou no milagre e até ascenderam velas e se rezaram novenas. Talvez não se tivesse voltado a falar de outra coisa por muito tempo, se o bárbaro extermínio dos Aurelianos não tivesse substituído o assombro pelo horror (GGM, 1994, p. 228 e 229).
Florence Marie Dravet observa que para alcançar “simultaneamente tamanho grau de literariedade e realismo” na formulação de sua narrativa, García Márquez eleva o fato ao mito. Assim: “O tempo adquire o valor de um mito, os lugares adquirem o valor de mitos, as pessoas adquirem o valor de mitos, os acontecimentos tornam-se míticos” (2013, p. 2 e 3). Ou seja, a literariedade dos textos de Gabo ajuda a elevar as suas narrativas a um nível universal. Wolfe afirma que ao mesmo tempo em que os novos jornalistas se apossaram das técnicas realistas, alguns escritores que ele denomina “neofabulistas” buscaram voltar para as formas mais puras de narrativas, “formas das quais brotou a própria literatura, especificamente o mito, a fábula, a parábola, a lenda!” (2005, p. 67). O autor considera García Márquez um neofabulista. Certamente o americano embasa essa afirmação no realismo mágico da epopeia mitológica da família Buendía - uma história resgatada da atmosfera de sonho e delírio da primeira infância do escritor. Mas, até Cem anos, tem um pé na realidade: a cidade de Aracataca transformada em Macondo. Não se pode negar que o repórter García Márquez se distancia da ideia de “objetividade porque não está interessado na sequência lógica da realidade” (HERCOVITZ,
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2004, p. 184). Mas, isso se dá porque o seu jeito de contar histórias é outro, mais impessoal e humano, pois suas palavras são reflexos de sua subjetividade. Com os modelos do jornalismo conseguiu universalizar sua literatura, porque suas narrativas imitam a vida nas tragédias, alegrias e principalmente nos acontecimentos inexplicáveis que mudam os rumos da história todos os dias. “No mundo do realismo mágico, o maravilhoso muitas vezes tem uma explicação prosaica” (STAM, 2005, p. 406, 407). A literatura consegue elevar aquilo que é factual, singular, aquilo que aconteceu aqui e agora (os cinco W do lead) a um nível de universalidade capaz de potencializar os efeitos comunicativos de divulgação, propagação, difusão, impacto, repercussão da informação. Com o universal, a literatura extirpa o jornalismo da pequenez do factual e da informação pura e simples. Sim, porque não acreditamos na ilusão de que as pessoas só querem se informar. Não. Isso é muito pouco. O que elas querem é muito maior: elas querem saber. E o saber é mais que a informação. O saber contém também as delicadas dimensões da sensibilidade, da emoção e da sabedoria que não estão presentes na informação em sentido estrito (DRAVET, 2013, p. 5).
Assim, o realismo mágico de García Márquez, consolida-se como um estilo que mescla jornalismo e literatura “como instrumento de crítica social, indagação ética e especulação filosófica sobre a natureza humana” (HERCOVITZ, 2004, p.189). Retratando as dores e alegrias dos latino-americanos, seja nos textos jornalísticos ou nas narrativas literárias, o colombiano se tornou o maior expoente desse movimento e o mais famoso autor do terceiro mundo no século XX.
3.2 CRÔNICA, ROMANCE OU REPORTAGEM?
Antes de entrar na análise da Crônica de García Márquez é necessário discutir a questão de gênero, visto que, o nome da obra já implica em uma classificação do texto. No entanto, o livro é vendido como um romance e narrado como reportagem. Segundo Tzvetan Todorov (1980), a obra literária é livre para “desobedecer” ao seu gênero, isso não implica em anulação, pois a norma só se torna visível devido às suas transgressões. Transgredir também significa criar novas possibilidades que podem originar outros gêneros, observando que “[...] à medida que vamos passando de um gênero a outro, não ocorre um abandono do anterior, mas uma incorporação ao novo” (LIMA, 1960, p. 34).
44 Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um “texto” de hoje (também isso é um gênero num de seus sentidos) deve tanto à “poesia” quanto ao “romance” do século XIX, do mesmo modo que a “comédia lacrimejante” combinava elementos da comédia e da tragédia do século precedente. Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em contínua transformação e a questão das origens não pode abandonar, historicamente, o terreno dos próprios gêneros: no tempo, nada há de “anterior” aos gêneros (TODOROV, 1980, p. 46).
Os gêneros funcionam como modelos para os escritores e denotam expectativas aos futuros leitores. No entanto, os receptores do texto não precisam ser conscientes em relação ao sistema de gênero, pois: Nada impede que uma história que relate um evento real seja vista como sendo literária; nada é preciso mudar em sua composição, mas apenas dizer que não estamos interessados em sua verdade e que a lemos “como” literatura. Pode-se impor uma leitura “literária” a qualquer texto: a questão da verdade não será colocada porque o texto é literário (TODOROV, 1980, p. 14).
Joaquim Ferreira dos Santos15 afirma que Tom Wolfe “[...] pegou todos os gêneros para si” (2005, p. 241). Talvez Gabo, já inspirado na corrente do new journalism, tenha decidido misturar o romance e a reportagem e chamar de Crônica. Mas, o mais provável é que, como afirma José Marques de Melo, a definição de crônica para o jornalismo hispanoamericano é de um gênero próximo ao conteúdo informativo. Já que “[...] Como qualquer instituição, os gêneros evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem” (TODOROV, 1980, p. 50). A palavra crônica vem do latim chronica, sua origem está no grego khronos, que significa tempo. Sua prática é muito anterior à invenção da imprensa, a crônica remonta a narração de fatos históricos, segundo uma ordem cronológica, que se iniciou na Idade Média. Segundo Massaud Moisés (1994), a crônica praticada neste período registrava os eventos sem aprofundar ou tentar interpretar as causas do fato. No Renascimento, o termo crônica foi associado ao ato de contar a história e não apenas relatar os fatos. “As simples relações de fatos passam, então, a chamar-se ‘cronicões’. E, no século XVI, o termo ‘crônica’ começa a ser substituído por história” (SOARES, 2006, p. 64). Contextualizando a trajetória desta narrativa, Melo afirma que a crônica é um gênero do jornalismo contemporâneo cujas raízes estão na história e na literatura. Para o autor, a crônica histórica se configura como um relato do próprio narrador ou uma versão baseada nas “informações coligidas junto a protagonistas ou testemunhas oculares” (2002, p. 140). 15
Em Abaixo o jornalismo bege - posfácio de Radical Chique e o Novo Jornalismo (2005).
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As cartas de descobrimento são crônicas históricas que inauguraram a literatura na América Latina, tanto na colonização espanhola como na portuguesa. Passando pela história e pela literatura, a crônica vai fixar morada no jornalismo. Entretanto, o pesquisador não deixa de destacar que o gênero assume especificidades nacionais, “[...] incorpora inegavelmente os traços culturais das sociedades em que vivem e que reproduzem através da imprensa” (MELO, 2002, p. 142). Com pequenas variações nacionais, esse gênero jornalístico tem características comuns na Itália, França e Espanha. No jornalismo francês, denomina-se crônica a 16 cobertura <<especializada>> que os jornalistas fazem de determinados setores da atividade social ou cultural; [...]. No jornalismo italiano, o sentido predominante é o de informação observada e conferida pelo repórter. [...]. No jornalismo espanhol, usa-se o termo crônica para designar a produção jornalística que relata os fatos, mas que também os analisa. Segundo Martín Vivaldi <<a crônica jornalística é, em essência, uma informação interpretativa e valorativa de fatos noticiosos, atuais ou atualizados, onde se narra e ao mesmo tempo se julga o narrado (MELO, 1985, p. 112).
Moisés observa que na interpretação moderna, a crônica francesa do século XIX se libertou da conotação historicista e se revestiu de um sentido literário. O gênero se fixa no jornal “como a sugerir, no registro do dia-a-dia, a remota significação ante-histórica do anuário” (1994, p. 102). Os feuilletons franceses atravessaram o Atlântico para serem traduzidos e adaptados nos populares folhetins que originaram a crônica brasileira, caracterizada como um “relato poético do real situado na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária” (MELO, 1985, p. 111). Rubem Braga, considerado o maior cronista brasileiro, resume bem como o gênero é visto e escrito no país “a crônica é uma espécie de prolongamento de uma conversa; ou é um recado disfarçado, alguma coisa que a gente gostaria de dizer, mas prefere não dizer diretamente” (apud BELTRÃO, 1980, p. 71). Antonio Candido concorda com Braga, para ele, uma das características da crônica moderna no país é ter deixado de lado o comentário argumentativo ou expositivo para virar uma conversa aparentemente fiada, sem deixar de tratar questões inerentes ao homem e à sociedade. É curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando de coisas sem maior conseqüência e, no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social (CANDIDO, 1989).
Notando as especificidades nacionais às quais a crônica adaptou-se nos diversos países, Melo afirma que a crônica no jornalismo hispano-americano – que inclui a 16
Sinais tipográficos utilizados pelo autor
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Colômbia - figura entre os gêneros informativos, enquanto no jornalismo luso-brasileiro esse texto configura-se como “um gênero tipicamente opinativo” (2002, p. 142). Consultando vários autores espanhóis e latino-americanos, ele observa que são unânimes quanto à natureza informativa e a íntima vinculação da crônica com o noticiário e a reportagem. Sem citar localizações, falando na crônica como gênero, Moisés afirma que o texto se livra da reportagem pura e simples ao acrescentar ingredientes literários. Em toda crônica, por conseguinte, os indícios de reportagem situam-se na vizinhança, quando não em mescla com os literários; e é a predominância de uns e de outros que atrairá o texto para o extremo do jornalismo ou da literatura (1994, p. 105).
O conceito de crônica apresentado pelos autores citados por Melo deixa a caracterização do gênero confusa, pois para eles a crônica é uma variante da reportagem e continua ligada ao sentido historicista em que o “[...] cronista age com testemunha ocular das ocorrências de interesse público, relatando-as com detalhes sugeridos pela experiência do ofício, mas atendo-as às objetividades dos fatos” (2002, p.145). Mas, não seria esse o papel do repórter ao apurar material para uma reportagem? Então qual a diferença entre a crônica hispano-americana e a reportagem? Um dos autores consultados pelo brasileiro responde, ou tenta... Martinez Albertos, ao classificar os gêneros informativos em três unidades: informação, reportagem e a crônica, demostra como existe inter-relação entre a reportagem e a crônica. A diferença entre os dois gêneros é que a reportagem não tem “continuidade”, sendo, portanto episódica ou ocasional, enquanto a crônica tem caráter regular, pois é escrita por um mesmo repórter, especializado num determinado assunto (esportes, touros, judiciário, etc.) ou localizado num dado ponto de observação (correspondente de guerra, correspondente estrangeiro, correspondente de província, etc.) (MELO, 2002, p. 147).
Essa classificação não parece suficiente, pois a continuidade não pode ser critério para a distinção de gêneros em jornalismo. Os gêneros devem ser definidos pelas suas singularidades, pois a “continuidade” dos assuntos depende da repercussão dos fatos. Como já foi dito, a crônica assume características próprias em cada país. No Brasil, a afirmação de Albertos estaria equivocada, porque aqui a crônica é que não têm continuidade, é algo volátil, efêmero. Quando não transportada para o livro, morre com o jornal. Seguindo a lógica de que a crônica hispano-americana é uma narrativa que possui continuidade, Crônica de uma morte anunciada também não é crônica, visto que é um texto único, escrito e publicado no suporte livro. Além disso, segundo Moisés “[...] o cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe filtre as impurezas ou lhe
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confira as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo ficcionista de lei” (1994, p. 104 e 105). Em outra definição, Martínez Albertos frisa que o texto da crônica é concebido imediatamente após o testemunho do fato, caracterizando-se como: “Narração direta e imediata de uma notícia com certos elementos valorativos que sempre devem ser secundários a respeito da narração do fato em si” (apud MELO, 1985, p. 112). Não foi o que aconteceu com a história contada por García Márquez, o autor publicou a obra 30 anos após o assassinato que a inspirou. No entanto, é no livro que a crônica busca fugir da fugacidade do jornalismo. Quando publicada somente no jornal cai no esquecimento, mas no livro consegue a perenidade e facilita a análise crítica, pois se fixa em um suporte diferente do emaranhado noticioso do jornal (MOISÉS, 1994). A crônica é um texto híbrido que figura tanto no jornalismo como na literatura. “É jornalística quando busca no cotidiano os fatos da vida real que são noticiosos e é literária quando se permite utilizar elementos literários [...] para construí-la" (TUZINO, 2009, p. 15). Segundo Moisés (1994), a crônica literária oscila entre a poesia e o conto. Na crônica-poesia impera o eu subjetivo e na crônica-conto o cronista é um observador do acontecimento. Gabriel García Márquez não testemunhou o assassinato de Cayetano, mas como narrador-personagem, se insere no livro para reconstruir o fato, por meio do testemunho alheio, como um repórter que ao se deslocar ao local do acontecimento colhe depoimentos para escrever sua reportagem. Uma reportagem maturada por vários anos. Quando, porém, o “eu” se encolhe para deixar que o acontecimento prevaleça, de molde a cavar-se um fosso entre o cronista e os eventos, expresso no emprego da terceira pessoa, - a crônica pode resultar em simples reportagem, e nesse caso os extremos de tocam. Fugiria, assim, não só da crônica como da arte literária (MOISÉS, 1994, p. 115).
