A construção do papel da mulher por meio do jornalismo feminino: uma análise da Revista TPM

Page 1

PAOLA CUENCA MORAES

A CONSTRUÇÃO DO PAPEL DA MULHER POR MEIO DO JORNALISMO FEMININO: UMA ANÁLISE DA REVISTA TPM

LONDRINA 2014


PAOLA CUENCA MORAES

A CONSTRUÇÃO DO PAPEL DA MULHER POR MEIO DO JORNALISMO FEMININO: UMA ANÁLISE DA REVISTA TPM

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientador: Prof. Me. Fábio Alves Silveira

LONDRINA 2014


PAOLA CUENCA MORAES

A CONSTRUÇÃO DO PAPEL DA MULHER POR MEIO DO JORNALISMO FEMININO: UMA ANÁLISE DA REVISTA TPM

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientador: Prof. Me. Fábio Alves Silveira

BANCA EXAMINADORA

Orientador: Prof. Me. Fábio Alves Silveira Universidade Estadual de Londrina – UEL

Prof. Dra. Márcia Neme Buzalaf Universidade Estadual de Londrina – UEL

Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio Universidade Estadual de Londrina UEL

Londrina, 20 de outubro de 2014.


AGRADECIMENTOS Meu primeiro agradecimento é destinado aos professores. Agradeço, principalmente, pela paciência diária. Lidar com adolescentes em transição para a vida adulta não é fácil. Tenho consciência de que abusei da compreensão de muitos: pedi extensão de prazos, anulação de faltas, encerramento

antecipado

das

aulas

em

dias

de

lasanha

no

RU,

desconsideração do cochilo durante a aula e desculpas recorrentes devido à mania de falar sobre temas diversos em sala. Mesmo assim, vocês mantiveram-se dispostos a ensinar-me e a aguentar-me um dia após o outro. Muito obrigada pelas horas de ensino e orientação dentro e fora do ambiente universitário. Elas significaram muito para mim. Em especial, agradeço ao professor Fábio Silveira por aceitar ser meu orientador e acreditar no meu tema. Obrigada pela dinâmica de trabalho durante o ano. Se continuo sã até agora, grande parte desse feito está relacionado ao fato de você me ajudar a levar esse trabalho com calma e persistência. Agradeço também aos meus amigos. Primeiro, às minhas duas gordinhas tensas. Ah, minhas lindas, quão bom foi ter o apoio e carinho de vocês em todos os momentos desses últimos cinco anos! Estamos seguindo nossos caminhos profissionais e pessoais – tão diferentes! – e nos mantendo unidas. Obrigada pelos encontros rápidos em meus retornos à Maringá e pelo amor com o qual me presenteiam todos os dias. Como já disse uma vez: que cada ano sem vocês, me traga mais dez anos aos seus lados! Deborah, Giulia, Isabela, Allyson, Guilherme e Adam: em minhas boas recordações da graduação, ao menos um de vocês se faz presente em cada uma delas. Estive ausente nos últimos dois anos e, infelizmente, não posso prometer maior presença nos que virão. Mas, agradeço imensamente a compreensão de vocês com relação a esses afastamentos, o afeto que demonstraram por mim nos três anos que convivemos diariamente e o carinho que ainda recebo. Já disse e repito: vocês são para a vida toda! Turma de 2011, obrigada pela ótima recepção que recebi de vocês! Me senti acolhida nessa sala desde o início do ano letivo. No meio de todos os estresses que tivemos havia sempre alguém pronto para lançar uma piada e


descontrair o ambiente. Vocês são incríveis! Em especial, Yud, Rafa e João, meu trio do RU, obrigada por dividirem um pouco de suas vidas comigo, me ouvirem reclamar e aguentarem minhas manias. A amizade de vocês foi uma feliz surpresa nessa reta final. E o que dizer das minhas roomates? Pelas madrugadas de estudo escutando desde os primeiros sucessos de Jennifer Lopez até os singles melódicos do último álbum do Arctic Monkeys, agradeço à minha mestiça. Pelas comidinhas e conversas de imensa troca intelectual, agradeço à minha “baby”. Bru e Amy, vocês moram no meu coração. Poderia dividir apartamento com vocês por muitos e muitos anos. Muito obrigada pela cumplicidade e alegre companhia durante esse ano. Provamos que humanas, exatas e biológicas podem conviver em perfeita harmonia! Um “muito obrigado” especial aos meus padrinhos, João e Angélica. O apoio de vocês para iniciar minha jornada universitária foi mais do que essencial, foi determinante. Termino essa importante etapa, porque vocês confiaram em mim no comecinho de tudo e tornaram possível a minha mudança de cidade. Minha gratidão é eterna. Agradeço também o apoio de minha família. Em especial, Naira, Suzie, Vovó e Tia Baixinha. Vocês se mantém ao meu lado desde o dia em que nasci. Podem não concordar com algumas de minhas escolhas, mas seguem me auxiliando em tudo o que necessito e mostram-se dispostas a contribuir com a minha felicidade. Obrigada por serem minha rede de apoio familiar. Meu amor por vocês é maior do que demonstro, tenham certeza. E por último, mas não menos importante, agradeço a você, Mama. Meu porto seguro, minha companheira, minha maior incentivadora. Foi graças a você que consegui ingressar na universidade, superar os desafios ao longo do caminho e consigo, agora, encerrar mais esse ciclo tão importante de minha vida. Obrigada por respeitar meu ser, apoiar minhas escolhas e se interessar pelas minhas ideias. Sempre que sentir orgulho de mim, orgulhe-se de si mesma. Lembre-se de que sou o que sou por espelhar-me em quem você é. Amo-te incondicionalmente.


1

“But what happens when women try to live according to an image that makes them deny their minds? What happens when women grow up in an image that makes them deny the reality of the changing world?� (Betty Friedan)


2 MORAES, Cuenca Paola. A construção do papel da mulher por meio do jornalismo feminino: uma análise da revista TPM. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014. RESUMO Este trabalho pretende investigar a utilização do jornalismo como um meio de transmissão de ideologias, em especial aquelas acerca de padrões de comportamento. Através de pesquisa bibliográfica e estudo de caso descritivoanalítico de reportagens de capa e entrevistas ping-pong de três edições da revista feminina TPM será avaliada a presença de ideologia no fazer jornalístico. Principalmente no que condiz ao conjunto de ideias ligadas à representação e ao papel da mulher na sociedade brasileira. Discutir-se-á o conteúdo de cada produto a fim de identificar marcas ideológicas sobre o papel designado à mulher e refletir sobre os padrões estabelecidos/estimulados pelas publicações femininas. Palavras-chave: Revista TPM, Ideologia, Revista, Mulher, Jornalismo feminino.


MORAES, Cuenca Paola. The construction of women’s role by feminine journalism: an analysis of TPM magazine. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014. ABSTRACT This work wants to investigate the use of journalism as a way for transmission of ideologies, especially those about behavior standards. By bibliographical research and descriptive-analytical case study of cover article and ping-pong interview of three editions of the feminine magazine TPM will be evaluated the presence of ideology in the journalistic work. Mainly about the set of ideas relating to the representation and role of women in brazilian society. It will be discussed the content of each product in order to identify ideologies marks about the role designated to women and reflect about the patterns stimulated/established by feminine publications. Key-words: TPM magazine, Ideology, Magazine, Women, Feminine journalism.


SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 8 2 IMPRENSA FEMININA ................................................................................. 11 2.1 BREVE HISTÓRIA DA IMPRENSA FEMININA ...................................... 11 2.2 IMPRENSA FEMININA NO BRASIL ....................................................... 17 2.2.1 Século XIX ....................................................................................... 17 2.2.2 Século XX ........................................................................................ 20 3 IDEOLOGIA NO JORNALISMO ................................................................... 33 3.1 CONCEITOS DE IDEOLOGIA ................................................................ 33 3.1.1. Hegemonia ...................................................................................... 38 3.2 JORNALISMO INFORMATIVO OU OPINATIVO? .................................. 40 4 REVISTA TPM .............................................................................................. 46 4.1 EDIÇÕES IMPORTANTES ..................................................................... 49 4.2 SEÇÕES ANALISADAS ......................................................................... 50 5 EDIÇÃO 128 – ESPECIAL NUDEZ ............................................................ 52 5.1 PÁGINAS VERMELHAS COM J.R. DURAN .......................................... 53 5.2 REPORTAGEM DE CAPA: NUDEZ ....................................................... 56 6 EDIÇÃO 129 – ESPECIAL CASAMENTO................................................. 59 6.1 PÁGINAS VERMELHAS COM MARIA BERENICE DIAS....................... 60 6.2 REPORTAGEM DE CAPA: CASAR É... ................................................. 63 7 EDIÇÃO 130 – ESPECIAL TRABALHO.................................................... 66 7.1 PÁGINAS VERMELHAS COM DELAÍDE MIRANDA ARANTES ............ 67 7.2 REPORTAGEM DE CAPA: PAU NA MESA PRA QUÊ? ........................ 69 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 74 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 78 ANEXOS .......................................................................................................... 82


8

1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos tem-se discutido qual seria o papel do homem diante da “nova mulher”. A mulher de hoje é independente, trabalhadora, segura. Ela pode ser ao mesmo tempo mãe, profissional, mulher, amiga, esposa e quais papéis mais ela desejar desempenhar. Afinal, a mulher pode ser quem quiser e da forma como quiser. Será mesmo? Desde o início da imprensa feminina no século XIX na Europa, os materiais jornalísticos que “se proclamam destinados à clientela feminina e foram concebidos objetivando um público feminino” (SULLEROT apud BUITONI, 1990, p. 16) exercem uma relação dupla com suas leitoras. São produzidos com base nas afinidades gerais de seu público consumidor e constroem conteúdo a partir da ideia de mulher que a sociedade espera ver representada. No Brasil, essa interação pode ser observada tanto nos periódicos femininos lançados no início de 1800 - O Espelho Diamantino (1827) e A Mulher do Simplício (1832) - quanto naqueles de público geral que mantinham sessões voltadas para senhoras e jovens donzelas com os folhetins. Literatura de fácil compreensão que disseminava valores românticos e de obediência observados nas mulheres da época e socialmente esperados das mesmas (BUITONI, 1990). Quase 200 anos depois, a imprensa feminina segue funcionando “como termômetro dos costumes da época. Cada novidade é imediatamente incorporada, desenvolvida e disseminada” (BUITONI, p. 24, 1990). Nessa convergência comportamental entre produto e público, questiona-se a responsabilidade do meio de comunicação com relação ao impulso da mulher em ajustar-se aos padrões sociais nele estampados. No mercado editorial brasileiro, uma revista destinada a jovens mulheres afirma ser diferente das outras publicações presentes nas prateleiras das bancas: “Com conteúdo inovador, a TPM não acredita em fórmulas prontas e mostra mulheres contemporâneas vivendo em um mundo real sem perder o bom humor e o jogo de cintura” (INSTITUCIONAL TRIP, 2014).


9 A versão feminina da revista Trip, de editora do mesmo nome, foi lançada em 2001 com o nome de TPM (Trip Para Mulheres) e em apenas 13 anos de existência – se comparada com a Revista Cláudia que existe há mais de 50 anos, a Revista TPM ainda é nova no mercado – tem executado seu trabalho visando a quebra de paradigmas sociais, levantamento de debates e incentivo à auto aceitação feminina. O presente trabalho pretende, diante das indagações iniciais, avaliar o tratamento jornalístico da Revista TPM expresso nas reportagens de capa e entrevistas pingue-pongue a fim de identificar se a publicação promove uma liberação do feminino padronizado ao representar os dilemas da mulher ou cria uma nova opção de homogeneização da mulher brasileira. Para essa investigação, se realizará uma pesquisa bibliográfica sobre a história da imprensa feminina, suas características e as representações da mulher brasileira por esse veículo no século XX. Baseada principalmente em publicações das pesquisadoras Maria Celeste Mira e Dulcília Schroeder Buitoni, essa revisão bibliográfica desenvolverá uma compreensão inicial acerca das relações do mercado editorial com a formação da imagem feminina. Em um segundo momento de estudo teórico, serão investigados conceitos de ideologia defendidos por Karl Marx e Antonio Gramsci. A apreensão dessas concepções será importante para compreender como a formação de papeis sociais se estabelece por meio de transmissões ideológicas. Para encerrar a pesquisa bibliográfica, discorrer-se-á sobre a inserção de opinião no jornalismo em gêneros não declaradamente opinativos. De quais maneiras é possível identificar marcas opinativas – e, consequentemente ideológicas - em um veículo construído por profissionais de comunicação? Como essa subjetividade pode desconstruir ou manutenir ideologias referentes a papeis sociais? Por meio de pesquisa documental foram selecionadas três edições da Revista TPM como objeto de análise. São essas as edições de fevereiro, março e abril de 2013. Esses materiais serão estudados com foco nas entrevistas pingue-pongue (seção fixa da publicação) e nas reportagens de capa. Os dois itens são extremamente importantes para a revista, pois indicam


10 a temática a ser discorrida em cada edição, além de exporem a preferência editorial para determinados assuntos e seus direcionamentos. Sendo assim, por meio de uma leitura crítica pretende-se responder ao problema de pesquisa: a Revista TPM com sua proposta de postura editorial inovadora, em comparação às demais revistas femininas presentes no mercado brasileiro, contribui para a libertação das mulheres de padrões sociais com promoção de um debate sobre o feminino ou tenta encaixá-la em uma representação aceita por seus parâmetros de mulher contemporânea? A partir dessa indagação principal, pode-se retirar um questionamento secundário. Partindo do princípio que revistas femininas, segundo Buitoni (2009), são aquelas voltadas exclusivamente ao jornalismo de serviço e entretenimento, enquanto revistas feministas são aquelas que incluem o jornalismo informativo a fim de promover discussões quanto à realidade da mulher, seria a Revista TPM uma revista feminina ou feminista? Além do interesse pessoal da autora acerca da interação entre o jornalismo e as questões de gênero, os resultados originados por meio desse trabalho contribuem para a compreensão da responsabilidade do fazer jornalístico para a construção e manutenção de conceitos na sociedade e a possibilidade de torná-lo um espaço de discussão. Assim como expor os papeis designados à mulher brasileira através dos meios de comunicação.


