Mulher negra: um olhar cartográfico sobre a representação e estigmatização nos meios de comunicação

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RUTHE DE OLIVEIRA

MULHER NEGRA: UM OLHAR CARTOGRÁFICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Londrina 2014


RUTHE DE OLIVEIRA

MULHER NEGRA: UM OLHAR CARTOGRÁFICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Reginaldo Moreira

Londrina 2014


RUTHE DE OLIVEIRA

MULHER NEGRA: UM OLHAR CARTOGRÁFICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Orientador: Prof. Dr. Reginaldo Moreira Universidade Estadual de Londrina - UEL

____________________________________ Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio Universidade Estadual de Londrina - UEL

____________________________________ Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos Universidade Estadual de Londrina - UEL

Londrina, _____de ___________de _____.


Dedico este trabalho a Aisha, caso-guia desta

pesquisa,

interrompida brutalidade

que

teve

sua

precocemente do

racismo,

vida pela

presente

na

estrutura social deste país. Graças a ela pude me encontrar de forma tão intensa e devastadora. Que seja sempre lembrada. Dedico,

também,

a

minha

mãe

(in

memorian) por ter plantado em mim o desejo pelo conhecimento. Agradeço a ela, também que conseguiu, dentro de suas limitações, ser a mulher negra mais sábia que com quem tive o prazer viver.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Reginaldo Moreira, por ter surgido, não por acaso, de forma tão especial em minha trajetória. Agradeço pelo afeto que não cabe em palavras, pela paciência, compreensão e ternura. E por ter me auxiliado, talvez sem consciente intenção, neste processo de autoanálise e autoafirmação. Agradeço a Deus por não ter desistido de mim e, principalmente, por me fazer entender que sou livre. Agradeço aos meus professores da educação infantil, que me ensinaram a ter prazer na leitura. Aos professores do ensino médio por terem me ajudado a entender que eu posso alcançar muitos objetivos, e com isso, me incentivarem a continuar. Agradeço aos professores da graduação, por me ajudarem a entender que eu posso ser suficientemente autônoma para perseguir os meus objetivos. Agradeço às minhas irmãs Marta, Rosa e Ester, que tiveram paciência comigo, e que me apoiaram. Em especial, à minha irmã Marta, pelo apoio financeiro nos últimos meses. Agradeço aos amigos que entenderam os diversos momentos que não pude estar presente, em especial à minha querida Aline. E quero agradecer a contribuição de Ligia Modena que me possibilitou o contato com a família de Aisha, o caso-guia desta pesquisa.


O que a mem贸ria amou ficou eterno. Ad茅lia Prado


OLIVEIRA, Ruthe de. Mulher Negra: um olhar cartográfico sobre a representação e estigmatização nos meios de comunicação. 2014. 110 folhas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social - Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014.

RESUMO

Na presente pesquisa, investiguei o processo pelo qual a imagem da mulher negra é retratada nos meios de comunicação. A metodologia aplicada neste trabalho é a cartográfica, que pressupõe que o pesquisador esteja implicado no processo da pesquisa. Para aplicar essa metodologia, desenvolvi uma cartografia da trajetória de vida de uma mulher negra, Aisha1, que sofreu violentamente a dor do racismo sobre sua história. O objetivo da cartografia, nesta pesquisa, é possibilitar uma descrição mais humanizada do caso. Para concluir, levantei uma hipótese: a aproximação da cartografia e o new journalism, pelo caráter humanizador de ambos e por sua natureza contra hegemônica. Palavras-chave: Racismo institucional; estereótipos; mulher negra; cartografia.

1

Nome fictício do caso-guia desta pesquisa.


SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 9

1.1

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E MÍDIA ...................................................... 12

2

JUSTIFICATIVA........................................................................................ 16

2.1

INDÚSTRIA CULTURAL E MÍDIA ...................................................................... 16

2.2

INDÚSTRIA CULTURAL A SERVIÇO DA DILUIÇÃO DE CONFLITOS ....................... 17

3

METODOLOGIA ....................................................................................... 21

3.1

O PAPEL DO CARTÓGRAFO ........................................................................... 23

3.1

O

CARTÓGRAFO

COMO

PESQUISADOR

MILITANTE

E O

PROCESSO

DE

AUTOANÁLISE NA PESQUISA CARTOGRÁFICA ................................................ 25

4

CASO-GUIA .............................................................................................. 34

4.1

A ENCANTADORA AISHA

5

CARTOGRAFIA ........................................................................................ 37

5.1

PERCURSO PERCORRIDO

5.2

PLATÔ: FAMÍLIA ............................................................................................ 40

5.3

PLATÔ: AMIZADES ......................................................................................... 44

5.4

PLATÔ: VIOLÊNCIA ........................................................................................ 46

5.5

PLATÔ: RACISMO .......................................................................................... 50

5.6

PLATÔ: AMEAÇAS ......................................................................................... 54

5.7

PLATÔ: PÓS-TRAUMA .................................................................................... 56

5.8

PLATÔ: MÍDIA

.............................................................................. 34

............................................................................ 37

............................................................................................... 58

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 66

ANEXOS ................................................................................................... 71 ANEXO A – DEPOIMENTOS ................................................................... 71


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1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa pretende analisar a representação das mulheres afrodescendentes brasileiras nos meios de comunicação, por meio de uma cartografia2 da vida de uma dessas mulheres, a Aisha3. A cartografia é um método de acompanhamento de um campo sensível ao mesmo tempo em que é, também, o método de apresentação do percurso. Optei por me identificar na pesquisa, pois a metodologia utilizada pressupõe que o pesquisador seja um sujeito implicado do processo da pesquisa, portanto auto-analítico. Além disso, o ethos cartográfico permeia toda a pesquisa, o que garante uma relação direta entre eu-pesquisadora, caso-guia e questões de raça. Quando

falamos

em

racismo,

geralmente,

causamos

certo

desconforto, provocando sentimentos negativos, seja de revolta, tristeza ou até mesmo negação. No entanto, é fato que o racismo é uma violência que não deve ser tolerada, por se tratar de violação da integridade humana, pois essa prática nega a humanidade da vítima em questão. Legalmente a escravidão foi extinta há mais de 120 anos, no entanto, não houve ao menos a tentativa de inserção dos recém-libertos afrodescendentes na sociedade brasileira. Em lugar disso, no período pós-abolição surgiram medidas violentas de controle de natalidade, como solução para o que consideravam um problema, o crescimento dessa população. A

esterilização

compulsória

das

mulheres

economicamente

desfavorecidas, em maior parte negras, foi transformada em lei nos EUA, em 1907. Essa medida foi criada baseada na doutrina da eugenia, que tinha status de disciplina científica. Essa suposta ciência foi criada no início do século XX, por Francis Galton, na Inglaterra, baseado na teoria do evolucionismo, de Charles Darwin. A doutrina tinha o objetivo de implantar um método de seleção humana, baseado em premissas biológicas (DIWAN, 2007). O objetivo principal da eugenia é a seleção humana pela busca de um tipo ideal, criando o corpo saudável do novo homem e da nova sociedade. Para isso, defendiam medidas como a restrição de 2

A cartografia é uma metodologia proposta por pelos filósofos Deleuze e Guattari, e será apresentada no capítulo de metodologia. 3 Aisha é o caso-guia desta pesquisa. Seu nome foi modificado, pois faz parte metodologia. Apresentarei mais informações sobre a personagem e assim como sua trajetória de vida no capítulo 4, intitulado de caso-guia.


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casamentos miscigenados, impedindo que os chamados degenerados procriassem, com o discurso de que as condições de vida do indivíduo estavam diretamente ligadas a fatores hereditários. No Brasil, a disciplina eugênica aparece de maneira mais sutil, por meio do que se chamou de “eugenia positiva”, viés da doutrina eugênica em que se priorizava o estímulo ao higienismo e à profilaxia, por meio do saneamento básico, assistência pré-natal e ao parto, cuidados com a nutrição e atividades físicas, e o controle e tratamento de doenças. Além disso, polêmicas medidas anticoncepcionais e de esterilização em massa de mulheres, de classes desfavorecidas, surgiram nas décadas de 1970/80, como resquícios dos métodos eugenistas (WERNECK, 2004). Não bastasse a violência da suposta ciência do melhoramento racial, a maior parte dos afrodescendentes brasileiros ainda sofre com a negação de seus direitos básicos. No Brasil - um país multiétnico e multicultural - ainda defende-se uma suposta democracia racial4, em que se afirma - com argumentos bastante equivocados - que o racismo não existe mais, afinal ‘somos todos iguais’. No entanto, de acordo com o geógrafo Milton Santos (1996/1997) esse falso discurso de igualdade está longe de ser realidade, uma vez que o negro, no Brasil, tem sua cidadania mutilada. “Poderíamos traçar a lista de cidadanias mutiladas neste país. Cidadania mutilada no trabalho, através das oportunidades de ingresso negadas. Cidadania mutilada na remuneração, melhor para uns do que para outros. Cidadania mutilada nas oportunidades de promoção. Cidadania mutilada também na localização dos homens, na sua moradia. Cidadania mutilada na circulação. Esse famoso direito de ir e vir, que alguns nem imaginam existir, mas que na realidade é tolhido para uma parte significativa da população. Cidadania mutilada na educação. Quem por acaso passeou ou permaneceu na maior universidade deste estado e deste país, a USP, não tem nenhuma dúvida de que ela não é uma universidade para negros (...) E o que dizer dos novos direitos, que a evolução técnica contemporânea sugere, como direito à imagem e ao livre exercício da individualidade? E o que dizer também do comportamento da polícia e da justiça, que escolhem como tratar as pessoas em função do que elas parecem ser?” (SANTOS, 1997; p. 134)

É notório que essa chamada mutilação da cidadania, é fruto da desigualdade presente na estrutura social do país, baseada no racismo. Entretanto, não se pode enxergar a prática do racismo estrutural sem uma análise do processo civilizador do Brasil, com base no escravagismo. É a partir dessa análise que se vê,

4

A ideologia da democracia racial foi difundida por Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande e Senzala. Essa ideologia está impregnada no imaginário social brasileiro para deslegitimar a impacto destrutivo do racismo.


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claramente, as consequências dessas práticas, que afetam diretamente a forma que o negro é representado na sociedade, e consequentemente na mídia. Os discursos racistas por trás de produtos da mídia, principalmente do entretenimento, materializados nos programas de humor, nas novelas, cinema e propaganda, são influenciados por um padrão que define o lugar do negro no imaginário social. Os lugares simbólicos destinados aos afrodescendentes nas mídias estão diretamente ligados à subalternidade. Com frequência se relaciona os indivíduos negros à criminalidade, como em vários papéis em telenovelas, conforme demonstrado no documentário A negação do Brasil, de Joel Zito Araújo (2000),reforçando assim os estereótipos ligados aos afrodescendentes. O mito de que homens negros são violentos, desocupados, malandros ou criminosos perpetua a representação desse grupo historicamente discriminado. A ideia de representações sociais foi criada na Europa no começo dos anos 1960, pelo psicólogo social Serge Moscovici. Consiste em um agrupamento de ideias, explicações e crenças de um determinado grupo social sobre objetos, pessoas e acontecimentos. Essa teoria surgiu por meio de estudo do psicólogo, e seu objetivo é estudar e explicar os fenômenos sociais a partir da perspectiva coletiva, mas com foco na individualidade. Essa teoria defende que a imagem, como simbologia social, prevalece sobre a realidade. Para Durkheim (1978), as representações sociais podem ser entendidas pela maneira como a coletividade representa a si própria e suas relações com os objetos que a cercam. O sociólogo Erving Goffmann (1988) explica que o estigma diz respeito a uma qualidade ou marca socialmente desaprovada ou desvalorizada, que faz com que o indivíduo ou grupo social estigmatizado seja visto como inferior e indesejável. Para o autor, o estigma pode se apresentar em várias formas, como as deformidades físicas; desvios de comportamento, como os vícios, distúrbios mentais e reclusão; e os estigmas tribais, ligados à raça, nação e religião. No caso dos afrodescendentes, essas marcas são as características fenotípicas. O processo psicossocial de depreciação de determinado grupo social provoca efeitos nocivos no indivíduo. O autor afirma que: um indivíduo que poderia ser facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que se pode impor atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. (…) Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um


12 estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. (GOFFMANN, 1988; p. 7, 8)

As consequências das práticas racistas estão presentes na sociedade e refletidas na mídia, reforçando os espaços perpetuamente destinados ao indivíduo negro, homem e mulher. Entretanto, o impacto do racismo é significativamente mais perverso sobre as mulheres, ao se potencializar os valores sexistas na sociedade, materializado, principalmente, no assédio sexual, assédio moral e violência sexual.

1.1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E MÍDIA

Pierre Bourdieu (1983) discorda da existência de opinião pública, ele defende que existe um tipo de opinião correspondente à ideia de opinião pública, que são as opiniões mobilizadas, opiniões constituídas, ou grupos de pressão mobilizados em torno de um sistema de interesses. Além disso, o autor encara a TV como um instrumento de registro em que se torna um mecanismo de criação de realidade (BOURDIEU, 1997). Portanto, ele reconhece a influência exercida pelos meios de comunicação sobre os indivíduos. Sobre a influência da TV no processo de formação de opiniões, Nelson Adrian (2012) afirma: A televisão ainda é no Brasil o meio de comunicação de massa mais popular e presente nos lares das pessoas. Apesar de o rádio ter maior abrangência, a televisão atinge quase a totalidade do território nacional. Os produtos e serviços oferecidos nesse meio de comunicação ainda possuem uma grande influência entre as pessoas. (ADRIAN, 2012; p.4)

As representações sociais têm origem histórica e cultural. Num país com níveis altíssimos de desigualdade social e racismo, a representação do negro é amplamente refletida em seus veículos de comunicação, sutilmente ou não, por meio de seus produtos culturais. Por esse motivo, contribui grandemente para a formação dessas representações, no imaginário coletivo, de grupos sociais subalternizados, sejam eles étnicos, político-ideológicos, ou qualquer outro grupo social. No entanto, contrariando a visão da escola de Frankfurt, é importante pensar que a influência


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dos meios de comunicação tem um limite que se situa na capacidade reativa do receptor. Não se pode acreditar que o receptor seja passivo. Não o é. é importante ressaltar que os indivíduos não têm um papel passivo nesse processo e consomem os conteúdos da mídia de massa de forma interativa. A partir dessa perspectiva vários pesquisadores têm estudado a influência dos conhecimentos, características e realidades dos atores sociais sobre os significados que eles dão aos conteúdos da mídia. (ACEVEDO, et. al, 2006 apud: FRIESTAD; WRIGHT, 1994; p.4).

É uma relação mútua, em que a mídia reflete os valores e comportamentos de uma parcela da sociedade, e em contrapartida, a própria sociedade, numa parcela maior ainda, baseia-se nesses valores para construir suas visões de mundo. Desse modo, o comportamento da sociedade é reflexo dos discursos midiáticos e vice versa. Além disso, estudiosos da comunicação, como ARAÚJO (2007) pontua que tais representações afetam, também, na compreensão que esse grupo social tem de si mesmo e a imagem que outros grupos têm dele: A TV brasileira praticamente não oferece a possibilidade de nossa criança afrodescendente ter modelos que promovam a sua autoestima, enquanto que as crianças brancas, especialmente as de padrão ariano, louras dos olhos claros, são hiper-representadas nos comerciais, nas telenovelas e nos filmes. O resultado é óbvio: enquanto a criança negra tem vergonha de sua negritude, de sua origem racial, porque cresce em um ambiente social e educacional de recusas que promovem uma autoestima negativa, a criança branca cresce super paparicada e com uma impressão de que é superior a todas as outras. Portanto, a sociedade – com o seu racismo – provoca distorções tanto nas crianças negras quanto nas crianças brancas. (ARAÚJO, 2007)

Esses retratos são construídos, em grande parte, pelos meios de comunicação, em especial a TV, que fazem com que a sociedade, as autoridades policiais e a própria mídia promovam um tratamento diferenciado ao grupo subalternizado. Rosane Borges (2012), estudiosa de mídia e questões raciais, afirma que: a despeito de algumas mudanças a respeito da imagem do negro, existe uma matriz que se replica, um padrão que define o lugar do negro no sistema de representação. Partimos do entendimento de que os estigmas se repetem, não em termos de conteúdos, mas de articulação. Embora não sejam invariáveis (enquanto formas constituídas da sociedade), os estigmas são invariantes (enquanto estruturas constituintes da sociedade). (BORGES, 2012; p. 188)

Se a vida do homem negro já é quase impossibilitada por causa das


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consequências do racismo, a mulher negra no Brasil é marcada pela dupla discriminação. O machismo aliado ao racismo se torna um ingrediente fatal que perpetua a posição inferior da mulher negra na sociedade brasileira. Nas situações cotidianas pode-se observar o reflexo e as consequências do período da escravidão na vida pessoal das mulheres negras. RIBEIRO (2012) cita CARBY (1987) sobre as consequências desses estereótipos da representação negra feminina: O racismo e o sexismo perpetuam uma determinada representação das mulheres negras, vigente no imaginário social devido à sua posição específica de subordinação histórica. Os marcadores de raça e gênero, associados à vulnerabilidade econômica e outras, resultam em um controle sobre os corpos das mulheres negras qualitativamente diferente daquele vivenciado pelas mulheres brancas. Também pela especificidade da experiência da escravidão, as mulheres negras tiveram mais intenso o controle físico imposto sobre seus corpos e, desprovidas de sua condição de “sujeito”, foram marcadas tanto racial quanto sexualmente (RIBEIRO (2012), apud. CARBY, 1987; p. 190).

As mulheres negras, em muitos casos, são apresentadas como meras portadores de um corpo sensualizado - um desses exemplos é a superexposição de seu corpo na imagem da Globeleza, personagem mulata criada pela Rede Globo para representar a mulher brasileira. Por vezes surgem estereótipos mais sutis, como a imagens retratadas na telenovela ‘O direito de nascer’, em que a personagem de Isaura Bruno fazia uma referência direta à ‘mãe preta’ da literatura brasileira, e o estereótipo da personagem ‘mammy’ dos filmes norte-americanos (ARAÚJO, 2000). Essa personagem é uma mulher sem vida social, sempre a serviço dos patrões. Essa imagem mostra o reflexo da cultura escravocrata ainda presente nas relações de poder relacionadas ao trabalho, reforçando, assim, estereótipos profissionais. Anteriormente, no período escravocrata, de acordo com Gilberto Freyre (2003) era comum a mulher negra servir-se de ama-de-leite dos filhos dos seus ‘senhores’; objeto sexual dos homens brancos e seus filhos, na figura da ‘preta ou mulata fácil’; ou ainda escravas de ganho na prostituição doméstica; entre tantas outras funções (FREYRE, 2003. p. 368; 401). Bell hooks5 (1995), estudiosa estadunidense, discorre sobre a imagem construída no imaginário social da mulher negra nos EUA, situação semelhante à vivida no Brasil: 5

Bell hooks (em letras minúsculas) é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana nascida em 25 de setembro de 1952. Ela escreve as relações de raça e gênero.


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A utilização de corpos femininos negros durante a escravidão como incubadoras pra a geração de outros escravos era a exemplificação prática da ideia de que as “mulheres desregradas” deveriam ser controladas. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representa-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado. Essas representações incutiram na cabeça de todos que as negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental. Dentro das hierarquias de sexo/raça/classe dos Estados Unidos, as negras sempre estiveram no nível mais baixo. O status inferior nessa cultura é reservado aos julgados incapazes de mobilidade social, por serem vistos, em termos sexistas, racistas e classistas, como deficientes, incompetentes e inferiores”. (HOOKS, 1995; p. 469)

Os lugares simbólicos perpetuados às mulheres afrodescendentes no Brasil não são diferentes.

A mulher negra, no período escravocrata, estava

ligada a promiscuidade sexual e essa imagem estereotipada perdura até os dias atuais.


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2 JUSTIFICATIVA

Estudiosos afirmam que é função dos meios de comunicação fazer um retrato fiel dos acontecimentos. No entanto o que se percebe é que as imagens que retratam a população afrodescendente quase sempre são negativas, não levando em consideração que há muitas imagens positivas sobre essa população que precisa ser exposta. Será que os meios de comunicação, por meio das representações estigmatizadas, não teriam uma parcela de responsabilidade na forma em que o indivíduo negro é visto no imaginário coletivo? Por que os veículos de comunicação não falam sobre a prática do racismo institucional, que a cada ano, faz aumentar o número de pessoas, principalmente jovens, executadas pela polícia? Será que a função da mídia, com relação à temática do racismo, não seria se qualificar para derrubar estereótipos e promover um debate consistente sobre as realidades? Se pensarmos a sociedade contemporânea do ponto de vista da economia neoliberal, esses questionamentos nunca terão uma resposta satisfatória. Para entendermos, faz-se necessário uma breve contextualização acerca do conceito de indústria cultural.

2.1 INDÚSTRIA CULTURAL E MÍDIA

Para Marilena Chauí (2008) uma das definições do conceito cultura é o movimento de criação do sentido, é “a ação para dar a pensar, dar a ver, dar a refletir, a imaginar e a sentir o que se esconde sob as experiências vividas ou cotidianas, transformando-as em obras que as modificam por que se tornam conhecidas”. O termo indústria cultural foi criado em 1947, pelos filósofos alemães da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, a fim de mapear a situação da cultura na sociedade capitalista industrial. Para os pensadores, o termo indústria cultural denota a mercantilização da cultura de forma verticalizada, reproduzindo os interesses dos grupos dominantes. A expressão indústria cultural foi criada para substituir o termo, até então usado, cultura de massa. Segundo Adorno, a indústria cultural é organizada e planejada para atender o público/consumidor, por meio da padronização de seus produtos culturais. Ela vende não só mercadorias,


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mas vende imagens de mundo e faz propaganda desse mundo, para que assim permaneça. Segundo os estudiosos, a comunicação de massa faz parte da indústria cultural. Ambos são capazes de atingir um grande número de indivíduos para transmitir um conhecimento. E o jornalismo, como produto dos meios de comunicação, transita dentro desse mercado cultural, em que, amplamente as práticas capitalistas influenciam o modo de pensar dos grupos sociais e indivíduos.

2.2 INDÚSTRIA CULTURAL A SERVIÇO DA DILUIÇÃO DE CONFLITOS Diante dos questionamentos levantados chegamos à dura e real constatação. O papel exercido pela mídia é de manutenção do poder. Este poder é constituído, pelo Estado, que em conjunto com setores econômicos, influenciados também pela Igreja, criou padrões para dominar, deslegitimando as ações dos diversos grupos sociais. Para isso utilizamos meios de comunicação como um dos principais mecanismos de manutenção do poder. Durante muitos séculos Igreja e Estado estiveram diretamente vinculados. No entanto, depois do Iluminismo houve uma ruptura entre os dois poderes. Contudo sabemos que, por tradição, a Igreja ainda tem grande influência sobre as decisões do Estado. Na concepção de WEBER (2004), o poder consiste na possibilidade de impor uma determinada vontade ao comportamento de terceiros. Toda ordem jurídica (não só a "estatal"), por sua configuração, influencia diretamente a distribuição do poder dentro da comunidade em questão, tanto do poder econômico quanto de qualquer outro. Por "poder" entendemos, aqui, genericamente, a probabilidade de uma pessoa ou várias impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo contra a oposição de outros participantes desta. Naturalmente, o poder "economicamente condicionado" não é idêntico ao "poder" em geral. O surgimento do poder econômico pode, antes pelo contrário, ser consequência de um poder já existente por outros motivos. (WEBER, 2004; p. 175)

Para o autor, são as diversas manifestações de poder que podem se transformar em dominação. Neste caso a lógica de dominação do Estado, baseada na economia neoliberal, pressupõe o uso dos diversos poderes na manutenção da ordem já estabelecida, e para isso agem de modo que os conflitos sociais diminuam, ou aparentemente desapareçam. Nesta lógica, o Estado, juntamente com setores econômicos e Igreja, pauta discursos, rege decisões de âmbito nacional, e legitima


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representações sociais por meio dos produtos culturais. Chauí (2008) conclui que nas relações de poder inseridas na cultura, há uma divisão definida: cultura dominante e cultura dominada, cultura opressora e cultura oprimida, cultura de elite e cultura popular. A autora analisa a maneira como essa divisão cultural se dá, e para isso enumera quatro pontos que é preciso ser levado em conta no que diz respeito à produção cultural. Em primeiro lugar, a indústria cultural separa os bens culturais pelo suposto valor de mercado: os produtos caros e raros são destinados à elite; e os baratos e comuns são destinados à massa. Em segundo lugar, cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais. Em terceiro lugar, cria a ideia de um suposto consumidor médio, ou seja: inventa uma figura chamada “espectador médio”, “ouvinte médio” e “leitor médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”, certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”, oferecendo-lhes produtos culturais “médios”. (CHAUÍ, 2008; p. 60)

Em quarto, e último lugar, define a cultura como lazer e entretenimento. A ideia da existência desse espectador/consumidor médio, do qual a autora se refere, cria a imagem de um indivíduo alheio aos acontecimentos sociais. Chauí ainda afirma que: A indústria cultural vende cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso-comum cristalizado, que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova. (CHAUÍ, 2008; p. 60)

Para que haja essa possibilidade de não chocar o consumidor, a indústria cultural trabalha no mecanismo aplacamento dos conflitos sociais em que esvazia o impacto de um determinado problema e o transforma em entretenimento: os meios de comunicação de massa transformam tudo em entretenimento (guerras, genocídios, greves, festas, cerimônias religiosas, tragédias, políticas, catástrofes naturais e das cidades, obras de arte, obras de pensamento). É isto o mercado cultural. (CHAUÍ, 2008; p. 61)

Estudiosos marxistas afirmam que o entretenimento é fundamental para que a indústria cultural, chamada por eles de cultura de massa, mantenham um controle e dominação social, por meio da alienação. Segundo Chauí, o entretenimento é uma dimensão da cultura em seu sentido amplo e antropológico,


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pois é a maneira como determinada sociedade cria os seus momentos de diversão, lazer e repouso. No entanto, o entretenimento se distingue da cultura quando entendida como trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e da arte. Para avaliarmos melhor o significado de indústria cultural e meio de comunicação na contemporaneidade, precisamos levar em consideração a ideia do pós-moderno, isto é, a vida social e cultural sob a economia neoliberal (CHAUÍ, 2008). Sendo assim, afirmar a cultura como um direito é opor-se a política neoliberal, em que transforma os direitos em privilégios de classes. Neste caso, a classe favorecida por esse direito é, sem dúvidas, a classe dominante. É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades (...) Isso significa que as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeito, autônomas e iguais, e, de outro, como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra da vida social e cultural. (CHAUÍ, 2008; p. 70)

Diante desses apontamentos, faz-se necessário que os profissionais da comunicação, que pretendem se contrapor ao modelo hegemônico, procurem criar novas formas de humanização das práticas jornalísticas. Principalmente quando se trata de grupos historicamente discriminados. Durante a graduação eu conheci o new journalism, o chamado jornalismo literário, que vem desempenhando com consistência um papel de humanização no jornalismo, o que eu assemelho ao trabalho de cartografias. Esse gênero jornalístico sempre me instigou muito pela possibilidade de fuga de um padrão do texto jornalístico. A cartografia faz o mesmo na academia, na medida em que é vista como o anti-método, uma fuga ao modelo hegemônico de produção de sentidos. No new journalism, eu vi a possibilidade de praticar o jornalismo com uma dose necessária de subjetividade6, indissociável à prática do jornalismo humanizado. Na pesquisa acadêmica, a cartografia possibilita a aproximação do pesquisador com o tema estudado, pois cartografar, neste caso é se envolver com o caso mapeado a ponto de agir como um antropófago (ROLNIK, 2007), devorando os fenômenos a fim de entendê-los. Criando assim, novas formas de subjetivação7 no sujeito que passa a ter contato com o material produzido na pesquisa.

6

A noção de subjetividade, pensada por Guattari, refere-se à “matéria-prima viva e transformável”, a partir da qual é possível experimentar e inventar novas maneiras de perceber o mundo e de como agir nele. 7 A ideia de modos de subjetivação, defendida por Foulcault, consiste na explicação das maneiras de existir do sujeito. Essa subjetivação pode ser arbitrária, natural/espontânea, ou ligada às ações de resistência, que também


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A escolha temática da pesquisa se deu por meio do meu grau interesse pela complexidade na abordagem ao tema das questões raciais. Mas principalmente, porque sou mulher negra, e como toda mulher negra no Brasil, apesar de todos os esforços do movimento feminista negro, sei como é difícil nos situar na sociedade, que a cada dia nos faz permanecer na escala mais baixa da pirâmide social. Além disso, a escolha do caso-guia da pesquisa se deu por direcionamentos pessoais e afetivos, que me fizeram perceber que há muito mais em comum entre eu/pesquisadora e a pesquisada Aisha. E esses elementos comuns vão garantir uma relação de empatia com o caso-guia. Por fim, penso que a comunicação, e principalmente o jornalismo, poderia se basear em cartografias para buscar entender a realidade do grupo estigmatizado em questão, assim como outros grupos subalternizados na sociedade e nos meios de comunicação. Sendo assim, nesta pesquisa, devolvo a Aisha uma reconstrução, de forma mais humanizada, do relato de sua trajetória de vida por meio de cartografia, em que apresento a descrição do caso-guia.

podem resultar na criação de novas possibilidades de existir.


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3 METODOLOGIA

A metodologia escolhida para desenvolver a pesquisa é a cartográfica. Esta metodologia foi proposta por Deleuze e Guattari (1992), e tem sido utilizada em inúmeros estudos no campo das ciências humanas e sociais, por permitir analisar e investigar paisagens sociais e processos, por meio da observação, e que não podem ser estudados por meio de métodos das ciências naturais.