O “meio termo” entre o fato real e o lirismo é a medida ideal para a crônica. Pender para a literatura sacrifica sua fisionomia e a aproximar demais do conto, já tender para o jornalismo significa deixá-la muito semelhante à reportagem e, portanto, noticiosa e informativa (MOISÉS, 1994). Para Ana Maria Gottardi, o cronista não pretende ser repórter, “mas poeta ou ficcionista do cotidiano, fazendo aflorar do acontecimento sua porção imanente de fantasia”. No contexto brasileiro, a crônica oscila entre a matéria jornalística, que traz a vida cotidiana para o texto, e a universalização da linguagem literária que transcende a trivialidade do dia a dia (2007, p. 15).
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Melo (2002) supõem que a ideia de crônica para os hispano-americanos é ligada a crônica histórica, em que o texto cumpre o papel de narração dos acontecimentos presenciados pelo repórter-cronista. Sem saber ao certo a distinção entre crônica e reportagem no jornalismo hispano-americano, Crônica de uma morte anunciada pode ser lida como tal quando o leitor se ativer a ideia de khronos, sendo o texto uma representação de determinada faixa temporal. Ao focalizar o fato e fixar o tempo (horas, minutos) a narrativa de García Márquez remete ao sentido original da crônica. Com o narrador voltamos ao passado, passeamos entre os fatos e personagens e assistimos a morte de Santiago Nasar - personagem que dá vida literária à Cayetano Gentile - como um habitante de Sucre. “Crônica de uma morte anunciada (1981), de Gabriel García Márquez, é uma realização ficcional que atinge o insólito e o fantástico assimilando e ao mesmo tempo transgredindo a ideia tradicional de chronos” (BULHÕES, 2007, p. 50 e 51). Transgride porque os acontecimentos não são lineares como na história, eles são mediados pelo repórter que estrutura a narrativa subjetivamente para prender a atenção do leitor. São vários os significados da palavra crônica. Todos, porém, implicam a noção de tempo, presente no próprio termo, que procede do grego chronos. Um leitor atual pode não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela uma forma do tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada. Mas a crônica sempre tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo (ARRIGUCCI, 1987, p. 51).
A reportagem é resultado “de uma apreensão, cópia e tradução de fatos.” Quanto maior o número de informações sobre o fato, mais chance há de se produzir uma boa reportagem (GUIRADO, 2004, p. 83). Influenciada pelos gêneros literários e pelo compromisso de retratar o real, a prática da reportagem necessita de olhos, voz e mãos que relatem os acontecimentos. Então, entra em cena a figura do repórter, o jornalista que traz a “[...] voz de quem convive estreitamente com os fatos” (BULHÕES, 2007, p. 45). É isso que Gabo faz em Crônica, o narrador-personagem volta ao povoado para se aproximar daquela realidade, investigar e buscar fontes que o ajudem a recontar a história do assassinato. [...] o ato investigativo está implícito nas três fases que, genericamente, caracterizam a reportagem: apreensão, investigação dos fatos e construção do texto narrativo. O momento de segurar o rastro da palavra que se casa melhor com o assunto, que se liga de maneira mais adequada com a palavra seguinte. E assim, palavras e mais palavras vão se juntando em frases, parágrafos e por fim formam textos, que amparados por registros fotográficos, publicam-se como reportagens (GUIRADO, 2004, p. 98).
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Diante do fenômeno, o repórter não tem capacidade de julgar o fato de imediato, mas à medida que vai tomando contato com aquela realidade, seu instinto aflora. Ao ser reportado, o fato sofre reconstruções e diferentes abordagens, pois o repórter vai julgar o fato e selecionar o objeto reportável de acordo com seu background, ou seja, sua bagagem de vida e experiência anterior. Ao investigar o fenômeno, o repórter lida com o provável, constrói hipóteses ou soluções e leva os leitores à reflexão (GUIRADO, 2004, p. 39). Há um problema de gênero em Crônica, já que as características jornalísticas da obra causaram incômodo à crítica literária. Talvez isso ainda esteja relacionado à ideia de que o romance é uma narrativa superior ao jornalismo (RABELL, 1994, p. 41). Segundo Todorov (1980) a marca da literatura é a ficcionalidade. Os romances, em geral, abordam temas por meio de intrigas vividas por personagens. Os seres fictícios protagonizam uma história que de alguma forma exala valores éticos e morais, pois as narrativas reais ou imaginárias se espelham no mundo real para reproduzi-lo ou deformá-lo. “O romance, então, reveste-se de ambições grandiosas. Deseja explicar a realidade humana por um conjunto de personagens em interação” (LIMA, 2004, p. 255). A literatura [...] necessita contar histórias verídicas ou fundamentadas nas relações objetivas dos homens para obter a verossimilhança. Para fazer sentido e conseguir os efeitos desejados pelo narrador a literatura necessita ancorar os fatos no real. Mesmo a literatura fantástica necessita do real para remeter os seus leitores ao mundo irreal que quer narrar e provocar os efeitos de espanto e assombro (MOTTA, 2004, p. 19 e 20).
Para construir a realidade de um mundo, o escritor do romance recorre a métodos de apresentação e descrição desse mundo criado. Segundo Todorov (1980), o texto de ficção inclui a narrativa e a descrição, mas a narrativa não se contenta com a narração de um estado, exige o desenvolvimento de uma ação, uma mudança, uma diferença no texto. Toda mudança constitui um novo elo da narrativa. No romance, o escritor cria seu próprio tempo. [...] o romance não se preocupa com o desenvolvimento temporal puro e simples, mas com a duração, isto é, apenas com as ações do passado ou do futuro que tenham real importância significativa para explicar o presente de cada unidade de tempo focalizada na narrativa (LIMA, 2004, p. 253).
O romance narra o social, o pessoal e o particular. Os personagens não são divididos em bons e maus como na epopeia, não há um herói puro, pois o romance procura abarcar a complexidade da vida caracterizada por pessoas ambíguas que não encontram representação verossímil nos extremos (RABELL, 1994). A reflexão sobre o tema que existe
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no romance também pode existir em um conto ou na novela, mas “em nenhum caso haverá a dimensão de reflexão tão ampla e variada quanto no romance” (LIMA, 2004, p. 256). Para alguns autores, Crônica é uma novela17. Se levarmos em conta a característica da extensão e o fato de que a maior parte da narrativa está centrada no assassinato de Santiago, então a obra é uma novela. Todavia, García Márquez afirmou que sua narrativa estava entre o romance e a reportagem, neste estudo respeita-se sua vontade ao tecer considerações sobre os gêneros híbridos que se originam dessas duas narrativas.
3.3 LIVRO-REPORTAGEM, ROMANCE-REPORTAGEM E FICÇÃO JORNALÍSTICA
Gabo não se referia à obra como crônica, em vez disso deixa claro que pensou a tragédia como reportagem e depois de algum tempo decidiu retratá-la em linhas literárias. Crônica seria então um livro-reportagem? Um dos principais legados do new journalism é a reportagem ampliada que utiliza técnicas literárias para tornar a narrativa mais atrativa. Fugindo da “produção industrial cerceadora do jornalista criativo”, as grandes reportagens encontraram abrigo seguro nos livros (LIMA, 2004, p. 211). Os livros-reportagem podem ser “distribuídos em dois níveis”: a história que apresenta parentesco com o conto e a “reportagem que recebe tratamento equivalente ao romance” (LIMA, 2004, p. 249). Para Bulhões também existem “atributos” do conto e do romance que podem cruzar com “[...] os gêneros narrativos essenciais do jornalismo: a notícia e a reportagem”. O conto, como a matéria jornalística, é um recorte de um acontecimento, um pedaço incompleto de uma dada realidade. É na reportagem que os frutos do cruzamento podem render mais, pois se tratando de uma modalidade ampliada da notícia “tem como uma de suas possibilidades de realização a progressão narrativa, na qual se dá o processamento de uma mudança de estados de tempo” (2007, p.42). O realismo incorporado pelo romance do século XIX ofereceu um vasto repertório de potencialidades na escrita da reportagem, tanto na técnica narrativa como nos temas que retratam a problemática da vida humana. Lima vê no romance de realismo social uma forma de entender a ideia de crônica histórica: “O relato de acontecimentos, o 17
Segundo Angélica Soares, a novela é “a forma narrativa intermediária, em extensão, entre o conto e o romance. Sendo mais reduzida que o romance, tem todos os elementos estruturadores deste, em número menor. Por esse sentido de economia constrói-se um enredo unilinear, faz-se predominar a ação sobre as análises e as descrições e são selecionados os momentos de crise, aqueles que impulsionam rapidamente a diegese para o final. Nota-se que clímax e desfecho coincidem na novela autenticamente estruturada.” (2006, p. 55). A novela é como um corte na vida dos personagens, um corte intenso, pois na narrativa do romance tradicional a história pode se arrastar por um longo período de tempo.
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acompanhamento do cotidiano, a elucidação do que ocorre com uma sociedade em transformação, que se urbaniza, se industrializa, se moderniza [...] são as tarefas a que se propõem muitos escritores do realismo social” (2004, p. 182). Se no conto o que conta é a precisão e a brevidade, no romance, ao contrário, muito da destreza se manifesta na distensão da intriga, na habilidade descritiva de ambientes e atmosferas, na exploração de nuanças das categorias narrativas de tempo, espaço, personagem etc. Vasto e heterogêneo, o romance ocidental é uma generosa e caudalosa torrente de práticas expressivas à disposição do exercício da narratividade jornalística (BULHÕES, 2007, p. 44).
Lima defende que o livro-reportagem bem elaborado, com complexidade temática e estilística é parecido com o romance. Para ele esse gênero é a versão jornalística moderna do romance histórico. Todavia, essa narrativa não se confunde com a ficção, se concentra nos fatos reais e utiliza técnicas literárias para dar estilo e elegância ao texto. Ao contrário do jornalismo cotidiano, o livro-reportagem moderno ensaia introduzir, em seu enfoque, uma lente que passa a observar a realidade na dimensão ampliada perceptível pela ciência moderna. Não se trata mais da visão reduzida do cartesianismo, mas sim da incorporação de óticas modernas abrangentes. Nem se trata do mergulho no imaginário como fantasia ou ficção, mas como elementos que ajudam a explicar o real num contexto total, sistêmico. O jornalismo não deixa de abordar o real, não se confunde com a ficção. Mas nega que o real seja apenas sua porção mais aparente, visível, concreta, material (LIMA, 2004, p. 130 e 131).
O livro-reportagem é caracterizado como um veículo de comunicação não periódico que oferece maior grau de amplitude ao tema abordado. É o novo suporte da grande-reportagem esquecida pelos jornais diários. Como produto jornalístico, há três características que distinguem o livro-reportagem das demais publicações classificadas como livro: 1.
2. 3.