11

2 IMPRENSA FEMININA 2.1 BREVE HISTÓRIA DA IMPRENSA FEMININA Apesar dos jornais terem ganhado condições para existirem após a invenção da prensa móvel de Gutenberg em 1440, somente dois séculos depois foi possível realizar a distribuição do periódico de casa em casa. Um aspecto que parece mero detalhe foi responsável pela disseminação e melhora na qualidade dos jornais: o desenvolvimento dos correios contribuiu, ainda, para o aparecimento de publicações segmentadas no século XVII. O berço da imprensa feminina mundial é o continente europeu. A hegemonia das publicações europeias – com grande destaque para o mercado editorial

francês

que

produziu

inúmeros

periódicos

com

diferentes

direcionamentos dentro do público feminino – só deixará de existir no século XIX com o nascimento de algumas publicações nos Estados Unidos da América (EUA). Os jornais femininos já nascem com baixa carga de jornalismo informativo. Ao invés de notícias e artigos de opinião sobre questões sociais, políticas ou econômicas da época, havia poesias, crônicas de filmes e teatros e outros textos que guiavam as “damas” e “donzelas” para a manutenção do comportamento social esperado das mesmas. No decorrer dos séculos, os editores de veículos impressos passaram a incluir outros temas vistos como de grande interesse pelo público feminino. De fato, editorias de beleza, amor, comportamento e casa, inseridas antes do século XX nas páginas de revistas e jornais femininos, são mantidas até hoje em veículos impressos – e audiovisuais – que se destinam às mulheres. Para que essas transformações sejam melhores compreendidas, expor-se-á datas e publicações relevantes para a formação da história da imprensa feminina mundial. Em 1693, surge na Inglaterra o Lady’s Mercury, primeiro periódico feminino do qual se possui registros. Como já dito, e assim como outros periódicos voltados ao público feminino lançados a partir dessa data, o Lady’s Mercury se assemelhava a uma gazeta literária. Mas, a seção que se destaca nessa primeira publicação por se manter presente até hoje é o “consultório


12 sentimental”. Leitoras enviavam dúvidas amorosas e comportamentais para a revista a fim de que uma “amiga” com mais experiência de vida pudesse dar conselhos e orientá-las com relação à atitude mais adequada a ser tomada em cada situação (BUITONI, 1990). No século XVIII, os periódicos femininos começam a aparecer em diferentes países da Europa. Todos marcados pela presença de algum elemento feminino em seus nomes, forte conteúdo literário e “conselhos sobre educação, „modernos‟ para a época: falava na mãe de família que se ocupava ela mesma dos filhos e elogiava os externatos para moças que estavam aparecendo e substituindo pensionatos e internatos” (BUITONI, p. 26, 1990). Na Alemanha surgia o Akademie der Grazien (1774), na Itália nasciam os Toilette (1770), Biblioteca Galante (1775) e Giornalle dele Donne (1781) e na França os pioneiros foram o Courrier de la Nouveauté (1758) e o Journal des Dames (1759), que anos depois mudou seu nome para Journal des Dames et des Modes (BUITONI, 1990). É no século XIX que os periódicos femininos sofreram as maiores transformações tanto de estrutura quanto de conteúdo. Já na virada do século começam a surgir na Áustria e Alemanha veículos dedicados exclusivamente à moda. Embora publicações femininas sobre moda sejam abrangentes quanto a público-alvo atualmente, o foco desses antigos periódicos não eram “leitoras comuns”, mas costureiras e modistas. Os conteúdos desses jornais estavam voltados para os moldes de costura e modelos de roupas que poderiam ser produzidos a partir de encomendas de clientes a suas costureiras particulares (BUITONI, 1990). É preciso compreender aqui que na passagem do século XVIII para o XIX havia poucas mulheres alfabetizadas, já que a educação e o tempo para leitura estavam disponíveis apenas para membros da aristocracia e da elite burguesa. Ou seja, a popularização das publicações femininas seria impossível a partir da estrutura literária que as precediam. Sendo assim, o especial interesse das mulheres de classes sociais mais baixas pelos moldes de revista – que podiam ser manejados por mulheres analfabetas - fez com que o empresário americano Mr. Butterick lançasse em 1863 o primeiro molde de papel de camisa masculina com preço acessível. Pois, ainda que os moldes de papel já existissem desde o século passado, o


13 fato de estes virem de Londres ou Paris e serem vendidos separadamente, os tornavam caros para serem adquiridos por populares. A grande procura por aquele molde de camisa para homens, fez com que o empresário percebesse o nicho de mercado e disponibilizasse cada vez mais modelos do vestuário masculino, feminino e infantil. Em 1871, a Butterick Company já havia vendido mais de seis milhões de moldes de roupas em papel (BUITONI, 1990). Outros fatores, além da venda de moldes de roupas em papel, que contribuíram para a disseminação dos veículos impressos, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, foram o desenvolvimento da indústria, a evolução das editoras e a desvinculação dos correios - que permitiu vendas avulsas de revistas ao invés de venda exclusiva para assinantes, dessa forma mulheres com menor renda puderam ir até às bancas para adquirir exemplares singulares conforme seu poder de compra. Dulcília Buitoni escreve que a movimentação do mercado editorial que se iniciou na “padronização dos talhes das roupas, começava a atenuar a diferença entre classes” (BUITONI, p. 29, 1990). Pautas ligadas ao cuidado do lar aproveitaram o salto de tiragens do fim do século XIX para tornarem-se permanentes. Em 1883, surge nos Estados Unidos o primeiro periódico que ligava seu nome à palavra “casa”. O Lady’s Home Journal apresentava, em 1893, uma tiragem semanal de 700 mil exemplares. Um diretor dessa publicação chegou a lançar uma planta residencial, com a ajuda de um arquiteto, nas páginas da revista. Milhares de pessoas copiaram o modelo que vinha acompanhado de sugestões de decoração para todos os cômodos da casa. O periódico passou a ser tão apreciado que, anos mais tarde, tornou-se a publicação com maior tiragem do mundo: mais de um milhão de exemplares por semana (BUITONI, 1990). Outra inovação proposta pelos norte americanos e copiada até hoje em todo o mundo é a aprovação de determinados produtos pela equipe editorial da revista. O “Seal of Approval”, criado pela revista Good Housekeeping (1885), promovia o jornalismo de serviço em meio às páginas de entretenimento. Um produto que reprovasse nas avaliações feitas pela revista não poderia anunciar nas páginas do veículo (BUITONI, 1990). Nesse período, a publicidade aparecia nas publicações em pequenos anúncios de editoras, pequenas fábricas e lojas e expunham, principalmente,


14 livros, roupas e objetos variados que podiam estar acompanhados ou não de seus preços de mercado (BUITONI, 1990). A pluralização de assuntos fez com que muitos periódicos femininos deixassem de serem chamados de “jornal” para tornarem-se revistas. “No passado, o termo revista relacionava-se mais com o conteúdo do que com o formato, pois, na prática, era difícil distingui-la dos jornais pelo aspecto visual. Ambos eram muito semelhantes, graficamente. Considerava-se revista uma publicação que, mesmo tendo aparência de jornal, apresentasse maior variedade de conteúdo, principalmente ficção, poesia, relatos de viagens e outras matérias de entretenimento” (BUITONI, p. 17, 1990).

Com relação às revistas, a pesquisadora ainda explica que a palavra inglesa “magazine”, deriva da palavra francesa “magasin” que, por sua vez, se originou com base na palavra árabe “armazém”.

E que foram os

estadunidenses os responsáveis por difundir o termo “magazine” com suas fortes publicações que utilizavam a expressão na marca dos periódicos como Ladies’ Magazine e American Magazine (BUITONI, 1990). No início do século XX, o desenvolvimento da indústria dos cosméticos uniu-se à fotografia e ao aprimoramento das técnicas de impressão para criar uma mídia cada vez mais visual que incluía a “beleza” como novo pilar editorial das grandes publicações. “A imprensa feminina desenvolveu uma conduta em relação à credibilidade da foto bastante diferente da imprensa em geral. Nos periódicos para a mulher, as fotos de pessoas que possam ser individualizadas, seja a artista famosa ou a mãe de família, buscam documentar a realidade. Porém, as fotos de moda, beleza e decoração são percebidas antes como fantasia, corporificação de um ideal a ser imitado.” (BUITONI, p. 19, 1990)

Nas décadas que formam o século XX, essa relação de admiração e estabelecimento da revista como referencial comportamental será reforçada com a segmentação de públicos dentro do nicho feminino do mercado editorial mundial. As revistas estadunidenses conseguem destacar-se mais do que as francesas – graças à interrupção de muitas publicações na Segunda Guerra Mundial – e multiplicam-se com foco em diversos públicos-alvo. A antiga Good Housekeeping mantinha-se com tiragem na faixa de sete milhões de exemplares, enquanto surgiam a sofisticada e fashion Vogue, a liberal e independente Cosmopolitan, a Working Mother destinada a mulheres que


15 trabalhavam e cuidavam do lar, a Self sobre beleza e bem-estar físico, entre tantas outras (BUITONI, 1990). Em contrapartida a esse mercado de revistas femininas com assuntos variados que alternam entre o jornalismo de serviço e de entretenimento, há publicações políticas voltadas para o público feminino desde o século XIX. A imprensa feminista germinou principalmente na França, em parte, graças às discussões políticas geradas pela Revolução Francesa. Um dos primeiros periódicos feministas franceses, L’Athénée des Dames, foi lançado logo após a Revolução e possuía a popular seção do correio sentimental. Porém, era escrito com a colaboração de “dezenas de damas francesas” que buscavam a luta por direitos, apesar da falta de feedback positivo de suas leitoras que apostavam na resignação como solução para os problemas femininos. Em 1809, a publicação foi fechada por ordem do imperador Napoleão Bonaporte (BUITONI, 1990). Em 1848, três francesas fundaram o jornal diário La voix des Femmes. Tinham como lema “trabalho, pátria, família” e mantinham muitos argumentos moralistas como se pode presumir a partir do lema. Um grupo de operárias faz parecido e no mesmo ano lança o La Politique des Femmes com lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade para todos e para todas”. Mais tarde, a publicação mudaria seu nome para L’Opinion des Femmes (BUITONI, 1990). Assim como ocorreu na França, a movimentação política na Itália pela independência do país contribuiu para o aparecimento dos primeiros jornais feministas: Circolo dele Donne Italiane e Um Comitato de Donne. Na Alemanha, o periódico Neue Bahnen destacou-se pela luta de proteção e organização do trabalho feminino, além de ter-se mantido em circulação por quase sessenta anos (BUIITONI, 1990). O movimento das sufragetes (mulheres que lutavam pelo direito ao voto) iniciado no final do século XIX também movimentou o cenário editorial. Em 1881, o jornal La Citoyenne foi lançado com objetivo principal de defesa do voto. Na Inglaterra, nasceu o Jus Suffragii que em 1913 mudou seu nome para International Women Suffrage News (BUITONI, 1990). Mas, dois jornais franceses feministas tiveram mais destaque na história graças à sua relevância nas conquistas dos direitos das mulheres. O semanário Le Droit des Femmes, também conhecido como L’Avenir des


16 Femmes. Lançado em 1869 por Maria Deraisme, primeira mulher a entrar na maçonaria, durou vinte anos e viu suas lutas transformarem-se em leis importantes. Entre as reivindicações alcançadas estão o restabelecimento do divórcio1, a ação de investigação da paternidade, remuneração igualitária entre gêneros e direito às mulheres de graduarem-se em Medicina ou Direito (BUITONI, 1990). Em 1897, a jovem atriz Marguerite Durand cria um jornal diário todo produzido por mulheres. A tiragem inicial de 200 mil exemplares do La Fronde esgota-se rapidamente e mostra a força da publicação que possuía editorias variadas e uma folha suplementar que a cada dia trazia uma seção diferente. A educação era colocada como condição prioritária para melhoria de vida e posicionamentos políticos eram expressos sem temor. O jornal fechou em 1905, mas reabriu entre 1926 e 1928 para reforçar a campanha pela elegibilidade das mulheres (BUITONI, 1990). Nos EUA, foi lançada na década de 1960, a revista Ms. o nome da revista já demonstrava sua identidade feminista, já que o pronome de tratamento “Ms” na língua inglesa não indica o estado civil nem o gênero da pessoa referida. A revista discute questões sociais e políticas e objetiva criar um espaço de debate sobre a condição da mulher na sociedade. A revista mantem-se forte até hoje e é uma das principais referências mundiais em publicações feministas (BUITONI, 1990).