Além disso, a cartografia visa conectar sujeito, objeto de estudo e

contexto histórico-social, ao contrário dos métodos científicos que isolam o objeto de seus processos históricos e suas conexões com o mundo. O trabalho de pesquisa fundado no método de cartografia, leva em conta que o pesquisador/narrador é um sujeito implicado no processo de pesquisa, portanto é pesquisador e, também, pesquisado, é analisador e analisado (MERHY, 2004).

Na pesquisa com sujeito implicado, a ideia de neutralidade científica é

colocada em xeque, uma vez que, no campo das ciências humanas, não existe pesquisa desinteressada. Portanto o pesquisador é reconhecido como parte do processo de pesquisa. Com isso, o cartógrafo está distante da figura do pesquisador tradicional, que pretende ser sujeito epistêmico, portador de teorias e métodos. Ele, ao contrário, é o sujeito militante, que pretende ser epistêmico. Faz-se necessário explicar que o termo militante, aqui, se refere não ao sentido etimológico, mas a sua ressignificação. Portanto, militante é o indivíduo envolvido em transformações estruturais da realidade local ou global. Militar é participar dessas transformações. Segundo

Rolnik

(2007),

pode-se

cartografar

paisagens

psicossociais, como processos, trajetórias de vida, ou acontecimentos históricos em transformação, portanto, não-precisos. Essas paisagens não são estáticas, pelo contrário, estão em constante construção. A cartografia, de acordo com a autora, é um desenho que é traçado ao mesmo tempo em que ocorrem movimentos de transformações dessas paisagens subjetivas: Paisagens psicossocias também são cartografáveis. A cartografia, neste caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2007; p. 23)


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Esse desmanchamento de mundos do qual a autora se refere, pode também ser chamado de movimento de desterritorialização, ou seja, quando um território perde a força de encantamento, ou ainda, quando os mundos são desconstruídos para a formação de novos mundos. É neste sentido, que se criam novos sentidos e novos modos de subjetivação do sujeito. Rolnik (1998) ainda explica a relação entre analisador/narrador e analisado com uma metáfora da cultura de antropofagia: A inspiração da noção de antropofagia vem da prática dos índios tupis que consistia em devorar seus inimigos, mas não qualquer um, apenas os bravos guerreiros. Ritualizava-se assim uma certa relação com a alteridade: selecionar seus outros em função da potência vital que sua proximidade intensificaria; deixar-se afetar por estes outros desejados a ponto de absorvê-los no corpo, para que partículas de sua virtude se integrassem à química da alma e promovessem seu refinamento. (ROLNIK, 1998; p.12, 13)

A antropofagia, neste caso, como a própria autora explica é o “processo de composição e hibridação das forças” que devora as realidades para construir outras. Esse processo antropofágico só é consistente por meio de cartografias. Moreira (2011) afirma que, para que a metodologia cartográfica seja possível, o pesquisador precisa estar entregue ao processo, e que é por meio da sensibilidade que a viagem do cartógrafo ocorre para mapear a pesquisa. Benjamin (1994) também deixou suas impressões acerca da importância da subjetividade no processo narrativo: A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num seio de artesão – no campo, no mar e cidade – ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em-si da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994; p. 205)

Para Deleuze e Guattari (1992), a cartografia se dá por meio do que chamam de eixos temáticos, ou platôs, que são responsáveis pelo mapeamento da pesquisa. Para entender o conceito de platôs, os autores ainda apresentam o conceito de rizoma, que na Botânica, define o caule de uma planta, que pode ser subterrâneo ou se situar na superfície do solo, com crescimento horizontal. É a extensão do caule da planta que une os inúmeros brotos. Resgatado pelos autores, o conceito de rizoma nada mais é do que estratégia de significações de


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mapeamento. Os rizomas metafóricos dos quais os autores se referem são linhas. São linhas de fuga e de intensidades, que fogem da normalização, das posições fixas em uma estrutura. Ele “é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda”. O rizoma não segue em linha reta, antes, se espalha e se entrecruza com outras raízes e caules, e é formado pelos platôs. Os autores chamam de platô “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma”. Os platôs são as regiões contínuas de intensidades em que o pesquisador se aprofunda para fazer a cartografia. Os platôs também são chamados de eixos temáticos. Moreira (2011) se referiu a esses eixos temáticos como paradas, como paradas em uma viagem cartográfica. Então, entendo que é como se o cartógrafo estivesse em uma viagem, mas à medida que percorre os territórios ele encontra aspectos que lhe chamam a atenção, e esses aspectos continuarão a nortear sua viagem, dando novos sentidos a ela. São os platôs os eixos norteadores da pesquisa cartográfica 8 que aqui serão paradas na viagem pela memória dos depoentes.

3.1 O PAPEL DO CARTÓGRAFO

Rolnik (2007) explica que a cartografia tem caráter sentimental, mas está longe de ser sentimentalismo. Portanto, o termo que melhor a define é o conceito filosófico de afeto, como o ato de afetar e ser afetado. A (...) palavra afetar designa o efeito da ação de um corpo sobre o outro, em seu encontro. Os afetos, portanto, não só surgiram entre os corpos – vibráteis, é claro – como, exatamente por isso, eram fluxos que arrastavam cada um desses corpos para outros lugares, inéditos: um devir. (ROLNIK, 2007; p. 57)

Esses afetos se dão por meio do que a autora chama de corpo 9

vibrátil , ou seja, o corpo que alcança o invisível de forma imperceptível, e é tocado pelo inconsciente. Em Deleuze e Guattari, o conceito de afeto também é 8

Os platôs, ou eixos temáticos, que são as regiões de intensidade dos relatos, utilizados nesta pesquisa estão contidos no final deste capítulo, em que são apresentados minuciosamente as razões da escolha de cada um deles. 9 Segundo a autora, nosso corpo tem duas capacidades: a cortical e a subcortical. Esta segunda capacidade corresponde ao que ela chama de corpo vibrátil, “que por conta de sua repressão histórica nos é menos conhecida, nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos.” (ROLNIK, 2006)


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amplamente utilizado. Para eles, os afetos são como seres ou entidades que possuem uma experiência à parte, Portanto, afetar é atuar sobre outro ser, outro corpo, de forma inconsciente, ou mesmo, intencional. Sendo assim, afeto é a transformação simultânea no corpo e na mente dos envolvidos na cartografia. Foi este afeto, pelo corpo vibrátil, que me tomou quando fui apresentada a esta metodologia. Conforme fui entendendo as implicações envolvidas na análise cartográfica, gradativamente fui afetada por um sentimento estranho e agradável. Estranho, por estar diante de uma metodologia que jamais pensaria ser possível; e agradável, porque me parecia que essa era a resposta que eu buscava quando sentia a necessidade de produzir uma pesquisa significativa, por meio de minhas inquietações relacionadas às questões raciais. Por meio deste método de pesquisa tenho possibilidade de expressar minha subjetividade com liberdade, principalmente se tratando da questão do estigma imposto aos afrodescendentes, sendo eu parte deste grupo. Rolnik (2007) justifica de forma consistente o que suponho. Para ela, a tarefa do cartógrafo é dar voz aos afetos, e por isso, espera-se do pesquisador que ele “esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias”. Para a autora, tudo o que ajuda a criar sentido, interpretar a realidade, é bem vindo. Além da própria percepção do pesquisador, outra linguagem que contribui, grandemente, para a criação de sentidos na pesquisa são os relatos de depoentes. Moreira (2011) fala sobre a prática de colher depoimentos como forma de criação de sentido e legitimação da narrativa: as fontes depoentes são importantes contribuintes para a aplicação metodológica, e a associação desses múltiplos narradores, com a documentação escrita, é que validam e legitimam as narrativas. Esses cruzamentos de dados entre as narrativas dos próprios depoentes, como a documentação escrita, valida a veracidade dos fatos narrados. Na inexistência de documentos que comprovem as narrativas, a metodologia vale-se da repetição dos acontecimentos no próprio discurso narrado, para ampliar a veracidade do que foi dito. (MOREIRA, 2011; p. 22)

Sendo assim, o papel do cartógrafo passa a ser o de inverter o sentido tradicional de método de pesquisa, que se orienta por modelos estruturais prontos e metas específicas, afinal, cartografar é buscar/criar sentido às paisagens subjetivas, portanto complexas, por meio de subjetividade. O exercício de cartografar


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convoca o pesquisador a desenvolver sua cognição de forma mais efetiva, capaz de reinventar sentidos, e não apenas reconhecê-los.

3.1 O CARTÓGRAFO COMO PESQUISADOR MILITANTE E O PROCESSO DE AUTOANÁLISE NA PESQUISA CARTOGRÁFICA

O termo pesquisador militante surgiu a partir da participação de militantes de movimentos sociais em pesquisas relacionadas à sua área de interesse e militância. Por esse motivo, o que define o pesquisador militante é o compromisso com a realidade estudada, sendo este pesquisador militante de movimentos sociais organizados, ou não (FERNANDES, 2001). Santos (2012) afirma que a “pesquisa militante ou participação militante do pesquisador surgiu pela inquietação de pesquisadores que almejavam a compreensão do cotidiano de uma parte da sociedade: as classes subordinadas.” Por esses motivos identifico-me como pesquisadora militante, pelo meu comprometimento com as questões relacionadas à minha área de interesse, a da militância cotidiana antirracista. Para complementar a discussão, Merhy afirma que o saber militante, ou seja, o produto resultado da pesquisa militante, por ser autoanalítico, faz o produtor-pesquisador ressignificar a si mesmo e o sentido de seus fazeres: A produção deste saber militante é novo e autoanalítico, individual e coletivo, particular e público. Opera sob os vários modos de se ser sujeito produtor do processo em investigação e em última instância interroga os próprios sujeitos em suas ações protagonizadoras e os desafios de construírem novos sentidos para os seus modos de agir, individual e coletivo. Interroga e pode repor suas apostas e modos de ação. Ao passar pela autoanálise das implicações do sujeito, acorda-o do seu silêncio instituído e abre-se para novos sentidos e significações para os fenômenos , reconhecendo-se como seu produtor , ressignificando a si e os sentidos de seus fazeres. (MERHY, 2004; p. 13)

Esta ressignificação está clara em minha consciência desde que me vi diante da possibilidade de desenvolver esta pesquisa. A metodologia cartográfica, por ser um método de pesquisa participativa, pressupõe a autoanálise (MERHY, 2004). Para desenvolver esse processo de autoanálise, apresento a seguir um memorial em que exponho parte da minha trajetória de vida, minha tomada de consciência como mulher negra, especialmente no período de universidade, e a possibilidade de me transformar em agente transformadora da minha própria realidade.


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Não consigo encontrar ao certo, em minha memória, o exato momento em que tomei consciência de que eu era negra. Imagino que o início desse reconhecimento ocorreu na infância. Lembro-me de uma experiência, aos aproximados seis anos de idade, em que, na escola informal em que eu estudava com minhas irmãs, no Paraguai, sem motivo aparente, fui chamada de feia por um garoto, não-negro, da mesma idade. Aquela declaração de alguém que eu considerava meu igual - por sermos crianças - mexeu demais comigo. Lembro-me que naquele dia chorei muito. Acredito que não foi nesta experiência que me descobri como negra, mas que tenha sido um fator desencadeador para que eu me enxergasse como diferente das crianças de outras famílias. Cresci me reconhecendo como diferente. Na adolescência, com uma semi-consciência, vivenciei inúmeras experiências que me revelaram a cruel realidade na qual eu, como afro-brasileira, estava inserida. Também nessa fase, eu me perguntava se aquela imagem de mulher negra sensualizada, que eu via nas novelas, seria a única realidade possível para mim. Somente na idade adulta eu passei a refletir sobre a condição do negro na sociedade brasileira, sobretudo, sobre a posição da mulher negra nesta sociedade, que além de racista, é extremamente machista. Enfim, foi na universidade que tomei consciência do papel imposto à mulher negra. A oportunidade de cursar uma faculdade me fez enxergar uma chance de dar um novo sentido a minha existência, para além do mercado de trabalho. Prestei o vestibular para jornalismo no final de 2008. O período coincidiu com o início de minha participação como membro de uma igreja evangélica. Eu discordava de diversas ideias presentes no sistema daquela igreja, mas decidi frequentar porque sentia a necessidade de desenvolver minha espiritualidade e, por ter herança protestante na família, imaginava que aquele seria o destino único de meu desenvolvimento espiritual. Em 2009, cheguei à universidade bastante empolgada. Na primeira semana de aula, tive o primeiro contado com um professor que propôs que cada um se apresentasse. Chegada a minha vez, antes mesmo que eu pudesse me apresentar, o tal professor me indagou se eu havia me inscrito no vestibular por cotas. Ele provavelmente tinha conhecimento da existência de estudantes cotistas no curso, naquele ano. Percebi, nas entrelinhas da pergunta, a crítica pessoal dele em relação a este tipo de ação afirmativa. A minha resposta foi imediata, eu disse “sim, eu sou cotista, por quê?”. E ele, para não estender o polêmico assunto decidiu


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deixar para lá. Mas confesso que aquilo me inquietou, me incomodou muito. Eu, que imaginava que a universidade estaria aberta para mim, me deparei, na primeira semana de aula, com o que eu considerei, à época, como um preconceito implícito. O sistema de cotas tinha sido implantado há quatro anos na universidade. O debate acerca do assunto era frequente nos corredores da academia e, sem dúvidas, o assunto predileto dos membros do movimento anticotas, que apesar de não se mostrar organizado, revelava seu perigo.

Essa

movimentação anti-cotas tomava como verdade a falácia de que esse tipo de política pública é discriminatória. Confesso que antes de prestar vestibular, por falta de conhecimento, eu realmente pensava que as cotas aumentariam a discriminação. E esse pensamento foi reforçado, no ano de 2006, depois que assisti uma reportagem sobre declarações racistas contidas em cartazes, pregados em alguns pontos do campus, associando na imagem os negros ao macaco. Tive medo. Mas decidi tentar o vestibular mesmo assim. Passei. E, ao contrário do que imaginava, o preconceito surgiu por parte de um professor, e não de um estudante, o que me assustou muito. Nesse tempo percebia, na academia, a falta de análise crítica sobre a formação histórica brasileira, e sobre o privilégio de uns grupos em detrimento de outros. Também falta este mesmo senso crítico quando se trata de políticas públicas afirmativas, como as cotas. Muitos acadêmicos defendem uma suposta ideia de meritocracia, e eu sempre me perguntava: como se admite a defesa da meritocracia num país socialmente e racialmente desigual? E como se poderia explicar a escassez de professores negros em uma universidade que, à época, era considerada uma das melhores do sul do país? A primeira semana de aula também teve episódio bom. Conheci uma estudante do mesmo curso, negra como eu, que iria se formar naquele ano. Não me lembro quem tomou a iniciativa da conversa, mas me senti bem depois daquele papo. Eu percebia que ela era consciente da importância de nossa presença, como mulheres negras, na universidade e, principalmente, no curso de jornalismo que sempre considerei elitizado. E eu ainda não tinha essa consciência. Eu só iria me convencer dessa importância tempos depois. Naquele período, eu via a chance de estar na universidade como algo que iria renovar e ressignificar toda a minha vida. No início, apostei tudo o que eu tinha nesta oportunidade.


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Nesse período, por pressão do sistema da igreja, comecei a participar ativamente das atividades, o que ocupou muito o meu tempo. Tempo que eu deveria estar me dedicando aos estudos. Fiquei dividida. Eu gostava de algumas atividades na igreja, mas não me sentia muito à vontade lá. Não me reconhecia naquele lugar, me sentia reprimida, em vários aspectos. Sentia que naquele lugar, eu não tinha liberdade para me desenvolver cultural e socialmente. Com o tempo, por trabalhar em período integral e frequentar assiduamente a igreja, não me dediquei como eu gostaria aos meus estudos. Eu acredito que eu poderia ter me envolvido muito mais com as questões raciais desde o início da faculdade. Fui me sentindo não pertencente à universidade, me distanciei das pessoas que eu considerava meus pares, e fui me retraindo. Minha autoestima não era mais a mesma. Terminei o primeiro ano sentindo que o jornalismo, definitivamente, não era para mim. Exausta, eu queria desistir. Mas tinha medo de me arrepender. No segundo ano, tentei mais uma vez. Mas a dificuldade de conseguir ter acesso a um computador, essencial para o desenvolvimento da disciplina de planejamento gráfico, me desanimaram. Por esses motivos, passado alguns meses, tentei trancar a matrícula, mas havia passado o prazo. Afastei-me da universidade por mais algum tempo para repensar minhas decisões. Foi aí que conversei com um professor que sempre me apoiou. Com essa conversa, eu decidi estudar apenas a disciplina de Teoria de Comunicação, que ele lecionava, para garantir que eu pudesse voltar à universidade no ano seguinte. Em 2011, reprovei na disciplina de Planejamento Gráfico. Frustrei-me novamente e quis desistir. Não conseguia me enxergar no jornalismo, na prática do jornalismo. Fui me reprimindo cada vez mais. Apesar dos percalços, eu decidi que não iria desistir. Nesse tempo todo de UEL, eu fui desenvolvendo o desejo de trabalhar com pesquisa. Entrei num projeto, na área de educação, como bolsista. Mas como eu precisava me sustentar, não conseguiria sobreviver com o valor da bolsa. Sai do projeto, mas a vontade de seguir com pesquisa acadêmica permanecia, e o desejo ficava guardado. As questões relacionadas à raça sempre me incomodaram muito, mas por não ter vínculo direto com militantes e não ter histórico de militância na minha família, eu somente sofria, resignada sem conseguir desenvolver um conhecimento acerca dessas questões, e poder me expressar.


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Foi na universidade, com o tempo, que fui tomando consciência de que tenho um compromisso com as questões relacionadas à raça. Tenho passado, constantemente, por processos de autoavaliação e por consequência, de autoafirmação. As disciplinas teóricas do curso de comunicação me fizeram ver novas possibilidades. Nesse período comecei a participar do LEAFRO (Laboratório de Cultura e Estudos Afro-brasileiros), projeto de pesquisa sobre relações raciais do curso de Ciências Sociais na universidade. Com essa participação, passei a ter contato com materiais acadêmicos de diversos autores que trabalhavam com as questões raciais. Foi a partir desse projeto que passei a ressignificar minha escolha de graduação. Como mulher negra, não me vejo, e nunca me vi, representada pelos meios de comunicação. Tenho a convicção de que esta é a realidade da maioria das mulheres negras no Brasil. A publicidade, as novelas, o cinema, as revistas, os jornais e telejornais, deturpam a nossa real identidade. Pensei então “se eu, como mulher, negra, estigmatizada, com minha imagem alterada pelos meios de comunicação, não fizer algo significativo com minha indignação, então o que mais eu posso fazer?”. Eu sempre desejei abordar um pouco da minha subjetividade na minha pesquisa de conclusão da graduação, mas pensava não ser possível por causa da ideia de objetividade científica, cruzada a ideia de objetividade jornalística que aprendemos na academia. Foi aí que me foi apresentada, pelo meu orientador, Reginaldo Moreira, a metodologia cartográfica como possibilidade para a realização deste anseio. Posso dizer com muita segurança, que foi a melhor pista que me indicaram nesse processo. Inicialmente eu havia cogitado analisar a cobertura da greve dos garis do Rio de Janeiro, no início do mês de março, e abordar as questões de estereótipos profissionais ligados à raça. Essa escolha estava ligada ao fato de minha mãe ter sido gari, na minha infância, mas desisti por me identificar mais com as questões relacionadas à mulher negra. Foi a partir disso que escolhi fazer uma cartografia de Aisha, mulher, negra e moradora de uma comunidade do Rio de Janeiro, que foi morta por policiais em março deste ano. Quando fiquei sabendo sobre o caso de Aisha, senti uma angústia muito grande. E foi, evidentemente, essa angústia que me afetou a ponto de me sentir, de certa forma, na pele dela, o que me fez interessar ainda mais por sua história.


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A

metodologia

cartográfica

possibilita

uma

viagem

pela

representação do caso-guia, por diversos olhares. Para que essa viagem cartográfica fosse possível, fiz uma viagem, necessariamente geográfica. Estive no Rio de Janeiro, com o objetivo de conhecer a realidade da comunidade de Aisha, ter contato com todas as fontes depoentes, sentir o clima de tensão presente nos relatos sobre a relação de moradores de comunidades e a polícia. O que resultou numa viagem pela memória dos depoentes, por onde pude conhecer Aisha. Levando em consideração que conhecer é trazer um mundo à tona, não pude conhecer a Aisha-menina, filha, nem Aisha-adolescente. Mas conheci Aisha-mãe, companheira, vizinha-amiga por meio dos relatos. O procedimento utilizado na pesquisa para a criação da cartografia foi de entrevistas, em que colhi depoimentos de pessoas que fizeram parte da trajetória de vida de Aisha, incluindo os círculos de amizade, vida em comunidade, e família. Esta cartografia tem algo de peculiar, pois se trata de uma viagem pela vida de uma mulher que já não vive. A vida de Aisha será mapeada por vários depoimentos que trarão à luz as diversas Aishas existentes, por meio dos olhares de várias fontes, que tiveram suas vidas afetadas, diretamente, pela existência e vivência dela. A cartografia não pretende mostrar um trajeto linear, pelo contrário, é o próprio cartógrafo-pesquisador que, provavelmente, mudará os direcionamentos pré-planejados, ressignificando-os. Os eixos temáticos, que planejei para essa viagem cartográfica, pela trajetória de vida de Aisha, inicialmente foram sete: a vida de Aisha; sua relação familiar; círculo de amizades; comunidade; trabalho; mídia; e morte. No entanto, diante dos desencontros fui obrigada a redirecionar alguns desses eixos temáticos, e mudar os depoentes, pela razão de não ter conseguido contato com alguns possíveis depoentes. Portanto, a cartografia de Aisha resultou na divisão de sete eixos temáticos, em que foram organizados os depoimentos de 12 pessoas, onze delas envolvidas diretamente com a vida pessoal do caso-guia, sendo amigos, marido e filhos. Além de uma depoente que foi a repórter que fez a primeira cobertura da morte de Aisha, e um advogado, membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil, e que acompanhou o caso.


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Esses relatos foram organizados nos eixos temáticos - que chamarei de platôs, conforme a definição de Deleuze e Guattari -, todos dentro de um eixo central, que é a trajetória de vida. Essa cartografia trata de fazer uma viagem pela vida de Aisha, por meio da inevitável fragmentação de sua história através desses eixos temáticos/platôs. São eles: Platô: Família Platô: Amizades Platô: Violência Platô: Racismo Platô: Ameaças Platô: Pós-trauma. Platô: Mídia Todos esses platôs se entrecruzam, assim como o rizoma vegetal, que pode se cruzar a outros rizomas. Portanto, rizoma refere-se, nesta pesquisa, como a trajetória de vida de Aisha, enquanto os platôs são as regiões de intensidade em que me aprofundo para conhecer o caso-guia. Mapas são interpretações poéticas, embora, neste caso, há áreas demarcadas/platôs como Racismo e Violência que dificultam uma interpretação harmoniosa, dado a dureza de seus sentidos. Os depoentes tiveram seus nomes trocados, conforme pressupõe a pesquisa cartográfica. Apresento a seguir os nomes e sua relação com o nosso caso-guia: - Liza: repórter que teve o primeiro contato com o caso, foi com ela que consegui o telefone de contato de Thalita e Nina (amiga que não deu depoimento). - Cleonice: amiga e comadre de Aisha; - Marcos: morador da comunidade; - Tânia: mulher de voz gigante, amiga de Aisha; - Aparecida: amiga e vizinha de Aisha; - Nenê: amiga e vizinha; - Thalita: a menina de cílios bonitos é filha de Aisha; - Wellington: rapaz de voz grave,filho; - Antônio: companheiro de Aisha; - Ana Cíntia: cunhada de Aisha;


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- Letícia: sobrinha do companheiro de Aisha, filha de Ana Cíntia. - Breno: advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB - Rio. Acompanhou o caso da morte à época. A escolha do nome Aisha para substituir o nome real do nosso casoguia se deu depois de uma procura por um nome de origem africana que coubesse significados múltiplos, como o próprio caso-guia nesta pesquisa é múltiplo. O nome Aisha é de origem suaíli, idioma banto característico do Quênia, Tanzânia e Uganda. O nome africano significa ‘ela é vida’. Não poderia haver nome mais adequado para o nosso caso-guia, pois a nossa Aisha é de ancestralidade africana e representa todas as mulheres negras que são ameaçadas todos os dias. E apesar de não ter mais sua carne viva, vive. Vive em nós, mulheres negras. Vive ainda nos jovens negros que sofrem na pele a dor do racismo. Vive na dor dos pais que perderam seus filhos. E vive, sobretudo, por meio da memória daqueles que se negam a esquecê-la. Aisha, ela é vida. A escolha de Aisha como caso-guia se deu por meio de vários momentos de indagações acerca de uma escolha que realmente me representasse e que pudesse, além de me representar, representar minha mãe. Por ser ela, assim como eu, mulher negra e moradora de periferia. E por eu acreditar que Aisha poderia ser eu, minha mãe, minha irmã, minha amiga, ou qualquer outra mulher negra. A seguir apresento uma linha do tempo que guiará as narrativas sobre a trajetória de vida do caso-guia.

Quadro 1: Linha do tempo Nascimento

União/casamento

1976

1994

Compra da

Nascimento dos

casa própria

gêmeos

1999

2004

Mudança de volta

Nascimento da

Nascimento do

para o morro

filha

filho

1994

1995

1997

Adoção dos

Morte

Volta a trabalhar

sobrinhos 2011

2012

2014


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A ideia inicial desse eixo temático central era navegar pela vida de Aisha desde o nascimento até seus últimos dias, na intenção de conhecer as múltiplas Aishas presentes nela. No entanto diversos desencontros fizeram com que eu não conseguisse um encontro com os familiares que conviveram toda a vida com ela. O segundo momento desta cartografia, a seguir, apresento o diário de bordo, em que são explicados os problemas vivenciados no decorrer da viagem ao local dos acontecimentos.


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4 CASO-GUIA

4.1 A ENCANTADORA AISHA

“Será que te conheço desde a infância Será que na infância eu parti Prum mundo imaginado por você Ou por você um mundo veio E a infância assim se foi” (Estranho Natural - Maria Gadu)

Aisha tinha 37 anos e era só mais uma na imensa multidão de gente considerada não gente. Morava no Morro da Cocona10, zona norte do Rio de Janeiro. Ela, como muitas outras, resistia. Resistia a um sistema que a cada dia faz crescer a diferença entre quem mora na comunidade de periferia e quem mora nos bairros de luxo da zona sul. De sua união com Antônio, há dezenove anos, teve quatro filhos. Uma garota, um garoto adolescentes e um casal de gêmeos, com uma década de vida. Também assumia o papel de mãe de mais quatro meninos. Os filhos da irmã chegaram à casa da tia Aisha, na semana anterior ao dia dos pais de 2012, e ficaram. Não fosse o fato de ser mulher, Aisha se encaixaria no perfil dos moradores das comunidades de periferia, que são o alvo preferencial das abordagens dos matadores fardados. Assim como o perfil do jovem, que a polícia vê como principal suspeito11, Aisha tinha a pele escura. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais num hospital, também na zona norte. Nos fins de semana não abria mão de se reunir com as amigas na praça em frente de casa. O sábado era reservado à organização da casa. E os domingos eram os dias preferidos, em que gostava do bate-papo com as amigas, acompanhado de cerveja. Era, também, o dia da beleza, em que fazia as unhas e ajeitava os cabelos crespos que preferia alisados.

10

O nome da comunidade em que Aisha morava foi trocado por um nome fictício. Segundo pesquisa de Caco Barcellos, para o livro Rota 66, em que procurava o perfil das vítimas dos grupos de extermínio da Polícia Militar de São Paulo, o alvo preferencial é: jovem, pobre, negro ou pardo. 11


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Era domingo, o seu dia preferido da semana. Na manhã do dia 16 de março, como sempre, na expectativa de um tranquilo dia de folga, Aisha sai com um copo de café numa mão e alguns reais na outra. Iria até a vendinha comprar pães e mortadela para o café da manhã. Na mesma hora, as fardas, que matam em nome do Batalhão Pedra Ciranda12, realizavam uma operação no morro. Aisha foi uma das duas pessoas que cruzaram o caminho daquelas fardas. A lei do “atire primeiro, pergunte depois” imperou13, e Aisha acabou baleada no coração e pulmão. Além dela, um adolescente de 16 anos teve o mesmo destino. Testemunhas alegaram que, após o crime, os agentes de repressão do Estado disseram ter se assustado ao confundir o copo de café com uma arma. O irmão de Aisha afirmou, na época, que esses agentes tentaram incriminá-la, alegando que ela portava quatro armas14. Moradores do morro negaram as informações. Em depoimento após o crime, os policias que atiraram em Aisha alegaram que estavam se defendendo, em confronto com traficantes da comunidade, e que houve troca de tiros que acidentalmente atingiram Aisha. Mas havia uma testemunha que viu de onde partiram os tiros15 e afirmou que havia tiroteio. Após balear Aisha, os matadores chamaram outra viatura em que estavam mais três policiais. Os moradores tentaram impedir que os agentes tirassem o corpo de Aisha do local, mas os policiais atiraram para o alto para dispersá-los. Em suposto gesto humanitário, os policiais decidiram levar o corpo da vítima para o hospital, em discordância com o procedimento correto, que é chamar uma ambulância. Assim, alteraram o local do crime e, sob protesto de moradores, colocaram o corpo no porta-malas da viatura para levarem ao hospital16. No caminho, o ápice da violência. A porta da caçamba da viatura se abriu e o corpo desfalecido de Aisha caiu no asfalto. Presa a uma peça de roupa, foi arrastada por 12

O nome da região do batalhão da Polícia Militar também foi trocado por nome fictício. Segundo Barcellos, o que mais se ouve dos moradores da periferia de São Paulo, ao definir o tipo de ação dos policiais matadores é: “Eles atiram primeiro. Perguntam depois”. (BARCELLOS, 1992 p. 132) 14 Barcellos (1992), ainda, afirma que é tática comum, dos grupos de extermínio da polícia, alegarem que a vítima portava armas, e falarem de suposto tiroteio, na tentativa de responsabilizar a vítima pela própria morte. 15 O programa Fantástico, do dia 23 de março de 2014, conversou com uma suposta testemunha que diz ter presenciado o crime e confirma que os tiros partiram dos policiais (http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/testemunhas-contradizem-versao-de-pms-sobre-morte-demulher-arrastada.html). 16 No capítulo Hospital: esconderijo de cadáver, Barcellos ainda afirma ser comum os policiais transportarem o corpo da vítima, mesmo depois da morte, para o hospital, quando o procedimento correto é chamar uma ambulância. Essa prática altera o local do crime, o que dificulta nas possíveis investigações. (BARCELLOS, 1992 p. 59) 13


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cerca de 250 metros. Aisha teve parte do corpo em carne-viva por causa do contato com o asfalto. Os policiais que transportaram o corpo alegaram que a colocaram no porta-malas porque havia armas no banco traseiro. Eles ficaram presos por quatro dias, e foram soltos, pois segundo laudo do Instituto Médico Legal, Aisha morreu em decorrência dos disparos que atingiram seus órgãos vitais. Apesar disso, os outros seis agentes envolvidos da operação no morro da Cocona foram afastados das ruas, e seguem com trabalhos internos na corporação. Segundo alguns moradores, os policiais tentaram responsabilizar um garoto, que foi preso na ocasião. Não fosse o vídeo feito por um cinegrafista amador e divulgado pelo Jornal Extra, em que o corpo é mostrado sendo arrastado, o assassinato de Aisha poderia ter sido registrado como auto de resistência17. Até aquele domingo o Brasil não a conhecia. Sua breve história de vida se encerrou naquela manhã de domingo. Se eu pudesse me encontrar com Aisha, eu diria que foi extremamente doloroso saber de sua existência de forma tão cruel. Mas falaria, também, que sua participação neste mundo não terminou naquele último suspiro. Interromperam sua respiração, suas veias pulsantes. Sua carne já não vive. Mas nunca poderão tirar sua essência, que já foi eternizada. Pois a verdade, pura e simples, é que ela permanece viva. Viva em nós, mulheres negras, que somos a continuação dela.