Quanto ao conteúdo, o objeto de abordagem de que trata o livro-reportagem corresponde ao real, ao factual. A Veracidade e a verossimilhança são fundamentais. [...] Quanto ao tratamento, compreendendo a linguagem, a montagem e a edição do texto, o livro-reportagem apresenta-se eminentemente jornalístico. [...] Quanto à função, o livro-reportagem pode servir a distintas finalidades típicas ao jornalismo, que se desdobram desde o objetivo fundamental de informar, orientar, explicar. Assim, o livro-reportagem pode trabalhar sua narrativa de uma maneira apenas extensiva – com horizontalização de dados e fatos, mas sem um salto verticalizador significativo, direcionado à apreensão qualitativamente intensiva do objeto abordado – superior aos periódicos, cumprindo, desse modo, um trabalho que se poderia denominar muito próximo ao jornalismo informativo arredondado [...] (LIMA, 2004, p. 27-29).
A reportagem ampliada e transportada para o livro busca uma visão mais abrangente da realidade. Não mergulha na fantasia, mas busca as técnicas literárias para tornar
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o texto atrativo. Na década de 1970, Tom Wolfe previa um romance-jornalístico, “ou talvez de romance documental, romances de intenso realismo social, baseados na mesma reportagem dedicada que faz o Novo Jornalismo” (2005, p. 59 e 60). Essa reportagem com jeito de romance deu lugar a dois gêneros o livro-reportagem e o romance-reportagem. A diferença entre os dois é que o romance-reportagem abre mais espaço para a literatura e o livroreportagem se firma nas premissas do real, sendo a ampliação da reportagem jornalística. O romance-reportagem se configura como um gênero autônomo que se equilibra na fronteira dos discursos jornalístico e literário. Esse tipo de narrativa pode ser compreendida em um sentido mais estrito e em um mais amplo: O primeiro é o romance-reportagem como uma forma específica de narrar, o qual poderia ser considerado uma “reportagem romanceada”, isto é, uma reportagem em forma de livro, em que estão combinadas “a objetividade jornalística” e “uma certa intervenção do subjetivo, aquilo que o levaria ao estatuto de literatura”, cuja referência imediata era a bem-sucedida literatura de não ficção americana. O segundo sentido considera o romance-reportagem como decorrente da expansão do jornalismo em direção à ficção ou da invasão da literatura pelos repórteres, a “migração jornalística”, que segundo as palavras dos dois autores é “a literatura de olho no jornalismo, a reportagem de olho na literatura” (BUARQUE & GONÇALVES apud COSSON, 2001, p.13).
No Brasil, o gênero começou a se desenvolver nos anos 1970. A publicação dos romances-reportagens está associada ao regime militar vigente entre 1964 e 1985. Neste período, “por meio do romance-reportagem, a literatura teria adquirido uma função ‘parajornalística” (COSSON, 2001, p.17). Silviano Santiago observa que, o estreitamento entre jornalismo e literatura provocado pela censura, possibilitou a predominância de dois tipos de livro: romances de realismo mágico e romances-reportagens (apud COSSON, 2001, p. 17). No entanto, a censura não pode ser tomada como explicação única para desenvolvimento do gênero, pois o romance-reportagem também foi influenciado pelo romance de não-ficção produzido pelos norte-americanos. Contudo, é evidente sua importância diante da condição política e social da época, já que, a literatura garantia maior liberdade para publicar textos que “maquiavam” a crítica ao regime. Gênero ambíguo e sem passaporte, o romance-reportagem viaja pelas fronteiras da realidade com a criação, da verdade com a ficção, do jornalismo como a literatura e seus anversos: o parajornalismo e a paraliteratura. No seu viajar, vai abolindo limites e contestando divisões que separam os fatos da ficção declarando-se, ele mesmo, como gênero de uma ficção que se quer factual ou de fatos que se querem ficcionais (COSSON, 2001, p. 83).
Gabo, que também viveu o regime da censura, não estava sob restrição quando publicou Crônica, mas a narrativa foi resgatada do interior de uma cultura de coronéis
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poderosos e leis beneficiadoras de ricos. O colombiano presenciou o inicio de La Violencia18 em Bogotá e assistiu os massacres da ditadura do General Gustavo Rojas Pinilla. Em meio à ditadura, publicou matérias que atingiam diretamente o governo, como o trágico deslizamento de terra em La Media Luna, “que vinha sendo esperado fazia sessenta anos!” e o naufrágio do Caldas que trazia contrabando dos Estados Unidos (Relato de um náufrago), ambas publicadas em 1955. Num certo sentido, não poderia haver época pior para alguém se tornar um jornalista na Colômbia. A censura fora imposta imediatamente depois dos eventos de abril de 1948, embora menos brutalmente na costa do que no interior do país. García Márquez começou a fazer jornalismo por causa de La Violencia, mas esta limitava severamente o que um jornalista podia fazer. Nos sete anos seguintes, sob Ospina Pérez, Laureano Gómez, UrdanetaArbeláez e Rojas Pinilla, embora com intensidade variada, a censura do governo seria continuadamente ativa. Muito mais significativo, então, que o primeiro artigo da carreira de García Márquez, datado de 21 de maio de 1948, deixasse implícita uma clara posição política de centro-esquerda. Ele nunca divergiria dessa ampla perspectiva; ainda assim, ela jamais, em última instância (como os marxistas costumavam dizer), constrangeria ou distorceria sua ficção (MARTIN, 2010, p.160).
Por sua atuação na imprensa e pela afinidade com o Partido Comunista da Colômbia, García Márquez era um inimigo do regime. Embora aparentemente tenha minimizado o perigo, se sentia temeroso ao perambular solitário pelas sombrias ruas de Bogotá em meio à tensão da ditadura, pois era uma pessoa marcada pelos apoiadores do regime. É “algo parecido com um milagre o fato de ele ter sobrevivido incólume” (MARTIN, 2010, p. 227). O romance-reportagem na maioria das vezes nasce de uma manchete de jornal, mas “a teia da facticidade do romance-reportagem apoia-se mais na mímesis e na verossimilhança que na veracidade e no cruzamento de fatos.” Costa Lima (apud COSSON) considera a mímesis um significante que permite a inclusão de novos significados às situações históricas. Sobre o compromisso com o real, Cosson acredita que é na “diferença sob a semelhança, que a verdade factual é construída.” Para ele a verossimilhança possui duas faces, uma que pertence ao autor e outra própria do narrador, que firmam um pacto narrativo no qual, “[...] pelo menos para efeito de leitura, é conforme ao real o mundo que a obra descreve” (2001 p. 36-39). A mímese é a representação da realidade, mas não é a realidade em si, essa realidade representada é regulada pela verossimilhança que garante a coerência dentro da narrativa. Assim, uma representação mimética precisa ser crível para ser convincente, o grau 18
Período de conflitos civis envolvendo os dois grandes partidos políticos da Colômbia: Partido Liberal e Partido Conservador.
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de verossimilhança ou de fantasia vai depender da intencionalidade do autor (COSTA, 1992). Nas palavras do próprio Aristóteles: [...] se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade [...] a poesia é mais filosófica e tem um caráter mais elevado que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verossimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às personagens (2004, p. 54).
Para Felipe Pena é preciso deixar clara a diferença entre romancereportagem e ficção jornalística. O romance-reportagem “[...] usa adereços literários para aprofundar a abordagem sobre fatos reais” enquanto a ficção jornalística parte de fatos reais para construir uma história que será complementada pela liberdade criativa do autor (2006, p. 103). A ficção-jornalística não tem compromisso com a realidade, apenas a explora como suporte para a sua narrativa. Diferentemente do romance-reportagem, cujo objetivo essencial é a construção fiel dos acontecimentos. Como já disse, ambos acabam trabalhando mais com a verossimilhança do que com a veracidade. A diferença está na intenção ou não de fazer ficção. O autor de ficção jornalística inventa deliberadamente, enquanto o escritor de romances-reportagens está impregnado pela promessa solene do Jornalismo de relatar somente a verdade factual, ainda que isso não seja ontologicamente possível (PENA, 2006, p. 114).
Aumentando a dúvida quanto à classificação de Crônica, Pena observa que os autores de ficção jornalística conhecem bem os limites da reportagem, pois, na maioria das vezes, já trabalharam na imprensa e exerciam o compromisso com o real objetivo. A produção de ficção jornalística por esses autores é estimulada pelo desejo de romper com as amarras do real, sem deixar de usar as técnicas aprendidas no jornalismo. Desse modo, o realismo fantástico pode ser classificado como ficção jornalística, pois “[...] Até nas histórias mais fantásticas, os autores estão sedimentados sobre os acontecimentos do cotidiano.” Ou seja, “a ficção apenas confirma a realidade” (2006, p. 115 e 116). Observa-se que não existe um abismo entre a literatura e o que não é literatura, pois os gêneros têm origem no simples discurso humano. Há momentos em que a realidade e a ficção se cruzam para formar narrativas híbridas como o romance-reportagem e a ficção-jornalística. Por outro lado, a classificação de uma determinada narrativa em um dos dois gêneros vai depender do autor escolhido para fundamentar o argumento. Para Todorov (1980) os gêneros poderiam se tornar os principais personagens dos estudos literários, pois são complexos e multifacetados.
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Em Crônica de uma morte anunciada todos esses gêneros se misturam e se confundem na hibridização. Muitos trabalhos já teceram considerações sobre as peculiaridades dessa narrativa, mas assim como duas pessoas não escrevem o mesmo texto a partir das mesmas informações, o ângulo pelo qual será feita a análise de uma mesma obra nunca será o mesmo. Crônica é a bússola escolhida para provar que as histórias marquezianas são fascinantes porque a dupla formação do autor possibilitou a assimilação de diversas técnicas narrativas que, combinadas, reproduzem o real de uma forma fantástica e o fantástico de forma real.
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4 UMA NARRATIVA QUASE REAL “[...] uma espécie de falso romance e falsa reportagem” (GGM in MARTIN, 2010, p. 493).
A história de Crônica de uma morte anunciada está baseada na trágica morte de Cayetano Gentile, amigo de juventude de Gabriel García Márquez. O rapaz foi brutalmente assassinado por Víctor Manuel e José Joaquín Chica Salas, irmãos de Margarida Chica, ex-namorada de Gentile e colega de quarto de Mercedes Barcha, futura esposa de Gabo, no colégio em Mompox. Em um primeiro momento o jornalista olhou o crime como uma possível reportagem, mas com o tempo percebeu que a história tinha valor literário. No entanto, só conseguiu relatar o fato quase trinta anos depois, quando recebeu o aval de sua mãe Luiza Santiaga, que havia lhe pedido para não registrar a história enquanto Julieta Chimento, sua comadre e mãe de Cayetano, estivesse viva. Quando aconteceram os fatos, em 1951, não me interessaram como material de romance e sim como reportagem. Mas aquele gênero era pouco desenvolvido na Colômbia dessa época e eu era um jornalista de província num jornal ao qual talvez não tivesse interessado o assunto. Comecei a pensar o caso em termos literários vários anos depois, mas sempre levei em conta a contrariedade que causava a minha mãe a pura idéia de ver tanta gente amiga, inclusive alguns parentes, metidos num livro escrito por um filho seu (GGM, 1993, p.30).
Gabo estrutura a narrativa como uma reportagem, reconstruindo os últimos passos do personagem Santiago Nasar com depoimentos puxados das lembranças de várias pessoas do povoado. Pessoas que assistiram e que, direta ou indiretamente, participaram da morte de Santiago, pois não fizeram nada para evitá-la. Crônica é a reportagem que ele queria ter feito e não pôde, mas justamente por isso, amadureceu o tema literário e se universalizou por meio da literatura. Na realidade, nunca me interessou uma ideia que não resista a muitos anos de abandono. Se é boa a ponto de resistir aos quinze anos que esperou Cem Anos de Solidão, aos dezessete de O Outono do Patriarca e aos trinta de Crônica de Uma Morte Anunciada, não tenho outro remédio senão escrevê-la (GGM, 1993, p. 31).