1

Durante a Revolução Francesa, mais especificamente durante a fase da Convenção, houve uma reforma da ordem social por parte dos revolucionários. Com isso, no dia 20 de setembro de 1792, o casamento civil e o divórcio foram aprovados como um direito a todos os franceses. O divórcio era visto com naturalidade pelos franceses já no século XVIII graças à dissociação entre religião e Estado. Em 1814, com a abdicação do trono por parte do imperador Napoleão Bonaparte, Luís XVIII era o próximo na sucessão da coroa segundo as tradições familiares. No mesmo ano de sua posse, Luís XVIII escrevera uma carta que instituiu em seu artigo 6º a religião Católica Apostólica Romana como a religião do Estado. Dessa forma, em 1816, sob influência da religião católica, o divórcio foi excluído dos direitos civis franceses (GUEDES, 2011).


17 2.2 IMPRENSA FEMININA NO BRASIL

2.2.1 Século XIX Antes de se apresentar a sucessão de publicações brasileiras voltadas às mulheres é preciso compreender que, enquanto na Europa o mercado editorial feminino se desenvolvia desde o século XVIII, no Brasil a prática da imprensa só foi permitida no início do século XIX com a chegada da família Real Portuguesa em 1808. Porém, os primeiros periódicos femininos surgiram apenas a partir da década de 1820. O modelo de publicação no Brasil seguiu a tendência europeia, ou seja, os poucos assuntos abordados nas páginas dos jornais foram literatura, artes, moda e conselhos de todo tipo. Com destaque para o desafio - também enfrentado pela Europa e Estados Unidos – imposto ao Brasil quanto à popularização da imprensa com um público leitor que, na verdade, não lia (BUITONI, 1990). O analfabetismo entre as mulheres começou a ser reduzido apenas a partir da metade do século XIX. Quando o receio de alguns pais burgueses em “letrarem” suas filhas correndo o risco de que elas passassem a corresponderem-se amorosamente com rapazes de má índole foi perdendo força frente à perspectiva de torná-las donzelas cultas – não somente prendadas – os jornais femininos puderam desenvolver-se com menos dificuldades (BUITONI, 1990). A historiadora Mary del Priore comenta as expectativas comportamentais reforçadas pela imprensa brasileira que também tornavam a leitura um hábito conveniente para as famílias preocupadas em casar suas filhas ainda adolescentes: “Não faltavam conselhos na imprensa. O mais repetido? A mulher devia ser uma boa dona de casa. Devia aplicar esforços no bom comando de escravos e empregados, e na excelente educação dos filhos, além de conhecer e praticar todos os pontos do bordado. Entre as elites também cantar e tocar piano. Ela devia ser reservada no comportamento, evitando tanto o riso demasiado quanto os bocejos de tédio. Devia-se, ainda, evitar a entrada de qualquer homem dentro de um quarto de mulher, com exceção de padres e médicos, que não eram considerados homens. Sendo o casamento indissolúvel, devia-se evitar contato com divorciadas e separadas, consideradas maus exemplos. Reforçava-se o medo das


18 „perdidas‟: Há coisas que uma vez perdidas, nunca mais se recuperam: na mulher, a inocência, e, no homem, a confiança nela, martelavam ditados.” (DEL PRIORE, p. 53-54, 2013)

Nessa primeira fase dos jornais femininos brasileiros, os grandes destaques são os folhetins, iniciados, em 1838, com a publicação de “O Capitão Paulo” no Jornal do Commercio. De incrível contribuição para a história da literatura nacional, o espaço destinado aos pequenos romances, divididos por capítulos a cada publicação, em periódicos do século XIX dava reconhecimento a novos e grandes escritores - aqueles que alcançavam sucesso nos jornais eram editados em livros -, além de medir o conservadorismo da sociedade. “Quadrinhas e piadas em jornais preveniam sobre os perigos femininos. No contexto de repressão, não era de surpreender que a duplicidade feminina tenha se tornado um grande tema literário. O século XIX parecia obcecado pela versatilidade dessa criatura complexa, capaz de reunir o melhor e o pior, exatamente como Capitu, a protagonista de Machado de Assis: criaturas que eram anjo e demônio ao mesmo tempo.” (DEL PRIORE, 2013, p. 54)

Ainda que um “lado obscuro” das mulheres fosse explorado por autores mais ousados, a recepção do público, que tinha forte influência no desfecho dos romances folhetinescos, fazia com que mulheres independentes, adúlteras ou com comportamentos que fugissem à resignação e obediência esperadas das “senhoras” sofressem nas linhas do jornal. Outra característica feminina muito valorizada era a virgindade. Para as mulheres casadas, a “honra” era traduzida com a falta de interesse sexual. Ainda que fosse direito, previsto em lei, a ocorrência de atos sexuais sempre e quando o marido desejasse – este poderia usar da violência para consegui-lo – a mulher poderia denunciá-lo por sodomia, em caso de seu desejo sexual ser excessivo e agressivo. Afinal, a esposa fora educada para ser dona de casa e mãe para seus filhos. O sexo dentro do casamento deveria servir somente para procriação. As “coisas sujas” deveriam ser praticadas com “as outras”: prostitutas e/ou mulheres desonradas (DEL PRIORE, 2013). Consonante ao sucesso da literatura romântica, estava a divulgação da última moda em Paris. De fato, moda e literatura eram as impulsionadoras da imprensa feminina brasileira assim como já haviam sido na imprensa internacional. As duas temáticas que reforçavam a fantasia no imaginário de


19 jovens moças e adotavam uma linha conservadora sobre a representação da mulher eram divulgadas por publicações com nome de “flores, pedras preciosas, animais graciosos, todos metáforas da figura feminina, ou mencionando a mulher e seus objetos” (BUITONI, p. 40, 1990). Sobre esse período podemos destacar o primeiro periódico feminino brasileiro segundo o historiador Gondin da Fonseca, O Espelho Diamantino (1827), informação que é contestada pelo brasilianista2 Laurence Hallewel que expõe em seu livro “O livro no Brasil” de 1985, a publicação A Mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada (1832) como o primeiro veículo feminino do País (BUITONI, 1990). Em Recife, local de grande atividade intelectual graças à existência da faculdade de Direito, foi lançado em 1831, segundo Buitoni, o segundo jornal para mulheres do País: O Espelho das Brazileiras. “Outros se seguiram: Jornal de Variedades (1835), Relator de Novellas (1838), Espelho das Bellas (1841)” (BUITONI, 1990, p. 38). No Rio, nasce em 1839, o jornal semanal Correio das Modas e A Fluminense Exaltada é substituído por A Marmota em 1849. Este último foi o primeiro periódico a reproduzir litografias impressas no Brasil. Os figurinos divulgados na publicação eram processados em Paris e encartados na revista (BUITONI, 1990). No final do século XIX, há poucas mudanças sociais. O mais expressivo estava na adoção, aos poucos, do romance como base matrimonial. O que era abominado por pais e famílias tradicionais, com posses, que visavam contratos financeiros e comerciais com o casamento de suas filhas, já era mais aceito entre a classe média – a classe baixa, desde antes, não seguia de forma rigorosa as regras sociais a respeito de envolvimentos conjugais e amorosos (DEL PRIORE, 2013).

2

O Brasilianismo foi um movimento ocorrido no início do século XX de aumento da produção acadêmica sobre o Brasil realizado por estrangeiros que recebiam financiamento e amplo acesso a arquivos históricos e documentos brasileiros. Benefícios que não eram concedidos aos pesquisadores brasileiros.


20 2.2.2 Século XX A crescente industrialização, abolição da escravatura, instituição da república levaram o Brasil rumo a um processo de modernização social. Uma mostra disso é o Decreto número 181 aprovado em 24 de janeiro de 1890. Essa decisão que estabelecia o casamento civil no Brasil mostrava uma ruptura do Estado com a Igreja. A Igreja católica entendia o casamento civil como uma ofensa aos “bons costumes” e chegou a fazer campanha pelas ruas para que as pessoas não se unissem perante o Estado. Mesmo assim, cerca de dez anos depois da aprovação, os juízes de paz já celebravam mais uniões do que os padres (DEL PRIORE, 2013). O conceito de amor romântico no Brasil ganharia ainda mais força na virada do século XIX para o século XX com o início da imigração europeia. As camadas populares que já haviam se convencido da importância dos laços amorosos para a construção de um bom matrimônio, passavam a influenciar a vida das elites. O casamento passa a ser pensado como a associação entre afeto e bons negócios. Como é de se esperar, as publicações femininas trataram logo de estampar esse reflexo da sociedade em suas páginas (DEL PRIORE, 2013). Em 1890, três moças de família tradicional do interior de Minas Gerais criaram o jornal Voz Feminina e marcaram história por lançar, em 1901, campanha de direito ao voto pela mulher. Em 1905, as três empreendedoras se alistaram e fizeram uso de seu voto nas urnas de eleições (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS apud BUITONI, 2009). Os pequenos jornais femininos de curta duração e temática editorial conservadora seguiram surgindo. Em São Paulo, há O Chromo (1901), O Colibri (1904) e O Sorriso (ano de lançamento não informado). Mas, a estrutura de impressão artesanal ainda mantida por essas publicações seria abandonada para sempre (BUITONI, 2009). A novidade do mercado editorial brasileiro no início do século XX é o uso da fotografia. Ilustrações e técnicas gráficas também marcavam presença com a saída da xilo e litogravura. Dessa forma, autores literários passam a abandonar os jornais – que começam a se dedicar ao jornalismo informativo e de notícia – para adentrar as redações de revistas.


21

“Essa década [1890] assiste ao crescimento e à popularidade das revistas ilustradas. A imprensa brasileira dos grandes centros já havia ingressado na era capitalista, e os jornais já eram considerados empresas industriais e comerciais. Continuavam as folhas operárias, de vida curta, a pipocar em todo o país. Revistinhas humorísticas efêmeras apareciam no Rio e em São Paulo.” (BUITONI, p. 51, 2009)

Foi nesse momento que as revistas ilustradas, nascidas há alguns anos, quando literatura e imprensa se confundiam, deram os primeiros passos rumo à segmentação de públicos tão característica do século XX. A literatura se fechou em revistas exclusivas para esse assunto, enquanto as revistas mundanas, de variedades e femininas se aproveitaram dos avanços visuais nas páginas de suas publicações (BUITONI, 2009). Em 1914, surgiu a primeira grande revista brasileira para mulheres, a Revista Feminina. Essa publicação foi a primeira a apresentar uma base editorial sólida e bem organizada. De fato, algumas características da Revista Feminina fazem lembrar a francesa La Fronde: um periódico fundado por mulheres que apresentava seções tradicionalmente femininas, mas lançava mão de uma filosofia editorial progressista. O direito da mulher mais defendido naquele momento pelo exemplar nacional foi o direito ao voto. Buitoni (2009, p.56) avalia a revista como um veículo não meramente comercial, “apesar de ser um produto bem-acabado, bem diagramado, com boa diversidade de assuntos”. Havia entretenimento, mas também havia um ideário a ser defendido. Com mais de 16 páginas – média de páginas de publicações femininas anteriores – e uma tiragem que chegou a 30 mil exemplares durante sua existência até 1935, a Revista Feminina explorava a potencialidade de seu público. Com efeito, a Revista Feminina pode ser considerada precursora dos modernos veículos dedicados à mulher. Ela compreendia o mercado capitalista no qual estava inserido e a necessidade de diversificação de assuntos para fidelizar leitoras que estavam em meio a transformações sociais - ainda que não saísse muito das artes domésticas. Eram seções de trabalhos manuais, psicologia, beleza, notas sociais, culinária, entre outras do “universo feminino” que estimulavam a participação das leitoras e a comunicação entre elas e a equipe editorial. A Revista Feminina iniciou a prática de cadastrar leitoras que


22 escrevem às revistas para que essas se tornem alvo de mailings de empresas parceiras (BUITONI, 2009). Em resumo, a Revista Feminina se destacou por ser a primeira do Brasil totalmente direcionada às mulheres com boa tiragem, cuidado editorial, apreciação do público leitor e destreza para lidar com o mercado capitalista. Mas, não se pode esquecer a importância de veículos gerais que destinavam alguns espaços para o público feminino e contribuíram para o avanço da situação das mulheres no País. Um bom exemplo desse cenário é a Revista da Semana que, por meio de colunas escritas pela bióloga e advogada Bertha Lutz, debateu a educação como condição emancipatória para homens e mulheres, assim como o direito ao voto feminino. Bertha tornou-se presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino na década de 1920 e, na década de 1930, foi eleita deputada (BUITONI, 2009). Outra figura feminina que contribuiu para as discussões sobre a condição da mulher na sociedade foi Maria Lacerda de Moura. Maria lançou obras e escreveu colunas que questionavam a situação feminina, como a resenha intitulada “Amai e... não vos multipliqueis!” que dizia: “Em que consiste a emancipação feminina? De que vale o direito de voto para meia dúzia de mulheres no Parlamento, se essas mesmas continuam servas em uma ordem social de senhores e escravos, exploradores e explorados, patrões capitalistas e assalariados?” (BUITONI, 2009, p. 70)

Em 1923, Maria lançou a Revista Renascença, destinada à educação de mulheres sobre sua realidade política e social, além de tratar sobre “saúde e beleza feminina, ornamentação dos nossos lares, galeria infantil” (BUITONI, 2009, p. 71). Todos os textos incluídos na Revista Renascença possuíam uma linha de defesa dos direitos femininos. A intenção de Maria era aperfeiçoar o pensamento da mulher e, assim, melhorar a educação dos filhos das leitoras quanto às questões sociais. Porém, como outras publicações fortemente políticas, a Renascença não durou mais que algumas edições. A partir da década de 1930, o Brasil muda seu país-modelo. O padrão de vida francês almejado durante todo o século XIX e início do século XX perderá sua influência para o modelo norte-americano, principalmente, em função

da

Guerra

Mundial.