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Segue mais informações sobre auto de resistência no platô violência.


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5 CARTOGRAFIA

5.1. PERCURSO PERCORRIDO

O terreno que percorri para a construção desta cartografia é esburacado, desordenado e caótico. A confusão de sentidos, naturalmente, surgiu a partir do impacto da morte precoce de Aisha. Esse caos se reflete nos desencontros, nas expressões de medos e elementos não-ditos. Nos depoimentos dos amigos e familiares, pude perceber os silêncios, as falas fragmentadas, que algumas vezes, parecem desconexas, indícios de que os sentimentos de todos os depoentes estavam situados num ambiente emocional desterritorializado. Para chegar à família de Aisha me deparei com vários obstáculos. Entrei em contato com vários membros de movimentos sociais que estiveram com a família após a morte. Duas dessas pessoas me disseram que tinham o contato da família, mas que não estavam autorizados a compartilhar. Fiquei bastante frustrada, mas sabia, no fundo que isso tinha algum significado. Falei com duas repórteres que entrevistaram a família. Uma delas, Liza, conseguiu me passar os números de telefone que eu precisava. Essa viagem se dá pela memória dos depoentes, e as falas fragmentadas,

aparentemente

desconexas,

e

os

silêncios

revelados

nos

depoimentos, são uma resposta ao impacto causado por aquele domingo. Repetindo o gesto dos antropófagos sociais de Rolnik (2007) pude entender que a morte é o desmanchamento de mundos. E cartografar é possibilitar a produção de uma realidade social capaz de reconstruir um sentido para esse desmanchamento. Antes da viagem ao Rio de Janeiro, planejei marcar as entrevistas com a família para o sábado, dia seguinte a minha chegada à cidade. Quando desembarquei, na sexta-feira à tarde, liguei para Diogo, amigo da família, com quem me comuniquei antes da viagem, e que disse que iria me preparar o caminho até eles. Gostei da ideia de ter alguém para me guiar até a família, por causa do receio de que minha visita lhes causasse mais dor, como acontece em vários casos em que a imprensa exploradora e sensacionalista suga as energias dos envolvidos. Diogo me deu esperanças de que a família pudesse conversar no sábado. Dessa forma, a


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primeira pessoa que entrevistei foi a repórter do jornal Hexa, Liza, que sairia de férias no dia seguinte. Então, no sábado entrei em contato com Diogo, que não atendeu os inúmeros telefonemas que fiz. Repeti as ligações no domingo. Todas sem êxito. Mandei mensagens, que não foram respondidas. E quando, finalmente decidi entrar em contato com a família diretamente, Thalita falou com o pai, que acabou marcando para segunda-feira à tarde. Então, decidi aproveitar a manhã, quando iria ao morro da Cocona conversar com Nina, amiga de Aisha, com quem falei antes da viagem e combinei a visita. Cheguei atrasada em Macieira - bairro onde fica o morro da Cocona - depois de tentar avisar Nina, que não atendeu as ligações. Consegui falar com ela, quando pedi o telefone emprestado de uma moradora, depois de tê-la esperado por uma hora. Ela me disse que a filha estava adoecida e precisou levá-la ao hospital e pediu-me para esperá-la. Eu a aguardei por mais duas horas. Como ela não apareceu, decidi subir o morro sozinha. Para isso fui conversar com outra moradora para me certificar de que seria seguro. Então comecei minha expedição em busca de Aisha. Abordei duas senhoras para perguntar se elas sabiam onde era a antiga casa da família. Uma delas, dona Renata, subiu comigo, e assim que reconheceu Cleonice, a amiga de Aisha, de longe, me falou para seguir com ela dali em diante. Cleonice foi a primeira pessoa que colhi depoimento sobre a trajetória do caso-guia18. Descobri que ela era comadre de Aisha e que tinham relação bem próxima. Por meio dela falei com Marcio e Tânia, e depois seguimos à antiga casa da família, que estava fechada. Foi um estranho sentimento, passar pela cinzenta e triste rua em que ela deu os últimos suspiros. Logo depois, nos encontramos com as amigas do caso-guia, dona Aparecida e Nenê19, que deram depoimentos emocionados. Então, liguei para a casa de Antônio20 para avisar que eu não conseguiria chegar no horário combinado. Nina não apareceu. Quando voltei para Botafogo, onde estava hospedada, já era tarde para ir à Mendanha21 me encontrar com a família. Liguei para Antônio 18

Aisha será denominada, em alguns casos, como caso-guia, pois é por meio da história de vida dela que faremos a cartografia. 19 Amigas do caso-guia. 20 Companheiro de Aisha. 21 Bairro em que moravam no momento das entrevistas.


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novamente, que ressabiado, me falou que seria melhor remarcar a visita para a quarta-feira. Tive medo que ocorresse outro imprevisto, pois eu voltaria para Londrina naquele dia, mas ele me garantiu que daria certo. Inicialmente, ele se mostrou inseguro com a ideia da minha visita. Parecia estar farto de atender a imprensa. Ele ainda não havia entendido o objetivo da conversa e me fez várias perguntas, que anteriormente eu já havia explicado. Expliquei novamente que este trabalho não seria veiculado em jornal ou televisão, e que todos os nomes seriam trocados, por isso poderia ficar tranquilo. Percebi que seu receio era de que alguém descobrisse onde estavam morando. Depois eu soube que eles estão evitando dar entrevistas por medo de represálias. Tanto que, dois meses depois da morte, que ele prefere chamar de “o ocorrido”, proibiu a filha de dar entrevistas. Todos esses desencontros com a família, que era a minha prioridade, me deixaram frustrada, mas entendi que fazia parte do processo da pesquisa que era, em sua totalidade, incerta. Eu não estava cartografando uma viagem de férias. A cartografia a que me propunha era de um território atingido por uma tsunami, um terremoto, onde restaram destroços, fragmentos. É nesse território que desenvolvi minha pesquisa. Quando eu cheguei à Mendanha já estava tentando o contato com a família, para consultar o endereço e chegar até eles. Não tive êxito nas vinte tentativas de ligar para o telefone fixo e celular. E tive medo de que tivessem desistido da entrevista e que não iriam me atender. Foi conversando com uma moradora que descobri onde era a casa. Ana Cíntia, coincidentemente, é cunhada de Antônio. Ela me levou até a casa, e durante um bom tempo ficamos a apertar a campainha e chamar. Ninguém atendia. Ana Cíntia, então, sugeriu que eu esperasse um pouco mais, na praça, e voltasse depois, que era possível que estariam dormindo. Quando voltei à casa, depois de um tempo, foi o Caco, sobrinho de Aisha de oito anos, que me recepcionou e me chamou para entrar. Thalita estava dormindo

em

um

colchão no chão, e acordou assim que me acomodei no sofá. Me apresentei e expliquei novamente o objetivo da pesquisa. Começamos a conversar e a menina foi ficando mais à vontade, quando o bebê Pedro abriu um grande sorriso para mim e abriu os braços para que eu o pegasse no colo. A partir disso, as entrevistas


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puderam fluir naturalmente, como conversas informais. Pedro foi minha porta de entrada naquela casa. Seus braços abriram os afetos daquela família. Era como se confiassem à intuição da criança a credibilidade que a mim poderia ser dada. E Pedro me aprovava. Apesar de não ter tido tempo suficiente para estabelecer um vinculo mais consistente com a família, creio ter sido possível a criação de uma relação de confiança22. A confiança na pesquisa cartográfica é um meio, ao mesmo tempo em que é o fim da pesquisa, a medida em que ela é fundamental para a criação de conexões com aquilo que não experimentamos explicitamente. (SADE, FERRAZ; ROCHA et al, 2013 apud LAPOUJADE, 1997) Essa confiança na experiência não se refere a confiar em um resultado específico, mas acreditar que no plano comum se criarão novos territórios. Durante esta viagem inteira, tive receio de provocar uma situação emocionalmente delicada à família. Mas, com o tempo fui observando que eles guardam boas e lindas recordações, e que Aisha foi eternizada, não como a “arrastada”, como a mídia divulgou, mas simplesmente como a Aisha. Nesse processo aprendi que, para interpretar as falas dos depoentes é preciso vestir a pele de cada um.

5.2. PLATÔ: FAMÍLIA “De todo o amor que eu tenho Metade foi tu que me deu Salvando minh'alma da vida Sorrindo e fazendo o meu eu” (Dona Cila – Maria Gadu)

O primeiro espaço percorrido pela memória dos depoentes é a vida em família do caso-guia. Foi o dia 22 de agosto de 1976 que, a menina de pele negra e lindos olhos brilhantes, estreiou no mundo, dando os primeiros suspiros na Maternidade Herculano Pinheiro. Filha da dona de casa Maria, e do pedreiro Laerte, foi no morro da Cocona que deu os primeiros passos e se alegrou ao aprender as primeiras letras do

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SADE et al (2013) afirmam que “a confiança, no sentido pragmático com o qual trabalhamos, ajuda-nos a discutir o aspecto ético da cartografia em sua conexão com o aspecto metodológico”. A própria palavra “confiança” significa com fiar; fiar com; tecer com, o que remete a ideia de composição e criação com o outro.


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nome. O desencontro com a mãe e o pai dela, me impossibilitou um encontro íntimo com as reminiscências da menina-Aisha, que habitam a memória dos dois. A caçula dos três irmãos, provavelmente, ainda caminha silenciosamente nas memórias do irmão e da irmã que, também, não pude conhecer. Na viagem pela memória do marido e da filha de Aisha, conheci a mulher que amava os domingos. Talvez não seja mera coincidência, pois foi um domingo o seu primeiro dia neste mundo. Foi também num domingo, 18 de setembro de 1994, que ela viu pela primeira vez aquele com quem passaria muitas fases da vida, Antônio. Tarde quente na Tijuca. Quisera fosse a praia, mas foi no semáforo em que a mocinha de 18 anos vendia balas, para ajudar nas despesas de casa. Morava na zona norte. Antônio, na oeste. Foi, finalmente, por meio da memória dele vi a menina-mulher Aisha. Fui transportada para a cena no semáforo, em que foram apresentados, por uma conhecida, que fez muito empenho na relação. A aproximação foi logo correspondida. Aisha, sem demora, aceitou o convite para um churrasco na casa da família do moço. E sem planejar começou a caminhar em direção ao seu maior tesouro: sua família. Tô falando, ela era determinada. Quando ela quer uma coisa, ela consegue. (...) ela veio pra cá um dia, num churrasco (...) Foi duas semanas depois do aniversário dela. Lá por volta do dia... (...) 18 de setembro. (...) a gente se conheceu na Tijuca... ela veio ficar aqui... acabamos, sem namorar, sem nada, morando junto. E... ficamos até o dia 16 de março. (Depoimento de Antônio, 13/08/2014 - p. 101)

O rapaz de 21 anos, não pensava em se apaixonar, muito menos se casar, mas não teve jeito, ela determinada como era, conseguiu. (...) ela não me conquistou, não. Ela me tomou de assalto! Ela morava em Macieira, o que que ela veio fazer aqui na Mendanha? Ela me tomou de assalto mesmo... Assalto. Nossa senhora! Roubou mesmo. Ela é medrosa, não roubava nada. Mas ela me roubou de todo mundo, entendeu? (...) Parece que ela tinha tudo na palma da mão. (Depoimento de Antônio, 13/08/2014 - p. 102, 103)

Não decidiram nada. Apenas se deixaram envolver no apego daquela paixão. Com o tempo surgiram os primeiros contratempos, como a briga dos dois com a mãe dele. (...) houve uma desavença com a minha mãe e eu, sai de casa (...) aí ficamos uns dias dormindo na rua, aqui na Mendanha. (Depoimento de Antônio, 13/08/2014 - p. 102)


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E em alguns meses veio a notícia da gravidez para o susto e alegria de Aisha. Era o primeiro filho com Antônio, que já era pai de Marcio. Mudanças. E logo venceram os obstáculos ao conseguir a primeira casa-própria. Fizeram a mudança de casa. E a mudança de vida. (...) ela tava grávida da Thalita. E... daí fomos pro morro... lá pra casa da mãe dela. (...) Ficamos lá um ano. Aí, voltamos pra Mendanha. Aí, te falar que ela sempre muito determinada. Trabalhava na Barra (bairro Barra da Tijuca), aí eu falei pra ela que não era pra ela ir pra praça, perguntar pros outros ‘negócio’ de casa (para morar)... ela foi pra praça (...) aí conseguimos se agregar no colégio, aí agregamos por quatro meses no colégio. Aí fomos ‘pros barraco’ no César Maia (comunidade do Rio)... Aí conseguiu nossa, nossa primeira casa. (Depoimento de Antônio – 13/08/2014 - p. 102)

E a menina amadurece ao metamorfosear-se em mãe quando, em 1995, Thalita, a menina de cílios bonitos estreia na vida. Dois anos mais tarde, ganha seu segundo filho. Nasce o garotinho Wellington. Aí ficamos lá (na comunidade César Maia) dois anos, aí vendemos e fomos morar no morro. Lá era muito pequeno. Aí vendemos lá. Aí ficamos no morro. (Depoimento de Antônio – 13/08/2014 - p. 102)

Moravam no Morro da Cocona, quando em 2004, chegaram os gêmeos, para aumentar a alegria da família e realizar o sonho da mamãe, que parecia ter tudo planejado. Aí, quando ela pegou... engravidou da Paola e do Paulo... aí, veio a Paola e o Paulo... Eu ia fazer nove anos... Ela queria, porque queria, gêmeos. Imagina quando uma pessoa tem o desejo de querer tanto gêmeos, gêmeos, é: “pode deixar, o dia que eu engravidar, eu vou ter gêmeos, vocês vão ver só!” (Depoimento de Thalita - 13/08/2014 - p. 99)

Para a felicidade ficar completa, pouco antes do dia dos pais de 2012, vieram os quatro sobrinhos. Chegam para passar uns dias na casa da tia Aisha, e ficam. E são cuidados e amados como filhos. Os filhos dela estavam em primeiro lugar. Ela tinha os quatro, aí depois, pegou mais quatro... E todos estavam em primeiro lugar. (Depoimento de Antônio - 13/08/2014 - p. 101) Quando saía pra passear, saía com aquelas oito crianças. Era tão bonito. Era bonito. (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 88)

Nas recordações doces de Thalita, anda sorridente: a mãe cuidadosa. A menina que ajuda a cuidar dos irmãos e primos menores, sorri, ao lembrar das festinhas realizadas por aquela que curava com alegria a frustração das crianças.


43 Nos dias de caipira, de festa junina (...) as crianças não dançaram em lugar nenhum. Não teve festa. Aí, ela pegou e inventou uma caipira lá em casa, louca, aí fez um montão de coisa, montão de besteira, fez uma caipira lá, pra eles, arrumou eles, vestiu eles. Foi na rua, comprou roupa, tudinho e fez uma caipira lá em casa, só pras crianças lá de casa mesmo. Mas acabou que ainda veio mais criança, os coleguinhas deles. Aí eu: “Aisha, tu é maluca!”. Ela: “ah, maluca? Eu tenho que fazer pros meus filhos. Ficar esperando festa dos outros, e os meus filhos vão ficar aí, sem curtir?!” Aí ela fez... Natal e ano novo ela não deixava de fazer a ceia dela não... Aí, ela foi lá primeiro, comprou nossa roupa, aí pra depois comprar a dela... Ficava falando, falando, falando, falando... deixou de comprar a dela, comprou a nossa. (...) Ela é... ela era demais! (Depoimento de Thalita - 13/08/2014 - p. 96)

A alegria ficava completa quando conseguia juntar, em casa, os amigos e as crianças da comunidade para exibir seus talentos culinários. Ela era festeira. Isso ela era. Muito festeira (...) um negocinho que ela fazia, assim, tornava uma festa. (...) chegava duas, três pessoas, era motivo pra festa. Fazia um mocotó ou uma dobradinha, já era motivo pra festa, entendeu? Não podia faltar cerveja... era festa. (...) Ela era isso tudo. Era uma ótima mãe, ótima mulher, entendeu? (Depoimento de Antônio 13/08/2014 - p. 101)

Conheci a Aisha que sempre imaginei determinada. E realmente era. Que lutava pelos objetivos até conseguir, e cuidava e acolhia todos quanto pudesse. Ela está presente na memória do companheiro e dos amigos. A Aisha era uma mulher guerreira, mãe, amiga... determinada no que queria. Pô... se quisesse alguma coisa, ela lutava até conseguir aquilo... (...) Sempre foi assim. Foi ‘batalhadeira’... (Depoimento de Antônio 13/08/2014 - p. 100) A Aisha sempre foi o alicerce daquela casa. Ela sempre foi. Determinava certas coisas, né? Determinava. (Depoimento de Antônio - 13/08/2014 - p. 102) Sustentava os filhos dela e ainda sustentava quatro sobrinhos. (pausa) Ela foi guerreira mesmo! (Depoimento de Cleonice - 08/08/2014 - p. 78) Tinha os filhos... tinha os filhos dela. Sempre trabalhava. Sempre gostou de trabalhar. Tinha muita responsabilidade com a família dela, entendeu? (Depoimento de Marcos - 11/08/2014 - p. 82) Ela chegava do serviço (...) aí, ela entrava pra dentro. Ia lavar roupa, arrumar casa... sábado e domingo, então...! Acho que ela só descansava no domingo, só na parte da tarde. Porque era: lavar roupa... pra você ver: oito crianças, né?! Os dois mais velhos tão maior, mas é criança ainda, né? (...) É... ela era uma mulher muito responsável, muito responsável, muito, assim caprichosa mesmo. Muito caprichosa. Muito atenciosa. (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 88) Ela assim, ela... (...) abraçava todas as causas. Que nem, da prima dela que morou lá em casa; um filho da minha outra comadre; as sobrinhas dela própria; meu irmão... já morou lá em casa. (...) Sempre acolheu, sempre,


44 sempre. É um conjunto (acordo) nosso. (Depoimento de Antônio 13/08/2014 - p. 103)

Caminhei mais um bocado pelo território da memória de Thalita, e encontrei a mãe, que junto da filha, organizava a casa e enchia a piscina. A Aisha que se apegava à filha mais velha nos fins de semana, como se amigas fossem. (...) se eu não tiver em casa, tipo, ela mandava ir no mercado, ela esperava eu chegar do mercado, pra poder amarrar o biquíni dela atrás. Com meu pai em casa, o Wellington, todo mundo em casa, tinha que ser eu que ia amarrar o biquíni dela atrás... Não. Incrível, eu que tinha que amarrar (risos). (Depoimento de Thalita - 13/08/2014 - p. 97)

Era a mesma Aisha que não abria mão de seu perfeito domingo. Dia de lazer e embelezamento quando fazia as unhas, ouvia música, tomava cerveja, e enchia a piscina de plástico, para a alegria dos oito filhos. Pô, final de semana, quanto tava sol, era cervejinha dela... ia lá, mandava eu ir no mercado comprar a cervejinha dela. Enchia a piscina, tomava um banho de sol, e ficava lá, se queimando, o dia todo lá, se pintando, lá. Aí, mais tarde eu tinha que fazer o cabelo dela. (...) Era o dia dela. Sábado e domingo. O sábado era para se queimar (tomar sol) e o domingo era para fazer o cabelo. Ela... era assim, todo fim de semana. Adorava curtir. Sentava lá fora bebendo uma cervejinha lá, com as amigas dela, lá. (Depoimento de Thalita - 13/08/2014 - p. 94)

Minha expedição pelo território alegre e animado de Aisha-todafamília segue em direção a um terreno muito semelhante, em que permeia a amizade.

5.3. PLATÔ: AMIZADES “Saudosa maloca, maloca querida Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vidas” (Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa)

Neste segundo espaço mapeado da memória, está território da amizade. Percorrendo o morro da Cocona, me encontro com amigos e conhecidos de Aisha. E contemplo-a por meio de suas memórias. Esse território da amizade era repleto do tipo de afeto livre, daqueles que traz sentido para todas as existências. Afetividade que desagua da vida dos amigos depoentes.


45 Nunca brigamos. A gente se dava muito bem. (...) Era uma irmã pra mim, ela... é a madrinha da minha filha mais nova. (...) E ainda, minha filha foi pra ela batizar... a... minha filha gosta muito dela. (...) É muito alegre ela. Muito alegre mesmo. (Depoimento de Cleonice - 11/08/2014 - p. 76) A Aisha era uma menina legal. Menina tranquila, humilde... Todo mundo da comunidade gostava dela... (Depoimento de Marcos - 11/08/2014 - p. 82) Como amiga, vizinha, ela era uma pessoa boa. Assim, se a gente tinha algum problema pra resolver, a gente sentava junto. (Depoimento de Tânia 11/08/2014 - p. 83) Mas ela era uma pessoa muito... muito boa, muito... era muito atenciosa, poxa! Qualquer coisa que a gente... tinha uma dificuldade, um pouquinho, de fazer... ela passava a mão, ajudava a fazer... Ela era muito boazinha, ela. Que ela seja boa pra Deus, né? (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 87)

Tânia, a amiga de voz tão grave, que parece gigante, eternizou os momentos de lazer que passaram juntas nas fotos, e imprimiu na memória. Em alguns desses momentos, perdiam a noção do tempo, jogando baralho durante horas. A gente tinha o hábito de toda tarde jogar vespa (...) sentava lá, e todo mundo jogava vespa... e toda noite, todo dia ela tava junto com a gente, assim. Todo dia quando eu chegava do trabalho (...) teve uma vez que, ficou eu, ela, o marido dela e a filha dela jogando vespa até a noite. Viramos a noite jogando... quando a gente foi ver, era 7 horas da manhã, e tinha que trabalhar, e não tinha nem dormido (lembra da diversão, e sorri) Eu: “Aisha, sol tá raiando!” Ela: “Corre. Vou tomar banho pra trabalhar.” Haha... (Depoimento de Tânia - 11/08/2014 - p. 84)

Eternizada, também ficou Aisha, nas recordações de dona Aparecida, que nos finais de semana, passava horas jogando conversa fora com a amiga que gostava de cerveja. Final de semana... a gente de juntava aqui. Tem uma barraquinha da minha filha, aqui né, (aponta para um pequeno quiosque em frente a uma casa) da mãe dessa daí (mostra a netinha de, aproximadamente, sete anos). Aí, de tarde... ela, toda sexta, sábado e domingo, ela abre aqui, né?! Nessa tendinha, nesse ‘butiquinzinho’ dela aqui, né? Aí, sabe como é, ela gostava de uma cervejinha também, tomava a cervejinha dela. Ôxi... era muito legal. Que assim... ela era muito alegre, sabe? Alegre mesmo. (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 87)

E da amizade mais recente, e não menos verdadeira, com Nenê, conheci o tipo de afeto que transborda, sai do campo dos sentimentos e se traduz em atitudes. (...) eu fiquei bem próxima dela há uns dois anos. (...) Que eu frequentava muito a casa dela, ela frequentava muito aqui também, minha casa. Era muito minha amiga, muito. Muito minha amiga mesmo. Minha mãe faleceu


46 tem uns... vai fazer um ano agora em setembro, e ela foi a que mais me deu apoio. Tava sempre aqui comigo, que eu tenho um irmão especial também, né?! Ela gostava muito do meu irmão também, né?(Depoimento de Nenê 11/08/2014 - p. 90)

A saudade que costuma escorrer dos olhos é a expressão calada do misto de revolta e tristeza por ter perdido alguém muito precioso. Todo mundo, aqui na comunidade... se dava bem com todo mundo. Muito amiga mesmo. Presente. Uma ótima mãe. Uma ótima esposa. Trabalhadora (se emociona). Tá fazendo muita falta pra gente. (Depoimento de Nenê 11/08/2014 - p. 90) Mas até hoje... até hoje, eu não... assim, enquanto eu viver pelo menos, eu não vou esquecer dela. Sempre lembrando. As crianças... eles não moram mais aqui, né?! Mas... eles gostam muito de mim. Eu gosto muito deles, principalmente, as crianças, né?! E é isso. Muita saudade.” (Depoimento de Nenê - 11/08/2014 - p. 92)

É hora de minha expedição partir em rumo aos solos mais pedregosos, esburacados de todo o território da vida de Aisha.

5.4. PLATÔ: VIOLÊNCIA

“Sinto no meu corpo A dor que angustia A lei ao meu redor A lei que eu não queria... Estado Violência Estado Hipocrisia” (Estado Violência – Charles Gavin)

Esse terceiro território é o começo da realidade caótica que surgiu nas vidas que não se calam. Conheci Aisha por ocasião de sua morte. Esforcei-me para não deixar correr as lágrimas que tentavam me sufocar, quando li a notícia, na manhã de segunda-feira, na página do Geledés – Instituto da Mulher Negra, no Facebook. Enquanto voltava para casa de ônibus, consegui segurar as insistentes lágrimas, ao ler sobre as duas balas que perfuraram seu corpo. Quando cheguei em casa, fiquei chocada e não pude conter as lágrimas ao ver as imagens de seu corpo arrastado no asfalto. Senti uma devastadora dor na alma.


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Não pensei em nada. No silêncio, pairava apenas um angustioso choro calado e impotente. Um choro que parece sair do lugar mais íntimo da alma. Aquela região da intensidade de nosso ser, do qual somos capazes de sentir a dor do outro. Como se, em nosso corpo vibrátil, sentíssemos que estamos conectados a pessoas que, muitas vezes, não conhecíamos. Além de sentir, no corpo vibrátil aquela perda, com Aisha tenho em comum o fato de ser mulher, negra e moradora de periferia, o que me permite uma aproximação. Me imaginei na cena: a pele de Aisha sendo perfurada por dois tiros certeiros no coração e pulmão. Seu sangue escorrendo. O desespero dos vizinhos. A morte instantânea. A aglomeração em torno do local. Os matadores, fardados, a perceber o que acabaram de fazer, diante de testemunhas que não poderiam conter. O choro aflito dos familiares e amigos ao saber da tragédia se traduz na dor das mães que perdem seus filhos negros e pobres todos os dias, nas periferias de todo o Brasil. Mas dessa vez o selecionado foi uma mãe, e não somente o jovem negro. Houve um episódio que... em tese foi atípico, né?! Não é mais a juventude negra sendo exterminada, e sim a mãe do jovem negro sendo exterminada né?! (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio - 23/09/2014 - p. 107)

Santos (2012) diz que, aparentemente, a violência cotidiana pode afetar a todos em igual proporção e intensidade, independentemente de classe, fenótipo, idade e sexo. E, realmente é isso o que a mídia nos faz pensar, quando cria uma aura de silêncio em relação a temas como a violência policial. Mas, ao contrário disso, estudos como o Mapa da Violência 201423 mostram que as taxas de homicídio são mais altas nos bairros de periferia, ou comunidades, que em sua maioria são habitados por negros. Apesar

do

crescente

número

de

violência

contra

a

vida

afrodescendente, descrito neste estudo, e das denúncias dos movimentos sociais contra a violência, o extermínio da população negra, principalmente jovem, está longe de ser encarada como genocídio.

23

O Mapa da Violência 2014 revela que 149 em cada 100 mil pessoas, com idade entre 15 e 29 anos, morreram de forma violenta em 2012. Sendo 80,7% dessas vítimas negras. Morreram, proporcionalmente, 146,5% mais negros do que brancos no Brasil.