Como narrador-personagem, o próprio Gabriel García Márquez volta ao povoado, entrevista pessoas, faz pesquisas e reconta a história 27 anos após a consumação do crime. Na releitura do fato, os nomes dos protagonistas foram modificados e algumas
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situações ficcionadas, pois há diferenças entre o acontecimento real e a versão contada pelo escritor. Gabo reconta o fato à sua maneira, mas a base do fenômeno jornalístico foi mantida: Margarida Chica se casa con Miguel Reyes Palancia quin la devuelve la misma noche de bodas por no ser virgen. Esta acusa a su novio anterior - Cayetano Gentile de ser el culpable y sus hermanos, Víctor Manuel y José Joaquín - que no son gemelos - lo matan a machetazos para devolver la honra a la familia. Después del incidente, Margarida y Miguel se divorcian. Miguel vuelve a casarse y tiene seis hijos, mientras Margarida se translada a otro pueblo a esconder su vergüenza (RABELL, 1994, p. 88).19
Os seres humanos são narradores, atores, personagens e ouvintes de suas próprias histórias. “Reais ou imaginárias, nossas narrativas nos representam, narrar é uma forma de dar sentido à vida” (MOTTA, 2004, p. 5). Gabo não narra só a sua vida, mas a de sua família, amigos e conhecidos. Toda a magicidade de sua obra está fundamentada no material humano que ele, como bom observador, colhe da realidade que passa diante de seus olhos. Como teoria de análise, a narratologia contribui com modelos para se pensar o texto e transcendê-lo. No jornalismo, mais que informar é necessário formar o leitor para pensar a notícia. Com a construção de cenas, parágrafos e frases, Gabo deixa implícito e explícito qualidades e defeitos da cultura na qual cresceu e formou-se jornalista e escritor. A narrativa, mesmo que acrescida de situações imaginadas está baseada na vivência do repórterliterato: [...] a relação do observador, seja ele repórter ou não, com o mundo que o rodeia é um processo constante de mediação, de interpretação e tradução de idéias sobre as coisas. Contudo, a imaginação desempenha um papel especial, no sentido de carregar a bateria da percepção (GUIRADO, 2004, p. 33).
O mundo narrado em Crônica é a realidade da Colômbia nos anos 1950, o assassinato de Cayetano foi um entre milhares decorridos dos ânimos exaltados de La Violencia. Quase três décadas depois, Gabo conseguiu resgatar aquela atmosfera de agressividade gratuita em que a maioria dos cidadãos (para não sofrerem consequências), não tomava partido do problema. Apoiado nas técnicas literárias para traduzir e acrescer o real, o escritor conseguiu escrever a narrativa exatamente como desejava. “Nunca tinha acontecido
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Tradução: Margarida Chica se casa com Miguel Reyes Palancia quem a devolve na noite do casamento por não ser virgem. Esta acusa o seu noivo anterior - Cayetano Gentile - de ser o culpado e seus irmãos, Víctor Manuel e José Joaquín - que não são gêmeos - o matam a golpes de facão para devolver a honra a sua família. Depois do incidente, Margarida e Miguel se divorciam. Miguel volta a se casar e têm seis filhos, enquanto Margarida se muda para outro povo para esconder sua vergonha.
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isso comigo antes. Em outros livros, o tema me levou, os personagens ganharam às vezes vida própria e fizeram o que tinham vontade” (GGM, 1993, p. 69). O fundo e a forma foram devidamente trabalhados para envolver o receptor que pode ler o texto como um romance ou uma reportagem. Nesta obra, o efeito de real é produzido pela maneira com que o autor organiza a sequência da história em um fundo verídico. Diante disso, a análise levará em consideração a estrutura da obra como um todo, assim como defendiam os formalistas russos, que impulsionaram os estudos das narrativas. Por ser uma teoria complexa, envolvendo métodos que buscam provar, apesar dos variados conteúdos, que as narrativas possuem bases e princípios de composição comuns. As considerações analíticas tecidas neste estudo podem não ser tão aprofundadas, pois, essa teoria não é de domínio do jornalismo, mas dos estudos literários, que se interessam pela narrativa como objeto linguístico. Entretanto, Motta deu os primeiros passos na tentativa de aplicar a teoria da narrativa na análise de conteúdos jornalísticos propondo uma “Teoria e Análise da Comunicação Narrativa” (2004, p. 27). Assim como Motta, esta pesquisa não pretende isolar a narrativa de seu contexto social, não se trata somente de uma análise narratológica literária, mas recorre-se a ela para mostrar algumas técnicas de estruturação do texto utilizadas por García Márquez, visto que o objeto é uma obra híbrida que paira entre o jornalismo e a literatura. Na verdade, o que se pretende é pincelar os conceitos gerais propostos pela narratologia observando a composição de Crônica enquanto um produto de uma realidade social, reconstruída sob técnicas jornalísticas apoiadas nos recursos do new journalism apontados por Wolfe. A narratividade é uma sucessão de estados de transformação responsável pelo sentido do texto. Narrar é relatar processos de mudança, processos de alteração e de sucessão inter-relacionados, o que pressupõe a existência de uma lógica narrativa e nos leva a uma gramática narrativa universal. Motta enxerga o texto narrativo como um produto marcado por questões ideológicas e culturais: Narrativas e narrações são forma de exercício de poder e hegemonia nos distintos lugares e situações de comunicação. O discurso narrativo literário, histórico, jornalístico, científico, jurídico, publicitário e outros participam dos jogos de linguagem, todos eles referem-se mais a ações e performances sócio-culturais que a simples relatos representativos (MOTTA, 2004, p.14).
Para melhor analisar a estrutura e as situações narradas em Crônica é necessário adentrar o mundo retratado por García Márquez. Ao mimetizar a tragédia vivida por Cayetano, o escritor reinterpreta a história enquanto seleciona e prioriza as situações que
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deseja relatar no texto. A análise da narrativa revela os valores canônicos e culturais vigentes na sociedade, esses valores atuam na construção dos significados refletidos no texto (MOTTA, 2004). Sendo assim, para além das construções textuais, a obra faz uma crítica à sociedade colombiana quando aborda questões como o misticismo, religiosidade, honra, machismo, violência e indiferença ao problema alheio. Crônica de uma morte anunciada parece estar divida em cinco partes, pois, há espaços em branco que separam os blocos de texto. Para fins de análise, essas partes serão consideradas capítulos, mesmo que não estejam numerados. Já na primeira frase do texto o autor revela que o personagem Santiago Nasar será morto. Na sequência do parágrafo, direciona o leitor a mergulhar na atmosfera religiosa e ao mesmo tempo supersticiosa da Colômbia e por analogia da América Latina. [...] Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata. “Na semana anterior tinha sonhado que ia sozinho em um avião de papel aluminizado que voava sem tropeçar entre as amendoeiras”, disse-me. Tinha uma reputação muito boa de intérprete certeira dos sonhos alheios, desde que fossem contados em jejum, mas não percebera qualquer augúrio aziago nesses dois sonhos do filho, nem nos outros sonhos com árvores que ele lhe contara nas manhãs que precederam sua morte (GGM, 2004, p. 9 e 10).
Seguindo a história, o autor narra a noite mal dormida de Santiago, que se esbaldou na festa de casamento de Ângela Vicário e Bayardo San Román. Apesar da ressaca, Santiago acorda cedo para receber o bispo que passou pelo povoado sem colocar os pés na terra. Enquanto isso, o boato de que os irmãos Vicário estavam esperando Santiago para matálo corria pelo povoado, mas ninguém realmente se importou em avisar a vítima. Neste trecho ficam explícitas duas características tipicamente latino-americanas: a religiosidade fervorosa e a velocidade com que as fofocas se espalham pelas pequenas cidades. O segundo capítulo relata a chegada de Bayardo San Román, o forasteiro que decide se casar com a filha mais nova de Puríssima e Pôncio Vicário sem razão aparente. García Márquez registra a grandiosa festa de casamento e a desilusão de Bayardo San Román ao devolver Ângela Vicário à casa dos pais, porque a noiva já não era virgem. Ângela entrega Santiago à morte quando diz que ele havia lhe desonrado. Além da alegria e das grandes farras, este trecho faz alusão às questões de honra, desonra e machismo, ainda impregnados à cultura latina.
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Crônica não segue uma linearidade temporal o narrador passeia pelos acontecimentos acompanhado pelos depoimentos dos entrevistados. A terceira parte começa com os momentos após o assassinato. A honra foi lavada com sangue, mas a verdade é que os gêmeos Pablo e Pedro Vicário não queriam cometer o crime, fizeram de tudo para que alguém os impedisse e ninguém teve a bondade de interferir. O dever que Puríssima Vicário impôs aos filhos foi cumprido. As entrevistas deixam explícito que várias pessoas sabiam que a tragédia estava a caminho, porém muitos não acreditavam que os Vicário fossem realmente cumprir as ameaças. A narrativa descreve, passo a passo, o caminho que os assassinos percorreram em busca da vítima e aponta pequenas atitudes que poderiam ter evitado o homicídio. No quarto capítulo, García Márquez descreve a autopsia que ajudou a descaracterizar ainda mais o corpo de Santiago, já retalhado pelas facadas. Ele também fala sobre o destino dos irmãos Vicário que saíram da prisão três anos depois do homicídio. Neste trecho, Gabo ainda relata a má sorte da jovem Ângela Vicário, que foi “enterrada viva” pela mãe enquanto cultivava um amor platônico pelo marido que a devolveu. Ângela escreveu centenas de cartas cheias de amor, ódio e desespero até que Bayardo San Román reaparece, dezessete anos depois, com uma mala cheia de cartas intactas. Após tanto sofrimento, a moça, que virou senhora, tem o seu final feliz. Na última parte do livro García Márquez finalmente descreve, minuciosamente, como foi concretizado o assassinato. Antes, ressalta o remorso que cai sobre o povoado, pois a tragédia seria facilmente evitada se uma única pessoa, das muitas que sabiam da trama, tivesse avisado Santiago. Pedro Vicário retirou a faca com seu pulso feroz de magarefe e assentou um segundo golpe quase no mesmo lugar. “O estranho é que a faca voltava a sair limpa”, declarou Pedro Vicário ao juiz instrutor. “Eu o tinha furado pelo menos três vezes e não havia nenhuma gota de sangue”. Santiago Nasar dobrou-se com os braços cruzados sobre o ventre depois da terceira facada, soltou um queixume de bezerro e tentou virar-se de costas. Pablo Vicário à sua esquerda, com a faca curva assentou-lhe então a única facada nas costas, e um jorro de sangue a alta pressão empapou a sua camisa. [...] Então os dois continuaram esfaqueando-o contra a porta, com golpes alternados e fáceis, flutuando no remanso deslumbrante que encontraram do outro lado do medo. Não ouviram os gritos do povoado inteiro espantado de seu próprio crime. “Eu me sentia como se estivesse correndo em um cavalo”, declarou Pablo Vicário. Mas ambos despertaram, logo, para a realidade, porque estavam exaustos e, apesar de tudo, achavam que Santiago Nasar não cairia nunca (GGM, 2004, p. 173 e 174).
Esse é um resumo das sequências da história, o fundo da trama. Para construir as cenas, García Márquez mescla realidade e ficção enquanto relata o terrível
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assassinato. Na primeira frase o leitor já sabe que Santiago Nasar será morto, o que o leva a ler o livro todo é a amarração caleidoscópica e cíclica desenvolvida pelo narrador, ou seja, a forma da narrativa. O autor consegue manter a tensão e envolver o receptor, que fica angustiado enquanto faz sua própria construção imagética das situações narradas em fragmentos que se repetem; ou em releituras que se bifurcam entre os vários pontos de vista, dependendo do personagem que aparece no centro da ação. Para Carmen Rabell, o triângulo Santiago, Bayardo e Ângela representa as classes da sociedade moderna. Santiago é a classe burguesa ascendente, Bayardo a aristocracia dominante e Ângela a classe pobre trabalhadora.
Implicitamente, com essa
analogia à divisão de classes, Gabo faz alusão à opressão e aos problemas da sociedade latinoamericana. O triângulo amoroso se torna o triângulo de luta. Segundo a autora, Bayardo compra uma noiva pobre e o casamento dos dois representa a relação de opressão entre a classe rica e a classe pobre. A “compra” também ressalta a situação de opressão da mulher em uma sociedade machista. Quanto à Santiago, o povo é cúmplice do assassinato porque ele representa a classe opressora. Observa-se que o povo só se revela contra o opressor por uma questão machista, mas concorda com o casamento comprado e sem amor. (1994, p. 46 e 47). Muitos dos que estavam no porto sabiam que iam matar Santiago Nasar. Dom Lázaro Aponte, coronel de academia em gozo de boa reforma e prefeito municipal há onze anos, cumprimentou o com os dedos. “Eu tinha razões muito fortes para acreditar que não corria mais nenhum perigo”, disse-me. O padre Carmen Amador também não se preocupou. “Quando o vi são e salvo pensei que tudo havia sido uma mentira”, disse-me. Ninguém perguntou sequer se Santiago Nasar estava prevenido, porque todos acharam impossível que não o estivesse (GGM, 2004, p. 32 e 33).