A

hegemonia

econômica

e

cultural


23 estadunidense começa a exercer o poder que se manterá durante as próximas décadas (MIRA, 2001). No Brasil, a aprovação do voto feminino em 1932 e as constantes evoluções sociais causadas pela industrialização fizeram com que as mulheres se aproximassem dos homens em relação às liberdades. Grande parte do proletariado era formado por mulheres imigrantes: 67,62% da mão de obra. Nas camadas mais altas, a guarda dos pais ia baixando aos poucos. Jovens podiam frequentar piscinas de clubes, cinema e realizar excursões juntos (PRIORE, 2013). O cinema se torna um grande influenciador de comportamentos. Segundo

David

Bordwell

(apud

MIRA,

2001),

95%

das

narrativas

hollywoodianas se constroem em torno de um relacionamento romântico e heterossexual. Edgar Morin (apud MIRA, 2001) observa que o amor trágico típico da literatura perde espaço para o amor feliz considerado uma invenção do cinema norte-americano. Nesse sentido, a dinâmica dos namoros no Brasil teve grandes mudanças. Casais já podiam ser vistos em contato direto, tanto em classes populares quanto nas classes burguesas, nos tão comuns passeios a pé pelas ruas. As iniciativas casamenteiras das famílias perdiam força frente à decisão pessoal influenciada pelo sentimento amoroso. O casamento deixava de ser arranjado, mas seguia com sua força na manutenção dos bons costumes e da honra feminina (DEL PRIORE, 2013). Betty Friedan, autora de “A mística feminina” lançado em 1963, clássico da literatura feminista, investigou a imprensa feminina estadunidense, do início ao meio do século XX, a fim de compreender a origem da tal “mística feminina”: fenômeno sem nome específico que levava donas-de-casa – em maioria, brancas e de classe média - a sentirem-se insatisfeitas com suas vidas. Friedan (1992) aponta que, na década de 1930, as histórias de ficção veiculadas em revistas femininas norte-americanas não reproduziam a ideia de subserviência feminina característica dos anos 1950. “In 1939, the heroines of women‟s magazine stories were not Always Young, but in a certain sense they were younger than their fictional counterparts today. They were New Women, creating with a gay determined spirit a new identity for women – a life of their own. There was an aura about them of becoming, of moving into a future that was going to be different from the


24 past. The majority of heroines in the four major women‟s magazine (Ladies’ Home Journal, McCall’s, Good Housekeeping, Woman’s Home Companion) were career women – happily, proudly, adventurously, attractively carrer women – who loved and were loved by men. And the spirit, courage, independence, determination – the strength of character they showed in their work as nurses, teachers, artists, actresses, copywriters, saleswomen – were part of their charm. There was a definite aura that their individuality was something to be admired, not unattractive to men, that men were drawn to them as much for their spirit and character as for their looks.” (FRIEDAN, 3 1992, p.34)

A escritora, que chegou a trabalhar em algumas das revistas citadas em seu estudo, relaciona o perfil da heroína feminina das fotonovelas da década de 1930 e 1940 com o período histórico vivido pelos Estados Unidos. Após a Primeira Guerra Mundial, o avanço da economia norte-americana fez com que a sociedade acompanhasse o desenvolvimento do país em questões culturais e sociais. A entrada das mulheres no mercado de trabalho incentivava a autonomia feminina e criava personagens que seguiam em busca do amor, materializado na forma de um bom marido, mas que, acima de tudo, procuravam relacionar-se com o mundo, desenvolver seu senso de individualidade. Um bom exemplo desse perfil de mulher disseminado nas publicações femininas é a personagem Sarah do pequeno romance “Sarah and the Seaplane” veiculado na Ladies’ Home Journal em fevereiro de 1949. A garota de 19 anos que fazia aulas de voo escondido da mãe se encanta com a sensação de liberdade experimentada todas as vezes em que pilota um avião. Mesmo após ter seu segredo descoberto, ela insiste em conseguir sua licença para pilotar aviões e acaba se envolvendo emocionalmente com Henry, o professor de voo. No primeiro voo solo de Sarah, Henry diz que ela é “a garota dele”, mas as emoções experimentadas por Sarah são descritas de forma a valorizar a experiência de independência, não a de romance (FRIEDAN, 1992): 3

Em 1939, as heroínas das histórias de revistas de mulheres não eram sempre jovens, mas de certa maneira elas eram mais jovens do que suas personagens homólogas de ficção atuais. Elas eram Novas Mulheres, criando com um espírito gay determinado uma nova identidade para as mulheres – uma vida delas mesmas. Havia uma aura sobre elas de tornar-se, de mover-se ao encontro de um futuro que seria diferente do passado. A maioria das heroínas nas quatro principais revistas para mulheres (Ladies’ Home Journal, McCall’s, Good Housekeeping, Woman’s Home Companion) eram mulheres trabalhadoras – felizes, ourgulhosas, aventureiras, atraentes mulheres trabalhadoras – as quais amavam e eram amadas por homens. E o espírito, coragem, independência, determinação – a força de caráter que elas mostravam nos trabalhos delas como enfermeiras, professoras, artistas, atrizes, copiadoras, vendedoras – eram parte do charme delas. Havia uma aura definida de que a individualidade delas era algo a ser admirado, não não-atraente para os homens, aqueles homens eram desenhados tanto para o espírito e caráter delas quanto para os looks (Traduzido do inglês pela autora).


25

“Henry‟s girl! She smiled. No, she was not Henry‟s girl. She was Sarah. And that was sufficient. And with such a late start it would be some time before she got to know herself. Half in a dream now, she wondered if at the end of that time she would need someone else and who it would be.” (FRIEDAN, 4 1992, p.36)

Mas, na virada de décadas (entre 1940 e 1950) já era possível perceber como as heroínas que focavam sua felicidade na carreira começavam a desparecer. A própria Ladies’ Home Journal que meses antes divulgava história com mulheres protagonistas de suas vidas e escolhas, passou a disseminar as ideias defendidas por Farnham e Lundberg na obra “Mulher moderna: o sexo perdido” de 1942. O alerta era de que mulheres com carreiras e educação superior estavam sofrendo um processo de “masculinização com enormes e perigosas consequências para o lar, às crianças ainda dependentes e à habilidade das mulheres, assim como de seus maridos, de obter gratificação sexual” (FRIEDAN, 1992, p.37). É nesse momento que a autora identifica o início da “mística feminina”. Ao dizer que o maior comprometimento de uma mulher deve ser com o preenchimento de sua feminilidade, definir a feminilidade como a valorização da fragilidade/delicadeza feminina e capacidade protetora/cuidadora em relação aos filhos e marido e colocar os conflitos sociais – advindos da emancipação feminina – como consequência do desejo da mulher de imitar o homem, retomam-se os padrões comportamentais do início do século XX (FRIEDAN, 1992). Se parece complicado compreender o porquê dessa rápida mudança com relação aos padrões de comportamento femininos expostos em periódicos para mulheres, deve-se investigar o que ocorreu nos bastidores das redações. Friedan entrevistou editoras e jornalistas que trabalharam para as maiores publicações femininas desse momento e obteve respostas sobre tal regressão: “I found a clue one morning, sitting in the office of a women‟s magazine editor – a woman who, older than I, remembers the days when the old image was being created, and who had watched it being displaced. The old image of the spirited career girl was largely created by writers and editors who were women, she told me. The newi image of woman as housewife-mother has been largely created by writers and editors who are men. „Most of the 4

A garota do Henry! Ela sorriu. Não, ela não era a garota do Henry. Ela era Sarah. E isso era suficiente. E com uma descoberta tardia, ela teria sido isso algum tempo antes de se conhecer. Metade de si em sonho, ela agora se perguntava se no final daquele tempo ela precisaria de mais alguém e quem essa pessoa seria (Traduzido do inglês pela autora).


26 material used to come from women writers.‟ she said, almost nostalgically. „As the young men returned from the war, a great many women writers dropped out of the field. The young women started having a lot of children, and stopped writing. The new writers were all men, back from the war, who had been dreaming about home, and a cosy domestic life.‟ One by one, the creators of the gay „career girl‟ heroines of the thirties began to retire. By the end of the forties, the writers who couldn‟t get the knack of writing in the new housewife image had left the women‟s magazine field. The new magazine pros were men, and a few women who could write comfortably according to 5 the housewife formula.” (FRIEDAN, 1992, p.47-48)

Pelo jornalismo feminino brasileiro ter passado a se espelhar no modelo de imprensa estadunidense a partir dos anos 1930, associar a popularização do amor romântico do cinema hollywoodiano com a mudança de padrões comportamentais das mulheres nos Estados Unidos – graças à tomada das redações pelos homens - ajuda a compreender a reprodução de determinados valores na sociedade brasileira. Valores também aceitos e reproduzidos pelos europeus: criadores da fotonovela. “Através do cinema, a perspectiva de viver um grande amor e encontrar nele toda a felicidade que se pode ter nesta vida se cotidianiza. E essa preocupação central com o amor, além de impregnar outros tipos de revistas, faz emergir um setor importante de publicações ligado à imprensa feminina: a fotonovela, também chamada de „imprensa do coração‟.” (MIRA, 2001, p. 33)

Essa criação de italianos que começou com cine-romances, resumos de filmes com fotografias das principais cenas acompanhadas de um curto texto, já fazia algum sucesso na Europa, mas teve uma aceitação avassaladora na América Latina. Histórias melodramáticas que falam sobre traição, intrigas amorosas, desencontros e mal-entendidos a partir de heróis, vilões e vítimas. O mundo da fotonovela era maniqueísta, moralista e os desfechos eram “ditados pelo destino” (MIRA, 2001, p. 34). 5

Eu encontrei uma pista uma manhã, sentada no escritório de uma editora de revista feminina – uma mulher que, mais velha do que eu, recorda os dias em que a antiga imagem de mulher estava sendo criada, e quem assistiu a esse acontecimento. A antiga imagem da espirituosa garota trabalhadora foi comumente criada por escritoras e editoras mulheres, ela me disse. A nova imagem de mulher como mães e donas-de-casa tem sido comumente criada por escritores e editores homens. „A maioria do material costumava vir de mulheres escritoras‟, ela disse, quase nostalgicamente. „Conforme os jovens homens retornaram da guerra, um grande número de mulheres escritoras deixaram a área. As mulheres jovens começaram a ter muitas crianças, e pararam de escrever. Os novos escritores eram todos homens, vindos da guerra, que haviam sonhado com o lar, e uma confortável vida doméstica‟. Uma a uma, as criadoras das heroínas „garotas trabalhadoras‟ gay dos anos trinta começaram a se aposentar. Ao final dos anos quarenta, as escritoras que não conseguiam se ajustar à nova escrita com base na imagem da dona-de-casa já haviam deixado as redações das revistas femininas. Os profissionais das novas revistas eram homens, e algumas mulheres que conseguiam escrever confortavelmente de acordo com a fórmula da dona-de-casa (Traduzido do inglês pela autora).


27 No Brasil, a pioneira das fotonovelas foi a revista Grande Hotel lançada em 1947 – com nome inspirado na italiana Grand Hotel. Até 1951, os quadros com histórias românticas não eram exatamente fotonovelas, mas quadrinhos desenhados. Grande Hotel ainda trazia histórias de leitoras com problemas sentimentais. Questiona-se a veracidade de tais relatos, mas o que importa era o sucesso de tal seção. O trunfo da revista era seu corte de conteúdo. As fotonovelas eram cortadas ao meio, assim como os relatos românticos. Despertar a curiosidade da leitora era garantir a venda de mais revistas na semana seguinte (BUITONI, 2009). Grande Hotel ainda popularizou outra característica de revistas femininas mantida até hoje: os testes. Sem base científica alguma, os testes serviam como solução para a constante busca do autoconhecimento e padronização em modelos de comportamento aceitos socialmente (BUITONI, 2009). Outra grande revista de fotonovelas foi a atual revista adolescente, Capricho (1952).