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Merlino (2012) afirma que a violência praticada pela polícia militar diariamente é herança dos esquadrões da morte, criados no período da ditadura 24 e existente até hoje nas corporações. É o tipo de violência que procura, como um animal à sua presa, aquele que se encaixa no perfil escolhido. E nem sempre os possíveis selecionados precisam se encaixar em todos os requisitos, como foi o caso de Aisha, que o fato de ser mulher não impediu que ela fosse selecionada. Dessa forma, o corpo de Aisha, desfalecido, foi arrastado por aproximadamente 250 metros. Apesar de ter ficado esclarecido que não foi intenção de que Aisha tivesse seu corpo arrastado, não houve sequer o cuidado em evitar. Para Letícia, sua sobrinha, o aspecto desumanizador do suposto socorro feriu a dignidade de Aisha. Trataram ela como se fosse uma traficante qualquer. Eu acho que eles devem ter confundido, pensaram que ela era traficante. Jogou dentro da caçamba. Poderia ter colocado no banco do carro, mas falaram que o banco tava cheio de arma. Não tinha arma! Foi desculpa deles. Se foi baleada, tinha que chamar a ambulância. (Depoimento de Letícia - 13/08/2014 - p. 106)

De acordo com normas do curso de formação da Polícia Militar, o procedimento correto ao socorrer uma vítima de tiros ou qualquer tipo de acidente, é chamar o socorro especializado para fazer o transporte com ambulância. E que se não for possível o socorro por esse meio, o policial deve ser coordenado por um médico, por telefone ou rádio, e transportar a vítima no banco traseiro, acompanhada por outro agente. Um dos policiais que arrastou o corpo dela tinha envolvimento com 57 registros de ocorrências de operações que resultaram em mortes. São os chamados autos de resistência25 que, não fosse o vídeo que mostra seu corpo sendo arrastado pendurado por uma peça da roupa, o caso de Aisha, possivelmente, seria enquadrado nesses termos. Além da violência física dos dois tiros que a mataram e de ter seu corpo arrastado, Aisha sofreu a tentativa de violação de sua honra. Não fosse a existência de testemunhas, essa tentativa de violência contra sua memória seria tão 24

A jornalista Tatiane Merlino (2012) em reportagem publicada em setembro de 2012, na Revista Caros Amigos, traz detalhes de entrevista com um policial militar de São Paulo, que fala da existência de grupo de extermínio no interior dos batalhões e que a violência praticada é muito mais cruel que em esquadrões da morte da ditadura militar. 25 Segundo pesquisas do sociólogo Ignácio Cano, especialista em segurança pública e um dos fundadores do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, desde a década de 90, o batalhão de Pedra Ciranda é campeão em autos de resistência, no Rio de Janeiro. (CANO, 2011)


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cruel quanto à violência física, pois é comum que, ao perceberem que mataram um inocente, os agentes invertem os papéis de vítima no Boletim de Ocorrência. Além disso, segundo o jornalista Caco Barcellos (1992), os criminosos fardados passam a ser vítimas no inquérito, e as reais vítimas, passam a ser responsáveis pelas próprias mortes. Os policiais alegam é que o corpo de Aisha foi colocado no portamalas porque a viela estreita impossibilitava que as portas fossem abertas. Quando estive na rua em que Aisha morou, pude comprovar que existia espaço suficiente para passarem dois carros ao mesmo tempo. Nenê comprova isso e se revolta: Mas o que alegaram também foi que não dava para abrir a porta do carro. (...) Mas, como que eles entraram? Tudo bem que ela já estava desfalecida, né? Morta. Então, ia ser mais difícil pra colocar ela, né? Mas dá para colocar sim, o caminho ali não é tão estreito assim não. O carro abre todinho. Abre mesmo. Eu canso de pegar carro aqui, vim de Kombi. E ali, acho que, é até mais largo do que aqui em frente. Quer dizer... eles usaram como desculpa. Mas, tinha como colocar ela sim, no banco, sim... de trás. Não colocaram porque, para eles, tanto faz, né? Não é nada dele, né?! Eles tratam como bicho mesmo. Aí que a revolta foi maior, né?! (Depoimento de Nenê 08/08/2014 - p. 94)

De acordo com depoimento impotente, revoltado e irônico de Cleonice, os policiais criminosos ainda tentaram incriminar a amiga para justificar os tiros. Falou que ela era bandida. Bandida só se for no serviço dela, onde ela trabalhava... (Depoimento de Cleonice - 08/08/2014 - p. 78) Queriam incriminar ela para dar uma desculpa, porque eles queriam dar a versão deles. (Depoimento de Letícia - 13/08/2014 - p. 106) Não conseguiram por quê? Porque todo mundo ficou em cima. Levaram ela por quê? Queriam linchar eles. Porque eles não deixaram ela ficar lá? Pegaram e saíram com o camburão sem dar assistência e sem deixar ninguém dar assistência. Como se ela tivesse... tempo de socorrer ela. Do jeito que mexeu com o corpo ali, não tinha mais jeito. Sabiam que matou na hora. (Depoimento de Ana Cíntia - 13/08/2014 - p. 106)

Segundo Caco Barcellos (1992), a prática de falsa acusação contra a vítima é comum aos grupos de extermínio, dentro da Polícia Militar. Não conseguiram incriminá-la porque havia testemunhas que presenciaram o crime. Breno, o advogado depoente nesta pesquisa, acha que mesmo que ela estivesse desfalecida: (...) feriu a dignidade né?! Ela sendo arrastada daquela forma, então... Foi... foi algo que foi muito impactante.” (Depoimento de Breno, advogado e


50 membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio 23/09/2014 - p. 107)

Os policiais que levaram e arrastaram Aisha, ainda alegaram que a encontraram caída quando chegaram à comunidade. De acordo como Barcellos, é comum a morte ser caracterizada como resultante de resistência à prisão, na tentativa de manchar o nome das vítimas, legitimando o subvertendo a causa do assassinato, que passa, então a ser considerada como legítima defesa. Ou seja, o auto de resistência, como ainda é chamado hoje, é um procedimento padrão entre os policiais. Surgiu durante a Ditadura Militar, como uma medida administrativa que legitima o extermínio. Essas práticas estão ainda presentes nas operações policias que, como Barcellos (1992) descreve em seu livro-reportagem, raramente deixam sobreviventes. O Estado que cria as Unidades de Polícia Pacificadora diz que a polícia é pacificadora, quando na verdade, os verdadeiros amantes da paz não matam. Não matam crianças, jovens, crianças e mulheres ou homens adultos. Ela não respira mais, já não pode se mover, não pode estar neste mundo em corpo visível, mas eternizou fragmentos de sua essência em muito mais memórias do que poderia imaginar. Saímos desse território para andar no terreno em que se transversaliza este.

5.5. PLATÔ: RACISMO “A carne mais barata do mercado é a carne negra Que vai de graça pro presídio E para debaixo do plástico Que vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos” (A carne – Marcelo Yuca e Seu Jorge)

Caminhando

por

esse

espaço

mapeado

encontramos

as

consequências do racismo institucional, materializado da violência policial sobre os corpos negros. Não lembro de ter visto, na infância, exemplos positivos dos meus ancestrais. As imagens que eu via associadas aos negros, nos livros didáticos, eram somente relacionadas à escravidão e subalternidade, como se esse fosse o lugar natural do negro.


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O racismo é uma forma de exclusão de determinado grupo pelo mecanismo de desumanização. Consiste em inferiorizar um grupo humano por suas características físicas, associando-as a falta de atributos intelectuais. Não pretendo, aqui, fazer uma longa contextualização sobre a origem do racismo. Falo sobre o racismo contemporâneo, que se distancia significativamente da expressão clássica do racismo científico. No decorrer do último século, o racismo transformou-se, pois atualmente não se apoia mais na ciência, como se apoiaram a teoria eugenista e o nazismo. É importante salientar que o racismo científico não deixou de existir, apenas perdeu sua legitimidade (WIEVIORKA, 2007). A partir da década de 1960, conceitos novos surgiram para definir o novo racismo, como o racismo institucional, o racismo cultural, o racismo simbólico, e o “racismo cordial”. O racismo cultural tem origem no sentimento de ameaça que o grupo dominante sente em relação ao grupo visado, que é considerado diferente em sua cultura, sua língua, religião e costumes. O racismo simbólico é um conceito que muito se aproxima do cultural, pois tem origem na ideia de que o grupo discriminado é moralmente inferior. Já o racismo cordial é expresso no nível das relações interpessoais por meio de piadas e brincadeiras de cunho racista. Vamos nos ater, aqui, ao racismo institucional, que na sociedade brasileira, está inserido na estrutura de seu funcionamento, que se vale de mecanismos não percebidos socialmente, que mantém o grupo discriminado, neste caso, o negro, na subalternidade da vida econômica, política, mercado de trabalho, educação e habitação. Constitui uma propriedade estrutural inserida nos mecanismos rotineiros, em que se reproduz a inferiorização e dominação desse grupo. Portanto, suas bases estão, sobretudo, nas instituições, e muitas vezes não é percebida conscientemente, até mesmo pelas vítimas. Isso porque a causa do racismo muitas vezes é camuflada, enquanto seu efeito é facilmente percebido. A questão principal sobre o racismo hoje é que não podemos refletir a origem e as consequências dele sem repensarmos o papel das mídias na manutenção de estereótipos que contribuem para a perpetuação do racismo. A prática do racismo dificilmente é combatida quando não há atores, quando não é praticado por um sujeito, mas por um sistema institucional. Ao refletir


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sobre isso, pude analisar a conduta dos policiais que arrastaram Aisha, do ponto de vista do racismo institucional. Dois dos três agentes que estavam na viatura e prestaram o suposto socorro, são aparentemente negros26, portanto pude perceber que o racismo institucional está inserido no sistema policial, e embora em pouquíssimos caso, alguns agentes não estão cientes dele. Neste caso, segundo Santos (2012) tem razão ao dizer que: O racismo passou a ser identificado como uma situação que poderia ocorrer independentemente da vontade das pessoas, reconhecendo que certas práticas, realizadas por instituições, não têm atitudes, mas podem certamente discriminar, criar obstáculos, impedir e prejudicar os interesses de um grupo por causa de sua raça, de sua cor. (SANTOS, 2012; p. 23)

No entanto, a crítica a esse conceito – racismo institucional - é válida, quando entendemos que ele tira a responsabilidade dos indivíduos racistas, limpando suas consciências, uma vez que não é mais ele, mas a instituição que pratica a violência racista. Breno reconhece que os problemas relacionados ao racismo institucional são problemas do Estado: A ONU, essa semana, acabou de reconhecer algo que nós militantes já sabíamos há muito tempo. Que o racismo no Brasil é um racismo institucional, né?! Que ele é... hã(...) É, estrutural. E a gente sabia que o racismo, ele opera em forma de sistema, em forma de mecânica, né?! E que o resultado da Aisha não é o simples do policial só invadir a favela. Mas que o sistema penal, ou sistema de segurança pública, ou o sistema de genocídio, ele tem uma seleção e recrutamento para negros, né?! Com base na cor da sua pele como alvo mesmo desse sistema de extermínio. (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio - 23/09/2014 - p. 108) (...) o caso da Aisha é consequência de uma série de elementos de racismo, né, que desencadearam o racismo institucional e no fim do, no extermínio da população negra. (...) O relatório de desigualdade racial também, que a gente tem no país, mostram que a população negra (...) tá no ápice da corda da violência, né?! Então, o caso Aisha foi sim direcionado, porque ela era uma negra, porque ela tava num local vulnerável, de comunidade, de favela e tal. Ela foi selecionada com os policiais que também são recrutados, e a sua maioria também são negros. Isso se dá pelo neoliberalismo, a abertura de necessidade e, através da necessidade, você recruta essas minorias, vulneráveis, pelo sistema de extermínio, né?! Tanto do lado que mata, quanto do que morre. Então, o caso da Aisha foi uma violência racial, sim, se analisada pelo ponto de vista estrutural, né, pela consequência que desencadeou desde o início da escravidão. (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio - 23/09/2014 - p. 108)

26

Considero necessário explicar que de acordo com Convenção do IBGE negro é quem se autodeclara como tal. “(...) negro é quem se auto-declara preto ou pardo. Embora a ancestralidade determine a condição biológica com a qual nascemos, há toda uma produção social, cultural e política da identidade racial/étnica.” (OLIVEIRA, 2004)


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Este platô transversaliza o platô Violência, pois a violência física sofrida pelo caso-guia foi motivada pela violência racista. Esse debate seria amplamente difundido se as mídias tivessem interesse em discutir a existência das diversas práticas do racismo na sociedade contemporânea. Perguntados sobre a possibilidade de racismo no assassinato de Aisha, os depoentes dizem: Ah! Claro que foi! Foi! Mas, com certeza! Foi. É racismo mesmo! Eles pensam que preto é o quê? A gente, preto, é o quê? É... é bicho? Não é não. A gente é que nem os brancos, né?! Somos que nem os brancos! E naquele dia só tinha policial branco (na operação). (...) A gente fizemos passeata em Macieira... a gente fizemos também, no Mercadão. Os pessoal (sic) que veio, da raça negra (movimento negro), veio. (...) no dia, fizemos cartaz. (Depoimento de Cleonice - 08/08/2014 - p. 80) Foi. Foi. (...) Porque quando você mora... já é preto, pobre... mora numa favela, num morro, você é discriminado, por você já morar nesses locais. E eles não respeitam ninguém. Chegam... não quer saber se é mulher, se é homem, se é criança... (...) Muitos deles se esquecem de onde vieram, entendeu?”(fala, se referindo a policiais negros) (Depoimento de Antônio, 13/08/2014 - p. 103) Com certeza. É (...) a ONU acabou de dizer, de reconhecer que o racismo no Brasil, ele é estrutural. Ele é institucional. E é esse, essa visão de racismo como estrutura, como sistema... (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio 23/09/2014 - p. 108)

O racismo institucional se dá por mecanismos de exclusão, presentes na atuação dos agentes do Estado, nas instituições públicas e privadas, oferecendo um tratamento seletivo às pessoas negras. O sistema policial-penal seleciona, exclui e condena com mais brutalidade, os cidadãos afrodescendentes. No entanto, discutir esse tipo de racismo é polêmico, pois não é claramente percebido. Ao ser perguntada sobre a possibilidade de racismo institucional por parte dos policiais, Tânia, amiga de Aisha, minimiza, talvez justamente por não perceber a cruel diferença de tratamento policial de uns brasileiros em detrimento de outros: eu não acredito, eu acredito que não foi racismo, porque até mesmo... ele de repentemente (sic)... o que eu penso... o que eu acho que não foi a intenção dele matar ela, entendeu?! Não foi intenção deles de matarem ela. (...) Não foi: “porque é negra, vou matar ela”, não, sei que “não era pra tá no caminho” entendeu?” (Depoimento de Tânia - 11/08/2014 - p. 84)

É o conhecimento acerca das práticas racistas nas instituições, portanto na estrutura da sociedade, que aumenta a capacidade de ação e combate. O tipo de consciência que se adquire com o tempo. O que o Estado, por meio de


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suas fardas assassinas, não sabe é que quanto mais ele tenta destruir, mais o espírito coletivo se fortalece. É o novo território da resistência que surge.

5.6. PLATÔ: AMEAÇAS

“Sinto a alma deserta Um vazio se faz em meu peito E de fato eu sinto Em meu peito um vazio” (Peito Vazio – Cartola e Elton Medeiros)

O quinto platô, mapeado na jornada de vida de nosso caso-guia é permeado pelo medo. O que marca este território são os sentimentos de ameaça presentes na trajetória de Aisha e dos depoentes envolvidos. Imagino que possa parecer bobagem, mas quando eu era criança, toda vez que ouvia alguém falar, ou quando lia nos livros didáticos, sobre a história da escravidão eu tinha medo. Aos nove anos eu temia que o regime pudesse novamente se legitimar. E sofria ao pensar nisso. Há um tipo de medo semelhante que faz parte da vida de adolescentes e jovens negros quando uma viatura se aproxima. Mas nós, mulheres negras, durante anos não cogitamos a violência policial diretamente sobre nossos corpos, mas sabíamos que ela poderia atingir os nossos familiares. Mas sabemos, que no fundo, somos todos e todas suspeitos. Esse platô, também, poderia ser facilmente descrito como trauma. O trauma é o tipo de sofrimento emocional que faz com que a pessoa se sinta desamparada diante de uma ameaça, real ou subjetiva. Essa ameaça pode ser contra a integridade do corpo, da própria vida ou à vida de pessoas amadas. O racismo, sem dúvidas se constitui neste tipo de ameaça. Nunca houve reboliço tão grande, na comunidade, como no dia do assassinato de Aisha. Nenê e muitos outros moradores se sentiram inseguros diante da ameaça lá fora: Tava chorando muito (...) Aí, pronto. Foi aquele desespero total, mesmo. A vizinhança toda... ninguém conseguia sair pra rua. Ninguém falava em outra coisa.(Depoimento de Nenê - 11/08/2014 - p. 92)


55 Domingo de manhã! Cedo! Pior que tava cheio de criança, a rua, já. Que aí, na quadra, ficam as crianças jogando futebol. (Depoimento de Tânia 11/08/2014 - p. 86)

A família de Aisha se sentiu mais ameaçada depois da soltura dos matadores. Percebi isso quando liguei para a casa para marcar a conversa, quando Antônio recuou. De fato, pude perceber, nas tentativas de marcar as entrevistas com a família, o receio, por parte de Antônio, de que alguém descobrisse o local em que estavam morando. A família tem medo de sofrer represálias. O sentimento de insegurança também permeia a fala dos moradores do morro, simplesmente por morarem lá: Infelizmente, a gente não pediu para morar na comunidade. Isso acontece mesmo. Todos nós... (...) Mas a vida é assim. (...) é muito difícil. (...) Tinha que pagar sim, porque foi um erro deles. Aconteceu? Aconteceu. Mas acho que eles tinham que ter mais responsabilidade, porque isso não acontece só com ela. Acontece a todo momento, em qualquer comunidade, entendeu? É, negro, é branco, todo mundo morrendo. (Depoimento de Tânia - 11/08/2014 - p. 84; 85)

Todo o sofrimento que passaram os amigos e familiares de Aisha é latente no sentimento de desterritorialização27 presente nas falas: Agora, de sexta, sábado, domingo, a gente fica... sempre lembrando dela, né? Aí, de maneira que a gente fica, né... tem hora, que eu não gosto nem de vir aqui fora, né? (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 87) A gente, assim... Eu...eu, toda vez que saio aqui fora, se eu não olhar prum lado e pra outro, eu não saio. Saio não. Eu tenho medo de sair de casa agora. Eu tenho medo mesmo. A gente fica com medo, né?! Até mulher agora, né? Até mulher. Eles podem fazer de que não tá entendendo nada, e... e chegar matando, né?! É, a gente tem medo, né? (Depoimento de Aparecida - 11/08/2014 - p. 89)

Encontro na memória emocionada de Wellington, a Aisha que sempre soube que seus filhos e sobrinhos se sentiriam ameaçados um dia, por fazerem parte das crianças que em certa idade serão vistas como suspeitas. A mãe dizia ter medo que eles fossem confundidos com bandidos. (...) comigo e até com o Gustavo mesmo. Ela até falou com nós: “quando vocês forem pra rua de manhã, assim, pra comprar pão, pega as crianças pra ir junto.” Ela tinha tanto medo que acontecesse com nós, e acabou acontecendo com ela... Ela sempre falava: “não sai correndo...”, “na rua, não ficando correndo de lá pra cá”, “sai com o documento, de casa”. (Depoimento de Wellington – 13/08/2014 - p. 100)

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Suely Rolnik (2007) se refere aos movimentos de desterritorialização para se referir a um território que perde sua força de encantamento, quando mundos são descontruídos para que novos territórios sejam formados.


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Além disso, o filho adolescente diz que não consegue mais assistir televisão, talvez para, inconscientemente, evitar os sentimentos negativos. Depois do que aconteceu com a Aisha ninguém mais assiste televisão... (Depoimento de Wellington – 13/08/2014 - p. 100)

No momento dessas entrevistas, um garoto foi baleado na escola do bairro, o que fez com que os gêmeos voltassem para casa mais cedo. A notícia que recebemos depois foi de que a criança teria levado uma bala perdida, dentro da escola, justamente próximo a uma Unidade de Polícia Pacificadora. Quando criança o meu trauma estava associado ao medo que eu tinha de que minha família e eu tivéssemos nossa liberdade cerceada. E isso me fez crescer sabendo que a liberdade é o bem maior de todos que sofrem algum tipo de injustiça. Pois há um sistema que nos diz, todos os dias, que não temos o direito de sermos livres. Esse sistema de valores seleciona quem pode ou não usufruir do direito à liberdade. Mas nossa luta não é sanguinária, como a guerra que o sistema propõe. Nós queremos nos sentir livres do racismo sobre os nossos cabelos crespos. Liberdade de ter nossa ancestralidade respeitada no que diz respeito a religião. E acima de tudo almejamos a liberdade de andar sem sermos vistos como suspeitos.

5.7. PLATÔ: PÓS-TRAUMA Amanhã, A tristeza vai transformar-se em alegria, E o sol vai brilhar no céu de um novo dia, Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade, (A cor da Esperança – Cartola e Roberto Nascimento)

O sexto território está acidentado, cheio de incertezas ainda. Conversando com Antônio, pude perceber um olhar desamparado, perdido, e ao mesmo tempo, incrédulo de tudo que aconteceu. Seu olhar, que desejava acordar e perceber que tudo não passou de um sonho também é partilhado por Nenê. Parece que... às vezes eu penso que vou acordar, e nada disso aconteceu, né? (Depoimento de Nenê - 11/08/2014 - p. 92)


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Neste território fragmentado, destroçado, incerto e provisório, vi que não se fala diretamente sobre a morte, como na tentativa de se esquivar dela. Percebi que Antônio, os filhos e as amigas de Aisha evitam se aprofundar, chamando ruptura da vida de Aisha de “o ocorrido”. Ao perceber que evitavam falar diretamente dos acontecimentos, preferi não provocar uma experiência mais dolorosa. Creio que a intenção deles é não ter de sofrer novamente a dor. De acordo com Pollack (1989), quando há algo não-dito, quando evitam falar da violência, deve haver o receio de que sejam punidos por causa do que estaria sendo dito, neste caso, talvez, com mais morte. De acordo com o autor o medo e a dor, vem contaminado por um tipo de amnésia, pelo esquecimento de algo que não faz bem. Existem nas lembranças de um e de outros zonas de sombra, silêncios, “não ditos”. As fronteiras desses silêncios e “não-ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. (POLLAK, 1989 p.6)

O não-dito, então, funciona como uma espécie de linha de fuga. Um tipo de territorialização pela desterritorialização. Para Pollak, o silenciamento por parte de dominado não se caracteriza em esquecimento definitivo, mas pode ser um meio de sobrevivência. Além disso, o companheiro de Aisha teve toda a sua rotina modificada: Quase um mês depois, eu sai do trabalho, porque não tinha condições de trabalhar... não tinha condições, é... agora...” (Depoimento de Antônio 13/08/2014 - p. 103)

Nas falas de Antônio, conheci um misto de revolta e impotência. Entendi que a dor ainda é presente, mas não externalizada. Aprendi com ele que cauterizar a dor não é fazê-la deixar de existir, mas não deixar que ela impeça-os de viver. Ao fim do depoimento, Antônio me revelou que toda a família passou por tratamento psicológico e que já estão todos estabilizados, o que explicou o aparente equilíbrio emocional das crianças. Agora tá até mais... e eles, também, já estão numa boa. Não adianta sofrer e ficar... aí, eu achei que eles tavam... indo no psicólogo parta mais tarde não sofrer. (...) Aí, eles digeriram numa boa, entendeu? Aí, eu... parei de ir no psicólogo: “pô, não adianta ficar levando” (...) A, eu... “ah, vou ficar indo no psicólogo? As crianças estão numa boa. Estão tranquilos.” Até eu deixei sim, uma quatro sessões... eles... (...) a assistente social disse que eu tenho


58 que ir lá falar com ela... para pegar o endereço certo. Pra mim poder ir lá (no psicólogo). Que eu também não posso abandonar. (Depoimento de Antônio - 13/08/2014 - p. 104)

O vento delicioso que refresca as peles cansadas da vida e angustiadas pelas tardes calorosas, aquele tipo de sopro do Universo, que parece garantir que tudo ficará bem, este vento Aisha não sentirá mais. Ela ficou nas regiões subterrâneas da memória da família e amigos, até que decidiram que a revolta e angústia deveriam se transformar e se eternizar. Aisha metamorfoseou-se em saudade. Foi eternizada, pelos moradores da comunidade, no nome da praça, que fica em frente à antiga casa da família. E nas memórias de inúmeros afrodescendentes que conheceram o triste fim da sua vida. Ela transformou-se em sinônimo de luta e resistência. A morte dela fez acordar mentes que estavam inertes ao perigo do racismo e da violência policial. Aos poucos o território caótico vai se estruturando para que seja ocupado por outras pessoas vestidas de Aisha.

5.8. PLATÔ: MÍDIA Podem me prender, podem me bater Podem até deixar-me sem comer Que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não. (Opinião – Zé Keti)

Esta sétima parada na viagem se dá por meio da memória de Liza, e por meio da memória histórica dos meios de comunicação, que retrata a Aisha representada em razão sua morte. Esses dois territórios, do ponto de vista micro e macro político se entrecruzam, diretamente com todas as outras regiões de intensidade na linha da história de vida de nosso caso-guia. Apenas para contextualizar, como vimos, os meios de comunicação são parte da indústria cultural, por isso trabalham na manutenção da poder que já está estabelecido por meio da economia neoliberal. No entanto, meu objetivo aqui não é apontar os meios de comunicação como vilões, quando o maior problema é o monopólio deles. É a linha editorial do veículo que age como um mecanismo de controle de informações, pautando assuntos de interesses das corporações junto a seus anunciantes. Desse


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modo, a mídia comercial veicula recortes tendenciosos como se verdades fossem, reforçando assim o que já está estabelecido, ou criando novos retratos estigmatizantes. É preciso analisar o fato de que, na prática jornalística, os profissionais de comunicação, muitas vezes, ficam alheios ao processo macro político da comunicação, e simplesmente seguem as orientações da linha editorial, que em casos de tragédia, como aconteceu com Aisha, optam por fazer crescer sua audiência, apelando ao sensacionalismo. Liza se sentiu tentada a explorar os sentimentos da família. Aí, já eram umas 7... 8 da noite e já era até para eu ter ido embora, pelo meu horário. E aí, o meu chefe virou e falou assim: “Liza, vamos no IML, e vamos atrás da família dela, do Antônio, da Thalita e mostrar esse vídeo”, e tipo... mostrar o que tava acontecendo. (Depoimento de Liza - 08/08/2014 p. 73)

O chefe pressionou-a a provocar uma situação desumanizadora com imagens, diante dos familiares de Aisha. E aí, o meu chefe falou “vamos no IML” e tal. Só que aí ele me pediu essa coisa que eu a... achei um absurdo, que era, tipo “ah, mostra esse vídeo pra Thalita e pro Antônio e filma a reação deles.” Olha só isso! Era assim, eu tinha que chegar, mostrar e aí isso, ia estar a Fabiana, que é a fotógrafa, com a máquina e ela ia filmar, porque ela... queria ver, é... o meu chefe queria ver a reação deles. E eu achei a coisa mais louca do mundo. Só que você tá tão, tão sobre pressão, que você não raciocina...(Depoimento de Liza - 08/08/2014 - p. 73)

Mas a repórter, apesar de extasiada e afoita pela situação nova, e sendo a primeira jornalista a ter contato com o caso, não conseguiu ser fria. Optou por não mostrar as imagens. Imagina, você mostrar pra... “olha a sua mãe sendo arrastada”. Pô, horrível. Então, assim... eles não sabiam o que tinha acontecido. Então... só que eu não tava conseguindo processar nada. Eu não tava. Ele mandava fazer e eu “ah, tá bom, vou fazer”. Não tava conseguindo raciocinar. E aí, eu fui no IML, só que no IML, a Thalita e o Antônio não tavam, quem tava era o Tiago e uma, a irmã da... da Aisha, e eu acho que, uma amiga. Só que eu não tinha o vídeo no meu celular. Eu tinha uma foto do vídeo. Eu peguei uma parte que dava para ver, bati, porque dava pra ver a roupa dela. E o Tiago ia me dizer “olha, não é ela”. E na hora que eu mostrei pro Tiago, o Tiago também ficou assim (mostra expressão de susto, de choque) “hã, é a Aisha”. E aí começou a chorar. Só que eu não filmei, eu... sabe assim, eu não consegui fazer isso. Até filmei depoimentos, tipo... ó, “e aí, o que que”... (Depoimento de Liza - 08/08/2014 - p. 73; 74) ... eu acho... que se a gente filmasse isso e a gente jogasse no nosso online, ia dar muito ibope. Horrível isso, né?! (Depoimento de Liza 08/08/2014 - p. 74)


60 É. Isso é um problema do jornalismo sério. Sério. E a Fabiana, a fotógrafa que tava comigo (...) até tava assim: “eu não vou fazer isso! Eu não vou fazer isso! Eu não fiz Jornalismo para isso.” (Depoimento de Liza 08/08/2014 - p. 74)

A própria sociedade alimenta o sensacionalismo... O homem foi na redação do jornal vender. Foi um vídeo comprado. E caro. Ele vendeu por muita grana. Ele tentou vender pra Record, a Record não quis, tentou... aí eu lembro que um amigo meu, da Tupi, é... me ligou para falar, porque tava todo mundo acompanhando o caso, e falou “ó, tem um cara vendendo um vídeo”, só que nisso, esse cara já tava lá no jornal e eu não podia falar, entendeu?! Porque aí virou uma coisa exclusiva nossa, porque a gente comprou , então ficou sendo nosso. E... era que... ele filmou de um Galaxy, sabe, daqueles Galaxy C4, bonitão, então a imagem era ... perfeita, dava pra ver tudo, você viu. (Depoimento de Liza - 08/08/2014 - p. 73)

A mídia não tem como pautas o racismo institucional, o estatuto da igualdade racial, a desmilitarização da PM, entre outras demandas dos grupos não dominantes. Quando esses assuntos vêm à tona é criado um mundo caricaturizado pela mídia em que os fatos são tirados de seu contexto concreto e transmitidos como se fossem eventos fragmentados, sem conexão com a história, com a sociedade e com a economia (ARBEX JR., 2005). Tal fragmentação produz mentalidades fragmentadas e diluídas que veem o contexto social, ou seja, a realidade sem um fio ordenador. O resultado é a simplificação, a desinformação e esvaziamento crítico ao (FILHO, 1989). O que acontece em casos de racismo é criar uma aura do silêncio, em que, informalmente, os veículos de comunicação decidem não pautar assuntos relacionados. O racismo institucional torna-se assim um assunto tabu. eles (os meios de comunicação) não têm nenhum interesse mesmo, né... em falar de uma crise de poder. Agora (...) como que o Estado pode iniciar uma parceria? Com benefício fiscal? Com instrução financeira? Não sei... ou então através de lei, com espaço público aberto nas mídias oficiais para tratar as demandas populares, né... que não seja também pela televisão, ou manipulada pela televisão... (...) como que é essa mídia poderia operar, de fato, não é através da boa vontade da mídia, a boa vontade do setor privado, não é... Até porque ele pensa que racismo não lucra para eles, né... Quer dizer, discutir racismo não lucra, viver do racismo, sim, traz lucro para eles, então, é um pouco complicado essa discussão. (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio - 23/09/2014 - p. 110)

Apesar de não ter responsabilidade direta sobre as pautas, o profissional de comunicação que decide ficar imparcial, nos casos de racismo, é ficar do lado do sistema opressor.