Quando afirma que o jornalismo é um gênero literário, Amoroso Lima afirma que um dos traços que o caracteriza como tal é a objetividade: “O importante é manter o contato com o fato20. Tudo mais deriva daí: informação do fato; a formação pelo fato; a atualidade do fato; o estilo determinado pelo fato. O fato, o acontecimento, é a medida do jornalista.” (1960, p. 52). Na leitura da obra, fica evidente que é a descrição do fato que move a narrativa de Crônica, mas na versão contada por Gabo, Santiago (Cayetano Gentile) não possui vínculo com Ângela (Margarida Chica) e isso torna ainda mais duvidosa a culpa ou a inocência do morto. Outra contradição é que na vida real, Margarida e Miguel não terminam juntos como Ângela e Bayardo. Essas “mentiras” ajudam a reforçar a verossimilhança do relato, pois para dar a ilusão de realidade a ficção precisa de um pouco de exagero (RABELL, 20
Grifo do autor
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1994, 109). De forma resumida, esta pequena compilação da história apresenta as principais ações e personagens da trama.
4.1 O DISCURSO JORNALÍSTICO DE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
A expectativa gerada pelo anúncio de Crônica foi superada pelo desapontamento dos leitores. Muitas pessoas esperavam um livro no estilo de Cem Anos de Solidão ou O Outono do Patriarca. Após seis anos sem publicar, Gabo havia divulgado que retornaria ao mercado com uma obra prima, mas para muitos leitores desejosos de mais realismo mágico, a história foi uma decepção (RABELL, 1994). Em Crônica o autor se apoiou no discurso jornalístico de seu início para articular reflexões sobre a escrita e criticar a realidade política, social e cultural da sociedade em que cresceu. O realismo mágico, não fica tão evidente, pois todos os acontecimentos estão documentados pelos depoimentos das fontes consultadas pelo narrador-personagem. Ainda assim, estão presentes as superstições do povo latino-americano. Contando sua reportagem mais ou menos ficcionada, Gabo cativa o leitor escolhendo com maestria as palavras que compõem a sinfonia de sua obra. É fato que a grande reportagem desfruta de uma vasta liberdade além lead. Nela, "podem-se dispor as informações por ordem decrescente de importância, mas também narrar a história, como um conto ou fragmento de um romance" (LAGE, 1985, p. 47 e 48). Todavia, como jornalista que sempre foi, o escritor responde às seis perguntas básicas já no primeiro capítulo da história. Na primeira frase o autor revela o que21 vai acontecer ao personagem principal: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo” (GGM, 2004, p. 09). Na segunda página22, García Márquez conta como e quando23 Santiago morreu: As muitas pessoas que encontrou desde que saiu de casa às 6h05m até que foi retalhado como um porco, uma hora depois, lembravam-se dele um pouco sonolento mas de bom humor, e com todos comentou de um modo casual que era um dia muito bonito (GGM, 2004, p. 10)
Mais à frente descreve o local onde24 esperavam Santiago para matá-lo:
21
Grifo nosso para destacar a análise das respostas às questões do lead. Da versão adotada para este trabalho: Crônica de uma morte anunciada. 31. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. 23 Grifo nosso para destacar a análise das respostas às questões do lead. 24 Grifo nosso para destacar a análise das respostas às questões do lead. 22
63 A porta da frente, exceto em ocasiões festivas, permanecia fechada e com tranca. Entretanto, foi ali, e não na porta dos fundos, que esperavam Santiago os homens que o matariam, e foi por ali que ele saiu para receber o bispo, embora precisasse dar uma volta completa à casa para chegar ao porto (GGM, 2004, p. 21).
Gabo, conduz o leitor até a 26ª página para revelar quem25 foram os assassinos de Santiago: Os homens que o matariam tinham dormido nos assentos, apertando no regaço as facas embrulhadas em jornal, e Clotilde Armenta prendeu a respiração para não acordá-los. Eram gêmeos: Pedro e Pablo Vicário (GGM, p. 25 e 26).
O motivo do assassinato só é revelado na 35ª página. Assim, a indagação “por que?”
26
remete o leitor
ao “mito da virgindade” (RABELL, 1994), pensamento
ancestral fixado na América Latina pelos colonizadores ibéricos: Mas depois que o bispo passou sem deixar sua pegada na terra, a outra notícia reprimida alcançou o seu tamanho de escândalo. Foi só então que minha irmã Margot a conheceu por completo e de um modo brutal: Ângela Vicário, a bela moça que se casara na véspera, fora devolvida à casa dos pais porque o marido viu que não era mais virgem. “Senti que era eu quem ia morrer, disse minha irmã. “Mas por mais que virassem essa história do avesso, ninguém podia me explicar como foi que o pobre Santiago Nasar acabou metido em tal complicação. A única coisa que sabia com certeza era que os irmãos de Ângela Vicário o estavam esperando para matá-lo (GGM, 2004, p.35).
Além de responder as questões do lead, García Márquez recheia sua narrativa de relatos, palavras e impressões dos entrevistados, garantindo mais legitimidade jornalística ao texto. As cenas são acompanhadas de pequenas aspas tanto dos protagonistas, quanto dos espectadores, reforçando a profundidade da reportagem e da pesquisa feita pelo narrador-personagem. No livro, Gabo recolheu mais de 40 depoimentos que estão jornalisticamente citados no texto: [...] “achei que estavam tão bêbados”27, disse-me Faustino Santos (GGM, 2004, p. 77). [...] “Pensamos que era só papo de bêbado”28, declararam vários açougueiros, a mesma coisa que Victória Guzmán e tantas outras pessoas que os viram depois (GGM, 2004, p. 78). [...] Já quase velho, tentando explicar-me o seu estado naquele dia interminável, Pablo Vicário disse-me sem nenhum esforço: “Era como estar acordado duas vezes.”29 Essa frase me fez pensar que o mais insuportável para eles deve ter sido a lucidez (GGM, 2004, p. 116).
25
Grifo nosso para destacar a análise das respostas às questões do lead. Grifo nosso para destacar a análise das respostas às questões do lead. 27 Grifo nosso 28 Grifo nosso 29 Grifo nosso 26
64 [...] “Não dei bola”30, explicou-me Celeste Dangond, pois logo achei que não podiam matá-lo se estava tão certo do que ia fazer (GGM, 2004, p. 152). [...] “Ficamos paralisados de susto”31, disse-me Argênida Lanao (GGM, 2004, p. 176). [...] “Teve até o cuidado de sacudir com a mão a terra que ficou em suas tripas”32, disse-me tia Wene (GGM, 2004, p. 177).
Com esses recursos, García Márquez reforça a verossimilhança de sua narrativa. A semelhança com uma grande reportagem é nítida, mas o fato de ter acrescentado alguns fatos inverídicos - como a sua presença no povoado no dia do assassinato - não permite que Crônica seja lido integralmente como um produto jornalístico. Minha reação imediata foi me sentar para escrever a reportagem sobre o crime, mas tropecei com todos os obstáculos possíveis e acabei ficando travado. O que mais me interessava já não era mais o crime em si, mas o tema literário da responsabilidade coletiva. [...] Desde aquele dia, porém, não se passou nenhum outro sem que eu fosse acossado pela vontade de escrever aquela reportagem (GGM, 2005, p 375).
A ideia da narrativa empregada no new journalism “era dar a descrição objetiva completa, mais alguma coisa que os leitores sempre tiveram de procurar em romances e contos: especificamente, a vida subjetiva ou emocional dos personagens” (WOLFE, 2005, p. 37). Ao descrever minuciosamente os passos de Santiago na manhã de sua morte com a ambientação das cenas e a inserção de testemunhas, além de um narrador que oscila entre o presente e o passado, na tarefa de reconstituir “as coincidências funestas” do assassinato, García Márquez, como ele mesmo afirmou ao publicar Crônica, emprega os recursos do new journalism apontados por Wolfe no capítulo anterior. Descrição cena a cena: as cenas construídas por Gabo esmiúçam os detalhes sobre a sequência de atitudes tomadas, ou não tomadas, e que de alguma maneira interferiram na concretização do assassinato. A precisão narrativa aumenta a angústia do leitor diante do que está para acontecer. Santiago Nasar saiu. As pessoas tinham se colocado na praça como nos dias de desfile. Todos o viram sair e todos compreenderam que já sabia que o matariam e estava tão perturbado que não encontrava o caminho de casa. Dizem que alguém gritou de um balcão qualquer: “Por ai não, turco, pelo porto velho”. Santiago Nasar procurou a voz. Yamil Shaium gritou-lhe para que entrasse em seu estabelecimento, e foi apanhar sua escopeta de caça, mas não se lembrou onde havia escondido os cartuchos. De todos os lados começaram a gritar para ele, e Santiago Nasar deu várias voltas para a frente e para trás, estonteado com tantas vozes ao mesmo tempo. Era evidente que se dirigia à sua casa pela porta da cozinha, mas de repente deve ter pensado que a porta principal estava aberta (GGM, 2004, p.169). 30
Grifo nosso Grifo nosso 32 Grifo nosso 31
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Inserção de diálogos: em Crônica, os diálogos são usados para legitimar e enfatizar o discurso do narrador. São introduzidos pelo escritor para reafirmar o que já estava sendo contado, garantindo uma maior sensação de veracidade à narrativa. Cristo Bedoya perguntou a vários conhecidos por Santiago Nasar, mas ninguém o tinha visto. Na porta do Clube Social, encontrou-se como o coronel Lázaro Aponte e lhe contou o que acabava de acontecer na frente do estabelecimento de Clotilde Armenta. - Não pode ser – disse o coronel Aponte – porque eu os mandei dormir. - Acabo de vê-los com uma faca de matar porcos – disse Cristo Bedoya. - Não pode ser, porque eu as tirei deles antes de mandá-los dormir – disse o prefeito. - Você deve tê-los visto antes disso. - Eu os vi há dois minutos e cada um deles tinha uma faca de matar porcos – disse Cristo Bedoya. - Ah, porra! – disse o prefeito. – Então voltaram com outras.
O ponto de vista em terceira pessoa: inserindo-se na história, “Eu conservava uma lembrança muito confusa da festa antes de me decidir a resgatá-la aos pedaços da memória alheia” (GGM, 2004, p. 65), García Márquez coloca a narrativa em primeira pessoa, pois na ficção ele estava no povoado quando o crime aconteceu e, como personagem pode apresentar seu ponto de vista. Mas, na maior parte do tempo sua narração está mediada por relatos dos cidadãos que testemunharam e participaram dos acontecimentos que desencadearam a morte de Santiago. Detalhamento do status de vida: o autor utiliza esse recurso para caracterizar e ambientar a diferença na condição social entre seus personagens principais. Santiago Nasar pertence a uma família com posses, Bayardo San Román é um forasteiro rico que custeia uma extravagante festa de casamento. Ângela Vicário, uma moça pobre, é coagida a se casar sem amor para ter uma boa vida. Os irmãos Vicário são matadores de porcos que utilizam as facas do próprio trabalho para cometer o assassinato. O interior da casa mal chegava para viver. Por isso as irmãs mais velhas trataram de pedir uma casa emprestada quando souberam do tamanho da festa. “Imagine”, disseme Ângela Vicário, “tinham até pensado na casa de Plácida Linero, mas por sorte meus pais teimaram com a história de sempre: ou nossas filhas se casam no nosso chiqueiro ou não se casam.” Então pintaram a casa no amarelo original, enfeitaram as portas, consertaram os pisos e a deixaram tão digna quanto possível para um casamento de tanta ostentação. Os gêmeos levaram os porcos para outro local e sanearam a pocilga com cal viva, mas ainda assim viram que faltaria espaço (GGM, 2004, p.61).