Ela foi lançada logo após a Grande Hotel com tiragem

ambiciosa: 91 mil exemplares. Porém, apenas 26 mil foram vendidos. A fórmula de sucesso da Capricho foi, então, aumentar o formato (a revista de 14 x 19cm passou a ter 20,5 x 27,5cm), dobrar o preço, tornar-se mensal e publicar histórias completas em uma edição. No primeiro trimestre de 1961, a revista ultrapassaria os 500 mil exemplares. Nas décadas de 1950 e 1960, as fotonovelas seguiram fazendo sucesso e impulsionando as receitas de editoras. Para aproveitar essa onda, a editora Abril lançou subprodutos da revista Capricho: Ilusão (1958), Noturno (1959), Contigo (1963). A Rio Gráfica pôs em circulação a revista Destino (1959), Garotas, Meu Romance, Sortilégio e a editora Vechi editou entre 1959 e 1966 as revistas Sentimental, Romântica, Fascinação, Ternura e Sonho. A editora Bloch publicou somente duas revistas: Amiga (1970) e Sétimo Céu (1958). Sendo esta última a única revista que publicava fotonovelas produzidas em território nacional – as outras revistas não se interessavam em produzir o conteúdo devido aos altos custos (MIRA, 2001). Ainda que tivessem feito sucesso durante três décadas, as fotonovelas eram consideradas “literatura de empregada doméstica” (MIRA, 2001, p. 36) entre as mulheres de camadas sociais mais altas. De fato, o tom


28 melodramático das histórias atraía mulheres mais pobres, moradoras de cidades interioranas e adolescentes. Os exemplares eram trocados entre as moças como livros emprestados a uma amiga. Às vezes, a troca era realizada com o próprio jornaleiro ou com os donos de sebo (MIRA, 2001). As mudanças de postura da década de 1960 fizeram com que a partir de 1970 as fotonovelas entrassem em declínio. As histórias passaram a ser consideradas tolas e ingênuas. Muitos exemplares mantiveram-se no mercado até a década de 1980, mas o chamariz das publicações femininas já não era mais as histórias que valorizavam a renúncia, a virgindade e o casamento (MIRA, 2001). Nos anos 1960, as revistas brasileiras mantinham forte vínculo com o comércio: “As revistas femininas traziam cada vez mais anúncios, a atestar a capacidade compradora de seu público. Mais páginas a cores, mais „reportagens‟ de moda, matérias ensinando a comprar melhor eletrodomésticos etc.: o projeto editorial de cada veículo dirigido às mulheres tem em vista o consumo, em primeiro lugar. Contos, culinária, psicologia, conselhos de beleza não são escolhidos por si; tudo que vai dentro de uma revista está diretamente ligado ao produto (moda e maquiagem, por exemplo) ou serve de atrativo para que a revista seja comprada e com isso divulgue a publicidade nela contida. O conteúdo é, portanto, instrumental: serve a objetivos empresariais bem delimitados.” (BUITONI, 2009, p. 104)

Nesse contexto já era possível importar para o Brasil, um novo modelo de revista feminina que superava os laços afetivos entre a publicação e sua leitora: o periódico sofria antropomorfização e era intitulado com um nome feminino. Na França, a revista Marie Claire ganhava cada vez mais leitoras. No Brasil, é lançada pela editora Abril a revista voltada à mulher

preferencialmente casada – burguesa: em 1961, nasce a revista Claudia (MIRA, 2001). O tratamento dado à leitora é direto; ela é tratada como “você”. As capas eram marcadas por closes de belos rostos femininos, mas os conteúdos continuam sendo importados. As fotografias eram produzidas pela irmã mais velha da publicação brasileira, a Claudia argentina, e algumas eram compradas da revista Marie Claire e Elle. Para abrasileirar o conteúdo, Claudia precisou contratar profissionais estrangeiros que também sofreram para executar seus trabalhos nos primeiros anos. Trabalhos hoje bem remunerados e valorizados como

de

decorador,

produtora

de

moda

e

editora

de

arte

eram


29 incompreendidos pelas pessoas e chegavam a sofrer preconceito (MIRA, 2001). Além dos conteúdos tradicionais: moda, beleza, culinária, decoração, dicas e tira-dúvidas de todo tipo, a revista Claudia inovou em seu conteúdo pela contratação de uma colunista em especial, a doutrinadora psicológica Carmen da Silva. Carmen é apresentada como jornalista e escritora. Com seus artigos de opinião baseados em fundamentos psicológicos, ela é enxergada pelas leitoras como “a pensadora feminina” (BUITONI, 2009, p.106). A colunista discute diferentes temas em cada publicação com um fio condutor em comum: a necessidade da mulher brasileira em protagonizar sua própria vida. Dentro desse processo de centralização, existe o questionamento da verdade que lhe é imposta, a denúncia de injustiças e discriminações e a descoberta do valor feminino (BUITONI, 2009). Porém, os conteúdos feministas das colunas de Carmen da Silva não condiziam com o resto da publicação. Ainda que Carmen insistisse na ideia de que a felicidade da mulher residia no seu encontro pessoal e auto aceitação, as reportagens e seções de variedades da revista ensinavam formas de esconder imperfeições com maquiagem ou como, coincidentemente, desempenhar bem o papel de mãe e as demais ocupações (MIRA, 2001). A década de 1970 balançou as estruturas sociais brasileiras e, consequentemente, mexeu com o mercado editorial feminino: “A família dos anos 1970 foi resultado desse cenário de mudanças. A participação da mulher em escritórios, serviços, fábricas, lojas deu nova dimensão ao casamento. Com métodos contraceptivos mais eficientes e segurança profissional, as mulheres se „reinventaram‟ dentro de casa e da família. As relações verticais passaram a ser questionadas. Rompia-se, muito lentamente, o ciclo de dependência e subordinação ao marido. A imprensa feminina continuou a investir na figura da mãe e da dona de casa – agora angustiada. [...] Para a liberada que aderisse à revolução da pílula não faltavam informações para „entrar no fechadíssimo clube das cabeças que pensam e decidem‟. Só que, para entrar nesse clube, era preciso ter cabelos esvoaçantes e corpo sedutor; ser uma „pantera‟.” (DEL PRIORE, p. 79, 2013)

Em 1973, a versão brasileira da revolucionária e sexualizada Cosmopolitan nasceu mostrando que a escolha de palavras pode mudar o tom das publicações. A revista Nova estreia o uso da palavra “orgasmo” em periódicos. A mulher que antes chegava ao “clímax”, agora podia “gozar”. Mas, a sociedade brasileira não estava preparada para tanta liberação sexual. A


30 revista passou por censura em 1974 com a reportagem “A tirania do orgasmo” e suas ilustrações. Em 76, as matérias “Como despertar a sexualidade”, “Mulheres que vivem cercadas de homossexuais” e “O orgasmo masculino” foram proibidas. Em 78, “Amor de uma noite só” e “A primeira pode não ser a melhor” são liberadas com ameaças de restringir a venda da revista para maiores de 18 anos de idade (MIRA, 2001). De fato, o destaque da revista Nova estava nas matérias sobre sexualidade – três a cada publicação – e comportamento. Temas como “uso da pílula anticoncepcional, aborto, sexo e Igreja, estupro, mulheres espancadas, sexo

no

Brasil,

liberação

sexual,

moralidade,

culpa,

masoquismo,

homossexualismo (sic) e muitos outros” foram explorados pelo periódico (MIRA, 2001, p. 127). A revista Nova fala com as solteiras e descasadas (o divórcio foi aprovado somente em 1977, levando muitas mulheres que já não viviam com seus maridos a serem classificadas como “descasadas”) (MIRA, 2001). Nova ainda tratará de empregos, profissões e carreira, pois seu público era formado por muitas mulheres trabalhadoras que conviviam com a independência financeira feminina. Tais visões editoriais poderiam classificar a revista como uma publicação feminista, porém a forte sexualização da mulher que não deveria “deixar em casa seu poder de sedução” – causa o rechaço da revista por parte de grupos feministas (MIRA, 2001, p.129). Conseguir benefícios subjugando os homens por meio do “poder de sedução” não era/é uma atitude ovacionada por grupos que pedem igualdade entre os gêneros (MIRA, 2001). Não é de se espantar que em meio à sociedade brasileira recémurbanizada, porém ainda presa a antigos valores morais, a revista Nova fosse conhecida como um periódico para “mulheres fáceis”. Preconceitos à parte, a revista acaba sendo nesse momento a publicação com mais páginas de texto, a mais lida na sua totalidade, a mais colecionada e a que fica mais dias nas mãos das leitoras (MIRA, 2001). Diante da atitude liberal da revista Nova, as outras duas publicações femininas de maior expressão na década de 70, Claudia e Capricho, seguiam praticamente mudas. Por atender um público mais jovem, Capricho evitava incitar comportamentos sexuais que podiam vir a ser reprovados pela


31 sociedade. Enquanto, Claudia – excluindo os debates da coluna de Carmen da Silva – seguiu sua postura conservadora condizente com o público burguês de mulheres casadas. Porém, ambas sentem uma queda em suas vendas. As fotonovelas e clima de romance, da Capricho, são vistos como “do tempo da vovó” pelas jovens brasileiras (MIRA, 2001, p. 36). Claudia, que havia abalado as estruturas do mercado na década anterior, sentia sinais de envelhecimento e precisou passar por reformulações tomando muito cuidado com o limite de suas leitoras para tanta modernidade (MIRA, 2001). Na década de 1980, a mulher adulta brasileira se vê presa às raízes conservadoras passadas da avó para a mãe, mas sente necessidade de levar a liberdade de pensamento à filha. Embora, somente 25% das mulheres estivessem no mercado de trabalho, a maioria das donas de casa apoiava a independência feminina e estimulava sua filha a buscar o mesmo (DEL PRIORE, 2013). Pautas que impressionavam os brasileiros nas capas da Nova na década anterior, já podiam ser vistas em revistas mundanas e de variedades. A revista Capricho abandona as fotonovelas para se tornar “a revista da gatinha”. Seu reposicionamento de público para meninas de 13 a 20 anos foi bem recebido. Moda, beleza e comportamento eram os principais assuntos da publicação (BUITONI, 2009). Nesse período, o cuidado com o corpo por meio de exercícios ao invés da utilização de cosméticos ou maquiagem passou a ser uma preocupação de mulheres jovens. As meninas, que até 30 anos atrás estavam presas ao ambiente do lar, podiam sair às ruas para exercitarem-se. Cuidar do físico e da saúde corporal passa a ser um estilo de vida. Sendo assim, nasceram, visando o público feminino, as revistas Saúde! E Boa Forma (MIRA, 2001). “Como os hábitos de vestir-se e alimentar-se, a aparência corporal liberta-se dos ditames da tradição e, embora recrie mecanismo de estratificação social, torna-se mais aberta, mais diversificada. Passa a ser um elemento central na construção de identidade. Assim, da mesma maneira que o modo de vestir-se, o que se come diz algo sobre quem se é. O corpo integra-se à narrativa da auto-identidade, sendo o seu aspecto visível.” (MIRA, p. 191, 2001)


32 A segmentação do mercado editorial de revistas teve seu boom na década de 1990. A globalização, o advento da internet e a transformação da imagem da mulher foram os destaques dessa década. Revistas baratas voltadas para mulheres surgiram em todas as bancas. Resumos de novela, beleza, culinária eram os assuntos responsáveis pelo grande e rápido consumo dessas pequenas publicações (BUITONI, 2009). Nos anos 90, a mulher se sente mais segura quanto às suas opiniões políticas e sociais. Campanhas de uso de preservativos ajudaram a tornar o sexo um assunto normal em páginas de materiais prensados, além de estimular o conforto sexual da mulher - afinal ela passa a ter a obrigação de saber se proteger de doenças sexualmente transmissíveis. Ela pode buscar o veículo jornalístico com o qual mais se identifica em linguagem, visão editorial e faixa etária. Porém, diante de tantos papeis expostos diante dela, essa mulher se sente pressionada: precisa ser a boa mãe trabalhadora da revista Claudia, a bonita e sensual amante da revista Nova, a mulher atualizada e fashionista da Marie Claire, ser malhada e bem cuidada como as companheiras da Boa Forma e tantas outras normatizações expostas à mulher por meio da imprensa que trabalha constantemente com linguagem imperativa (BUITONI, 2009). Na virada para o século XXI, segundo Buitoni (2009, p.207), uma revista que pretendia ser “um periódico feminista que tivesse muita venda em banca” é lançada com o nome de TPM (Trip para mulheres). A autora compara a publicação com a americana Ms. já citada nessa pesquisa. “TPM apresenta matérias inteligentes e aprofundadas, ao lado de seções de roteiro cultural e comentários humorísticos – coisa rara em imprensa feminina – e propõe outras visões de consumo, embora dentro de uma economia capitalista.” (BUITONI, p. 207, 2009)

Cabe a esse trabalho explorar como a Revista TPM,14 anos após seu lançamento, se relaciona com a construção do papel da mulher na sociedade a partir de transmissões ideológicas no fazer jornalístico.