61

Há muito que se fazer nos campos para a erradicação das persistentes disparidades e injustiças de base étnico-racial. Além disso, não se vê a mídia falar da desmilitarização da PM, pois a polícia serve para manutenção da dominação e para proteger a propriedade privada. Houve, recentemente uma onda de acontecimentos que fizeram com que a mídia não conseguisse mais escapar de certas pautas. A gente teve um avanço significativo, pelo menos nesse ponto de vista de penalidade com o racismo, né... Então, a forma que se conscientiza, é... tem algo que o Joel Zito (Araújo) fala que é muito interessante, né... que é ‘pacto de visibilidade positiva’ em parceria com o público-privado... é o governo e... e a sociedade civis ou setor privado tendo um pacto de promover uma visibilidade positiva, e através desse pacto se consegue instalar um ambiente de politização racial nas pessoas, nem só pela internet, mas também de mídias oficiais...” (Depoimento de Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-Rio - 23/09/2014 p. 110)

Além disso, quando se trata de pessoas de comunidades pobres, negras, segundo Rosane Borges (2012) os nomes são omitidos, tornando suas identidades ocultas: Tanto no Brasil quanto em outros países, os sistemas informativos demarcam e diferenciam o que é relatado/mostrado, estabelecendo sempre modelos e estilos de vida a serem seguidos. (...) Rostos escondidos, nomes omitidos, identidades ocultas? São (representam) os fugitivos, os exilados, os sem-lugares. (BORGES, 2012; p. 182)

Conversando com Liza, ela me relatou que, constantemente, sofre pressão na atividade, e que aquele dia, foi um dia desses. A obsessão por audiência é um dos motores do jornal em que ela trabalha. É um jornal popular, que pertence a uma grande organização midiática. É o tipo de jornal que tem o sensacionalismo como carro chefe de sua linha editorial. Como se sabe, para alimentar uma história e angariar leitores, os jornais extraem tudo o que podem da história, explorando-a ao máximo. Ela diz que momento em que estava realizando o trabalho sobre o caso da morte de Aisha, estava tão extasiada, e tão alheia ao que realmente estava acontecendo, que não pôde refletir, mas que depois ela ficou deprimida ao se dar conta. Diante dessas observações faz-se necessário a reflexão acerca das práticas jornalísticas, se são ou não desumanizadoras. Assumir e elaborar formas de superar o racismo e suas consequências nos meios de comunicação é fundamental para

que

os

afrodescendentes

tenham

uma

readequação

em

sua


62

representatividade. Para que isso aconteça, a mídia precisa se encarar como racista o mais rápido possível, pois é o silêncio sobre o racismo que o torno cada dia mais distante das discussões cotidianas. Esta viagem teve como objetivo humanizar a figura de Aisha; devolver-lhe seu nome, identidade, no lugar do vergonhoso termo que foi utilizado para se referirem a ela: “a arrastada”. Ao terminar essa expedição, me despedi, com a impressão de que eles ficariam bem, que se sentiriam confortados. Me convidaram a ficar e almoçar, mas já era tarde e correria o risco de perder o ônibus de volta a Londrina. Aisha foi tatuada na memória da família, dos amigos e na minha.


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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa se baseou na ideia de que os meios de comunicação têm um papel importante na produção e manutenção do racismo. A representação dos afrodescendentes, e da mulher negra, é estigmatizada e estereotipada em seus veículos. Entretanto grande empenho tem sido feito pelo movimento negro para denunciar essas práticas, na tentativa de reposicionar o lugar simbólico, na mídia, da população negra no imaginário social. Contudo, uma parcela de jornais e revistas contra hegemônicos, já tem trabalhado a questão de desconstrução de estereótipos, e privilegiam a temática dos direitos humanos. Veículos como Brasil de Fato, Revista Caros Amigos, Jornal A Nova Democracia, são esses exemplos em que representam de forma fiel os assuntos relacionados aos grupos discriminados. Além disso, a internet também se apresentou como ferramenta muito importante às demandas da causa das minorias. Também, a internet, que por seu caráter democrático, alcança mais facilmente grande parcela dos brasileiros, deixa livre o exercício do pensar do jornalista e o produtor de conteúdo, que não está mais submetido a um centro controlador verticalizado. Para que as pautas sociais possam ser difundidas com consistência, de forma humanizada, são necessárias novas formas de se apresentar os textos jornalísticos. É aí que entra o tipo de jornalismo com caráter mais autoral e preocupado com as questões sociais. O new journalism, ou jornalismo literário, surgiu no nos Estados Unidos nos anos 1960, e seus precursores foram os jornalistas Tom Wolfe, Truman Capote e Gay Talese. No Brasil, há fortes indícios, de que ele surgiu anteriormente, no começo do século XX, por meio de João do Rio, autor da A Alma Encantadora das Ruas e Euclides da Cunha, por meio da reportagem-ensaio Os Sertões, uma das primeiras obras do jornalismo dentro da literatura. O new journalism tem caráter de contracultura, e suas reportagens, audiovisuais ou impressas, não se encaixam nos veículos convencionais. Ele, ainda, se apresenta como possibilidade de humanização da prática jornalística, ou seja, de desconstrução das formas tradicionais de prática jornalística. Dessa forma, possibilita

a

discriminados.

representação

mais

fiel

possível

de

grupos

historicamente


64

Neste gênero não há espaço para o sensacionalismo e a superficialidade, vícios do jornalismo contemporâneo. Por meio do jornalismo interpretativo, vertente do jornalismo literário, percebi semelhanças ao método de cartografia, em que o cartógrafo mergulha nas intensidades do seu tempo e dos territórios percorridos, para dar voz a afetos que pedem para serem interpretados. A cartografia, também, possibilita, ainda, uma melhor interpretação da realidade, pois tem mais liberdade para o uso da subjetividade. Comparando-a com o new journalism, percebi que ambos se apresentam como linhas de fuga do que já está estabelecido. Assim, contrariando a ditadura da objetividade jornalística, o repórter literário atua como um cartógrafo, veste a pele do entrevistado para compreender sua subjetividade, sua visão de mundo. Reportar é dar vida, sentido àquilo que a notícia não pôde fazer, por seu caráter objetivo. No entanto, acredito que a reportagem deve ser precedida pela notícia, para depois ser aprofundada, detalhada em nova narrativa livre, e mais humanizada. Ao aplicar a metodologia cartográfica nesta pesquisa, como hipótese, percebi a conexão com o new journalism. Assim, esta pesquisa abre uma lacuna em que, outros pesquisadores possam desenvolver a cartografia como metodologia de reportagem para o new journalism. Não foi possível desenvolvê-la neste momento pela escassez de tempo para a realização e desenvolvimento desta pesquisa. Portanto pretendo utilizar essa conexão em pesquisa de pós-graduação. A ideia principal desta pesquisa foi a produção de uma cartografia capaz de devolver a Aisha, o caso-guia, uma narração humanizada de sua história, de forma que fossem abertas discussões importantes sobre a causa real da morte, a pensar, o racismo praticado por uma instituição social. A força desta pesquisa está nas afecções, na subjetividade. Me sinto profundamente identificada com Aisha, por sermos mulheres negras e moradoras de periferia. A angústia da qual fui tomada ao saber do caso de Aisha me afetou a ponto de me sentir na pele dela. Senti que o houve com Aisha poderia ter ocorrido com qualquer mulher negra moradora de periferia. Aisha poderia ser minha mãe, minha irmã, minha amiga, e poderia ser eu. A realização desta pesquisa teve um papel importante na minha vida, pois por meio da dela pude fazer autoanálise e me descobrir como sujeito


65

comprometido com as questþes de raça e gênero e de me posicionar diante das diversas possibilidades de pesquisas posteriores.


66

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ANEXOS DEPOIMENTOS (realizadas entre 08/08/14 e 23/09/14.)  Depoente 1: Liza (primeira repórter a cobrir o caso da morte de Aisha, e a ter contato com os familiares) Então, como foi a sua experiência quando você soube do caso da Aisha, e para você ir lá cobrir? Então, foi assim: é... eu, nesse dia, foi um domingo, se eu não me engano. Eu tava de plantão e eu cheguei oito horas da manhã. Que a gente tem os horários que o chefe de reportagem coloca a gente nos horários. Eu cheguei às oito. Aí, não demorou muito, assim, lá por umas nove e pouquinho, dez, alguém ligou para a redação falando que... que, a polícia, né?! A polícia militar tinha entrado numa comunidade em Macieira, e... tinha saído atirando. Não tava acontecendo nada, de manhã cedo. Já saíram atirando e tinha matado uma mulher inocente, trabalhadora. E esse morador tava muito revoltado, Nisso, a gente recebeu isso pelo telefone, porque a gente recebe muita coisa pelo watsapp, porque o nosso jornal tem, agora, esse meio de comunicação, e isso ajuda bastante com muita matéria. Só que, por acaso, nesse dia essa pessoa ligou e aí o meu chefe falou assim: “ah, Liza, eu vou dar um pulo lá, vamos ver o que tá acontecendo”. Eu me lembro que era um domingo que tava muito calor, porque ainda era... assim, acho que ainda não tinha terminado o verão, e tava muito quente. Dia 16, se eu não me engano. Exatamente. E aí, eu fui e cheguei e aí os moradores tinha colocado barricada porque eles tavam muito revoltados. Então, eles fecharam a avenida ali, de Macieira, se eu não me engano, a Edmundo Navarro (avenida principal do bairro)... eu não lembro direito. E eu lembro até que eu não conseguia ficar muito perto do fogo, porque já tava quente e a fumaça... então eu lembro que eu tava assim, passando mal, tava muito calor nesse dia. E nisso assim que eu cheguei, todos os moradores, quando viram que era a imprensa, (aumenta a velocidade do relato, como se vivenciasse novamente) vieram correndo na minha direção e todo mundo falava sem parar, eu não conseguia... eu tinha que ficar: “gente calma, eu preciso ouvir um por um”, e todo mundo: “mataram uma mulher, a...a... ela é inocente, a Aisha.” Eu não lembro como eles chamavam ela, eu não lembro. Tinha algum apelido... É isso mesmo. Acho que era isso... “ai, não sei o que, e tal”, e... aí eu fiquei lá um tempo para entender o que tinha acontecido. Eles me falaram “olha, não teve operação, não tava tendo tiroteio, não tava tendo confronto. Simplesmente, a polícia entrou aqui, de manhã cedo, e ela tava saindo de casa”, eu acho que ela tava com uma xícara de café, eu já não lembro, “e atiraram”. E aí, é... (uma pausa) Eles viram que eles fizeram besteira, né?! que é o que todo mundo começou: “vocês mataram uma inocente”. Eles pegaram e colocaram ela dentro de um carro, um carro da PM e


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sumiram. Tentaram, acho que... é... levar ela para um hospital, pra ver se... enfim, se ela tava ainda viva, se dava pra... enfim, pra dar um jeito, entendeu, na situação. Eu descobri, ainda... pesquisando assim, que eles pra uma... a filha questionou, na verdade, que se eles tinham que ir para um hospital, eles tinham que seguir uma determinada rota, e eles... E eles seguiram outra (falamos juntas). É isso eu não fiquei sabendo, eu lembro que eu conversei com a filha... é... e a filha... eu não lembro dela questionar isso, eu lembro só dela que eles arrastaram a mãe e que ela tentou, acho que... talvez entrar no carro, saber alguma coisa, mas que os policiais foram muito grosseiros e não deixaram ela fazer nada. E aí, eles levaram... aí, aí... ok, eu tava lá, não sei o que, e aí... eles falaram que eles tinham levado a Aisha para um hospital de Marechal Hertz, o Sanitarista (Hospital do Médico Sanitarista), se eu não me engano. E aí, eu falei com meu chefe, passei o retorno, ele ligou: “Liza, vamos, então, lá atrás, atrás da família. E aí eu falei, então tá, vamos lá atrás da família, e fui pra Marechal Hertz. Aí, é muito difícil você entrar em hospital, qualquer tipo de hospital público, ou particular se identificando... então o que que eu fiz? Tirei meu crachá, o pessoal, a equipe ficou do lado de fora: o fotógrafo e o motorista... aí, eu cheguei ali na emergência e eu falei: “ah, eu tô procurando a família da Aisha, sabe onde tá?” Aí, na mesma hora... minha sorte: chegou uma mulher que é a irmã da Tiago, que era vizinha e tal... ela: “ah, você tá procurando a Aisha?” Eu falei: “tô”, ela: “ai, eu também.” Só que aí, é... algum funcionário do... do hospital percebeu que era da imprensa e, assim, começou a falar: “ah, ela é da imprensa, da imprensa”. Aí eu, tipo: “não sou da imprensa, não, eu tô aqui com ela, conhecia a Aisha”, sabe, daí eu falei isso, entendeu? Porque nessas horas você fica desesperado, e aí, a gente foi lá pra trás, numa parte do hospital. (pausa) E aí, tava o Antônio, né?!, muito abalado, e a Thalita também, muito abalada. E aí, foi... foi a primeira vez que eu tive a informação de que o corpo da Aisha tava totalmente em carne viva. (pausa) E aí, a gente... aí, o Antônio... assim, ninguém sabia o que tinha acontecido, entendeu?! Porque o Antônio falou: “eu vi a minha mulher, né?! E ela, tá totalmente em carne viva. Eles arrastaram a minha mulher”. Só que eles achavam que ela tinha sido arrastada, tipo... na hora de ser colocada dentro do carro. A gente só foi ficar sabendo o que aconteceu... Por causa do vídeo, né?! Depois... exatamente. Aí, dep... conversei... a matéria pra mim já tava ok. Isso já era no meio da tarde. Eu lembro que eu fui almoçar. Almocei, é... aí eu fui até no complexo do Alemão pra ver se tava tendo alguma operação de outro caso, até andei no bondinho, que eu nunca tinha andado, tal. Voltei pra redação. No que eu volto pra redação, logo depois, chega um cara, e era um morador que tinha filmado o corpo dela sendo arrastado, né?! Ela caiu. Você, provavelmente, já viu essa cena. E aí, quando o meu chefe falou isso, eu lembro que eu fiquei, assim horrorizada. Juro. Eu fiquei assim (mostra espanto, choque), tipo, “não é possível”, sabe? Aí, eu ficava assim: “não, não”. Quando ele começou a falar “cara, arrastaram o corpo dela na


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rua”. Daí eu lembrei do menino João Hélio, né?! Há sete anos atrás, que foram pelos traficantes, horrível. E eu lembro que eu fiz exatamente assim, tipo: (leva as duas mãos à cabeça, numa reação de muito surpresa e choque) “não é possível, não é possível”. E... e aí, depois, é... eu vi o vídeo. E no que eu vi o vídeo, eu falei: “é a Aisha”, sabe, na hora que e vi eu falei “é a Aisha”. (pausa) Aí... minha mãe (mostrando a mãe)... (...) Aí, eu... eu já tinha... aí tava na redação, aí eu vi o vídeo e falei: “cara, é ela, com certeza”, assim. Eu falei: “gente, tudo tá se encaixando, sabe? Ela tava em carne viva” e tal. Aí, já eram umas 7... 8 da noite e já era até para eu ter ido embora, pelo meu horário. E aí, o meu chefe virou e falou assim: “Liza, vamos no IML, e vamos atrás da família dela, do Antônio, da Thalita e mostrar esse vídeo”, e tipo... mostrar o que tava acontecendo. Mandaram para você esse vídeo? Mandaram. O homem foi na redação do jornal vender. Foi um vídeo comprado. E caro. Ele vendeu por muita grana. Ele tentou vender pra Record, a Record não quis, tentou... aí eu lembro que um amigo meu, da Tupi, é... me ligou para falar, porque tava todo mundo acompanhando o caso, e falou “ó, tem um cara vendendo um vídeo”, só que nisso, esse cara já tava lá no jornal e eu não podia falar, entendeu?! Porque aí virou uma coisa exclusiva nossa, porque a gente comprou , então ficou sendo nosso. E... era que... ele filmou de um Galaxy, sabe, daqueles Galaxy C4, bonitão, então a imagem era ... perfeita, dava pra ver tudo, você viu. E aí, o meu chefe falou “vamos no IML” e tal. Só que aí ele me pediu essa coisa que eu a... achei um absurdo, que era, tipo “ah, mostra esse vídeo pra Thalita e pro Antônio e filma a reação deles.” Olha só isso! Era assim, eu tinha que chegar, mostrar e aí isso, ia estar a Fabiana, que é a fotógrafa, com a máquina e ela ia filmar, porque ela... queria ver, é... o meu chefe queria ver a reação deles. E eu achei a coisa mais louca do mundo. Só que você tá tão, tão sobre pressão, que você não raciocina... É desumano, não é? É totalmente. Imagina, você mostrar pra... “olha a sua mãe sendo arrastada”. Pô, horrível. Então, assim... eles não sabiam o que tinha acontecido. Então... só que eu não tava conseguindo processar nada. Eu não tava. Ele mandava fazer e eu “ah, tá bom, vou fazer”. Não tava conseguindo raciocinar. E aí, eu fui no IML, só que no IML, a Thalita e o Antônio não tavam, quem tava era o Tiago e uma, a irmã da... da Aisha, e eu acho que, uma amiga. Só que eu não tinha o vídeo no meu celular. Eu tinha uma foto do vídeo. Eu peguei uma parte que dava para ver, bati, porque dava pra ver a roupa dela. E o Tiago ia me dizer “olha, não é ela”. E na hora que eu mostrei pro Tiago, o Tiago também ficou assim (mostra expressão de susto, de choque) “hã, é a Aisha”. E aí começou a chorar. Só que eu não filmei, eu... sabe assim, eu não consegui fazer isso. Até filmei depoimentos, tipo... ó, “e aí, o que


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que...”. E é horrível esse momento. No IML então, sabe? Mas eles ficaram muito mal, muito mal. Mas, por que o seu chef... é uma curiosidade minha, por que que ele ficou, por que eles quis ver esse momento? Porque, eu acho... que se a gente filmasse isso e a gente jogasse no nosso online, ia dar muito ibope. Horrível isso, né?! Complicado... É. Isso é um problema do jornalismo sério. Sério. E a Fabiana, a fotógrafa que tava comigo... ela até parece com você, até tava assim: “eu não vou fazer isso! Eu não vou fazer isso! Eu não fiz Jornalismo para isso.” Não sei quê... e é verdade... só que eu tava tão assim... desnorteada, que eu não conseguia pensar, tipo... fácil, sabe?! E aí, eu lembro até hoje, que aí eu, eu liguei pro meu chefe e falei assim: “ó, a Thalita e o Antônio não tão aqui”, e ele ficou puto da vida, desesperado: “vai atrás dela!”, ah, não sei quê. Daí eu liguei pra ela, e ela “eu tô na minha casa, em Macieira, tá tendo manifestação”. Porque eles voltaram pra rua, continuaram fazendo manifestação, continuaram tacando fogo, e a polícia tava lá, e aí... eram 8 da noite, e eu tava indo pra Macieira de novo, nisso, tinha uma outra amiga minha na delegacia. Sabe, fica todo mundo , meio que, assim... todo mundo no mesmo caso. Só que aí, quando eu tava indo pra Macieira, é... das... dessa segunda vez que eu fui pra rua, eu não tava com o carro blindado, do jornal... eu, quando eu tava chegando de novo na... na Edmundo Navarro, na avenida, tava todos os carros voltando na contramão “não entra, não entra, que tá tendo tiroteio”. E aí, a Fabiana... só, que aí, é o que eu tava falando Ruthe, eu tava tão louca, que eu tava falando pro motorista “não, entra. Não, entra. Eu preciso achar a Thalita, eu preciso achar a Thalita”, porque meu chefe ficava, é... me ‘procelando’ (atormentando). Nisso, a Fabiana ficava “eu não vou entrar! Eu não vou morrer por causa disso”, que não sei quê. Olha, Ruthe, foi assim... desesperador... Muita pressão, né?! Muuuita pressão! Aí, eu ligava pro meu chefe e falava: “Zé, é... não dá. Tá tendo tiroteio”, e ele: “tenta um caminho alternativo”, não sei o quê, e eu ficava: “cara, não dá”. No fim das contas... não entrei, é... não falei com a Thalita. Não fiz essa... essa imagem horrorosa que a fazer... acho que, é... Deus quis assim, sabe?! Não... Não era. Entendeu? Poxa, totalmente desumano, é porque, eu acho que meu chefe também tava louco, sabe?! É antiético, né?! De certa forma. É.. exatamente! Aí, eu... voltei para a redação, assim... e já eram, tipo, 9 (hs), sabe?! Sei que... pô, eu tava mal. Tava todo mundo mal com isso, assim. E aí, eu... voltei pra casa 10 horas da noite. Trabalhei de 8 da manhã, às 10 horas da noite. Eu lembro que, até sentei aqui. Era domingo. Eu sentei aqui no sofá. Fiquei olhando para... fiquei assistindo o Fantástico, um pouco que faltava. Fiquei assim (simula estar muito ofegante, respiração pesada)... assim... ficava assim, tipo... “Que dia!”,


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sabe? E assim... aí eu fui dormir e eu rezei. Eu, assim, eu, eu... até comentei isso com a Fabiana, com a fotógrafa... eu falei: “cara, eu pedi desculpas para a Aisha”, sabe? Eu rezei e falei assim: “desculpa, por ter sido tão assim, entendeu... essa cobertura”. Eu pedi desculpas, porque eu me senti mal com tudo isso. Eu rezei por ela, eu rezei pra ela. E a Fabiana, também ficou muito mal no dia seguinte... ela teve uma, uma... (pausa) ela teve uma crise de choro, ela não conseguiu trabalhar. Ela foi pra redação. Ela me chamou, e ela começou a chorar... e ela: “eu não tô conseguindo, eu não tô bem, preciso tomar um remédio”. E eu falei: “Fabiana, vai pra casa”, entendeu? Porque a gente... ficou mal mesmo. Foi uma história, assim... muito barra pesada, foi... acho que foi a mais difícil que eu já fiz. E foi isso, né?! Eu fui a primeira a chegar, depois até apareceu uma equipe da Rádio Tupi, mas a gente que deu, assim... com uma... muito grande, porque a gente conseguiu esse vídeo também, que acabou virando exclusivo nosso, né?! Então, a gente ficou a semana inteira nisso e revirando e essa semana a gente teve uma capa no jornal, ontem mesmo, é... falando de... besteiras que a PM e a Polícia Civil fazem aqui no Rio de Janeiro, de matar pessoa inocente, e aí, tinha lá, de novo aquela ‘frame’ daquela, daquela imagem horrorosa. Porque era uma capa assim: “Tem jeito?” e um ponto de interrogação e uma foto da PM: “Executa”, “mata”, “arrasta”, não sei quê... tudo que a PM já fez no Rio de Janeiro, e aí, em resposta a PM mandou isso aqui pra gente, ó: “Tem jeito”, e aí, foto deles com criança e tal (mostra foto, no celular de policiais em ações sociais). E a gente até, acho que a gente deu isso também. Que eles... É bacana ver isso, que não são todos que são corruptos... Não, é... não são todos. É, foi... foi complicado esse negócio da Aisha, é... eles devem ter colocado ela de um jeito muito errado. Para ela cair? Eu, eu não sei... eu fiquei super chocada com o fato de colocarem, né... Quando a pessoa se acidenta, ou qualquer coisa assim, eles tem que chamar o... a ambulância... Eles colocaram ela de qualquer jeito para levar ela pro hospital. Agora, o que muita... o que foi muito questionado nessa época, foi de que a polícia, ela tinha colocado o corpo, não no porta-malas, mas no banco de trás... Eles falaram que tinha... Que tinha armamento. Pois é, pois é. É, foi... cara, foi muito puxado fazer essa história, eu sei que, pô, o Rio tem sempre muitos casos assim, e eu... eu... vi, eu trabalhava, até na Band quando teve a chacina de Realengo, que foram muitas crianças... Eu lembro. Foi em 2011, né?! Foi em 2011, em 2011. E eu fiquei muito mal, só que não cheguei a ir pra rua. Agora, com isso da Aisha, ter sido a primeira a chegar. Todo mundo... e aí, o Tiago super, assim, me ajudou, ele foi muito solícito. Ele que tomou conta de tudo, sabe, enterro,


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essas coisas, e aí... e eu lembro que ele me ligou depois e: “ó, vai ter a reconstituição do caso” e tal... aí, a gente... enfim, aí eu falei pra ele, falei: “olha, o jornal pode ajudar vocês”... Foi um caso bem marcante mesmo. A gente, a gente ficou bem mal. Agora, assim... passou né?! Já tem quatro meses, quase cinco. Ai, mas... ai, foi muito ruim.. Eu lembro disso, eu lembro que eu rezei. Fiquei muito mal. Chorei. E eu nunca vou esquecer da Fabiana, também, era muita pressão : “vai”, “não vai”. Eu lembro que eu discuti até com o motorista. (pausa) Que... é... muita pressão, porque... eu não sei... cada pessoa é diferente, mas eu, quando a pessoa me dá uma missão, eu fico querendo cumprir e sabe... eu quero chegar com tudo, é... Mesmo tendo muito perigo... Você quer atender? (pergunta ela, por causa do meu celular que toca... era minha irmã). E mesmo tendo muito perigo, sabe? Sem ser esse plantão desse final de semana, o outro, de julho – que a gente faz um por mês – teve um, um... mataram um policial em Caxias, em Duque de Caxias, e eu fui fazer. Só que eu, tipo assim, queria, porque queria ir no local que ele foi morto, é... pra tirar foto e o fotógrafo tava: “cara, a gente não precisa disso”, sabe... todo cheio de barricada, mas sei lá, parece que eu fico: “não, eu quero, eu não posso voltar pra redação e falar “não, eu não tenho, eu num... não peguei””. Então, acho que foi isso o que eu senti com a Aisha, mesmo tendo tiroteio, eu queria entrar! Tipo: “não, é a PM que tá dando tiro pro alto. Não tá tendo tiroteio, sabe? Eu quero entrar, eu quero entrar, eu quero conseguir”. Mas cara... Graças a Deus que não entrei... e aí o que... a última notícia que eu fiquei sabendo, por coincidência, foi quando eu consegui telefone pra você, ou naquele dia mesmo que eu te mandei, ou no dia seguinte, é... Eu fiquei sabendo que um motorista que eu sempre saio, ele, nesse dia, foi pra Cidade de Deus, com o Renan, que é o outro repórter. Ele: “ah, eu tô indo na casa da Aisha, daquela que foi arrastada”. Eu: “caraca, que coincidência”, sabe? A Liza e as colegas estão concorrendo a um prêmio pela causa da cobertura da morte de Aisha.  Depoente 2: Cleonice (comadre, mais ou menos com a idade de Aisha, que tinha 37) E aí, Cleonice, quando você conheceu a Aisha? Ih... tem muito tempo. Muitos anos. De infância? (Faz sinal de negativo. Ela parece não estar muito à vontade ainda, por mais que eu tenha explicado o objetivo da entrevista.) Como que foi seu... seu contato...? Ah, foi bem, foi bem. (abafando as emoções) Nunca brigamos. A gente se dava muito bem. Eram parceiras mesmo, né, comadres... Verdade. Era uma irmã pra mim, ela... é a madrinha da minha filha mais nova.


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Ai, que legal! E...falando agora, do... da morte dela. Como que foi pra você quando você ficou sabendo? Ah... foi um choque... Como foi aquele domingo. Cê lembra de tudo? Ah, não vi não. Quando eu cheguei aqui, já tinham levado ela, já. Aí, eu não vi. Já era à tarde quando você ficou sabendo? Não, foi de manhã mesmo, assim que aconteceu. Não demorou muito, e eu fiquei sabendo. Por meio dos vizinhos? É... E daí como você ficou, assim? Ah... fiquei muito triste. Muito. Muito, muito mesmo. Inclusive no dia eu nem consegui... ver ela direito. Passei mal. Onde que foi o enterro dela? Igapó. E o velório foi onde? Lá também. Como o pessoal daqui... porque ela era bem conhecida aqui na comunidade, né?! Ah, era... muito, muito ‘mermo’. Muito querida, ela. É eu lembro de ter visto na TV. Todo mundo gostava dela. Todo mundo. (crianças brincam na rua. Uma longa pausa... ela, apesar de emocionada, segura as lágrimas) Só depois que ela veio pra cá que a gente se conheceu, entendeu?! Quando ela morava lá pra baixo, eu via ela assim, de vista, entendeu?! A gente não tinha aquele contato. Depois, depois que fomos tendo contato mesmo. E ainda, minha filha foi pra ela batizar... a... minha filha gosta muito dela. Isso foi quando? O batismo dela? Ih... tem muito tempo. Quantos anos sua filha tem? Ela tem 9 anos agora... acho que quando eu batizei, ela tava com 2 anos. 2 anos que eu batizei ela. Então, os filhos da Aisha você viu crescer também, né?! Vi. Vi, os gêmeos, inclusive os gêmeos.