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Crônica cumpre "el ideal periodístico de la exhaustividad, la variedad y la actualidad"
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visto que o autor usou técnicas jornalísticas para apresentar uma noção
totalizadora da realidade narrada no livro. Há uma identificação entre o jornalista e o escritor que assumem ser impotentes diante do mistério do real, mas por meio da linguagem criam mitos sobre a realidade possível. "Ante la recuperación imposible en su totalidad del 'espejo roto de la memoria', la tarea del periodista y el escritor coincide: se trata de la elaboración de una nueva memoria colectiva”34 (RABELL, 1994, p. 124 e 125). Analisando a narrativa, Rabell afirma que Crônica pertence ao jornalismo informativo, observando que o narrador-personagem conta a história com aparente objetividade. “Historia detallada de un país, de una época, de un año, de un hombre, escrita por un testigo ocular o por un contemporáneo que ha registrado, sin comentarios, todos los pormenores que ha visto o le han sido transmitidos”35 (ROBLES apud RABELL, 1994, p. 57). Assim, essa autora afirma que Crônica é uma crônica. No entanto, observando atentamente o argumento fica a dúvida sobre o significado de “sin comentarios”36, pois, se isso quer dizer que o narrador não pode inserir-se na narrativa em primeira pessoa e também apresentar a sua visão dos fatos, a definição não satisfaz a complexidade da narrativa estruturada por García Márquez. Seguindo suas considerações, ela afirma que Crônica é a história detalhada do assassinato de Santiago reconstruída por um “testigo ocular”37 que é o narradorpersonagem. No entanto, o narrador não é testemunha ocular nem no livro, nem na vida real. O que ele faz é coletar informações das testemunhas e dos protagonistas e juntar com as suas próprias lembranças sobre o antes e o depois do assassinato. No livro, o narrador estava na cama de Maria Alejandrina Cervantes quando o fato ocorreu e na vida real o jornalista estava em Barranquilla, trabalhando no El Heraldo e foi informado sobre a morte de Cayetano por um bilhete enviado por Mercedes.
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Tradução: "o ideal jornalístico da exaustividade, variedade e atualidade". Tradução: "Diante da recuperação impossível em sua totalidade do 'espelho quebrado da memória', a tarefa do jornalista e do escritor coincide: se trata da elaboração de uma nova memória coletiva". 35 Tradução: "História detalhada de um país, de uma época, de um ano, de um homem, escrita por uma testemunha ocular ou por um contemporâneo que tenha registrado, sem comentários, todos os detalhes que tenha visto ou que tenham sido transmitidos". 36 Tradução: “sem comentários”. 37 Tradução: “testemunha ocular”. 34
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4.2 ANÁLISE DOS RECURSOS TÉCNICO-LITERÁRIOS
Agora tratando de questões técnicas e estilísticas competentes à análise da narrativa literária, antes de escrever a história o escritor pensa a estrutura do texto, assim como, o jornalista pensa o “gancho” que quer dar à matéria. No ápice do processo criativo de Crônica, García Márquez encontrou a melhor maneira de trabalhar o fundo e a forma para moldar a realidade e traduzi-la em uma reportagem romanceada. Entretanto, a verdade de fundo é que o tema só me arrastou realmente quando descobri, depois de pensar muitos anos, o que me pareceu essencial: que os dois homicidas não queriam cometer o crime, tinham feito o possível para que alguém impedisse e não conseguiram. É isso, em última instância, a única coisa realmente nova que tem esse drama, aliás bastante comum na América Latina. Uma causa posterior da demora foi de caráter estrutural. Na realidade, a história termina quase vinte anos depois do crime, quando o marido volta para a esposa repudiada, mas para mim sempre foi evidente que o final do livro tinha que ser a descrição minuciosa do crime. A solução foi introduzir um narrador... que pela primeira vez sou eu mesmo... que estivesse em condições de passear à vontade, a torto e a direito no tempo estrutural do romance. Quer dizer, ao fim de trinta anos, descobri uma coisa que muitas vezes nós romancistas esquecemos: que a melhor forma literária é sempre a verdade (GGM, 1993, p.30 e 31).
Yves Reuter propõem três níveis de análise para uma visão mais aprimorada em relação à divisão fundo/forma. São eles ficção, narração e criação do texto. Segundo o autor, a ficção aponta o universo encenado pelo texto, no qual o escritor define a história, as personagens e o espaço-tempo. É uma construção progressiva que segue o crescimento do texto e sua leitura. Já a narração “designa as grandes escolhas técnicas que regem a organização da ficção na narrativa que a expõe” (2007, p. 59). Por fim, à criação do texto cabe o estudo das escolhas de textualização, escolhas de léxico, sintaxe, retórica e estilo, mais propriamente analisadas por linguistas e semiólogos, mas que ajudam a compor o quadro pintado pelos dois primeiros níveis. Seguem as principais considerações da obra de Reuter que são pertinentes à análise de Crônica. Como escritor, Gabo utiliza alguns recursos técnicos para hipnotizar o leitor. Ao repetir a informação de que Santiago será morto o narrador cria uma ‘tensão anunciada’, pois o leitor sabe que o fato vai acontecer, mas não sabe quando ele será narrado. Por meio da aceleração e desaceleração da narrativa se cria “a angústia, o suspense e o abrandamento da tensão do leitor”. A desaceleração é criada pela expansão de momentos ou ações secundárias, repetição de informações, descrição minuciosa e “intervenções do narrador que não correspondem a ação alguma na ficção”. A aceleração acontece quando a narração avança os acontecimentos por meio de resumos e saltos no tempo e nas ações da ficção. A
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aceleração é um recurso usado em narrativas de ação, enquanto a desaceleração está presente em narrativas mais psicológicas, descritivas ou explicativas (2007, p. 90-91). Em Crônica a desaceleração começa na primeira linha, pois a informação principal do texto já é dada ao leitor e a partir dela o narrador começa a explicar como o fato aconteceu. Na narrativa analisada, a montagem do texto é o fator determinante para que o leitor se interesse pela história. Motta afirma “a atitude narrativa antecede os acontecimentos, o contar é precedido de uma pré-estrutura narrativa que estabelece uma meta, algo a explicar, um estado a alcançar” (2004, p. 12). Ou seja, obviamente, todos os efeitos de construção do texto foram pensados com antecedência pelo narrador. Há dois tipos de anacronias38 narrativas: a anacronia por antecipação, também conhecida como prolepse ou catáfora e a anacronia por retrospecção chamada de analepse, anáfora ou flashback (REUTER, 2007, p. 94-95). Em Crônica a antecipação é constante. A todo o momento o leitor é lembrado de que Santiago vai morrer, tanto que o terceiro capítulo começa com os momentos após o assassinato que só será detalhado no último capítulo da história. A respeito da intriga na narrativa, Vladimir Propp - um dos nomes do formalismo russo - foi um dos primeiros estudiosos a propor uma formalização da intriga nas narrativas enquanto estudava os contos maravilhosos da Rússia. Observando os contos, Propp percebeu que as histórias eram organizadas em uma ordem praticamente idêntica de ações e que seriam as ações, e não os personagens, a unidade de base das narrativas. Com esse pensamento, Propp isolou 31 funções39 que seriam comuns às histórias escritas naquela época. Essas funções são importantes referências para a análise dos contos, mas encontram críticas quando transportadas para outros gêneros de narrativa (REUTER, 2007, p. 32-35). Para simplificar o estudo da intriga, alguns teóricos buscaram um modelo mais abstrato e simples. O mais conhecido e divulgado é o esquema canônico ou esquema quinário, no qual a narrativa se define como a transformação de um estado inicial em outro estado, o final. Entre o estado inicial e final a narrativa é constituída por três estados intermediários: De um elemento (complicação) que permite movimentar a história e fazê-la sair de um estado que poderia durar; De encadeamento das ações (dinâmica);
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Alterações entre a ordem dos eventos da história e a ordem em que aparecem no discurso. Consultar as funções em A morfologia do Conto maravilhoso (1928) de Vladimir Propp.
69 De outro elemento de (resolução), que conclui o processo das ações, instaurando um novo estado, que vai perdurar até a ocorrência de uma nova complicação (REUTER, 2007, p.36).
Na narrativa analisada, em uma ordem não cronológica, o elemento de complicação é a devolução de Ângela Vicário pelo marido Bayardo San Román. A partir disso, os irmãos são incumbidos de restaurar a honra da família, assassinando o possível agressor: Santiago Nasar. Os gêmeos anunciam para quem quiser ouvir que pretendem matar o amigo com quem beberam até a madrugada. A resolução aparece quando o coronel Dom Lázaro Aponte chega ao estabelecimento de Clotilde Armenta, tira-lhes as facas com que pretendiam ferir Nasar e os manda para casa dormir. Mesmo com a tentativa frustrada, Pedro Vicário deu por cumprido o dever quando Dom Lázaro os impediu, mas dá-se uma nova complicação: Pablo não concorda com o irmão e quer terminar a tarefa, então o convence de que devem afiar outras facas e voltar à mercearia para esperar Santiago. O estado inicial é a anunciação da morte e o final a sua concretização. Reuter alerta que é necessário ser prudente no emprego de modelos de análise, pois ao generalizar há o risco de se perder a singularidade da narrativa. A base do modelo será transformada “pelas escolhas que regem a narração e a sua passagem para o texto” (2007, p.37). Mas, por meio da observação do estado inicial e final é possível identificar o que foi transformado na narrativa e qual foi a jogada do escritor. Entretanto, é válido observar, como faz Beth Brait, que os árduos recursos empregados pelos grandes narradores acabam por se perder nos meandros do texto e na interpretação de seus leitores: A narração em primeira ou terceira pessoa, a descrição minuciosa ou estética de traços, os discursos direto, indireto ou indireto livre, os diálogos e os monólogos são técnicas escolhidas e combinadas pelo escritor a fim de possibilitar a existência de suas criaturas de papel. Dependendo de suas intenções e principalmente de sua perícia, ele vai manipular o discurso, construindo essas criaturas, que depois de prontas, fogem ao seu domínio e permanecem no mundo das palavras à mercê dos delírios que esse discurso possibilita aos incontáveis receptores (BRAIT, 1998, p. 67).
Outro elemento marcante que contribui “para fazer a fixação realista ou não realista da história”40 é o tempo (REUTER, 2007, p. 56). O tempo do relato é criado por ações que integram o passado, o presente e o futuro, estabelecendo sequências de continuidade ou descontinuidade na narrativa (MOTTA, 2004). "Una de las formas de
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Grifo do autor
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actualización de la noticia es presentarla 'hora a hora', 'minuto a minuto"41 (RABELL, 1994, p. 54). Em Crônica, o narrador situado no presente conta uma história que está no passado, mas ao relatar o fato dá indicações precisas quanto às horas e minutos que precedem o assassinato: [...] saiu de casa às 6h05m até que foi retalhado como um porco, uma hora depois, [...] (GGM, 2004, p. 10). Eram 6h25m. Santiago Nasar pegou Cristo Bedoya pelo braço e o levou para a praça (GGM, 2004, p.31 e 32). De fato, com os dados finais que Cristo Bedoya lhe deu no dia seguinte no porto, 45 minutos antes de morrer, comprovou que o cálculo de Bayardo San Román tinha sido exato (GGM, 2004, p.65). Por ali passaram, entre muitos outros, os irmãos Vicário, e estiveram bebendo conosco e cantando com Santiago Nasar cinco horas antes de matá-lo (GGM, 2004, p.68).
Por ser uma história baseada no real, a demonstração da passagem do tempo na narrativa também acompanha o ritmo da realidade. Mesmo não sendo linear, a precisão da marcação do tempo também é um elemento que aumenta a tensão na narrativa. O “efeito de real é um produto da organização textual” da história (REUTER, 2007, p. 57). Observando esses conceitos narratológicos e constatando a presença de procedimentos jornalísticos reforçados pelos recursos narrativos utilizados no new journalism, por meio da análise de Crônica é possível acreditar que Gabriel García Márquez foi um escritor e um jornalista que viveu na permeável fronteira entre o compromisso com o real e os voos da imaginação. No entanto, esse voo não é tão livre como se imagina. Para transportar o leitor para o seu mundo mimetizado, Gabo precisou recorrer às técnicas narrativas apreendidas com os grandes escritores e com os anos de atividade jornalística.
4.3 PERFORMATIZAÇÕES DO REAL: OS PERSONAGENS DE GABO
Uma narrativa híbrida precisa de personagens que tenham um pé na realidade, pois “as personagens têm um papel essencial na organização das histórias. Elas permitem as ações, assumem-nas, vivem-nas, ligam-nas entre si e lhes dão sentido. De certa forma, toda história é história de personagens” (REUTER, 2007, p. 41). Esses personagens e situações criados na literatura estão impregnados de valores morais, éticos e estéticos. A construção de personagens e ações na narrativa é uma estruturação de condutas humanas (MOTTA, 2004). As condutas humanas funcionam como modelos para o 41
Tradução: "Uma das maneiras de atualização da notícia é apresentá-la ‘hora a hora’, ‘minuto a minuto".