33

3 IDEOLOGIA NO JORNALISMO

Como percebido no capítulo anterior, a forma como as matérias jornalísticas são veiculadas na imprensa feminina - as escolhas de pautas, tratamentos

editoriais,

público-alvo,

etc.

-

acabam

por

gerar

uma

mudança/adaptação no comportamento das mulheres leitoras ou refletir o padrão comportamental esperado para elas. Por trás do anseio de levar informação, opções de consumo e um pouco de entretenimento às consumidoras, jornalistas inserem ideologias em suas linhas e acrescentam mais uma função às revistas para mulheres. Além de entreter e informar, elas formam expectativas de comportamento. Para poder analisar como ocorrem as transmissões ideológicas em reportagens, entrevistas, fotografias e qualquer outro elemento jornalístico é preciso, primeiro, esclarecer os conceitos que permeiam a palavra “ideologia”. Segundo, é necessário apresentar a maneira como as ideologias se inserem no fazer jornalístico para então culminarem na formação de papeis desejados para as mulheres.

3.1 CONCEITOS DE IDEOLOGIA Por “ideologia” ser um termo debatido em diferentes períodos da História e por pensadores dos mais variados contextos sociais, políticos e econômicos, restringir-se-á, para uso teórico nesse estudo, as significações atribuídas por Karl Marx e Antonio Gramsci. Ao longo de sua vida, Marx lapidou o conceito de ideologia, porém nunca deixou de lado a conotação crítica e negativa atribuída ao termo. Conforme seus estudos sociais – desenvolvidos ao lado de Friedrich Engels - e vivências pessoais contribuíam para o avanço de sua teoria sobre a sociedade capitalista, diferentes termos ganhavam interpretações cada vez mais consistentes. “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciam diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica da religião


34 desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito idealizada pela filosofia alemã da consciência e particularmente por Hegel.” (BOTTOMORE, 2001, p.183)

A partir dessas críticas antecessoras, os pensadores puderam atingir um ponto de conjunção entre as distorções religiosas, ou metafísicas, com condições sociais específicas. A crítica formulada por Marx e Engels buscou com grandes esforços explicar “o elo necessário entre formas „invertidas‟ de consciência e a existência material dos homens” (BOTTOMORE, 2001, p.183). É nesse ponto que o conceito de ideologia é expresso pelos alemães: a ideologia é uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais e serve para ocultá-las (BOTTOMORE, 2001). Ainda que Marx nunca tenha apresentado a palavra “ideologia” no período que compreende seus primeiros escritos até 1844, o pensador fornece pistas de seu conceito sobre o termo em críticas a respeito da religião e da concepção hegeliana de Estado. Marx afirmou em seu livro “Crítica da filosofia do direito de Hegel” que “a fonte da inversão ideológica é uma inversão da própria realidade” (BOTTOMORE, 2001, p.184). A mesma ideia é disseminada em suas críticas sobre a religião: “Embora aceite o princípio básico de Feuerbach de que o homem faz a religião e de que a ideia segundo a qual Deus fez o homem é uma inversão, Marx vai mais longe ao argumentar que essa inversão é mais do que uma alienação filosófica ou simples ilusão – ela expressa as contradições e sofrimentos do mundo real. O Estado e a sociedade produzem a religião, “que é uma consciência invertida do mundo, porque eles próprios são um mundo invertido”[...]. A inversão religiosa compensa, no espírito, uma realidade deficiente, reconstitui na imaginação uma solução coerente que está além do mundo real, para compensar as contradições desse mundo real.” (BOTTOMORE, 2001, p.184)

De 1845, quando Marx rompe com Feuerbach, até 1857, a dupla de pensadores alemães se dedica à construção do materialismo histórico. É nesse período que o conceito de ideologia será apresentado às claras e introduzido em discussões literárias. O caráter da inversão é mantido, mas Marx o amplia para alcançar e atingir as ideias desenvolvidas pelos jovens hegelianos. (BOTTOMORE, 2001). Esses jovens acreditavam que a tarefa da filosofia deles era libertar o homem das ideias errôneas. “Mas eles esquecem – diz Marx – que a essas frases estão apenas opondo-se outras frases e não estão, de modo algum,


35 combatendo o mundo real que de fato existe.” (MARX apud BOTTOMORE, 2001, p.184). Dessa forma, a “inversão”, chamada de “ideologia” por Marx, deixa de partir da consciência para partir da realidade material. Marx contradiz os jovens hegelianos ao afirmar que os reais problemas da humanidade são as contradições sociais reais que acabam gerando ideias errôneas e não o caminho oposto. Não são as ideias errôneas as causadoras de problemas e contradições sociais (BOTTOMORE, 2001). As contradições, não sendo resolvidas no plano real, são projetadas para o espaço ideológico da consciência em forma de soluções exclusivamente espirituais ou discursivas que ocultam a existência e o caráter dessas contradições. Ao disfarçar as contradições reais, a distorção ideológica é facilmente reproduzida e disseminada, servindo, assim, aos interesses das classes dominantes (BOTTOMORE, 2001). É dessa maneira que não há volta para o caráter negativo do conceito de ideologia em Marx. Além de ser uma ideia gerada com base em uma alteração insensata da realidade, ela camufla conflitos e é tomada pela classe dominante como uma arma de empoderamento sobre a classe trabalhadora. E a única maneira de extinguir as distorções ideológicas é solucionando as contradições reais que lhes deram origem. Na terceira e última fase dos estudos de Marx, de 1858 até sua morte, a contradição e a inversão ganham caráter mais complexo. O pensador desenvolve uma distinção da realidade que é dupla. No conceito de distorção da realidade aparece o elemento mediador entre a o plano real incoerente e a ideologia que mascara os defeitos do plano real (BOTTOMORE, 2001). A relação entre a “realidade invertida” e a “consciência invertida” é mediada por uma esfera de “formas fenomenais” (BOTTOMORE, 2001, p.184). “Essa esfera de „formas fenomenais‟ é constituída pelo funcionamento do mercado e da concorrência nas sociedades capitalistas, e é uma manifestação invertida da esfera da produção, o nível subjacente das “relações reais”. Como diz Marx: „tudo parece invertido na concorrência. O padrão final das relações econômicas vistas superficialmente em sua existência real, e consequentemente nas concepções pelas quais os seus portadores e agentes procuram compreendê-las, é muito diferente, e, na verdade, é o próprio inverso de seu padrão interno essencial, mas oculto, e da concepção que a ele corresponde.‟ (O Capital, III, cap. XII).” (BOTTOMORE, 2001, p.184)


36 Sendo assim, a ideologia é responsável por esconder não somente a realidade invertida, mas sim o padrão essencial oculto que cria as contradições e as estimula. No contexto de crítica ao sistema capitalista, isso significa que o modo de produção capitalista é o criador das contradições reais e a fonte de inspiração da ideologia política burguesa. Pois, a ideologia burguesa que defende a liberdade e a igualdade - promovida pelo sistema capitalista - oculta o verdadeiro processo ocorrido por trás da superficialidade dos valores de troca; já que, para Marx, o mercado capitalista é baseado, na verdade, em desigualdade e falta de liberdade (BOTTOMORE, 2001). O conceito de ideologia para Marx, então, cerca-se de caráter negativo e crítico durante toda sua vida e obra e mantém seu significado relacionado ao ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Porém, após a morte do estudioso alemão, estudos sobre suas publicações desenvolveram novos caminhos interpretativos para a ideia de “ideologia” (BOTTOMORE, 2001). Ainda que os escritos de Marx caminhem para a noção negativa de ideologia, pode-se encontrar ambiguidades e afirmações sujeitas a diferentes interpretações em meio às obras dele. Dentre os novos significados atribuídos à ideologia em Marx, dois ganharam mais destaque e reconhecimento: a concepção de ideologia como “a totalidade das formas de consciência social – que passou a ser expressa pelo conceito de „superestrutura ideológica‟ e a concepção de ideologia como as ideias políticas relacionadas com o interesse de uma classe” (BOTTOMORE, 2001, p.185). Um fator que influenciou, e muito, as diferentes análises sobre ideologia em Marx foi o acesso às publicações do socialista. Pensadores como Lenin, Gramsci e Lukács não possuíam o texto A ideologia alemã em mãos – já que ele foi publicado somente em 1920 – e, portanto, não se familiarizaram com a argumentação direta, crítica e negativa de Marx a respeito do termo (BOTTOMORE, 2001). Justamente Antonio Gramsci cita com frequência um trecho do “Prefácio” (1859) no qual Marx coloca a ideologia como uma esfera superestrutural capaz de abranger questões jurídicas, políticas e filosóficas e oferecer aos homens a consciência de suas relações sociais contraditórias. Influenciado também pelos pensamentos de Lenin, Gramsci desenvolveu seu


37 conceito sobre ideologia de maneira positiva e classificatória (BOTTOMORE, 2001). Para Gramsci, a ideologia não é um sistema de ideias ou uma falsa consciência gerada a partir de distorções da realidade. Ela é a concepção do mundo manifestado pela ação e uma norma de conduta coerente a essa mesma concepção. A ideologia existe de forma material e pode ser encontrada nas práticas reais: “(...) uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas” (GRAMSCI apud BRANDÃO; DIAS, 2007, p.83). Pode-se notar pelo excerto que o conceito de ideologia em Gramsci está completamente ligado à temporalidade. Afinal, com o passar dos anos, há mudanças na arte, no direito, na atividade econômica e na maneira como o individual e o coletivo se manifestam perante a sociedade. Esse aspecto já havia sido abordado por Marx em A ideologia alemã e mostra como, apesar de se opor ao negativismo do antecessor alemão, Gramsci valeu-se de algumas ideias disseminadas por ele: “As ideias („Gedanken‟) da classe dominante são em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem a sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que elas sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles ao quais faltam os meios de produção espiritual.” (MARX; ENGELS apud BRANDÃO; DIAS, 2007, p. 84)

Ou seja, a ideologia é, para Gramsci, essencial na organização social, pois nenhuma mudança, seja de caráter, político, social ou econômico, pode ocorrer sem a

intervenção

de

elementos

ideológicos

que

auxiliem

a

modificação das condições de dominação entre grupos humanos. Mas a ideologia para o italiano não é um fato social que surge a partir da concordância total entre todos os membros de um grupo. Ainda que Gramsci não adote o conceito de classes do Marxismo, ele considera a submissão de um ou mais grupos à dominação ideológica de outro: (BRANDÃO; DIAS, 2007). “(...) Significa que um grupo social, que tem uma concepção de mundo, sua, própria, ainda que embrionária, que se manifesta na ação, (...) ocasionalmente, (...) tomou, por razões de submissão e subordinação intelectual, um concepção não sua, por empréstimo de outro grupo.” (GRAMSCI apud BRANDAO; DIAS, 2007, p.84-85)


38

A partir das reflexões expostas, o pensador italiano categorizou a ideologia em duas partes: a ideologia orgânica, que é a mais valorizada por Gramsci pois pressupõe os termos já citados de necessidade histórica graças à atuação na regulação das massas humanas, e a ideologia arbitrária que é racionalista e perde importância diante da orgânica por surgir com intenção de criar tão somente movimentos individuais e polêmicas (BRANDÃO; DIAS, 2007). Mas isso não significa que as mudanças ideológicas ocorram pacificamente com o passar dos tempos. O choque de ideologias é uma situação recorrente para a teoria de Gramsci. Cada ideologia, inserida em seu período histórico, representa a organização social, a consciência do grupo que a adota. Da mesma maneira que os indivíduos se relacionam sob determinada ideologia, eles se confrontarão a fim de manter ou mudar a forma de organização dominante da sociedade. Só há mudança de organização social, política e econômica com embate ideológico. (BRANDÃO; DIAS, 2007).