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Fizeram 10 anos agora, né?! Isso, isso. O Paulo e a Paola. (longa pausa) E o pessoal comenta muito ainda sobre tudo o que aconteceu, assim? Comentam. Inclusive, quem viu mesmo foi até minha comadre que mora ali, a Deise. A Deise viu ela caída no chão... quando ela tava caída, ela ainda tava respirando. Aí, eles não queriam deixar ninguém socorrer ela. ‘Os polícia’ foi, botaram dentro (a voz fica um tanto sufocada) e levou. Foi isso o que aconteceu. (as palavras saem por um fio) Saiu arrastada. (pausa) Falou que ela era bandida. Bandida só se for no serviço dela, onde ela trabalhava... Tava indo comprar pão, ela... (grande pausa; demonstra indignação). E você sabe onde que foi que aconteceu? Foi ali na frente! Foi aqui mesmo? Foi. Foi ali na frente... inclusive, tudo... lá no serviço dela, do serviço, tudinho, foi. No enterro dela foi muita gente. Até quem trabalhava, faltou ao serviço e foi. Porque viu que ela era guerreira mesmo. Sustentava os filhos dela e ainda sustentava quatro sobrinhos. (pausa) Ela foi guerreira mesmo! Não merecia ter tido uma morte assim... Verdade!... A gente não queria, né? Mas... Queria ela aqui viva! E o pior é que foi de perto. É? Foi... ele viu que era mulher. Falou que o copo de café era uma arma. Nada a ver! Olha a diferença de um copo de café para uma arma! Falaram que ela era bandida. Bandida nada! (indigna-se) Ela levou dois tiros? Um no pescoço e outro nas costas? Não! Foi de frente que ela tomou. Foi. (faz longa pausa) De frente. Nesse dia era aniversário da outra afilhada dela. A gente tinha até combinado d’eu com ela. ‘Da gente ir’... Aí, depois veio essa notícia aí... Aí, no sábado ainda tive com ela. Fiquei com ela... Eu moro aqui atrás, mas eu tava sempre na casa dela... sempre na casa dela. Era sábado, era domingo, era dia de semana, qualquer hora que fosse. E, no sábado, o que é que vocês conversaram, assim, você lembra? Não. Não conversamos nada. Porque... a gente... a gente tá num projeto ali no... ali no Juramento, aí ela foi também, né?! Como ela gosta de...’padriamento’, todos sabiam onde tava indo, mas... todo sábado a gente tava ali junto. Ah, uma ‘encarnava’ na outra, uma xingava a outra, mas sempre... sem briga, é... (fala que era uma forma que as duas brincavam)


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Naquele dia, foi... Como era a Aisha? Era alegre... gostava de conversar com todo mundo? Gostava. Ela gostava de beber a cervejinha dela. Gostava. Gostava mesmo! Eu iria me dar bem com ela. É sim. É muito alegre ela. Muito alegre mesmo. (Falam no tempo presente, como se Aisha ainda estivesse com ela) Nunca teve algum problema com alguém? Nada. Para mim, assim... uma irmã pra mim. Uma irmã, uma comadre, tudo. Eu podia contar. (longa pausa) Foi um choque, né? Foi... foi... foi um choque. Tentei, mas eu não consegui, não... só fui lá na capela, mas também não... Foi difícil de aceitar...? Foi. (pausa) Ah, quando fechou o caixão, que foi mais triste. (longa pausa). Aí, fizeram a festinha das crianças, porque ela ia fazer, que todo ano ela fazia. Nem que seja um bolinho, uma janta, ela sempre fazia. E ela já tava até planejando de fazer... aí fizeram a festinhas das crianças na praça. Foi muito bom. Foi muito bom. E ela não pôde estar presente... Verdade. Inclusive, agora, sábado eu fui lá. Lá onde o... o marido dela mora. Na festa do filho dela, de 17 anos, do filho dela. E mês passado foi da filha de 18... também. É triste! A Thalita fez 19? Isso. E o Wellington fez 17. É Wellington o nome dele? É... do irmão da Thalita... (pausa) Foi triste. (pausa) Mas é a vida, né?! Fazer o quê? Essas coisas acontecem, né?! Mas a polícia não tem o direito de tirar a vida de ninguém... É verdade. Ainda mais sabendo que era uma mulher. Eles falaram que acharam que ela tava com uma arma? É, como é que pode?? Um copo de café para uma arma...? A diferença, gente! O... e foi de pertinho. A polícia tava aqui e ela ali. Quê isso? Ah, não! Não gosto de polícia. Não confio em polícia. Confio em bandido. Porque bandido só faz com você se você fazer com eles. Porque à toa eles não vão fazer nada com você, não é não? (pausa) Eles (os policiais) não, minha filha. Ou você fazendo ou não, eles tão fazendo. (Ela falou algo num fio de som, e eu não pude entender)


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Oi? Dizem que eles estão soltos, já! (repetiu, revoltada) É, voltaram para a corporação, né?! É. Como é que pode, né? Nossa! Isso me revolta. É... mas é... Mas é mesmo! Revolta mesmo. (Longa pausa, depois vieram conversas aleatórias. Um rapaz conversa ao fundo com alguns meninos. Descubro depois que o nome dele é Marcos, e entrevisto ele mais tarde). Vem aqui... o que que eles foram fazer na Guararapes (Estrada Intendente Guararapes)? É... foi isso o que a Thalita questionou. Ela saiu daqui com vida, gente. Ela saiu daqui com vida, que a minha comadre, a outra, a Deise, viu ela cair. Foi lá. Ela tava respirando. Foi eles que matou ela mesmo, no meio do caminho. Se não fosse aquela gravação... (pausa) Eles iam passar... eles nem iam presos, né? (os policiais que arrastaram o corpo de Aisha não foram presos, foram presos, somente os que estavam em operação quando ela foi baleada) Não iam não. Verdade. Mas Deus é tão grande, que foi justo. E aí que... e pior é que estão avisando eles, e estão continuando indo... aí, caiu, saiu arrastando ela aí. Quê isso? Não é bicho não, gente! O que eu não entendo é eles terem colocado ela no porta-malas. Verdade! Ela era pra ir ali, ó: eles na frente, um polícia atrás apoiando ela. Eu acho isso. Mas eu falei: se tem mais mulher aqui, e mais homem, eles não iam nem sair daqui. Não iam não, gente. Se saísse, então ia entrar um montão de mulher dentro da blazer (modelo da viatura) e eles iam ter que levar todos pro hospital. Ô, Cleonice, você acha que foi um... que foi racismo? Ah! Claro que foi! Foi! Mas, com certeza! Foi. É racismo mesmo! Eles pensam que preto é o quê? A gente, preto, é o quê? É... é bicho? Não é não. A gente é que nem os brancos, né?! Somos que nem os brancos! E naquele dia só tinha policial branco. (pausa) Falei mesmo. Se tem... é porque foi muito cedo. Eu escutei os tiros. Falei, o quê que é isso? Lá de casa eu escutei os tiros. Eu moro aqui. (apontando para a nossa esquerda) Eu não sabia, né? Aí, fui ali, na minha outra comadre ali, aí fui ali na minha outra comadre. Aí, o vizinho que mora ali na rua de trás, sabe?! “Sabe o que aconteceu?”.


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“O que, gente?”. “A Aisha...”. O quê que aconteceu com a Aisha?”. E ele: “a Aisha morreu.”. Falei: “O quê?”. E daí, eu subi desesperada. Aí, quando eu cheguei aqui... já tinham levado ela. Eles já tinham levado. Os safados... os covardes. ‘A gente fizemos’ passeata em Macieira... a gente fizemos também, no Mercadão. ‘Os pessoal’ que veio, da raça negra (movimento negro), veio. Aí, fizemos ali, também, oração. Aonde ela morreu... no dia, fizemos cartaz. A imprensa veio em peso? Veio... veio a Record, veio a Globo, o jornal Extra. Veio gente até lá de fora (exterior). Depois disso, ninguém mais viu policial por aqui? Não... por enquanto, eles não tão subindo, não... Eles não podem... ficar a... não sei quantos metros daqui, né? Desse morro aqui. Ah, então é determinado (pela justiça) isso já? Que eles não podem vir. É... se vir, vai vir outro polícia. Outro batalhão. Mas esse batalhão de Pedra Ciranda, não... não. Se vir, vai vir. Vai vir, porque ali, também tem outro morro, né? Barroso (morro do Barroso). Eles estão em guerra. Aí, a polícia vem... sobe pra cá, mas só pra ficar olhando pra lá, né?! Ah, entendi. Porque, se tiver alguma operação lá. Quando os bandidos correm. Mas daqui eles ficam olhando. Mas, pra subir, que nem eles vinham antigamente, atirando, ele não vem não. Depois dessa morte aí... Mas nesse dia ainda... Eles mataram um garoto. É... eu fiquei sabendo, mesmo. Mas esse era bandido mesmo, mas tudo bem (o pai do garoto, também morto pelos policiais, afirma que o filho era inocente). Fazer o quê? (pausa) Aí, dois tomou tiro, aí um foi preso. Foi preso porque foi pro hospital. Um tá preso. O outro já saiu. Porque esse que saiu, os... ‘Os polícia tava’ pressionando ele, para ele dizer que foi ele que matou. Nossa! E o dia que eles subiu, para falar que é pra fazer ali como é que foi, né?! (a reconstituição na cena do crime) Que eles trouxeram boneco. Ele num... esse menino não podia ter vindo. Ele, ele tava com o advogado. O advogado dele nem sabia. Não sabia, não. Aí, vieram a pé com ele lá da Muriti (rua)... subiu isso tudo, aí pressionando ele para dizer que foi ele que matou. Mas tinha testemunha, né?


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É, ué! Todo mundo viu que não foi ele que... como a gente falou: “gente, ele não é maluco de matar a Aisha, não.” (Queriam incriminar a Aisha, e falar que ela foi morta por outro bandido, o que passa a ser aceitável para parcela do população; bandido matar bandido fica tudo certo.) O Roger... o nome dele é até Roger. “Ele não é maluco de... conhece a Aisha há um tempão. Vai matar a Aisha porquê, né? Sendo que ela não se envolvia com nada.” O duro é que o que a polícia faz, muitas vezes, é tentar incriminar a pessoa que foi morta por eles... Mas é! Aí, veio andando (um policial), conversando com ele (Roger), depois ele falou tudo. E, diz que ele contou tudo pro advogado dele, né? Como que pode fazer isso, gente? Como que pode: eu não matei ninguém... eu vou falar que matei por quê, se não foi eu que matei, mesmo? E todo mundo viu que não foi ele. (pausa) Aí, nesse dia, eles tava na mata escondido. Eles ficavam na mata... Aí, falou que nesse dia foi troca de tiro. Que troca de tiro, se nem bandido tinha? “Não. Tinha mais de vinte bandidos trocando tiro com a gente”. Eu falei: “é gente, Deus não dorme não, tá?! Deus não dorme, não”. (pausa) Aí, a gente fazia passeata, uma semana direta, a gente fazia. Fazia mesmo. Aí, veio um montão de polícia. Chamamos eles de assassinos: “vocês são assassinos! Ela era bandida? Só se for bandida lá no serviço dela, com a vassoura dela, de limpeza!” Foi... Só se foi. A arma dela era a vassoura. Coitada. Saia todo dia, 5 e pouco da manhã pra trabalhar. Chegava 4 horas da tarde, 4 e meia, 5 horas. Também, chegava, entrava pra dentro de casa e ia fazer as coisas dela. Sentava ali na praça só final de semana, que ela sentava. Com a cervejinha dela. (a praça é o local de lazer da maioria dos moradores) Aquilo ali é o... a cervejinha dela... (longa pausa, e nos distraímos com uma antiga conhecida da comunidade que estava embriagada dançando pagode)  Depoente 3: Marcos (jovem morador da comunidade; não tinha muita intimidade com a Aisha, mas a conhecia) A Aisha era uma menina legal. Menina tranquila, humilde... Todo mundo da comunidade gostava dela... Tinha os filhos... tinha os filhos dela. Sempre trabalhava. Sempre gostou de trabalhar. Tinha muita responsabilidade com a família dela, entendeu? Uma mulher admirável, né?! É... gente boa. No... no dia, quando as polícia veio aqui, eles vieram covardemente mesmo. Veio esculachando todo mundo. Eles nem queriam saber de nada, meu. Parecia que eles


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veio pra matar mesmo. Mas eles vieram pra matar a pessoa errada? Não adianta. Eles tem que matar é... esses caras que se envolvem nessas paradas. Mas, tá bom, a gente tem que entregar nas mãos de Deus, né?! Deus que justifica a gente. Deus que... entendeu? Mas... Deus sabe o que faz, né? Como que foi? Você estava aqui, no dia? Tava. Você chegou a ver ela? Vi. Foi... foi ali. (indicando a direção da rua em que ela morava) Como foi sua reação? Pô, bateu uma revolta na hora. Mas só que eu sou tranquilo. Sou uma pessoa tranquila, não... minha parada é... minha curtição é outras coisas, entendeu?! Totalmente diferente, legal. Mas que bate a revolta, bate. A comunidade inteira, né, ficou revoltada? É... Pra você, você acha que foi um caso de racismo? Não. Acho que... que... eu nem sei como que foi, cara. Eu acho que eles deram tiro no... pra pegar nos outros... no bandido e foi... aí, acho que acertou nela, entendeu? Não foi assim, também. Mas eles tem que assumir, né, cara? Eles tem que assumir. Eles são exemplo, né? Eles são policiais, eles são exemplo. Eles tem que dar exemplo.  Depoente 4: Tânia (amiga de Aisha) E aí, Tânia? Você conhecia a Aisha há quanto tempo? Ah, eu tenho 28 anos e eu conhecia ela, praticamente, desde quando eu nasci. A vida toda... A vida toda. Como que era seu relacionamento com ela? Ah, era normal. Como amiga, vizinha, ela era uma pessoa boa. Assim, se a gente tinha algum problema pra resolver, a gente sentava junto. Ela era uma mulher guerreira, né?! Ela era uma mulher guerreira, trabalhadeira. E aí... mãe, amiga, pessoa muito boa de se lidar. Entendeu?! E sobre a morte dela, como foi? ... No dia você estava aqui? Tava, tava. Foi brusca, né?


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Assim uma coisa que a gente... Porque a gente nunca esperou acontecer isso. Nem com ela, nem com ninguém aqui, entendeu?! Porque não... final de semana, assim...dia das pessoas estarem na rua. A família em casa, né? Poderia ter acontecido... como aconteceu com ela, poderia ter sido com uma criança, qualquer outra pessoa, entendeu?! Quando você recebeu a notícia, como que foi? Foi alguém que te deu a notícia, ou você...? Eu escutei os tiros... (pausa) Porque quando... se acontecesse alguma coisa com quem tem a ver com o problema... aí ficaria todo mundo em casa, mas como foi com ela... aí, foi aquela gritaria, aquele escândalo ... com ela, não, como se fosse com qualquer um outro trabalhador, entendeu? É, todo mundo se revoltou, né? Todo mundo se revoltou. (fala algo com a irmã dela) Todo mundo se revoltou... a... comunidade toda, entendeu? Foi um negócio muito louco mesmo. Assim, a... sei lá... estranho, né?! (emocionada, mas contida, faz uma pausa) Muito triste. A gente tinha o hábito de toda tarde jogar vespa, na... sentava lá, e todo mundo jogava vespa...e toda noite, todo dia ela tava junto com a gente, assim. Todo dia quando eu chegava do trabalho, é... o... (escorriam lágrimas, das quais os dedos tentavam se livrar) eu até lembro que teve uma... teve uma vez que, ficou eu, ela, o marido dela e a filha dela jogando vespa até a noite. Viramos a noite jogando... quando a gente foi ver, era 7 horas da manhã, e tinha que trabalhar, e não tinha nem dormido (lembra a diversão, e sorri) Eu: “Aisha, sol tá raiando!” Ela: “Corre. Vou tomar banho pra trabalhar.” Haha... Então, a... é uma coisa que a gente nunca mais vai fazer. Só vai ficar no sentimento mesmo. No coração, entendeu? E relembrar, fazer o quê? Infelizmente, a gente não pediu para morar na comunidade. Isso acontece mesmo. Todos nós... Mas não deveria (acontecer)... Não deveria, né? Mas a vida é assim. Sei, a... é muito difícil. Nessa minha pesquisa, eu vou falar sobre racismo institucional também. Você acha que foi uma prática de racismo? Não. De... eu não acredito, eu acredito que não foi racismo, porque até mesmo... ele de repentemente (sic)... o que eu penso... o que eu acho que não foi a intenção dele matar ela, entendeu?! Não foi intenção deles de matarem ela. Não foi, eu acho que foi... acho que foi até sem querer, mesmo. Entendeu? Por impulso, será? Eu acho que foi... mas isso também não... independente se sem querer, mas todo mundo... no meu trabalho eu tenho responsabilidade. Não tem... não existe ‘sem


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querer’ no trabalho. Ainda mais usando arma, essas coisas. Entendeu? Não foi: “porque é negra, vou matar ela”, não, sei que “não era pra tá no caminho” entendeu? Não deu tempo de pensar nisso, você acha? Eu acredito que não foi assim. Tinha que pagar sim, porque foi um erro deles. Aconteceu? Aconteceu. Mas acho que eles tinham que ter mais responsabilidade, porque isso não acontece só com ela. Acontece a todo momento, em qualquer comunidade, entendeu? É, negro, é branco, todo mundo morrendo. Porque na comunidade não tem só negro também. Tem pessoas de raça, né, clara, que moram, também por falta de opção, entendeu? Não acredito que foi racismo, não entendeu? Até porque não tinha policial, também, quando acont... quando aconteceu, não tinha policial é... claro (de cor de pele clara), para... ah, é ... até dizem que é o preto mesmo que é o próprio racista, né?! Ó, mas o... não tinha policial claro, assim, para falar que era... era negra, que tava junto. Acho que foi pelo impulso mesmo, pelo acontecido mesmo, não era pra ter acontecido assim, mas não foi por maldade, assim: “eu vou matar ela”, né? Tem algumas pessoas que falaram que... acho que isso ficou meio claro, assim que... não tinha... não era troca de tiros, que eles chegaram já atirando... Não tinha troca de tiros nenhum. Com os tiros... foi, foi... Foi só um tiro... Uma rajada só de fuzil que saiu, que quando a gente... a gente mora na comunidade, a gente sabe da onde que parte o tiro. Se fosse troca... Foi só uma rajada mesmo, de fuzil que saiu; foi mais tiro nenhum que saiu, entendeu? Não teve mais tiro. Só foi isso mesmo... Infelizmente, acho... eu acho que aconteceu: (Tânia arrisca um palpite de como ocorreu o crime) ela tava vindo pra comprar pão, aí passou, tipo assim, alguém de relance por trás dela - porque morreu outra pessoa – entendeu? Aí, eles pra... em vez deles tentar proteger ela para acertar a outra pessoa, não. Acertaram ela, a outra pessoa, porque... portanto... antes da outra pessoa morrer, ela morreu primeiro. Ah, entendi. Mas eu não sabia que essa outra pessoa tinha morrido perto do local. Morreu. Perto do local. No mesmo local. Eu achei que tinha sido em outro lugar, por outros policiais... então foi pelos mesmos policiais...? Foi pelos mesmos policiais... que morreu ela mais um menino . Teve até... falam que o pai dele foi na delegacia também. Só que o menino, eu não conhecia, não sabia a origem dele. Então, se falarem pra mim que era um bandido, tudo bem, eu não conhecia ele, ninguém aqui conhecia ele. Então, eu tava ali mesmo, foi por causa dela. Porque todo mundo ali se conhece desde pequeninhos. A gente era pequena. Ela, no caso, era mais velha, né?!


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Tem uma pessoa que ainda falou que eles tentaram fazer o... um cara assumir a culpa, no lugar da polícia... Foi. O menino que foi preso. Só que deu errado. Não... acho que o menino foi até... tá solto. Foi até solto, já. Demais! As pessoas boas se vão. Triste. Eu, quando soube, eu fiquei chocada. Não tem como a gente não se afetar, né?! Não, não. Foi o que eu falei, é... a gente vê toda hora na televisão, e fica apavorado com essas coisas na televisão, que passa. Igual, antes da Aisha morrer, teve uma policial que morreu, acho que no (morro do) Alemão, né? Ah, é? Teve. Acho que foi... foi troca de tiro, não sei. A policial morreu no Alemão. A gente fica, assim, apavorada, porque além de ser mulher... a gente é mulher também, tem sentimento... Mas porque ela tava fazendo o trabalho dela, né?! E por ser mulher, tem sentimento também. Aí, aconteceu, um ano depois disso... uma policial morre lá, e eles vem fazer merda aqui? Domingo de manhã! Cedo! Pior que tava cheio de criança, a rua, já. Que aí, na quadra, ficam as crianças jogando futebol. Pertinho, né? Do local. Entendeu? (Percebi em muitos trechos do relato de Tânia, que ela tentava escapar de cogitar a possibilidade de racismo, muitas vezes ela defendeu a polícia, justificando as atitudes. Mas, acredito que ela talvez, não tenha tido a oportunidade de fazer uma análise das desigualdades sociais no Brasil. E que essas desigualdades são as responsáveis pelo surgimento das comunidades; são desigualdades baseadas no racismo)  Depoente 5: Dona Aparecida (vizinha e amiga). Aparecida, a senhora conhecia a Aisha há quanto tempo? Ah, já tinha o quê? (pergunta para uma das filhas) Já tinha, assim, uns 10 anos, né? Que conhecia a Aisha, né? É... tem uns 10 anos, que a gente conhece ela. Que a gente mora pertinho. Ela morava ali, né?! Então, como que era a Aisha? Ela é uma mulher, muito... vou te contar... especial. É muito caprichosa. Muito trabalhadeira. Tinha aqueles 8 filhos, bem dizer... que a gente fala, né?! 8 filhos, né? Que eles tiveram aquela disposição de pegar, aquelas crianças, pra criar. Estava


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criando eles muito bem. Eles se deu bem. Não passava... não faltava nada. Portanto, ela até começou a trabalhar, que até então ela não trabalhava... trabalhava só em casa, né?! Mas depois ela começou a trabalhar fora, pra poder ajudar, né?! E as crianças também foram indo pra escola... Isso. Aí, ela trabalhou... acho, chegou a trabalhar, acho que, dois anos, trabalhando todo dia, levantando cedo, de madrugada, né?! Foi trabalhar. Aí, trabalhou e tudo; fez uma obrazinha (reforma) na casa dela. Aí... depois... aconteceu o que aconteceu. Foi triste, né? No dia, a senhora... tava aqui? Tava em casa. Foi de manhã. A senhora ouviu, então? Ouvi os tiros. A ‘gritaiada’ E... quando tem uma coisa dessa assim, não há quem não passa e não, né?! Fica triste, né? Que foi uma coisa muito triste. Foi muito triste mesmo. Aquelas crianças, tudo... coitadinha das crianças tudo. Chorando... você vendo as crianças chorar. Foi triste! Bem forte, né? Bem forte. Forte mesmo. Mas ela era uma pessoa muito... muito boa, muito... era muito atenciosa, poxa! Qualquer coisa que a gente... que tinha uma dificuldade, um pouquinho, de fazer... ela passava a mão, ajudava a fazer... Ela era muito boazinha, ela. Que ela seja boa pra Deus, né? Eu imaginava que ela era assim mesmo. É... Tipo ativa, né? É... ativa, ativa mesmo. É... aí... aí (a filha que estava por perto, se despede dela e sai), de maneira que ... até hoje, poxa... a gente nunca vai esquecer, sabe? Ainda mais aqui pertinho. Sempre olhando ali, né, no portão dela. (pausa) Final de semana vocês se juntavam...? Final de semana... a gente de juntava aqui. Tem uma barraquinha da minha filha, aqui né, (aponta para um pequeno quiosque em frente a uma casa) da mãe dessa daí (mostra a netinha de uns 7 anos). Aí, de tarde... ela, toda sexta, sábado e domingo, ela abre aqui, né?! Nessa tendinha, nesse ‘butiquinzinho’ dela aqui, né? Aí, sabe como é, ela gostava de uma cervejinha também, tomava a cervejinha dela. Ôxi... era muito legal. Que assim... ela era muito alegre, sabe? Alegre mesmo. Agora, de sexta, sábado, domingo, a gente fica... sempre lembrando dela, né? Aí, de maneira que a gente fica, né... tem hora, que eu não gosto nem de vir aqui fora, né? Chego a lembrar logo dela.


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Mas também é bom manter as... as boas recordações, né? É... as recordação é boa... de coisas boas, né? Igual ela era assim, pra gente... vou te contar, aqui todo mundo adorava ela, todo mundo. Por aí tudo, todo mundo gosta dela... gostava dela. Portanto, vou dizer a verdade... no enterro dela... nunca vi enterro igual aquele, não. Foi muita gente, né? Muita gente. Da onde... da onde ela trabalhava. Veio até o... patrão dela. Veio muita gente mesmo... do serviço dela. Vou te contar! Mas... fazer o quê, né? Aconteceu, né? A gente sente, tudo... mas não... não pode fazer nada, né? (ela se emociona, um tipo de emoção muito madura, mas resignada, impotente também) O que mais eu posso dizer para você? (pausa) E... né? Ela chegava do serviço, ela chegava... menina... e falava com as meninas, e gritava com as meninas (as amigas e vizinhas, e filhas da Aparecida) “Ô, Leila, eu cheguei Leila”, aí, Leila: “Aisha, hoje não tem cerveja não, hein?!” “Ah, tá pensando que eu vivo de cerveja? Eu vivo do meu trabalho.” É tudo brincadeira dela, né?! É... aí, ela entrava pra dentro. Ia lavar roupa, arrumar casa... sábado e domingo, então...! Acho que ela só descansava no domingo, só na parte da tarde. Porque era: lavar roupa... pra você ver: 8 crianças, né?! Os dois mais velhos tão maior, mas é criança ainda, né? Imagina a loucura... A loucura, menina! Vou te contar. É... ela era uma mulher muito responsável, muito responsável, muito, assim caprichosa mesmo. Muito caprichosa. Muito atenciosa. E as crianças dela não viviam assim, não sei, na rua, não. É da... de casa na escola, de... da... quando saía pra passear, saía com aquelas 8 crianças. Era tão bonito. Era bonito. Era bonito...? É... é, mas o sonho dela terminou cedo, né? Terminou cedo... Foi interrompido, né? É... é triste. Quando eu soube, da notícia da morte dela, assim, foi numa segunda-feira. Fiquei sabendo na segunda, né? E foi no domingo de manhã. É, foi no domingo. Só que eu trabalhava no domingo. Aí, eu fiquei sabendo só na segunda... E eu chorei. Menina, e dava pra chorar, dava pra chorar mesmo. Muito forte... Muito forte!


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Que às vezes acontece alguma coisa assim, e... é um pouco distante, é em outro estado, a gente não se afeta muito, mas com ela foi uma coisa assim, muito especial... muito... Muito rápida, né? Foi. E chocou todo mundo. Revoltou todo mundo. Todo mundo, menina. E você vê que... vou te contar... todo lugar foi essa notícia, né? Essa notícia triste. Porque é uma notícia que... todo mundo vai morrer um dia, né? Mas do jeito que ela morreu. Vou te contar... foi muito... duro mesmo. Arrastada e tudo, ainda né? Isso é que foi mais triste... que foi mais... tristeza... né? Uma mulher trabalhadeira... morrer feito um... um mendigo... um, sei lá. Um bicho...? É, um bicho. Não é fácil, não. Eu acho que eles... não... não tinha necessidade de matar, não... Não, porque não tinha tiroteio nenhum. Se tivesse tendo um tiroteio, com uns cinco, seis bandidos com poder de tiro, aí... podia dizer que tava passando uma pessoa, né?! Mas não tava acontecendo nada disso. Tava calmo. Até na quadra, ali, tinha até baile, de noite, tudo. Tudo calmo. Eles chegaram atirando na mulher que vai comprar pão. Encontra com a mulher e, de repente, já sai atirando... eu acho que não tinha necessidade de matar ela, não... né?! Não teve troca de tiro aquele dia, de jeito nenhum. Não tinha mesmo. Não teve não. Agora, nada vai trazer ela de volta, né? Mas a gente fica... sem jeito, porque já soltaram eles, já ‘ponharam’ pra trabalhar de novo, né?! A gente, assim... Eu...eu, toda vez que saio aqui fora, se eu não olhar prum lado e pra outro, eu não saio. Saio não. Eu tenho medo de sair de casa agora. Eu tenho medo mesmo. A gente fica com medo, né?! Até mulher agora, né? Até mulher. Eles podem fazer de que não tá entendendo nada, e... e chegar matando, né?! É, a gente tem medo, né? Tentaram incriminar ela ainda, né? É... isso. Tentaram incriminar... Falando de arma... É... onde que a mulher tira... tá com uma arma? Foi tratar dos filhos... deixou os filhos dormindo pra comprar pão. O marido tava trabalhando, porque o marido dela trabalha domingo, né? Ela não trabalhava. Ela não trabalhava domingo... Aí, daqui a pouco, o marido dela recebe a notícia que a mulher tá morta. Já pensou? Dona Aparecida sabia muito bem o que é viver na comunidade. E ficou muito triste de saber que os policiais estão em liberdade.  Depoente 6: Nenê (Amiga de Aisja)


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Conheci ela há uns 10 anos. Desde que ela veio morar aqui. E... antes eu não era tão próxima dela não. Que eu trabalhava fora. Não tinha nem tanto tempo. Aí eu fiquei bem próxima dela há uns 2 anos. Antes dela falecer. Que eu frequentava muito a casa dela, ela frequentava muito aqui também, minha casa. Era muito minha amiga, muito. Muito minha amiga mesmo. Minha mãe faleceu tem uns... vai fazer um ano agora em setembro, e ela foi a que mais me deu apoio. Tava sempre aqui comigo, que eu tenho um irmão especial também, né?! Ela gostava muito do meu irmão também, né? (pausa) É isso, uma pessoa muito especial. Sempre animada. Até ontem, dia dos pais, eu tava comentando: “se ela estivesse aqui, ia combinar da gente fazer qualquer coisa, um churrasco, uma feijoada”. Gostava muito de comemorar. Datas comemorativas. E era isso... muito... muito minha amiga. Agora, sem ela, não tem nem graça, né? Não, né?! Difícil, né?! Muito difícil. Todo mundo, aqui na comunidade... se dava bem com todo mundo. Muito amiga mesmo. Presente. Uma ótima mãe. Uma ótima esposa. Trabalhadora (se emociona). Tá fazendo muita falta pra gente. Muita falta mesmo. Não tem um dia sequer que eu não pense nela. Agora mesmo pouco tempo, eu tava contando os meses, né, que ela faleceu... Vai fazer cinco meses, né?! Cinco meses. Dia 16. E é isso... No dia, no dia que aconteceu tudo, você tava em casa? Tava. Como que foi? Mas eu não vi nada, né?! O... na hora, o momento. Porque... tinha acabado de acordar. Então eu já... já vinha pensando em ajeitar o almoço. Aí, eu ouvi uns tiros. Meu filho tinha acabado de sair. Meu filho mais velho. Nossa, eu imagino a sua preocupação. Daí, eu já fiquei nervosa. Que... que ele acabou de sair. E eu tenho um irmão especial também, e antes dele vim atrás... Aí, o meu filho... antes, um pouquinho antes, o meu irmão tinha saído ali fora, né?! No portão. Daí eu corri e tranquei o portão. Aí nisso, o meu filho chegou. Aí, ele chegou, tomou banho e saiu de novo. Aí... eu fiquei já preocupada. Mas eu coloquei meu irmão pra dentro e fiquei aqui dentro, né? Aí, quando passou um pouquinho, já começaram a gritar. E eu: “o que houve, meu Deus?”, e ouvi falando assim: “perdeu ‘neguim’, perdeu”. Eu até achei que fosse outros bandidos. Outro lugar, né? Aí, aquela gritaria. Muita gritaria mesmo. Aí, eu querendo ir ver, mas ao mesmo tempo com medo, né?! Aí teve uma hora que eu cheguei no portão, e olhei assim. Aí, o pessoal tava todo ali fora. Os moradores. Aí eu... trancada, porque meu filho esqueceu e levou a chave... Não tinha nem como você ir lá, né?