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narrador construir personagens que performatizem as ações no texto: “a personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (CANDIDO, 2000 p. 54). No caso de Crônica, e em praticamente toda a obra literária de Gabo, o escritor empresta a seus personagens a personalidade e as características de pessoas reais, muitas vezes as mulheres supersticiosas de pulso firme e os homens aventureiros e solitários que recheiam suas histórias, são baseados em pessoas da sua própria família. Antonio Candido afirma que a verossimilhança de uma história pode ser resumida ao sentimento de verdade provocado pelo texto. A personagem é incumbida de trazer a “[...] impressão da mais lídima verdade existencial”, pois segundo o autor, o romance está baseado na relação entre o ser vivo e o ser fictício (2000. p. 55). Ou seja, quanto mais a personagem se aproxima da complexidade do mundo real, mais verdadeira parece a narrativa: “a personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo” (CANDIDO, 2000, p. 59). Os estudos de Aristóteles já apontavam para dois aspectos essenciais na composição da personagem: “a personagem como reflexo da pessoa humana; a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto” (BRAIT, 1998, p. 29). A autora recorda que Horácio não vê a personagem apenas como reprodução dos seres vivos, mas modelos humanos, ou seja, as personagens eram inspiradas nas condutas humanas e possuíam uma forte carga moral. O modelo de personagem baseado nas ações humanas perdurou até o século XVIII quando o romance se devolve e se modifica para agradar o gosto do público burguês. Com a transformação do romance, as personagens passaram a ser vistas como projeções do próprio escritor em relação a sua a maneira de ser e de perceber o mundo (romantismo). Brait afirma que a visão antropomórfica da personagem começa a ser alterada no século XX “com a sistematização da crítica literária, em suas diversas tendências, e com a reabertura do diálogo acerca das especificidades da narrativa e de seus componentes” (1998, p. 38). No formalismo russo a personagem passa a ser vista como um dos componentes da história e “só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em que está submetida aos movimentos, às regras próprias da trama” (BRAIT, 1998, p. 43). Assim, a personagem se afasta um pouco das relações com o ser humano e passa a ser entendido como ser que habita o texto, ancorado na construção pela linguagem. Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos
72 pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos (BRAIT, 1998, p. 52).
Os protagonistas reais do assassinato narrado em Crônica foram eternizados nas bem traçadas linhas de Gabo, mas para dar vida a esses seres ele os transporta do mundo real, ao mundo fictício do livro, onde reinventa seus nomes e dá expressão descritiva as suas características físicas e psicológicas. O nome é um designante fundamental da personagem, é ele que dá vida ao ser performatizante e ajuda a fortalecer o efeito de real da narrativa. Quanto mais semelhante aos padrões vigentes na sociedade, mais o nome contribuirá para a sensação de verossimilhança do texto (REUTER, 2007). Reportando a realidade para a ficção García Márquez transformou Cayetano Gentile em Santiago Nasar, Margarida Chica em Ângela Vicário e os irmãos Vicário são a representação de Víctor Manuel e José Joaquín Chica Salas: Gentile, um imigrante de ascendência italiana, se tornaria Santiago Nasar, um árabe, e, dessa maneira próximo da ancestralidade de Mercedes Barcha. Margarida Chica, amiga de Mercedes, se tornaria Angela Vicário. Miguel Palencia se tornaria Bayardo San Román. Víctor Manuel e José Joaquín Chica Salas seriam os irmãos gêmeos Pedro e Pablo Vicário. A maioria dos outros detalhes do livro é igual à vida real, ou similar. Alguns dos relacionamentos foram modificados, em particular em termos de classe social, e é evidente que García Márquez reescreveu o caso dramático com o olhar mágico do romancista (MARTIN, 2010, p. 496).
Crônica de uma morte anunciada, como a maioria das obras de Gabo, é um texto de dimensão autobiográfica. Na história, García Márquez, o narrador, envolve a mãe Luisa Santiaga, os irmãos Luis Enrique, Jaime, Margot, uma irmã freira e um pai, que não são nomeados, e ressuscita a tia Wenefrida para observar os últimos suspiros de Santiago. Segundo Rabell (1994), as personagens de Crônica parecem ter vida própria. A vitalidade das personagens fica evidente porque “Os membros da família aparecem não apenas com os próprios nomes, mas com a própria personalidade e maneira de falar” (MARTIN, 2010, p. 497). Como é afirmado constantemente nos prefácios e nas notas de advertência, as semelhanças entre pessoas e personagens reais nos romances-reportagens não são meras coincidências. Mais que cópia ou transposição de um modelo retirado na vida real, como acontece no romance histórico, por exemplo, a personagem do romancereportagem parece revelar-se contra as leis discursivas ao desejar nada menos do que ser vista como “a pessoa mesma” (COSSON, 2001, p. 40).
A elaboração de personagens com inspiração na realidade é, assim como a percepção humana, fragmentária, pois é impossível que se conheça o outro em uma totalidade capaz de passar suas características humanas para o papel. A interpretação a respeito dos seres
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humanos varia “de acordo com o tempo ou as condições da conduta”, no romance também pode-se variar a interpretação sobre determinada personagem. No entanto, “o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser” (CANDIDO, 2000, p. 58 e 59). As personagens de Gabo retratam a maneira como o escritor enxerga seus familiares, amigos e o povo latinoamericano. [...] quando toma um modelo na realidade, o autor sempre acrescenta a ele, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à qual procura revelar a incógnita da pessoa copiada. Noutras palavras, o autor é obrigado a construir uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é uma interpretação deste mistério; interpretação que elabora com a sua capacidade de clarividência e com a onisciência do criador, soberanamente exercida (CANDIDO, 2000, p. 65).
Diante disso, o autor afirma que não é possível copiar um ser vivo e transportá-lo para o romance, pelo menos não em sentido absoluto. Candido observa que tal atitude dispensa a criação artística do escritor “mesmo se fosse possível uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção” (2000, p. 65). No entanto, Gabo se propõe a tal façanha, mas não deixa de exercitar a criação fictícia. A porta da primeira classe foi aberta de repente e entrou um príncipe árabe com a túnica imaculada que denunciava sua linhagem, levando no pulso uma esplêndida fêmea de falcão-peregrino, que em vez do capuz de couro da clássica arte de adestrar falcões estava com um de ouro, com incrustrações de diamantes. Claro que me lembrei de Cayetano Gentile, que tinha aprendido com seu pai as artes da falcoaria, primeiro com gaviões nativos e depois com exemplares magníficos transplantados da Arábia feliz [...] (GGM, 2005, p. 375).
Nas linhas do romance podemos reconhecer o narrador como o próprio García Márquez. Reuter distingue o escritor, ser humano que escreve o texto, e o narrador, ser que “[...] só existe no texto e mediante o texto, por intermédio de suas palavras.” O narrador conta a história e o escritor cria a narrativa. Por ser uma história híbrida, em Crônica essa linha divisória pode ser contestada visto que é o próprio Gabo que narra a história. Seguindo Gérard Genette, Reuter (2007) apresenta duas maneiras de se narrar uma história, uma em que o narrador está ausente da história que conta (heterodiegética) e outra em que ele está presente na história como um personagem (homodiegética). Crônica se caracteriza como uma narrativa homodiegética, todavia, como personagem-narrador, no dia do assassinato, García Márquez participa dos fatos de maneira bem figurativa, mas como condutor da narrativa é ele que seleciona o que vai contar e o jeito
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de contar. Também é responsável por escolher como, quando e qual fala do entrevistado será acrescentada ao texto, exatamente como faz o repórter no exercício de sua profissão. Em seu papel de narrador, García Márquez apresenta a situação, descreve seus personagens e também os deixa falar. Após 27 anos, o personagem-narrador volta ao povoado para coletar depoimentos e recontar a história, não com a onisciência típica dos romances, mas como um jornalista que desenha sua narrativa sobre as pistas de suas fontes. Brait lembra que esse recurso de utilizar uma personagem secundária para narrar a história da personagem principal é uma técnica usada em romances policiais, em que o narrador cria um clima para discretamente envolver o leitor e deixá-lo simpatizado pelo protagonista. O “personagem-narrador funciona como a lente privilegiada através da qual o leitor recebe e visualiza as personagens” (1998, p. 64). Os lugares também participam do efeito de construção do real (REUTER, 2007). García Márquez não revela o nome do povoado onde a história se desenrola, mas o leitor que conhece a sua biografia consegue perceber que o povoado sem nome é a cidade de Sucre, onde a família García Márquez morou em uma casa às margens do rio, como é descrito no livro: “embora o lugar jamais tivesse tido barcos a vapor, como a cidade do romance tem, nem carros; e Cartagena por certo não podia ser vista à distância. Mas, na maioria dos outros aspectos, a cidade é quase idêntica à original” (MARTIN, 2010, p. 497). Sem muita funcionalidade, além de trazer o bispo, o rio que banha a cidade fictícia é um elemento caracterizador de Sucre, a cidade real. Com relação à importância funcional, os lugares de Sucre funcionam como uma moldura para ambientar a história, mas em alguns momentos se tornam determinantes para o destino da trama. Exemplo: o local onde os gêmeos esperavam Santiago para matá-lo. Foram, porém, esperá-lo na casa de Clotilde Armenta, pois sabiam que por ali passariam meio mundo, menos Santiago Nasar. “Era o único lugar aberto”, declararam ao juiz instrutor. “Cedo ou tarde passaria por ali”, disseram a mim, depois de absolvidos (GGM, 2004, p. 76).
Como o próprio Gabo diz, sua narrativa está calcada na realidade, assim seus personagens sendo eles, reais ou não, também são moldados a partir da realidade do povo colombiano, histórias vividas e observadas pelo repórter e pelo escritor García Márquez. Histórias que ganham forma em narrativas fantásticas performatizadas por seres inspirados na vida e nos costumes latino-americanos. Segundo Motta “As narrações mediam entre o mundo canônico da cultura e o mundo mais idiossincrático das crenças, dos deuses e das esperanças.
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Fazem com que o excepcional seja compreensível, reiteram as normas sem serem didáticas” (2004, p. 09). Mesclando fatos reais e liberdade criativa, Crônica de uma morte anunciada se mostra uma narrativa realista, mas fantástica. Realista por recontar um assassinato verdadeiro em uma linguagem simples, direta e libertária como a da reportagem e fantástica pela incapacidade dos habitantes impedirem o assassinato que, na ficção, os assassinos não queriam cometer. Nessa obra, a fronteira que distingue realidade e ficção se confunde tanto, que o autor ganhou um processo por denegrir a imagem dos irmãos Víctor Manuel e José Joaquín Chica Salas: No dia 7 de maio, um advogado de Bogotá, Enrique Alvares, processou García Márquez reivindicando meio milhão de dólares por denegrir os irmãos retratados no romance, pois ambos haviam sido “inocentados” do crime, enquanto o livro os mostrava como assassinos. Só de pensar no infeliz, e até mesmo possivelmente inocente, Cayetano Gentile, que de fato fora assassinado – ainda que, de acordo com a lei, não – pelos irmãos trinta anos antes, tudo aquilo parecia acrescentar insulto à injúria, como vingança. Alguns dos outros “personagens centrais” do livro, pessoas retratadas nele, ou que achavam ter sido, além de outros membros familiares, reuniram-se na Colômbia, nas quais a maioria das classes profissionais sempre teve uma sólida educação literária, fariam distinções literárias sutis entre a verdade histórica e a ficção narrativa, e a liberdade do autor seria retumbantemente mantida (MARTIN, 2010, p. 504).
Diante disso, fica provado que - excluindo valores figurativos ou exacerbados próprios do realismo mágico - o livro reconta o triste assassinato de Cayetano. Um crime cometido à luz dos valores morais de uma terra devota e tradicionalista. O estudo da personagem é importante para a classificação do texto, pois “quando se fala em cópia do real, não se deve ter em mente uma personagem que fosse igual a um ser vivo, o que seria a negação do romance” (CANDIDO, 2000, p. 69).