3.1.1. Hegemonia E é com base na ideia de que há subordinação ideológica e de que é necessário confronto para que uma ideologia estabelecida seja substituída que Gramsci faz a ligação entre a ideologia e a hegemonia. Se a ideologia é a visão do mundo no qual essa mesma está inserida, a hegemonia é a responsável pela construção do mundo que será visto pela ideologia. A hegemonia é, então, aquela que cria uma concepção do mundo e a realiza na prática. Esse processo só é possível sob três condições: a capacidade de um grupo fundamental (dominado ou dominante) elaborar uma visão de mundo própria, autônoma; a realização de uma reforma intelectual e moral que forneça base para um desenvolvimento coletivo e popular para uma forma superior de civilização; e que esse mesmo grupo tenha capacidade de defender e disputar a implementação dessa visão no campo político (BRANDÃO; DIAS, 2007). A hegemonia liga-se à construção de uma nova racionalidade. Para que haja mudança hegemônica é preciso haver novas premissas ideológicas e políticas. E para que essa metamorfose ocorra, é necessário que se conheça a


39 dinâmica das relações de força na sociedade. Apenas com esse conhecimento pode-se detectar problemas e organizar ações futuras que mobilizem outros indivíduos para a mesma causa (BRANDAO; DIAS, 2007). Gramsci acrescenta que para uma correta análise das relações de força, precisa-se levar em conta dois princípios: “que nenhuma sociedade se coloca tarefas para cuja solução não existam já as condições necessárias e suficientes, ou elas não estejam em vias de aparição e de desenvolvimento; que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída, sem antes ter desenvolvido todas as formas de vida que estão implícitas nas suas relações.” (GRAMSCI apud BRANDÃO; DIAS, 2007, p.87)

Dessa forma, há que criar-se uma leitura nova da história acrescida de nova linguagem condizente com a realidade de quem reivindica a mudança. E não basta esforçar-se para destruir a hegemonia anterior. “É um movimento de crítica e superação, desconstrução do discurso antigo e construção do novo (...).” (BRANDÃO; DIAS, 2007, p.87). Gramsci não restringe esse poder de incitação à queda de um modelo hegemônico a intelectuais ou acadêmicos. Ele compreende que todos os homens e mulheres são seres filosóficos, são capazes de desenvolver uma visão de mundo. Dessa forma, a crítica ao senso comum pode ser executada por qualquer indivíduo e, consequentemente, a mobilização para construção de uma nova ideologia também. Em outras palavras, o processo de subordinação ideológica só acontece com grupos incapazes de elaborar sua forma de viver de maneira crítica e consciente. É comum que muitos grupos não se identifiquem com a ideologia sob a qual vivem e organizam a sociedade, mas por falta de maturidade com relação às criticas e de possibilidade – na visão deles - de ajustar como agem com a maneira com a qual pensam, acabam submetendo-se à dominação hegemônica (BRANDÃO; DIAS, 2007). É possível sair do senso comum estabelecido em uma sociedade. Segundo os princípios para análise das relações de força, em meio ao senso comum há múltiplas e contraditórias ideologias convivendo e passando por um processo de maturação até que consigam realizar a queda da hegemonia vigente. Assim como a ideologia de escravidão inerente às pessoas negras foi derrubada no século XIX, graças às lutas de grupos com ideologia abolicionista


40 e a ideologia capitalista assumiu sua hegemonia sobre a ideologia mercantilista, é possível gerar transformações ideológicas quanto ao papel feminino na sociedade brasileira. E a mídia tem papel fundamental no processo de disseminação da ideologia. Seja a fim de unir cada vez mais indivíduos que se identifiquem com a tentativa de mudança hegemônica e lutem por ela ou no processo de manutenção ao reforçar padrões comportamentais já estabelecidos. Mas, se a premissa mais conhecida a respeito do jornalismo informativo é a de que ele deve ser imparcial, como essa disseminação é possível?

3.2 JORNALISMO INFORMATIVO OU OPINATIVO? No Brasil, Luiz Beltrão e José Marques de Melo são os dois autores mais reconhecidos a respeito da categorização de gêneros jornalísticos. Beltrão explica sua forma de separar os elementos segundo as atribuições que os mesmos representam para o público leitor. Baseado nas três funções: informar, explicar e orientar, Beltrão desenvolveu a seguinte taxonomia da produção no jornalismo (MELO, 1985, p. ): “• Jornalismo informativo: notícia, reportagem, história de interesse humano e informação pela imagem. • Jornalismo interpretativo: reportagem em profundidade • Jornalismo opinativo: editorial, artigo, crônica, opinião ilustrada, opinião do leitor.”

Não há, na separação de Beltrão, uma atenção especial à natureza de cada elemento jornalístico. Ou seja, a estrutura narrativa, técnica de codificação e o estilo de cada gênero não importam na hora de separá-lo entre o grupo que informa, explica ou orienta o público leitor. O autor se baseia no “senso comum que rege a própria atividade profissional” (MELO, 1985, p.45). Com relação às análises a serem realizadas no presente trabalho, cabe chamar a atenção ao fato de que Beltrão não situa a entrevista como gênero jornalístico em suas classificações e separa a reportagem em “reportagem” (material de tamanho reduzido e invariavelmente superficial graças às necessidades de divulgação de conteúdo o mais breve possível) e “reportagem


41 em profundidade” (material com maior disponibilidade de tempo de produção e que, por isso, ganha profundidade) (MELO, 1985). Em outras palavras, a temporalidade define, para Beltrão, o nível de profundidade de uma reportagem. Materiais com mais tempo para elaboração saem da categoria que “informa” para a categoria que “explica”, pois passam por um processo de pesquisa, reflexão e avaliação de mais qualidade (MELO, 1985). Quando Beltrão compara as funções jornalísticas (base de sua categorização de gênero) com um triângulo retângulo no livro “Jornalismo opinativo”, o pesquisador lida de maneira mais aberta com a subjetividade e encara-a positivamente: “Esta perpendicular [função de orientação no jornalismo], à proporção que se prolonga verticalmente [da função de informar no jornalismo], vai incorporando circunstâncias, motivações e aspectos obscuros, às vezes, subjetivos e, portanto, questionáveis, passíveis de interpretação, enquadramento teórico e ideológico, e, afinal, permitindo no vértice, a tomada de posição que constitui a expressão da opinião, cujo objetivo é orientar cada leitor e toda a massa à ação.” (BELTRÃO, 1980, p.14)

O jornalista explica que nem todos os acontecimentos são suscetíveis de opinião, já que fatos não podem ser interpretados, porém, há objetos que apresentam “diferentes faces”, dão “margem a uma opção do sujeito entre duas ou mais alternativas, igualmente possíveis”; esses são os objetos que por mais que se apresentem como estritamente informativos, dão vazão às opiniões. E as opiniões são formadas com base na carga cultural e ideológica de cada jornalista. Insatisfeito com a maneira a qual Beltrão expõe os gêneros em categorias, mas ciente de sua importância histórica e natureza empírica, Marques de Melo utiliza a classificação anterior como referência para o desenvolvimento de uma nova categorização: “• Jornalismo informativo: nota, notícia, reportagem, entrevista. • Jornalismo opinativo: editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura, carta.” (MELO, 1985, p. )

O jornalista exclui a categoria interpretativa criada por Beltrão por acreditar que o jornalismo se articula em função de dois objetivos: informar (“saber o que passa”) e opinar (“saber o que se pensa sobre o que passa”). Marques de Melo entende que a interpretação, enquanto processo explicativo, já é cumprida no jornalismo informativo (MELO, 1985, p.47).


42 Mas o autor ainda confronta os gêneros jornalísticos, classificados por ele

como

informativos,

informativo/opinativo

com

com a

a

realidade.

separação

Ao

associar

a

distinção

das linguagens denotativas e

conotativas, Marques de Melo afirma que o processo de produção das notícias, reportagens, notas e entrevistas, que deveria ser somente denotativo, não o é. O autor admite não ser possível excluir a presença de conotação na escolha de falas, palavras, termos e exposição de lados de uma mesma história – por mais que se tente (MELO, 1985): “[...] é plausível admitir que a distinção formulada se aproxima daquela dualidade de mensagens que os linguistas chamam de denotada e conotada. Essa transposição não é contudo simples e tranquila pela própria complexidade do discurso jornalístico, que pressupõe o atravessamento explícito da ideologia. Mas como esse traço é comum a qualquer discurso emitido por qualquer instituição jornalística , o sentido que permeia todas as mensagens deixa de ser opaco. Logo, o recurso denotativo ou conotativo utilizado na apreensão e expressão do real não exclui a determinação ideológica. Feita essa ressalva, é importante resgatar, na gênese do jornalismo, a dupla articulação que preside a sintonização da instituição jornalística com o seu público e a sociedade.” (MELO, 1985, p. 47)

Para Marques de Melo, o jornalista é o responsável por transmitir ideologias, crenças, conceitos, e demais individualidades que constituem sua subjetividade, em tudo aquilo que escreve. Não é possível excluir a determinação ideológica. O que se pode é buscar, ao máximo, atingir o objetivo central do texto que será escrito. É buscar a dupla articulação presente na gênese jornalística: a descrição dos fatos e a versão dada sobre eles. Sobre a incidência de marcas opinativas em gêneros informativos e a busca pela versão dada sobre os fatos, Felipe Pena decreta no livro “Teoria do Jornalismo” que o maior erro de julgamento sobre o fazer jornalístico está na colocação da objetividade em oposição à subjetividade. O jornalista e professor universitário afirma que a objetividade nasce no jornalismo para reconhecer a inevitabilidade da subjetividade (PENA, 2005). “A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras idiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos.” (PENA, 2005, p.50)

Pena (op. cit) relata que em determinada época, o público e os próprios jornalistas perceberam que os textos são influenciados pela subjetividade e que


43 essa mesma subjetividade pode acabar distorcendo a realidade. A solução para esse problema de transmissão de informações foi adotar um método objetivo. O jornalista segue com suas subjetividades, mas o método adotado por ele deve se livrar de marcas ideológicas (PENA, 2005). O reflexo dessa adoção de método objetivo, para Pena (op. cit), é o desenvolvimento de um jornalismo que valoriza mais as declarações do que os fatos. O pesquisador cita a socióloga Gaye Tuchman para esclarecer como o jornalista se protege da própria opinião – e da acusação de ser subjetivo. Tuchman metaforiza a estratégia de proteção dos jornalistas com a adotada por camponeses a fim de se protegerem de vampiros. O colar de alhos utilizado pelos camponeses é para os jornalistas a utilização de “uso judicioso das aspas, a apresentação de provas auxiliares e a própria apresentação da notícia na forma de pirâmide invertida, com a utilização do lide.” (PENA, 2005, p.52). A fim de evitar sanções profissionais por deixar transparecer a visão sobre o assunto abordado em uma reportagem, por exemplo, o jornalista se esconde na estrutura do “quê, quem, quando, onde, como, por quê”, informações factuais adicionais e seleção de excertos específicos de entrevistas. A ideia transmitida não é do jornalista, mas do entrevistado – ainda que seja o jornalista o dono da pergunta e da seleção de uma parte da resposta. Nesse sentido, Carlos Chaparro (apud PENA, 2005) critica a divisão de gêneros jornalísticos como informativos e opinativos por criar a impressão, no público leitor, de que as notícias são escritas com informações puras, sem qualquer carga opinativa. A soma da categorização de gêneros jornalísticos com a camuflagem de aspectos ideológicos resulta na confusão sofrida pelo leitor. A subjetividade ainda está lá, mas o leitor pode não se dar conta disso. Por mais que se tente separar os gêneros informativos dos opinativos, um tipo de escrita sempre carregará traços de outro, conclui Pena (PENA, 2005). Até porque a subjetividade não depende somente do jornalista que escreve uma reportagem ou monta perguntas para uma entrevista ping-pong. Um jornal é formado a partir da adoção de ideologias sobre diferentes assuntos. É sobre esse conjunto de ideologias que estão vinculadas à redação,


44 e são anteriores às individuais de cada jornalista, que Beltrão escreve em seu livro “Jornalismo opinativo” (1980): “A opinião do editor, definida como o julgamento que faz sobre determinado problema ou questão o grupo de elite que mantém o veículo, é que dita a política editorial. Fundamenta-se em diversos elementos como: a) as convicções filosóficas do grupo; b) as informações e relações que envolvem o tema proposto; c) as sondagens e pesquisas realizadas na área de circulação e influência do veículo; d) a experiência jornalística dos chefes de redação, algumas vezes mesmo reunidos em conselhos editoriais; e, finalmente, e) os interesses econômicos da empresa.” (BELTRÃO, 1980, p.19)

Em revisão bibliográfica sobre a história do jornalismo feminino no Brasil, já foi possível observar momentos nos quais os interesses publicitários influenciaram a produção de matérias de serviço, as transformações sociais e sexuais deram subsídio para o lançamento de uma revista com novo públicoalvo, o medo de perder leitoras resultou em um cuidado nas matérias jornalísticas com conteúdos transgressores demais, entre outros. A mudança de conteúdo em histórias de ficção, na virada da década de 1940 para a década de 1950, veiculadas em revistas para mulheres nos Estados Unidos comprova a força da ideologia editorial na construção de padrões comportamentais. Pois, tal transformação não se resumiu ao conteúdo de entretenimento nessas revistas, ele atingiu as reportagens. Friedan (1992) relata: “The transformation, reflected in the pages of the women‟s magazines, was sharply visible in 1949 and progressive trough the fifties. „Femininity Begins at Home‟, „It‟s a Man‟s World Maybe‟, „Have Babies While You‟re Young‟, „How to Snare a Male‟, „Should I stop Work When We Marry?‟, „Are you Training your Daughter to be a Wife?‟, „Careers at Home‟, „Do Women Have to Talk So Much?‟, „Why GIs Prefer Those German Girls‟, „What Women Can Learn from Mother Eve‟, „Really a Man‟s World, Politics‟, „How to Hold On to a Happy Marriage‟, „Don‟t Be Afraid to Marry Young‟, „The Doctor Talks about Breast-Feeding‟, „Our Baby was Born at Home‟, „Cooking to Me 6 is Poetry‟, „The Business of Running a Home‟.” (FRIEDAN, 1992, p.38)

A transmissão de ideologias no jornalismo informativo, segundo a classificação de Marques de Melo – no conceito gramsciano de ideologia: como 6

A transformação, refletida nas páginas das revistas femininas, foi nitidamente visível em 1949 e progressiva durante os anos 1950. „Feminilidade começa em casa‟, „Esse é talvez o mundo dos homens‟, „Tenho filhos enquanto é jovem‟, „Como laçar um homem‟, „Eu devo parar de trabalhar quando nos casarmos?‟, „Você está treinando sua filha para ser uma esposa?‟, „Carreiras no lar‟, „As mulheres tem que falar tanto?‟, „Por que os militares preferem as garotas alemãs‟, „O que as mulheres podem aprender da mãe Eva‟, „Realmente o mundo dos homens, política‟, „Como manter um casamento feliz‟, „Não tenho medo de casar-se cedo‟, „O doutor fala sobre amamentação‟, „Nosso bebê nasceu em casa‟, „Cozinhar, para mim, é poesia‟, „O trabalho de gerir um lar‟ (Traduzido do inglês pela autora).