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Aí... e a filha dela gritando. Thalita, a mais velha: “Nenê, Nenê... mataram a minha mãe, mataram a minha mãe”. Eu não tinha... não tinha... querendo sair. Aí, eu vim, tava com uma roupa de dormir, e aí, troquei de roupa, botei a cadeira, já ia pular o muro... nisso que ia pular o muro, meu filho chegou. Voltou, né? Aí, eu falei: “Alan, mataram a Aisha mesmo? Mataram a Aisha mesmo?” E ele passou por aqui... só fez assim com a cabeça, dizendo que sim. E aí, eu comecei a ficar desesperada. Daí, sai pra rua, mas também não teve coragem de... ir ver. Perguntava pras pessoas... a Leila, as vizinhas aqui, a Cíntia. “Ah, gente, leva ela. Leva ela. Dá tempo. Ela tá viva!” E elas: “não, Nenê, ela morreu. Dá mais tempo não.” Ela... elas já tinham ido lá ver, né?! E aquele desespero. É, total, né? Aí... quando os policiais levaram ela, também, eu não vi. Não vi nada. Nada. Nadinha. Não tive coragem nem de ir lá ver ela deitada, ela caída no chão... Aí, nisso que levaram ela, né?! A filha dela desceu por aqui... levaram por aqui... a filha dela desceu por aqui com uma amiga dela, também com uma amiga dela. Aí, pra encontrar com eles no hospital. Aí, por... a gente tava combinando: “vamos descer, vamos fazer passeata. Vamos descer, vamos descer!” Aí, nisso, eu desci com eles também. Foi muita gente. Aí, eu fiquei até meio dia, mais ou menos lá embaixo, né? Aí, quando tava lá embaixo, lá na passeata, chegou a notícia que ela não tinha falecido. Que ela... que ela tava na mesa de cirurgia, é... Acho que a Thalita ligou... falou isso pra tia dela, que ficou uma moça, que ela considerava como tia, com as crianças. Aí eu já fiquei assim: “ai, meu Deus... será? Meu Deus.” Aí , as crianças... as crianças desceram, os menores chorando muito. Aí, o Bruno, me abraçando e eu falei: “Paola, vamos orar Paola?” A de 10 anos: “porque tua mãe não morreu ainda não. Pra Deus, não há impossível. Quem sabe ela não volta?” E ela... aí chorando, aquela coisa toda... eu voltei pra casa. Nisso eu fui fazer uma comida. Acabar de fazer o almoço. Aí, aí vieram pra cá. As crianças vieram e os sobrinhos dela, os gêmeos... os gêmeos. Aí falaram: “ah, Nenê, a minha mãe já morreu sim”. E falei: “por quê? Quem que falou?” “Ah, a Thalita já ligou falando.” Aí, eu fui... nisso eu fui pra fora... cheguei ali fora e a minha vizinha falou: “ah, morreu mesmo.” Aí, foi um desespero total, né? Dá pessoa voltar. Aí, quando confirmou que ela tinha morrido. Realmente. Apesar de que, para mim, ela levou aqueles tiros ali, ela morreu... na hora. Você acha que ela morreu na hora? Pra mim sim. Depois que eu fui saber... (pausa) Você tinha pensado que ela tinha morrido na hora, mas depois... Não, não, é... porque naquele desespero, que elas falando que ela tinha morrido, eu: “já morreu”, fizemos a passeata e tudo. Só que quando chegou a notícia que ela não... não... tava viva, tava na mesa de cirurgia, aí, eu fiquei esperançosa, né? Eu... “então, ela não morreu. Então o tiro não foi tão grave assim, né?!” Mas quando chegou a notícia que, realmente, tinha... tinha falecido. Aí, foi aquele desespero total, né?! Aí, nisso já tinha chegado, do hospital, o marido dela com a filha, aí, eu cheguei lá, e tava na porta assim, da sala... com as amigas do trabalho, tudo aí, né? Ela tava cheia. Aí, eu vi ele, assim, na porta eu falei “e, vai cham... pega ela lá,


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chama ela, ô, Antônio. Ela tá na cozinha, tá na cozinha. Chama ela.” Tava chorando muito, “senta aí, senta aí”. Aí, pronto. Foi aquele desespero total, mesmo. A vizinhança toda... ninguém conseguia sair pra rua. Ninguém falava em outra coisa. Você chegou a ver a Aisha no hospital? Não. Não, não fui. Ah, você não foi? Não. Só foi a filha, com essa amiga dela. Depois, ele tava trabalhando aqui no Mercadão, que é pertinho, o marido dela. Aí foram buscar ele de moto, né? Ele logo foi pra lá também. E um amigo dele, um escurinho, que apareceu muito das reportagens. Mas eu não, só vi ela... Nem no enterro eu tive coragem de ver. Fui no enterro, cheguei lá, falei muito com a... dei entrevista lá. Falava: “eu tô nervosa” desesperada. Mas aí minha irmã mais velha foi também: “ah, vamos nos despedir da nossa amiga”. Mas, eu sou assim, eu não... se eu puder evitar de ver a pessoa, ainda mais do jeito que foi com ela... Ah, eu não quis ir ver não. Nisso, eu até tomei uma coragem, que eu... tava indo, tavam fechando o caixão... Aí, aquela... aquela gritaria toda, quando foi enterrar ela mesmo, ainda abriram o caixão de novo, né?! Mas eu também não... que era muita gente, aí eu não cheguei e fui lá não... Mas até hoje... até hoje, eu não... assim, enquanto eu viver pelo menos, eu não vou esquecer dela. Sempre lembrando. As crianças... eles não moram mais aqui, né?! Mas... eles gostam muito de mim. Eu gosto muito deles, principalmente, as crianças, né?! E é isso. Muita saudade. Muita... muito triste... Muito triste mesmo. Parece que... às vezes eu penso que vou acordar, e nada disso aconteceu, né? Porque eu perdi a pessoa que amava muito, muito mesmo, que era a minha mãe. E... Mas, já tinha uma certa idade... doente... Começou um pouco antes com uma... artéria entupida, né? Não tava andando bem e tudo. Então a gente já... já sabe que um dia todo mundo... rodos nós vamos, né? Mas da forma que foi... Assim, nova, com... ela tava com quantos? 37, quando faleceu. Esse mês é o mês de aniversário dela. Dia 22, né? Dia 22. Ah, mas da forma que foi. Pô, tava tão bem. Eu nem... vi ela no sábado. Tinha uma semana que eu não... que eu não via a Aisha. Aí, eu tava aqui, no sábado com meu irmão, e ela brigando com as crianças, falando, aquela coisa toda, e eu ainda pensei comigo: “amanhã eu vou ver Aisha, né?” Daí, ainda fiquei rindo aqui sozinha, ela falava muito. Brigava muito. Aquela coisa toda. Eu ainda fiquei rindo aqui, sabe: “eu vou lá ver Aisha”. Mas, infelizmente não deu tempo. Porque eu não tava nem tanto mais... por causa do meu irmão que é especial, né? Quando a minha mãe faleceu, aí eu ia todo final de semana, porque ela trabalhava a semana toda, eu também tinha uns biscates... Minha mãe faleceu e ficou mais difícil, né? A gente acabou... por mais que more perto, mas era mais difícil. E quando eu


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não podia tá lá, ela vinha até mim, aqui. Ou ela: “manda chamar a Nenê”, tudo... mandava me chamar, aí eu mandava recado pras crianças: “fala que agora eu não posso agora não, tô com Maurinho (irmão especial), eu tô ocupada. Os meninos... eu tenho dois filhos rapazes... os meninos não estão para eu deixar o Maurinho com eles. ” Aí ela vinha pra cá, sabe?! Me fazer companhia. Natal, ano novo, passamos junto. Eu ia lá, ela aqui. E foi isso. Nenê... pra você, como foi quando você ficou sabendo que ela foi arrastada? Humm... muito triste. Porque quando a filha dela foi pro hospital, e já chegou falando que ela tava com a perna muito ralada, o braço, ou com o cabelo, até aí... quem viu ela na hora falou assim: “ah, mas ela não tava aí, ela não tava assim, teve nem como, ali, ela levou um tiro e caiu. Na mesma hora já pegaram ela e colocaram no carro, como é que ela tava com todo esse machucado todo?” Só tinha o ferimento da bala, né? Aí ela: “ah, eu nem quis ver mais, só vi a perna quando o meu pai foi, foi vendo, virando ela para ver, eu nem quis ver mais, e tal.” Aí... até então ninguém sabia. Acho que, no mesmo dia mesmo, bem mais tarde foi que, lá no hospital, falaram pro Tiago, que era pra eles ligar... acho que... não sei se era pra ligar pra... uma emissora aí. Ah, pro O Dia, né? Não, o Dia não, o Extra. Pra ligar , que esse rapaz já tinha... quem viu, que gravou, que filmou já tinha avisado o jornal Extra. Aí, foi que chegou a notícia. Bem tarde... bem mais tarde mesmo, que ela tinha sido arrastada. Mais revolta ainda, né?!Muito mais revoltante que a gente... eu... ó, o meu consolo é saber que ela não sentiu nada, naquele momento. (ela prefere acreditar que ela já estava morta quando foi arrastada.) Não sentiu nada, né?! Na hora que ela foi arrastada. Já saiu daqui morta! Que... a menina que tava com ela na hora disse que perguntou pra ela... quando ela caiu, ela falou: “Aisha, Aisha.” Aí, ela fez assim: “humm?” Nesse “humm”, ela já... Como é que uma pessoa vai levar um tiro de fuzil no peito, que perfurou o pulmão e o coração e vai... não... vai sobreviver? Pra mim, é instantâneo. Eu, né? Não sou médica, mas... E eu... até prefiro acreditar nisso (pausa). Que no momento que ela foi arrastada ali, ela não tava sentindo mais nada. E até meu filho, que não sabia que, o que tinha acontecido com ela, que ele tinha saído... o outro, mais novo. E por causa dos tiros, ele não subiu, ficou com medo. Aí, ficou ali embaixo, na rua... onde passou o carro, e... o corpo dela já caiu. Caiu duas vezes! Sério?? Aí, eles... só que eles nem imaginavam que... que fosse a Aisha. Aí, ele: “eu vi o braço, o braço de uma mulher assim”. Aí, colocaram ela de novo, o policial desceu, aí colocaram ela na caçamba (porta-malas) de novo, bateram a caçamba e foram, né?! Mas, uma coisa eu não entendo. Que eu fiquei assim... desde aquela época, assim, que eu não entendo: por que colocaram ela no porta-malas? Falaram que tinha armas no banco, mas não dá para tirar a arma pra colocar um ser humano?


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Lógico! Mas o que alegaram também foi que não dava para abrir a porta do carro. Foi o que a filha dela disse na entrevista. Mas, como que eles entraram? Tudo bem que ela já estava desfalecida, né? Morta. Então, ia ser mais difícil pra colocar ela, né? Mas dá para colocar sim, o caminho ali não é tão estreito assim não. O carro abre todinho. Abre mesmo. Eu canso de pegar carro aqui, vim de Kombi. E ali, acho que, é até mais largo do que aqui em frente. Quer dizer... eles usaram como desculpa. Mas, tinha como colocar ela sim, no banco, sim... de trás. Não colocaram porque, para eles, tanto faz, né? Não é nada dele, né?! Eles tratam como bicho mesmo. Aí que a revolta foi maior, né?! Em saber disso. Ao mesmo tempo, foi o que deu a repercussão toda, né?! Porque se não tivesse acontecido isso (se não tivesse surgido o vídeo)... eu acho, que ia ser... de repente, mais uma. Não ia dar... porque foi muito falado, o caso dela, né?! Foi, foi. Foi muito. Até fora do... do país. Mais por isso. Porque Deus sabe de todas as coisas. Isso aconteceu mesmo, que era pra dar essa repercussão toda e eles não ficarem impunes. Que é... que apesar que eles estão, né? Estão na rua, né? (pausa) Um absurdo, mas... Voltaram a trabalhar... Voltaram a trabalhar. Olha só, que absurdo! ... É, quem morrei foi ela, né?!... Aí, a família ganhou uma indenização, e daí? E a vida dela?... E as crianças sem mãe? Antes ela estivesse aqui, na vidinha dela, com eles aqui, e ela aqui, né?!.., Não há dinheiro que pague uma vida! Não há mesmo! Ainda mais quando a gente ama. Dinheiro nenhum desse mundo. Ainda mais ela, né? Que era tão especial. Muito dedicada aos filhos, muito pra frente, sabe? Não deixava as crianças ficar andando por aí. Principalmente a menina de dez anos, nem a mais velha. Não era de... estar... na época, de estar indo pra baile. Estar indo pra... Não mesmo, porque ela não deixava. (pausa) Mas... é isso.  Depoentes 7 e 8 Thalita (filha de Aisha), Márcio (enteado de Aisha) e Wellington (filho de Aisha) Thalita, queria que você falasse um pouquinho da sua mãe... como ela era. Assim, você tinha falado que ela era bem animada, né? (T) Pô, final de semana, quanto tava sol, era cervejinha dela... ia lá, mandava eu ir no mercado comprar a cervejinha dela. Enchia a piscina, tomava um banho de sol, e ficava lá, se queimando, o dia todo lá, se pintando, lá. Aí, mais tarde eu tinha que fazer o cabelo dela.


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Domingo era o dia dela, né? (T) Era o dia dela. Sábado e domingo. O sábado era para se queimar (tomar sol) e o domingo era para fazer o cabelo. Ela... era assim, todo fim de semana. Adorava curtir (fala como se lembrasse de uma cena especial), sentava lá fora bebendo uma cervejinha lá, com as amigas dela, lá. Todo mundo se dava bem com ela, né? (T) Todo mundo... Ou, tipo... ou nas férias dela. A... a praça ficou animada. Ela tava de volta na praça. E voltou a trabalhar de novo na praça. Zoando. Gastando lá na praça. Tomando conta da vida dos outros. (pausa e começa a ter lembranças divertidas) Ela é... ela era comédia. Lá, tu vai lá hoje, não tem ninguém na rua. Ninguém. Sábado e domingo: mortinho... Perde a graça. (o bebê Pedro, meu anfitrião ora chora, ora brinca e tenta falar palavras não entendidas por nenhum de nós). A sua mãe era bem animada, assim, mas também ficava brava né? (T) Ô, e muito! Na questão de arrumar a casa, então! (W) Chegava do trabalho. Essa aqui... chutava o balde com ela. (os dois riem) (T) Ah, era muita coisa, meu... além de que... E sobrava tudo pra você, porque você é menina? (T) Tudo não. Porque cada um tem o teu para fazer. Igual ali... ele (Caio) arrumava a sala. Eu, era a cozinha e a comida. O Gustavo, era o banheiro. Ele, era o banheiro (aponta para o outro primo), o Gustavo era o quintal e os cachorros, e o beco (corrige). Cada um tinha uma função. O Gustavo tem quantos anos? (ela não ouve minha pergunta) (T) Esse dali tomava conta dos cachorros. Tinha que botar comida pros cachorros. Porque se não colocasse, ela ficava brava. Ela e meu pai. Eu, então: “Thalita”, ela veio perguntar pra mim, tal, tal... ela falava bermuda, mas tipo assim, era tipo do mesmo estilo da outra. Eu, eu sempre ‘coisava’, confundia e pegava outra bermuda. Ela chegava, chutando o balde. Falando pra caramba que não era aquela... (M) “Olha essa cozinha! Pô, meu!” (W) Eu era o único que não escutava direito. Por quê? (W) Porque eu era o que fazia mais... não sou bobo! Esse aqui deixava pra... pra limpar de novo na hora que ela tava chegando. Você tava esperto, já? (M) Ela sempre... sempre tinha reclamação dele. Sempre tinha! (contesta as palavras do irmão) E a maioria das vezes a reclamação dele com os menor.


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(T) Brigando, fazendo... até apanhava. (W) Mas parou com isso. Hoje eu tomo esporro por causa de vocês. Porque eu escuto até o que eu não tenho que escutar... Mesma coisa com todo mundo. Se ela não fizer alguma coisa, todo mundo escuta. E o pai de vocês assumiu esse papel, de ficar em cima agora? Acho que ele não sabe nem lidar ainda, né? (W) Sabe, sim! Haha. Chegava no sábado, quero dar uma volta, fazer um lanche: “não!”... Por causa de um dia (que ele desobedeceu) ele não deixava a gente sair. (T) Ele aprendeu assim com minha mãe. Minha mãe falou assim: “não faz, também não vai sair”. Se não fizesse nada em casa, ela não ligava não, depois ela parou de ficar ligando, esquentando a cabeça dela. Chegava final de semana: “mãe, posso ir no pagodinho?”, “não!” (W) “Mãe, posso ir no Muriti?” “Não!” Mas eu ia, que ela deixava depois. (T) Não, mas eles, mesmo não fazendo nada, brigando, tudo, eles podiam sair. Aí, eu não podia. Ela falava assim: “Thalita, você é diferente, você é mulher, você não pode. Não pode”. Daí eu falava, então fui lá pra Curicica. Mas aí eu tive que levar a Paola, o Caio, Antônio (sobrinho de Aisha), Paulo, tudo comigo. E Wellington e o Gustavo ia desfilando, de mãos abanando. (W) O quê? Botava o ‘ternão’ na mochila, e ia... “Bora Gustavo”. Ia rindo à toa. Chegava lá e... tamo chegando... E no outro dia que a gente queria chegar só na segunda (feira)... (T) Ela gostava muito de ir pra Barra, na Bacia das Velhas. Como? (T) Na Bacia das Velhas. É que a água era calma. Aí, depois... quando ela não tinha muito dinheiro, né?! Aí, ela juntava todo mundo e ó... pro Piscinão de Ramos. Cara, maior comédia... Perla... a Perla passou mal, foi pro hospital quando receberam a notícia de que minha mãe tinha morrido. Porque um mês antes, ela tinha encontrado com minha mãe e a gente lá no Piscinão de Ramos, por acaso. Aí, ficou lá com minha mãe. Bebendo. Conversando. Direto. ... (T) Nos dias de caipira, de festa junina. Aí, as crianças não dançaram em lugar nenhum. Não teve festa . Aí, ela pegou e inventou uma caipira lá em casa louca, aí fez um montão de coisa, montão de besteira, fez uma caipira lá, pra eles, arrumou eles, vestiu eles. Foi na rua, comprou roupa, tudinho e fez uma caipira lá em casa, só pras crianças lá de casa mesmo. Mas acabou que ainda veio mais criança, os coleguinhas deles. Aí eu: “Aisha, tu é maluca!”. Ela: “ah, maluca? Eu tenho que fazer pros meus filhos. Ficar esperando festa dos outros, e os meus filhos vão ficar aí,


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sem curtir?!” Aí ela fez... Natal e ano novo ela não deixava de fazer a ceia dela não... Era regado a ceia. A minha mãe... (W) Primeiro, ela vestia nós, fazia a ceia, depois ela comprava as roupas dela. Primeiro vocês... (T) Não, mas engraçado é que foi assim: “não vou te dar roupa, não”, ‘que não sei quê, que não sei quê lá...’ (W) “Se você não passar na escola... (T) “...Só se passar”, ‘que não sei que’. Eu não passei. (W) Eu fiquei em dependência, em uma... em uma matéria só. Meu pai ia me dar até... meu pai ia me dar alguma coisa... meu pai falou que... (T) Ela falou que não ia dar roupa. Que não ia dar roupa...? (W) Foi ano retrasado. Ah, tu não passou. Eu passei... Porque eu sou um bom estudante. (T) Aí, ela foi lá primeiro, comprou nossa roupa, aí pra depois comprar a dela... Ficava falando, falando, falando, falando... deixou de comprou a dela, comprou a nossa. Ela é... ela era demais! Uma coisa que eu nunca vi: uma pessoa que vai se queimar (banho de sol)... se eu não tiver em casa, tipo, ela mandava ir no mercado, ela esperava eu chegar do mercado, pra poder amarrar o biquíni dela atrás. Com meu pai em casa, o Wellington, todo mundo em casa, tinha que ser que ia amarrar o biquíni dela atrás... Não. Incrível, eu que tinha que amarrar. (M) É, filha mais velha... (T) E olha só, e quando era isso e ela tinha boa vontade de procurar o biquíni dela, ela achava, aí já tava meio bom... E quando ela mandava eu ir procurar o biquíni dela, caçar... (W) E quando ela mandava eu, que eu não sabia qual era... aí ela ia, aí ela mandava você. (T) Cara... era uma comédia: “tá, filha, pega lá pra mim, filha, pega lá”. Ai, eu ia lá e pegava. Aí eu “pô mãe, o biquíni tá aqui, mãe, tá aqui dentro”. Ela: “pega aí, filha.”  Depoimentos: Thalita e Wellington Thalita:


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Ela... mandava eu fazer a unha dela falando que ia me pagar: “faz aí, preta, e eu vou te pagar.” “Vai me pagar quanto?” “Vou te pagar.” Eu: “então me dá o dinheiro”. Ela me dava cinco reais e: “depois eu te dou o resto.” Aí depois eu ia cobrar... aí ela: já te dou roupa, comida, roupa lavada. Já te dou tudo e você ainda quer... Você faz unhas? A dela, só fazia a dela. Só faço a dela. ... minha mãe ia fazer a unha... que comédia quando ela ia fazer a unha. A cutícula ela tirava tanto, deixava a tua unha fundinha, do jeito que a pessoa gostava. Ela começava lá pelas nove da manhã, saia de lá era uma hora da tarde. Ela ficava lá, cutilava... cutilava, cutilava um dedo, bebia um pouco de cerveja. Cutilava outro, era um pouco de cerveja (lembra, se divertindo)... Cada dedo do pé... aí, acabava um pé, já ia quase dois ‘litrão’. E mandava buscar mais dois... e na hora de fazer o desenho... e virava daqui, virava de lá e ‘coisava’ algodão, para poder fazer o desenho certinho, mas fazia direitinho. Aí fazia desenho, a florzinha... Natal, ano novo, o desenho de todo mundo era igual, do pé, só mudava algum detalhe... das bolinhas. Era uma comédia. Aí, olhavam pro pé, aí falavam que o meu desenho tava bonitinho: “quem fez”, e eu: “foi minha mãe, olha o pé da Jéssica, olha o pé da Aline”, de todo mundo igual. Ela fazia, demorava, mas todo mundo gostava de fazer nela. Na época ela trabalhava só com isso... É, só com isso. Aí depois ela cansou de ficar lá na praça (onde ela trabalhou, como manicure, por 11 anos, de 2001 a 2011), sentada, conversando, tomando conta da vida dos outros, e ela falou “eu preciso arranjar um emprego”, e arranjou um emprego na Nova Rio (2012). Conseguiu! Aí ficou toda boba, ficou... aí ficou toda animada. No primeiro pagamento dela, depois de não sei quantos anos... pegou o primeiro pagamento dela... porque antes ela trabalhava na Mota (2000/2001), negócio de... lá no fórum, de limpeza. Aí, ela pediu pra ser mandada embora, por causa de mim... Porque quando ela saia, eu ficava gritando, gritando... Quantos anos você tinha? Eu... tinha cinco anos, seis anos. Eu ficava gritando... uma beleza! ...A minha vó não aguentava, de tanto que eu gritava. E a minha mãe deixava eu na casa da minha vó, e aí minha mãe não tava tendo tempo pra mim, e ela chegava com presente e na hora da entrega, eu tava lá na minha vó. E chegou com uma bicicleta e eu tava lá na minha vó... Não tinha mais tempo pra mim. Aí, ela me pegava, me trazia pra casa, de noite, e de manhã já tinha que me levar de volta. E no dia que ela tava de folga, ela tinha que dar faxina na minha casa. E eu só vivia na minha vó, e ela não tava aguentando. Ela pediu para


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ser mandada embora. E depois que ela pediu para ser mandada embora, ela não arranjou mais nenhum... ficou só tomando conta de mim. Depois de mim, aí... aí, já tinha o Wellington já, né?! Mas o Wellington já era mais tranquilo, não chorava não... quem era mais ‘coisa’ era eu. Aí, quando ela pegou... engravidou da Paola e do Paulo... aí, veio a Paola e o Paulo (2004)... Eu ia fazer nove anos... Ela queria, porque queria, gêmeos. Imagina quando uma pessoa tem o desejo de querer tanto gêmeos, gêmeos, é: “pode deixar, o dia que eu engravidar, eu vou ter gêmeos, vocês vão ver só!” (W) Quando ela tava grávida, tu ficava brigando. Tu falava que queria uma menina e eu falava que queria um menino, pergunta pro meu pai isso aí. E acabou tendo gêmeos. Ó, veio do gosto de todo mundo...! (...) - Ô, Thalita, que que você vai sentir mais falta da sua mãe? Em tudo. Já sinto, já... Em tudo... tudo, tudo mesmo! ... não tem como falar, assim, em quê. Em tudo. Tudo o que a gente faz, a gente lembra dela... Não tem como falar no quê. ......................................................................................................................... Wellington: Eu tava no meu tio Júnior. Eu tinha ido pra casa do meu tio, no sábado. Aí, meu tio... aí meu pai ligou de manhã, nove e pouco. Eu tava com meu tio. Já tinha acontecido (a morte de Aisha)? Não pra falar o que tinha acontecido... Mais ou menos. Aí foi... a voz dele... a voz dele tava... a voz dele tava estranha, aí falou com meu tio... É... não deixa o Wellington e o Gustavo saber não... Aí foi... aí meu pai foi, ligou de novo. Aí meu tio foi... aí ficou. Fui dormir... quando eu acordei era três horas da tarde em ponto. O tio veio e me deu a notícia... falando o que tinha acontecido. Aí foi... eu era o único que não sabia ainda. Aí, quando ele falou, eu não acreditei. Só fui acreditar quando chegou na segunda-feira... Quando eu vi ela, foi quando eu acreditei. Você viu ela onde, na segunda? Só no cemitério, onde que eu vi ela. Eu fui no velório, só que eu não queria ver não. Você não queria ver? (Faz sinal de não) Cheguei de manhã. Eu fui com meu tio e meu primo. Fomos os primeiros a chegar. Aí chegamos e ficamos lá. Mas não ficamos lá... não fiquei lá dentro pra ver não. Únicos pequenos... foi lá meu tio e o Gustavo, que eu não queria ver (não queria ver a mãe morta)... só fui ver quando o meu pai veio e conversou comigo. Ele foi, conversou comigo, e falou: “a última vez é hoje, pra depois não


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enterrar e você falar que não viu.” Aí eu fui lá, peguei... vi... sai. (Pedrinho chora manhoso) Eu lembro que vi numa reportagem que a sua mãe tinha medo que acontecesse alguma coisa com vocês... É, comigo e até com o Gustavo mesmo. Ela até falou com nós: “quando vocês forem pra rua de manhã, assim, pra comprar pão, pega as crianças pra ir junto...” Ela tinha tanto medo que acontecesse com nós, e acabou acontecendo com ela... Ela sempre falava: “não sai correndo...”, “na rua, não ficando correndo de lá pra cá”, “sai com o documento, de casa”. Depois do que aconteceu com a Aisha ninguém mais assiste televisão... não vejo mais jornal. Aí, tipo assim, passa alguma coisa sobre o caso... aí eu tenho um colega que trabalha comigo, aí ele vai ver... aí, ele pega, vai, me fala. Eu não vejo, eu não consigo mais ver jornal. Nem jornal de esporte eu não vejo. (T) A gente via muito jornal por causa dela também. Antigamente, a gente não via Malhação (programa da Rede Globo, que tem como público-alvo os adolescentes), novela de tarde não. Era só na Record, jornal... o ‘corta pra mim, corta pra 18’ (fazendo referência ao programa popular apresentado por Marcelo Rezende). ...................................................................................................................... No dia lá, eu ‘taquei o balde’ (chutei o balde)... no dia da reconstituição, taquei o balde’ falei um montão de coisa. Aí, tipo assim, foi um menino preso... tudo bem, foi preso, tava fazendo coisa errada, e prenderam ele... aí um fala, o policial que tava lá , fazendo a reconstituição falando com a ... Aí, o policial que atirou, que matou, tá solto. Aí tava lá, andando de lá pra cá. Foi na barraquinha comprar Guaravita (marca de refrigerante de guaraná)... aí eu comecei a falar... aí eu falei: “é... quem matou minha mãe tá aí, de braços abanando aí, ó... andando pra lá e pra cá, até comprando Guaravita, né? Isso é certo! Porque é da polícia (fala revoltada)”. Duvido se fosse você e eu que tivesse matado, desse uma paulada... e tivesse matado, duvido se a gente não tava preso há muito tempo! Essa é a justiça do Rio! .........................................................................................................................  Depoente 9: Antônio (companheiro de Aisha) Eu lembro que quando eu soube da notícia da morte da Aisha... eu fiquei muito triste. Mesmo. Porque eu pensei que... sabe, poderia ser eu... poderia ser... uma irmã... poderia ser minha mãe. Então eu fiquei muito triste mesmo, eu chorei muito. Quem era a Aisha, Antônio? A Aisha era uma mulher guerreira, mãe, amiga... determinada no que queria. Pô... se quisesse alguma coisa, ela lutava até conseguir aquilo... Ela sempre foi assim? Sempre foi assim. Foi ‘batalhadeira’... Ela... (longa pausa) era uma mulher... rapaz... como que eu vou te explicar isso?