4.4 ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA
Crônica de uma morte anunciada foi traduzida para a linguagem cinematográfica em 1987. O filme, dirigido e adaptado por Francesco Rosi, teve também a colaboração de Tonino Guerra. Contudo, a adaptação para o cinema não causa o mesmo impacto que a leitura da obra. A história do livro foi moldada para a reprodução cinematográfica e várias cenas do filme não estão presentes na obra literária ou, foram modificadas em relação à narrativa original. O narrador, que no texto é quem dá unidade a história, passeando no tempo e encaixando as entrevistas das testemunhas, não convence no filme. No cinema, não há realmente reportagem, há uma atmosfera de recordação.
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Ao fazer essa observação é possível concordar com Wolfe: “Certos romances realistas são bem-sucedidos porque lidam de maneira tão realística, tão eficaz, com a vida mental e a atmosfera emocional de um determinado personagem. Essas histórias são quase sempre desastrosas quando adaptadas para o cinema” (2005, p. 80). Talvez seja por isso, que a Crônica cinematográfica deixe a desejar em relação ao inquietamento provocado pela minuciosa precisão da palavra escrita. Robert Stam afirma que as críticas às adaptações fílmicas de romances disseminam a ideia de que o cinema "vem prestando um desserviço à literatura", julgando os produtos visuais como infiéis à obra literária e deixando a sensação de que o livro é sempre melhor quando comparado ao filme (2008, p. 19 e 20). Segundo ele, quando se diz que uma adaptação foi “infiel” ao original, fica clara a decepção do receptor diante de um produto que não consegue captar a temática narrativa e as características estéticas da obra literária. Mas, antes de tudo, também é necessário questionar se a fidelidade é possível, pois: Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (STAM, 2008, p. 20).
A decepção que ronda as adaptações romanescas no cinema tem origem na construção imagética feita por cada leitor. Mesmo descrito por palavras gravadas no papel - e, portanto, inalteráveis - os personagens, lugares e situações são imaginados de acordo com o conhecimento de mundo do receptor. Ao dar vida a essas construções discursivas, o cinema muitas vezes não oferece um ator como o idealizado por meio da leitura, pela falta de recursos ou a simples limitação da realidade também pode ser que os lugares não sejam idênticos aos descritos no livro. Ao apresentar a releitura da história, o cinema fere os olhos e sentimentos do público que esperava a cópia fiel do romance. A personagem de romance afinal é feita exclusivamente de palavras escritas, e já vimos que mesmo nos casos minoritários e extremos em que a palavra falada no cinema tem papel preponderante na constituição de uma personagem, a cristalização definitiva desta fica condicionada a um contexto visual. Essa circunstância retira do cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o romance comunica suas personagens aos leitores. [...] Essa definição física completa imposta pelo cinema reduz a quase nada a liberdade do espectador nesse terreno (GOMES, 2000, p. 111).
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Diante disso, Stam ressalta: "da mesma forma que qualquer texto literário pode gerar uma infinidade de leituras, assim também qualquer romance pode gerar uma série de adaptações." A adaptação não é a "ressuscitação" do original, mas "uma volta num processo dialógico em andamento" (2008, p. 21). Ou seja, a adaptação cinematográfica de uma obra, nunca será totalmente fiel ao original, pois além de ser transportado para um suporte visual muito mais complexo, o ajuste da história ao novo meio está condicionado à interpretação do roteirista. “O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas não podem, como a obra literária, apresentar diretamente aspectos psíquicos, sem recurso à medida física do corpo, da fisionomia ou da voz” (ROSENFELD, 2000, p. 14). No filme, é mais difícil construir a alma psíquica da personagem observada pelo narrador literário. Paulo Emílio Sales Gomes registra que, o cinema não aprofunda nem amplia os personagens célebres: “No melhor dos casos, o cinema aspira a uma transposição equivalente, mas quase sempre o que faz é reduzi-las a um digesto simplificado e pobre” (2000, p. 116). Indo contra essa lógica, na representação cinematográfica de Crônica, Ângela Vicário não é uma mulher com “um ar de desamparo e uma pobreza de espírito que lhe auguravam um futuro duvidoso” (GGM, 2004, p. 49). Ao contrário, a jovem é decidida e em alguns momentos até um pouco rebelde (como na cena em que discute com a irmã que quer lhe convencer que não há melhor partido que Bayardo San Román). Ornella Muti, atriz que dá vida à Ângela, concede um caráter forte e ao mesmo tempo resignado à personagem marcada por sua própria desgraça. Gomes recorda que a personagem do cinema “[...] nos impõe até os ínfimos pormenores o gosto geral do tempo em que foi filmada” (2000, p. 117). A interpretação de Muti foi a melhor revelação da Crônica em imagens cinematográficas. Quando escreve sobre os recursos de construção do new journalism, Wolfe afirma que a construção cena a cena e os diálogos são técnicas melhor aproveitadas no cinema que no texto impresso. Enquanto o ponto de vista e o detalhamento do status de vida funcionam melhor na narrativa escrita (2005, p. 80). Isso pode ser facilmente observado em Crônica, já que é perceptível que no filme algumas entrevistas concedidas ao narrador do livro foram substituídas por diálogos entre os próprios personagens, pois o diálogo é mais interessante para o cinema. No que diz respeito ao status de vida retratado no filme, percebese que Bayardo e Santiago são ricos, mas não há ênfase entre a diferença social entre eles e a família Vicário como no romance. O "leque de técnicas cinematográficas" possibilita a visualização dos diversos tempos e espaços que constroem a narrativa. "Aqueles que afirmam que ao filme
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inerentemente falta a ‘flexibilidade’ do romance esquecem-se destas versáteis possibilidades" que ele oferece. “O cinema foi muitas vezes modernista (e pós-modernista); o problema é que seu modernismo não costumava tomar a forma das adaptações” (STAM, 2008, p. 33 e 34). Essa é a maior crítica à adaptação de romances modernos, em que a estética visual do cinema não consegue acompanhar a estética estilística da narrativa escrita. Possivelmente é isso que ocorre em Crônica; o filme não consegue resgatar a ideia de reportagem embutida no livro. Na verdade, o que a narrativa cinematográfica propõe é um ar nostálgico em que o narrador procura explicação para a morte de seu “melhor amigo”. A releitura cinematográfica fica mais perto de uma história de amor entre Bayardo San Román e Ângela Vicário do que de uma reportagem detalhada sobre o assassinato de Santiago Nasar. Exemplo disso é a inversão da sequência final da história: no filme a concretização do assassinato não encerra a história idealizada por Gabo, a sequência é antecipada para que a narrativa termine com a volta de Bayardo para a esposa repudiada. No fim, os dois personagens têm o seu final feliz. “Independentemente de mudanças de gênero e críticas ideológicas, cada meio tem sua ‘cegueira’ e ‘percepção’. O cineasta, algumas vezes, vê o que o romancista não conseguia enxergar”. A adaptação se torna uma nova forma de “ver, ouvir e pensar o romance”, dando vida ao que só pode ser representado através do filme (STAM, 2008, p. 468). Mesmo assim, é possível afirmar que o filme está muito aquém da riqueza narrativa de García Márquez, que prezava por todos os detalhes – por mais supérfluos que fossem – para realçar o significado de suas histórias.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
García Márquez apresenta a história como Crônica, mas a obra é vendida como romance e narrada como reportagem. Não há dúvidas de que se trata de uma construção híbrida. Mas, como classificar esse texto que tem o alicerce no real, se vale da narrativa jornalística e está permeado de detalhes fictícios, tentando “recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória”? (GGM, 2004, p. 13). Já escreveu Motta: “Narrar é uma atitude, quem narra quer produzir certos efeitos de sentido através da narração” (2004, p. 08). Este trabalho apresenta uma leitura possível e plausível em relação à característica híbrida dessa obra. No Brasil, Crônica não seria crônica, pois tal narrativa é caracterizada pelo tom sarcástico, despreocupado e opinativo, sobre os fatos corriqueiros do dia a dia. A crônica brasileira tem um toque de brincadeira e poesia. Para os hispanoamericanos esse gênero apresenta uma grande semelhança com a reportagem. Conforme Antonio Candido (2000), a negação do romance por meio de personagens reais, como faz Gabo na escrita de sua obra, implica na afirmação do livroreportagem. Crônica poderia ser um livro-reportagem se García Márquez não tivesse ficcionado alguns elementos e situações para dar mais relevância e atratividade ao texto. No livro-reportagem, a mensagem jornalística recebe tratamento literário para melhorar sua estética e ser agradável à leitura. Na obra analisada, o escritor inverte essa lógica e utiliza técnicas jornalísticas para construir uma história mais ou menos real. Entre as obras consultadas para este trabalho, observa-se que García Márquez coleciona dois textos que são claramente livros-reportagem: Relato de um Náufrago (1970) e Notícia de um sequestro (1996). O primeiro se encaixa na categoria depoimento e o segundo é um livro-reportagem denúncia, que narra a angústia de dez sequestrados capturados pelo narcotraficante colombiano Pablo Escobar. Nessas obras, o realismo mágico dá lugar às angústias e incertezas da realidade. Realidade traduzida pela experiência do jornalista e pela vocação do escritor. Por meio das pesquisas e reflexões feitas até aqui, observa-se a dificuldade em classificar um texto de natureza híbrida. Crônica não é só romance, nem só reportagem, mas também não é um livro-reportagem. Como híbrido, pendendo tanto para o lado do jornalismo como para o da literatura, é possível que esta construção tão peculiar se encaixe nas definições de romance-reportagem ou ficção jornalística. A classificação, em um ou outro
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gênero, depende do olhar de quem analisa os elementos que compõem a narrativa, pois nem o jornalismo nem a literatura são ciências exatas. García Márquez “[...] sempre assegurou que, longe de ser um ‘realista mágico’, ele era apenas um ‘pobre notário’, alguém que copia o que é colocado sobre a sua escrivaninha” (MARTIN, 2010, p. 207). Entretanto, é evidente que o colombiano tinha o talento e a habilidade necessária para encontrar as precisas palavras que traduziam a realidade que lhe saltava aos olhos. Gabo exacerbou e modificou a realidade, mas contou o fato. O processo judicial por denegrir a imagem dos irmãos Chica Salas é a maior prova de que a obra não foge tanto ao real, mas o recria. Se no romance-reportagem é permito contar “uma história” no lugar “da história”, então Crônica é um romance-reportagem. Mas, se o analisador acha que a verdade deve prevalecer no romance-reportagem, assim como no livro-reportagem, Crônica se torna uma obra de ficção jornalística, em que o escritor parte de um fato real, mas reconta a história amparado pela liberdade ficcional. Após toda a pesquisa para a produção deste Trabalho de Conclusão de Curso, acredita-se que Crônica é um romance-reportagem, por ser “uma espécie de falso romance e falsa reportagem”, que emprega recursos do jornalismo e da literatura ao apresentar uma versão possível, para uma história chocante que revela o quão machista e arcaica era - e ainda é - a sociedade latino-americana. É fato que o jornalismo afastou o caráter subjetivista da literatura e firmou seu discurso na objetividade e na valorização da informação, mas continua tendo a literatura como base de suas origens e por vezes recorre a ela para construir um mundo mais poético, como vemos nas reportagens dignamente trabalhadas. A intertextualidade de gêneros presentes em Crônica permite que o texto transcenda o jornalismo para alcançar a universalização da literatura. O discurso que fundamenta o texto de Gabriel García Márquez está amparado na dupla formação do escritor. Em Crônica, ele se vale dos conhecimentos do jornalismo e da literatura para narrar uma obra que fica entre a realidade e a ficção. Nesse sentido, o propósito dessa investigação foi cumprido: caracterizar Crônica de uma morte anunciada como uma obra híbrida, em que o jornalista García Márquez e o escritor García Márquez trabalham juntos para reconstruir a história do assassinato de Cayetano Gentile. Em seu papel de narrador-personagem, Gabo afirma que “nunca houve morte mais anunciada”. Ao propor uma narrativa realista, resgatando lembranças das memórias alheias, o escritor fica reduzido aos saberes humanos e não consegue esclarecer o
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mistério acerca do assassinato: Afinal, Santiago, ou melhor Cayetano, é ou não culpado pelo crime que lhe custou a vida? García Márquez também não conhece a verdade. Sem resposta, no leitor permanece a indignação pela brutalidade do assassinato e pela falta de vontade dos moradores em impedir a tragédia.
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