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Quando vocês dois se conheceram? Na Tijuca. A gente... nos conhecemos na Tijuca. Vocês dois moravam onde? Não, eu sempre morei no Morro do Mendanha. Ela sempre morou lá mesmo. Ela morava lá no morro. Morava, assim, em bairro diferente. Tô falando, ela era determinada, quando ela quer uma coisa, ela consegue. Que ela veio pra cá um dia, num churrasco, e ficou (na vida dele) até 16 de março. Em que ano foi? Em ’94. Foi duas semanas depois do aniversário dela. Lá por volta do dia... 18 de agosto... de setembro. 18 de setembro. O aniversário dela é semana que vem. Sem ser essa semana agora, na outra. Ela faria, né? Seria o aniversário dela (fala como se quisesse dizer a si mesmo que tem que acostumar)... Sábado agora fez cinco meses... Dia 16. Isso é o começo do que aconteceu... Aí, a gente se conheceu na Tijuca... ela veio ficar aqui... acabamos, sem namorar, sem nada, morando junto. E... ficamos até o dia 16 de março. ... Fomos obrigados... senão nós estaríamos, aí, até hoje... Ela com o trabalho dela, eu com o meu. Ela tava toda boba... o ano que vem... o ano que vem, nos 40 anos dela... eu não via a hora de chegar a fazer os 40 anos dela. Ela era de festa, né?! Ela era festeira. Isso ela era. Muito festeira... gostava muito de festa. É... um negocinho que ela fazia, assim, tornava uma festa. É, a Thalita tava falando do dia da festa junina... É, ali ela fez mesmo. Ela fez... Ela fazia um negocinho, chegava duas, três pessoas, era motivo pra festa. Fazia um mocotó ou uma dobradinha, já era motivo pra festa, entendeu? Não podia faltar cerveja... era festa. Ela era isso tudo. Era uma ótima mãe, ótima mulher, entendeu? Fiel em tudo. Fiel a tudo. O que ela queria, é... Uma coisa ela não gostava de ficar devendo pra ninguém. Isso aí... ela não gostava. As dívidas dela, ela pagava tudo ali, ó... Pô, eu que sei. Muitas vezes... eu sou como ela. Muitas vezes a gente deixa de comprar alguma coisa que precisa pra ir ali honrar o compromisso... É... era assim... fazia assim... (longa pausa) Ela... ela tinha um coração grande... Ela não tinha... se ela gostasse de você, ela gostou de você. Se ela não fosse com a tua cara, não adianta que nada fazia ela mudar de ideia. Ela, se pudesse te ajudar, ela te ajudava. Mas se ela não pudesse te ajudar... Os filhos dela estavam em primeiro lugar. Ela tinha os quatro, aí depois, pegou mais quatro... E todos estavam em primeiro lugar.


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Só o mais novinho que não ficou com você, né? Não, não ficou. A mãe levou. Ela... chegou lá em casa querendo levar eles...ela achou que eles iam com ela. Ela queria levar todos, mas os outros não quiseram. E como o Cadu (sobrinho mais novo) não tem querer. Aí ela levou o Cadu. Aí, me falaram: “você não podia deixar”. Aí eu: “uma coisa eu não posso deixar de admitir: ela é mãe dele”. Ué, ela é mãe dele, e tal... Para as crianças (sobrinhos), pai e mãe eram vocês dois, né? Era nós dois... A casa de vocês é muito ‘família’. Eu percebi isso, acho que... é todo mundo muito unido... A Aisha sempre foi o alicerce daquela casa. Ela sempre foi. Determinava certas coisas, né? Determinava. Nem certa, às vezes, a maioria das coisas. Parece que ela tinha tudo na palma da mão. Nos conhecemos na Tijuca. Aí, no dia 18 de setembro, tava tendo um churrasco aqui em casa... aí, minha mãe, elas... houve uma desavença com a minha mãe e eu, sai de casa e depois ela saiu... aí ficamos uns dias dormindo na rua, aqui na Mendanha. Aí depois, nisso tudo, ela tava grávida da Thalita. E... daí fomos pro morro... lá pra casa da mãe dela. Aí fomos pra lá. Ficamos lá um ano. Aí, voltamos pra Mendanha. Aí, te falar que ela sempre muito determinada: trabalhava na Barra, aí eu falei pra ela que não era pra ela ir pra praça, perguntar pros outros ‘negócio’ de casa (para morar)... ela foi pra praça... no salão ela não conhecia ninguém para tentar de conseguisse alguma coisa pra ela. Aí conseguimos... até eu queria sair, brigar com Érico, aí não... aí conseguimos se agregar no colégio, aí agregamos por 4 meses no colégio. Aí fomos ‘pros barraco’ no César Maia (comunidade do Rio)... Aí conseguiu nossa, nossa primeira casa. Aí ficamos lá dois anos, aí vendemos e fomos morar no morro. Lá era muito pequeno. Aí vendemos lá. Aí ficamos no morro. Aí no morro, ficamos até... eu fiquei até maio. No final de maio que eu vim pra cá. Final de maio eu vim pra cá. Ela ficou até março. Dia 16 de março. (Fala como na intenção de jamais esquecer a data. Nesse momento, noticiava a queda do avião em que estava o candidato a presidência, Eduardo Campos) Quando vocês dois se conheceram, quem dos dois que abordou o outro? Se apaixonaram de cara? Eu era difícil de me apaixonar. Mas... ela depois que... paixão foi aquela de momento. Ela que foi te conquistando? É... não, ela não me conquistou, não. Ela me tomou de assalto. Ela morava em Macieira, o que que ela veio fazer aqui na Mendanha?


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Ela me tomou de assalto mesmo... Assalto. Nossa senhora! Roubou mesmo. Ela é medrosa, não roubava nada. Mas ela me roubou de todo mundo, entendeu? Mas... (longa pausa, e ele se distrai com o noticiário). Ela assim, ela... ela é muito... ela... Mas ela... abraçava todas as causas. Que nem da prima dela que morou lá em casa; um filho da minha outra comadre; as sobrinhas dela própria; meu irmão... já morou lá em casa. Sempre acolheu, sempre, sempre. É um conjunto nosso. As pessoas dizem “ela que fez”, não, se foi tudo, foi porque um apoiou o outro, entendeu? Um apoiou o outro, senão... quando não tem concordância entre casal não dá certo. (...) Quase um mês depois, eu sai do trabalho, porque não tinha condições de trabalhar... não tinha condições, é... agora... Vocês chegaram a procurar um psicólogo? Fomos. Todo mundo passou por tratamento? Passamos, todo mundo... Não continuamos porque... até pra continuar... daqui lá, também... porque eu perdi o meu número (do celular). Meu... tem gente querendo falar comigo. Vou ter que pegar um celular deles (dos filhos), botar o meu chip nele, porque até o meu celular era de cartão, era de chip, os outros é microchip, então o microchip não pega em celular de chip... Eu também tenho que ligar pra muita gente. Tá tudo ali, tá tudo ali (aponta para o aparelho sem uso). Hoje era pra... era pra nós ter descido lá, pra pegar a chave do apartamento. E nada. Amanheci passando mal. Aí, vamos sexta-feira. Hoje é quarta, né? Uhum. Lá é segunda, quarta e sexta. Apartamento? É lá num, perto da 13, lá. Do Minha Casa, Minha Vida. Era pra nós termos ido lá. Então, vocês vão mudar daqui? Uhum. Falta pouco. Só questão de sexta-feira. Ir lá pegar a chave. Limpar, ver o que falta... não falta... isso tudo. Antônio, eu queria fazer uma outra pergunta... assim... vários movimentos sociais procuraram você para falar sobre a questão de violência e tal, e também alguns movimentos que apontam para racismo institucional. O que você pensa sobre isso? Você acha que foi uma prática de racismo? Foi. Foi. Um despreparo da polícia, e... também foi, entendeu? Porque quando você mora... já é preto, pobre... mora numa favela, num morro, você é discriminado, por


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você já morar nesses locais. E eles não respeitam ninguém. Chegam... não quer saber se é mulher, se é homem, se é criança... Muitos deles se esquecem de onde vieram, entendeu? (fala, se referindo a policiais negros) Se esquecem das vezes que também sofreram racismo. Aí, eles... negros, tem muitos... Não são a maioria, mas são muitos negros. O racismo tá... entre eles mesmos... contra nós mesmos. Então, ele vai mesmo... e um branco, ele já sabe que ele tem racismo, mesmo. Quando é racista... mas , muitos falam que não, mas são. Aí, vai outra pessoa, da nossa cor... fazer a mesma coisa que um branco faz. Isso é a pior coisa do mundo. Tem muitos. A gente precisa se valorizar entre a gente para isso acabar, um dia, né? Mas o racismo... nunca vai acabar. (Quando eu cheguei lá e ninguém atendia, fiquei certa de que não iriam me atender por estarem, já, fartos de responder a imprensa. E pelo medo de que a polícia soubesse onde estavam. Ele fala de maneira que me faz pensar que ele não consegue aceitar a ideia de que agora é tudo com ele. não se habituou, ainda, às novas responsabilidades. No momento dessa conversa, a TV noticiava a queda do avião do candidato a presidência, Eduardo Campos. O Pedro Henrique, o que abriu, pra mim, as portas invisíveis do coração de todos, esteve presente em todo o tempo, resmungando coisas que eu e ninguém entendia.) (...) Agora tá até mais... e eles, também, já estão numa boa. Não adianta sofrer e ficar... aí, eu achei que eles tavam... indo no psicólogo para mais tarde não sofrer... (Ele resmunga com as crianças que estão fazendo barulho, e irritando o bebê, Pedrinho) Aí, eles digeriram numa boa, entendeu? Aí, eu... parei de ir no psicólogo: “pô, não adianta ficar levando” (briga com a Paola, que está brincando com o Pedrinho, e justifica:) “Ela, ela é fogo”. (fala da menina que não me parece arteira) A, eu... “ah, vou ficar indo no psicólogo? As crianças estão numa boa. Estão tranquilos.” Até eu deixei sim, uma quatro cessões... eles... ... a assistente social disse que eu tenho que ir lá falar com ela... para pegar o endereço certo. Pra mim poder ir lá (no psicólogo). Que eu também não posso abandonar. Aí, se tiver psicólogo para eles também. Se não tiver ... e porque eu acho que eles estão bem... na escola, também, melhoraram na escola... lá na escola digeriram bem. Todo mundo... então... é... O Wellington sofreu bastante?


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Não... acho que foi aquele momento. Acho que eles foram muito maduros... saber que... não adiantava ficar se lamentando, chorando. Já conhecem o ritmo. Morreu. Não queria que isso fosse daquela forma... mas infelizmente morreu... foi. Não adianta ficar chorando, que ela não vai voltar mais. Eles absorveram bem.  Depoente 10: Ana Cíntia (cunhada de Antônio, companheira do irmão de Antônio) Eu conheci ela assim, sei lá... o irmão, né? (Antônio é irmão do marido) Conhecia muito pouco. Só de ela vir aqui, né? Passear aqui com os filhos em casa. E a gente mal conversava. E ela sempre vinha para visitar a sogra, e ele pra ver os irmãos, também, né? Que ele demorava a vir aqui. E que ela criava os sobrinhos, né? No caso, os sobrinhos. Tinha os quatro filhos dela e criava os sobrinhos... mas não tinha muita intimidade, não. A gente veio a ter mais intimidade agora com os filhos dela, no caso do acontecimento... e eles vieram morar aí. Aí, tinha uma menina vendendo uma casa. Ele falou: “ah, eu queria uma casa assim, assim. Pra mim e as crianças. Tô querendo sair de lá. Não tô me sentindo bem lá no local”. Ai, eu falei assim: “tem uma casa de uma menina ali, se você se interessar...”aí, ele veio, gostou e tal, aí... vieram pra cá. ... ele tá se sentindo super bem aqui. Tá perto dos irmãos, né? Tinha bastante tempo que eu conhecia, só não tinha muita intimidade. Que que você sentiu quando soube do que aconteceu? Como você ficou sabendo? Veio uma pessoa aqui avisar. Só que o irmão dele (Antônio) não tava em casa. Tava no futebol, e falou assim: “ah, eu vim avisar que meu tio, que é pra ele ir lá, que a irmã dele tá passando mal... que a Aisha faleceu.” Aí eu falei assim: “a Aisha faleceu?” aí eu falei assim: “como foi?” Aí, ele: “aí, é... a Marisa tá passando mal”. Que é a irmã dele, do Antônio também. Aí, eu falei assim: “tá bom, eu ligo. Vou avisar ele.” Aí eu peguei... consegui ligar e avisei a ele: “ó, vem pra cá, porque houve alguma coisa lá com a Aisha, e o menino tá falando que ela faleceu. Aconteceu alguma coisa séria, não sei o que que é.” Aí ele veio, e à noite, quando ele foi lá, que ele ficou sabendo da notícia que ela tinha levado um tiro lá no morro, e que aconteceu isso e isso. Aí... mas foi um menino que veio de bicicleta e avisou. Aí, assim, na hora eu não acreditei, né?! Pensei: “deve ter acontecido alguma coisa, um tiro de raspão, não sei”. Aí, depois ele explicou que foi um tiro que ela levou da polícia, e... aí que eles foram, né, procurar saber o que houve... aí que ele foi lá... Aí depois, no outro dia foi ver direitinho. Aí começou a dar na televisão, né?! Aí soube pelo... um dos maridos das irmãs. Aí, à noite que ele explicou direitinho. Aí, que a gente começou a ir... no outro dia... aí que a gente começou a ver, o acontecimento, onde foi, do jeito que foi, né?! Triste, né?


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 Depoente 11: Letícia (filha de Ana Cíntia) Você acha que eles iam jogar na caçamba e levar? Não. Eles iam fazer o quê? Chamar uma ambulância, ou até colocar no colo da pessoa. Tá me entendendo? Tipo, acontece alguma coisa com um irmão meu, eu vou colocar num carro e levar? Não. Eu iria pegar, sentar no meu colo, porque poderia estar viva, né, no carro?! Mas a gente nem imaginou que era um conhecido nosso, né?! Mãe... quando a gente soube que era alguém da família, a gente falou: “gente!” a gente nunca imagina que vai acontecer com alguém, né, de perto da gente. Porque, poxa! Um casamento de ‘não sei quantos’ anos, né, mãe? Chocou. Trataram ela como se fosse uma traficante qualquer. Eu acho que eles devem ter confundido, pensaram que ela era traficante. Jogou dentro da caçamba. Poderia ter colocado no banco do carro, mas falaram que o banco tava cheio de arma. Não tinha arma! Foi desculpa deles. Se foi baleada, tinha que chamar a ambulância. Por exemplo, quem teve de... não sei se é direito, não sei como que tem que proceder. Tipo assim, a pessoa foi baleada... tudo bem que a intenção deles é ajudar, mas qual o procedimento? Tem que esperar a ambulância chegar? Ou eles podem socorrer? Porque fica essa dúvida, né? Eles viram a cagada que eles fizeram... (Cíntia) Se ferraram mais ainda porque pensaram que era uma pessoa qualquer, mas era trabalhadora, né? (Letícia) Queriam incriminar ela para dar uma desculpa, porque eles queriam dar a versão deles. (Cíntia) Não conseguiram por quê? Porque todo mundo ficou em cima. Levaram ela por que? Queriam linchar eles. Porque eles não deixaram ela ficar lá. Pegaram e saíram com o camburão sem dar assistência e sem deixar ninguém dar assistência. Como se ela tivesse... tempo de socorrer ela. Do jeito que mexeu com o corpo ali, não tinha mais jeito. Sabiam que matou na hora. (Letícia) Mas, ah... como eles disseram, ficou com medo de ser linchados, tudo bem... levou com o carro até lá embaixo, por exemplo: se chegasse alguma certa hora... ai chegou lá embaixo, saiu da favela, certo? Pararam em algum lugar e sei lá... colocasse ela no colo... eu penso assim... se fosse da família dele se iam colocar no camburão assim. Aí, independe de ser linchado ou não, sei lá: meu filho é baleado e não aguenta... Que medo é esse, gente? Eles não estão armados? Não são a lei? (Cíntia) Se fosse um deles, lá que tava no camburão, que tivesse atirado neles (na Aisha e no garoto), eles iam proceder desse jeito? (Letícia) hahaha... Duvido que iam jogar (no porta-malas), duvido! Com certeza não iam! Com medo de linchar ou não. Eles não iam jogar no camburão, desse jeito, não... Eles iam dar um jeito... quê? Iam apontar a arma para todo mundo, afastar todo mundo, e eles iam socorrer um... cê pode ver, que só quando é fatal mesmo,


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fora isso, eles conseguem socorrer. Pra levar... E eles deram azar do camburão estar ruim, porque isso aí não é culpa deles, né? Porque isso aí é coisa do governo. O governo que tem que consertar esses carros. (Cíntia) E se o corpo caísse no chão, e um carro passa em cima? O camburão ia continuar. Os outros já tavam meio parando... eles que não tavam olhando pra trás. Eles iam embora e o corpo ia ficar lá. Eles também iam ter a negligencia deles. Os outros tavam lá avisando. (Letícia) Mas eles tavam com medo... da população vir, lá, entendeu? Ter alguém atrás deles. Eu acho que, também, sei lá... o psicológico deles também... (Cíntia) O psicológico deles...? Eles pensaram que ela era uma traficante do morro! Eles não pensaram que ela era uma pessoa trabalhadeira. Se fosse uma traficante, ficava eles por eles, né? (Letícia) Ninguém ia socorrer, né? Ia matar ele e iam fazer os rolos deles lá, mas como era uma trabalhadora, tinha os filhos, tinha o marido e tudo direitinho... se fosse traficante não, ia ficar por isso mesmo. No fim dessas duas entrevistas alguém chega trazendo o filhinho de Letícia, de três anos, que foi trazido pra casa mais cedo porque uma criança tinha sido baleada na escola.  Depoente 12: Breno, advogado e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB do Rio de Janeiro. Quando soube do caso da Cláudia, como você reagiu, como você se sentiu? O caso da Aisha, ele... ele gerou, na verdade uma emoção muito forte de... de... Pode dizer que... de ódio, né?! Na verdade, gerou diversos sentimentos. E quando você pensa na família, gerou aquela... não é nem a sensação de cumplicidade, é uma sensação de realmente estar ali, no papel daquele pai, ou daquela criança, né?! Houve um episódio que... em tese foi atípico, né?! Não é mais a juventude negra sendo exterminada, e sim a mãe do jovem negro sendo exterminada né?! E de uma forma que... acho que, né?! Como eu posso dizer? Que mais feriu a dignidade né?! Ela sendo arrastada daquela forma, então... Foi... foi algo que foi muito impactante. Então para mim, eu fiquei mais ou menos uma semana, sabe... meio que impactado com aquilo. Na mesma semana eu já tinha ido visitar um jovem negro que tinha tido... tinha sido preso injustamente. Então, me deixou muito mal, assim. Acho que quem trabalha assim, que você presencia, né, você se vê aí... É diferente de outro trabalho que você consegue dividir quem é você e quem é o outro. Da mesma forma, de quem são as mazelas que tão sendo cometidas no momento, então, acho que foi muito impactante. Você classifica como violência racial? Com certeza. É... a ONU... se bem que eu não precisava da ONU para saber disso, né?! Mas a ONU acabou de dizer, de reconhecer que o racismo no Brasil, ele é


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estrutural. Ele é institucional. E é esse, essa visão de racismo como estrutura, como sistema... Só um pouquinho. É que eu acho que não vai resolver, acho que assim não vai gravar, agora que eu me toquei. É... você poderia falar de novo? Claro. Em qual ponto? Qual ponto? É... então você avalia como violência racial? Sim. É como eu falei. A ONU, essa semana, acabou de reconhecer algo que nós militantes já sabíamos há muito tempo que o racismo no Brasil é um racismo institucional, né?! Que ele é... hã. Ai, caramba, esqueci o termo que eles usaram. Faz parte da estrutura mesmo, né? É, estrutural. E a gente sabia que o racismo, ele opera em forma de sistema, em forma de mecânica, né?! E que o resultado da Aisha não é o simples do policial só invadir a favela. Mas que o sistema penal, ou sistema de segurança pública, ou o sistema de genocídio, ele tem uma seleção e recrutamento para negros, né?! Com base na cor da sua pele como alvo mesmo desse sistema de extermínio. Então, o caso da Aisha é consequência de uma série de elementos de racismo, né, que desencadearam o racismo institucional e no fim do, no extermínio da população negra. Basta ver os índices de violência policial, os índices de homicídio que tem no país, que acabou de sair o Mapa da Violência 2014, que já saiu em outros mapas, né?! O relatório de desigualdade racial também, que a gente tem no país, mostram que a população negra, ela é... ela tá no ápice da corda da violência, né?! Então, o caso Aisha foi sim direcionado, porque ela era uma negra, porque ela tava num local vulnerável, de comunidade, de favela e tal. Ela foi selecionada com os policiais que também são recrutados, e a sua maioria também são negros. Isso se dá pelo neoliberalismo, a abertura de necessidade e, através da necessidade, você recruta essas minorias, vulneráveis, pelo sistema de extermínio, né?! Tanto do lado que mata, quanto do que morre. Então, o caso da Aisha foi uma violência racial, sim, se analisada pelo ponto de vista estrutural, né, pela consequência que desencadeou desde o início da escravidão. As perguntas básicas eram essas, e eu queria que você falasse, é... o que poderia ser feito pela sociedade, pelo movimento negro para que as pessoas se conscientizassem dessas práticas racistas - porque muitas pessoas não veem isso como racismo, acham que é uma violência que foi praticada contra alguém que é pobre, mas não veem isso como racismo. Eles acham que qualquer pessoa poderia estar passando pela situação, estando na comunidade – é... o que que você acha que nós, como movimento negro poderíamos fazer para que as pessoas se conscientizassem de que é racismo? Então, eu acho que a consciência racial, ela é uma das maiores, é a maior missão do movimento negro deve eleger, né?! E também é a maior dificuldade que o movimento negro tem. É, eu tiro pelo movimento negro que teve a maior expressão no Brasil, que foi o Movimento Negro Unificado, né?! E depois veio a Frente Negra


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Brasileira. É... na década de ’70, o movimento negro conseguiu fazer cair, teoricamente, o mito da democracia racial, por causa das denuncias dos casos de racismo. Então, ele tem esse papel de, de denúncia, de politização, de conscientização. Sendo que é um trabalho dificultoso e que o movimento negra tem umas peculiaridades próprias, né?! E, e que em questão de dificuldades como movimento. Então, ele teve umas falhas, e aí teve um buraco daquela época pra cá. Aí teve a questão da divisão partidária... mas o que acontece? Tivemos alguns avanços, sabe? Você vê a ONU hoje, é... falando que o racismo é estrutural, é algo que, que... que seria inimaginável na década de ’70, né?! Você vê o país, como o Brasil, que foi o que mais recebeu escravos e o último a, a abolir a escravatura, né... falar sobre políticas públicas de reparação para negros... isso é um grande avanço. É lógico que esses avanços, se colocarem do lado das mazelas que tem sofrido, por exemplo, a juventude negra, nessa rota de extermínio, ou os negros em comunidade, nessa rota de extermínio, essas políticas públicas são ínfimas, né?! Lógico, mas que se teve avanço, teve. Comparado o país que a gente tem e a dificuldade de se tratar das questões raciais, justamente por causa do mito. A gente teve alguns avanços, né? Então, é... a melhor forma de... de trazer essa consciência... e tem que analisar também o que a internet tá fazendo, né... são casos que sempre existiram, sempre aconteceram na mesma demanda que acontece hoje, mas né... se permite agora, uma denúncia de uma forma instantânea, né... Se permite que, por exemplo, jovens que nunca ouviram falar nisso – que a televisão não passa sobre isso, não há interesse de oficiar, de passar sobre – ter acesso a informações de vulnerabilidade, de demandas sociais, que antes eles não tinham, e isso acaba gerando a politização. Então, a internet tem sido, sim, um fator muito forte de politização racial. Não só racial, mas de diversos elementos sociais, é... E é isso que tá... que provocou a ONU a vir pro Brasil, né... porque as denúncias que tiveram de questões raciais, foram iniciadas pela internet. É a forma de denúncia que as pessoas têm encontrado, principalmente no Facebook. Então, se você me perguntar... desculpa... qual a pergunta, de novo, para eu ser objetivo? Era de forma a gente como movimento social poderia, na prática, ajudar as pessoas a se conscientizarem sobre essas práticas que são racistas, que muitas pessoas não reconhecem como racismo. Eu ainda, ainda acho que, como o Brasil não tem interesse nas questões raciais, e uma das coisas que a ONU também pontuou foi isso, né... o Brasil, ele é, ele é campeão em desconversar, né... Então, o mito da democracia racial, embora ele tenha caído materialmente, ele ainda impera em diversas matrizes de poder, né... e isso dificulta muito a luta, principalmente se o Estado que a gente pretende usar como meio de coibir essas práticas de racismo, ou de conscientizar, não tem esse interesse de fato. Ele tem interesse em mercantilizar, politicamente, as demandas raciais. Então, é um pouco difícil, é um pouco, é um pouco trabalhoso você produzir uma consciência racial através do Estado, né... mas a... a primeira forma que se deveria fazer é trazer a publicidade aos órgãos, né... não somente a secretaria, a SEPPIR (Secretaria de Promoção da Igualdade Racial) que existe, mas trazer


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publicidade a todos os órgãos que trabalham com a temática racial, né... você ter financiamentos também para as instituições que trabalham, as ONG’s, falando de entidades civis que trabalham com essas questões, ao ponto de elas conseguirem de fato trazer uma visibilidade para “não, olha, existe o racismo, mas também existe quem o combata, existe o racismo, mas existe essa cultura que emancipa”, então como é que a gente faz isso, né?! Um caso, na questão do racismo... na verdade são casos emblemáticos que trazem mais, é, consciência racial... as cotas, por exemplo, que conseguiram trazer essa questão pro país, e agora o caso do Grêmio, da Patrícia, do Aranha, que também tá conseguindo trazer essa discussão pro Brasil... e tá trazendo duas formas inovadoras de... vou falar punição, que eu sou abolicionista, mas vou falar de punição. Do Grêmio ter sido tirado da Copa, isso mudou a questão do racismo no futebol, porque inovou, isso nunca foi, aconteceu. E o segundo, é... da Patrícia, a pena dela que é extrajudicial que é dela prestar serviço na CUFA, né... tendo ali, aulas de educação racial. São dois métodos que mudam um pouco a visão racial. A gente teve um avanço significativo, pelo menos nesse ponto de vista de penalidade com o racismo, né... Então, a forma que se conscientiza, é... tem algo que o Joel Zito (Araújo) fala que é muito interessante, né... que é ‘pacto de visibilidade positiva’ em parceria com o público-privado... é o governo e... e a sociedade civis ou setor privado tendo um pacto de promover uma visibilidade positiva, e através desse pacto se consegue instalar um ambiente de politização racial nas pessoas, nem só pela internet, mas também de mídias oficiais... Mas sobre as mídias oficiais, o que eu vejo, assim, os meios de comunicação não tem como mais fugir de falar de racismo. Mas as empresas de comunicação não têm interesse em falar sobre o assunto. Não, sim... eles não têm nenhum interesse mesmo, né... em falar de uma crise de poder. Agora... é, como que o Estado pode iniciar uma parceria? Com benefício fiscal? Com instrução financeira? Não sei... ou então através de lei, com espaço público aberto nas mídias oficiais para tratar as demandas populares, né... que não seja também pela televisão, ou manipulada pela televisão... eu, eu... não penso muito, assim... é lógico eu tenho um, tenho uma... um problema muito sério com a mídia porque essa construção de estereótipos, né... eu pesquiso sobre política criminal de drogas, então essa construção, para mim é terrível. Ela mata, influencia, e tu faz o direito penal trabalhar com resposta social, que é um problema muito grande, mas... como que é essa mídia poderia operar, de fato, não é através da boa vontade da mídia, a boa vontade do setor privado, não é... Até porque ele pensa que racismo não lucra para eles, né... Quer dizer, discutir racismo não lucra, viver do racismo, sim, traz lucro para eles, então, é um pouco complicado essa discussão.


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