45 concepção de mundo e a norma de conduta coerente a essa concepção –, então, encontra espaço no posicionamento editorial do veículo e é concretizado no direcionamento dado à reportagens e outros materiais informativos. As escolhas de assuntos, dos entrevistados, das visões que serão expostas sobre os temas e a maneira com a qual o jornalista constrói o discurso são diretamente ligadas à opinião do editor, citada por Beltrão. Sendo o jornalista, indivíduo dotado de ideologias pessoais, poderá influenciar o discurso editorial. Porém as marcas ideológicas individuais serão menos frequentes e destacáveis, partindo-se do princípio que todo material produzido por esse profissional passa por revisão editorial. Processo menos real em jornais diários, mas comum em revistas mensais como o objeto desse estudo.


46

4 REVISTA TPM A revista TPM, da editora Trip, foi lançada pelo editor Paulo Lima em abril de 2001 “com a pretensão de suprir a demanda de cultura e informação de mulheres que estavam insatisfeitas com o tratamento que as revistas femininas lhes davam” (BUITONI, 2009, p.207). Mas isso não aconteceu de maneira estritamente ideológica. No editorial da edição de lançamento da TPM, Lima declara que a editora Trip percebeu a existência de um mercado editorial em pesquisas sobre o público leitor da revista homônima que existia desde 1986. “Sinto-me num papel engraçado, como um pai que anuncia aos filhos mais velhos, parentes, amigos e vizinhos a chegada de uma menina para fazer companhia ao garoto, perto de completar 15 anos. Papagaiadas paternalistas à parte, depois que nos demos conta de que 25% dos leitores a Trip, supostamente concebida e apontada para leitores homens, são garotas, ficou claro que havia algo errado. Ou, melhor ainda, algo muito certo. Tudo indica, e nos leva a concluir, que a forma como tratamos as mulheres neste ambiente editorial foi, ao longo destes quase 15 anos, magnetizando, de forma sólida, cabeças, corpos e corações de um tipo de mulher que se sente desassistida – vou mais longe, quase ofendida em sua inteligência e auto-estima pela forma como são produzidas diversas revistas femininas vigentes nas prateleiras do país.” (LIMA, 2001)

Em nenhum momento, o editor declara que essa nova revista se basearia em ideologias feministas, assim como tal posicionamento nunca foi expresso diretamente ao longo dos 13 anos de existência da mesma. Lima define o público leitor da TPM como um formado por mulheres que buscam “para sua vida uma experiência mais rica. [...] Prontas para viagens de todos os tipos, sem culpa em relação ao consumo, ao sexo, abertas à informação nova, aos esportes, às outras culturas, e formas de ver o mundo.” (LIMA, 2001). Logo na primeira edição, TPM faz piada de outras publicações voltadas para mulheres, brinca ao falar de emprego, entrevista uma mulher sobrevivente do grupo do cangaceiro Lampião, traz um ensaio sensual e perfil do ator Rodrigo Santoro, conversa com a ex-namorada do assassino em série conhecido como Maníaco do Parque, relata as experiências sexuais de um casal que se conheceu virtualmente – com direito a fotos de nus de ambos -, além de produzir material para editorias tradicionalmente femininas como decoração, moda e beleza. Além do conteúdo textual, o visual da revista chamava atenção. A diagramação de TPM colocava textos na vertical, excesso de fotos sangradas,


47 muitas cores e informações em uma página, enquanto o trabalho imagético inovava por criar imagens no estilo fanzine e veicular fotos com nudez, sensualidade tanto com homens quanto com mulheres. De fato, até hoje a TPM mantém sua especificação de público leitor, busca por temas de reportagens que gerem debate e design gráfico inovador. Em 2012, a revista lançou o “Manifesto TPM”. A proposta do manifesto pode ser compreendida a partir da fala do diretor editorial Fernando Luna em editorial intitulado “Você é livre?” e publicado na edição 120 (disponível no site do periódico): “Se alguém acredita que vai encontrar numa revista, qualquer revista, a fórmula para: 1) ficar jovem para sempre, 2) botar silicone sem risco, 3) barriga zerada com aula de 8 minutos, 4) ser linda, poderosa e feliz, aos 20, 30 e 40 anos, 5) looks certeiros para ter sucesso no trabalho, 6) pílulas que vão deixar cabelo, pele e corpo perfeitos, 7) feitiço do tempo: tudo para adiar (e muito) sua plástica, 8) ler nas cartas como despertar sua força interior, 9) ter qualquer homem, um superemprego, todo o tempo do mundo, 10) alcançar sucesso, dinheiro, glamour... e todos os homens a seus pés, 11) fazer qualquer homem se comprometer, 12) a plástica light, 13) desvendar 100 dilemas amorosos, 14) superar a ex dele na cama, 15) etc. etc. etc. Enfim, se alguém acredita mesmo que isso tudo seja possível ou ao menos razoável, não precisa de uma revista. Precisa de ajuda profissional. Urgente. [...] Uma turma que se espanta quando lê „operação biquíni‟ na caixa de cereais (você só queria tomar seu café da manhã sossegada). Que quer autonomia para decidir o que fazer com o próprio corpo. Não se conforma em ganhar menos que o cara na mesma função. E ainda estranha tanta mulher meio pelada fazendo o papel de cenário em programas de TV. Daí o Manifesto Tpm, [..]. Contra os novos clichês femininos e os velhos estereótipos, que cismam em se reinventar desde o tempo de nossas avós (aliás, devidamente homenageadas nas fotos do manifesto). Contra qualquer tentativa de enquadrar a mulher em um padrão, cercar seu desejo e diminuir suas possibilidades. Essas ideias dão o tom a uma série de eventos, ações e reportagens pelas próximas edições – a primeira delas é „Toda mulher sonha em ter filhos. Hein?!?‟. Se liberdade é ser a mulher que você quer ser, diz aí: você é livre?” (LUNA, 2012)

Disposta a descontruir a ideia de feminino instituída na sociedade brasileira, a TPM passa a desenvolver edições cujas reportagens discutem paradigmas femininos. No mesmo ano, a publicação dá início ao evento “Casa TPM” cujo slogan é “um evento para quebrar os estereótipos que estão por aí


48 desde os tempos da sua avó” (CASA TPM, 2014). Em sua última edição, nos dias 4 e 5 de outubro de 2014, o evento que ocorre em São Paulo reuniu pesquisadores e celebridades em rodas de conversa sobre assuntos que já estamparam as capas da revista nos últimos meses como racismo, trabalho, corpo, cantadas e prostituição. Com tiragem mensal de 50 mil exemplares (10% da tiragem é direcionada a “uma mailing VIP (jornalistas, personalidades, empresários e colaboradores da editora) e em pontos estratégicos em SP e RJ, como hotéis, cafés e restaurantes pelo sistema special delivery”) e distribuição nacional (EDITORA TRIP, 2014a), a TPM atinge poucos leitores em comparação a outras grandes revistas brasileiras para mulheres. A revista Nova, da editora Abril, apresentou em junho de 2014 uma tiragem de mais de 265 mil exemplares. A revista Claudia, de mesma editora, teve no mesmo período mais de 450 mil exemplares em circulação pelo Brasil (PUBLIABRIL, 2014). Quanto ao público leitor, 92% é do sexo feminino e 8% é do sexo masculino. A faixa etária mais atingida pela publicação é de 26 a 35 anos (60%), seguida de 19 a 25 anos (25%), 36 a 45 anos (10%), acima de 46 anos (4%) e até 18 anos (1%). Quanto ao estado civil, a divisão é equilibrada, 35% dos leitores são casados, 35% são comprometidos, 28% estão solteiros e 1% estão em outros tipos de classificação. Quanto à escolaridade, a grande maioria, 88% dos leitores tem ensino superior completo (EDITORA TRIP, 2014a). O site da revista TPM possui uma média de 175 mil visitas únicas por mês, um milhão e meio de pageviews por mês, sendo que o tempo médio de navegação dos usuários é de sete minutos e trinta segundos. Com conteúdo integral das revistas e um plus de material multimídia e exclusivamente online, o site apresenta alterações estatísticas quanto ao público leitor. A divisão de gênero se mantém do impresso, porém a distribuição de leitores por faixa etária muda: são 43% dos leitores com idade entre 26 e 25 anos, 26% entre 36 e 45 anos, 18% acima de 46 anos e 12% de 19 a 25 anos (EDITORA TRIP, 2014a). É importante destacar que a revista possui versão gratuita e na íntegra para tablets – desde julho de 2011 - e aplicativos, também gratuitos, para celular. Até junho de 2013, já haviam sido feitos 18.881 downloads de diferentes edições da revista em tablets, segundo dados do iTunes Conect.


49 Quanto à categoria mobile, o aplicativo da TPM já havia sido baixado 9,6 mil vezes até junho de 2013 (EDITORA TRIP, 2014a).

4.1 EDIÇÕES IMPORTANTES A TPM é a revista feminina com mais indicações ao Prêmio Esso de Jornalismo. Ao todo foram nove indicações na categoria Criação Gráfica em revistas. As duas primeiras ocorreram juntas no ano de 2002 – a revista existia há pouco mais de um ano – com as reportagens “Pare de tomar a pílula” sobre o uso indiscriminado de anfetaminas e “Linda de Morrer” sobre a busca incansável e fatal pela perfeição estética (EDITORA TRIP, 2014). A terceira indicação ocorreu em 2003, para a mesma categoria, com a reportagem “Sem maneiras de transformar seu corpo”. A reportagem analisava a corrida por corpos magros para o verão em periódicos femininos e fazia um “dossiê” da beleza. Na quarta indicação, o primeiro prêmio. A reportagem “Descrimine já” sobre a descriminalização do aborto no Brasil venceu a categoria Criação Gráfica em revistas no Prêmio Esso de 2005 (EDITORA TRIP, 2014). Em 2006, a TPM é indicada pela quinta vez com o trabalho “Embalagem de Remédio” que aborda os sentimentos vividos por quem possui dependência medicamentosa. Três anos depois, a revista é indicada novamente com a reportagem “Fim de feira” que analisava o surgimento de “mulheres-fruta” na mídia brasileira. Em 2011, a reportagem “Na ponta da língua” que abordava o protagonismo feminino com relação ao próprio prazer em relações de sexo oral também foi indicada ao Prêmio Esso (EDITORA TRIP, 2014). Em 2012, a publicação ganhou seu segundo Prêmio Esso na categoria Criação Gráfica em revistas graças à reportagem “Lebmra quem tmoou toads?” sobre o aumento do consumo de álcool pelas mulheres. E no ano passado, a revista recebeu sua nona indicação com a reportagem “Vida perfeita só existe no Facebook” (EDITORA TRIP, 2014). Além disso, o site da revista TPM ganhou por três anos consecutivos (2004, 2005, 2006) o prêmio Ibest na categoria Mulher, foi indicada ao Prêmio Marketing Best 2013, responsável por “promover e difundir as empresas que


50 mais se destacam no planejamento e na execução das estratégias de marketing de seus produtos e serviços” (EDITORA TRIP, 2014).

4.2 SEÇÕES ANALISADAS Foram selecionadas para análise nesse trabalho, três edições da revista TPM. São elas as edições 128, 129 e 130, referentes aos meses de fevereiro, março e abril respectivamente. Como a intenção do estudo é verificar a transmissão

de

ideologias

que

influenciam

a

formação

de

papeis

comportamentais feminino, escolheu-se como seções da revista a serem investigadas a reportagem de capa e a entrevista ping-pong. A fim de identificar as crenças da revista e nortear o trabalho de investigação das seções citadas, também será analisado o editorial de cada número. A opinião do editor expressa nesse espaço é fundamental para o direcionamento dos produtos jornalísticos, portanto deve ser levada em consideração. A entrevista ping-pong existe na publicação desde a primeira edição com o nome de “Páginas vermelhas”. “A seção Páginas Vermelhas traz uma longa entrevista, que funciona quase como uma terapia. Temos dez páginas para revelar desde celebridades, como Luiza e Yasmin Brunet, até anônimos, como uma ex-cangaceira. O objetivo é fazer um verdadeiro retrato do entrevistado. A repercussão é forte.” (EDITORA TRIP, 2014a)

Pelo espaço destinado a essa seção ser grande, há o cuidado de escolher entrevistados que tenham relevância com o tema em debate na publicação e/ou possam contribuir para a formação intelectual e cultural das leitoras. Quem a revista encara como relevante e como ela conduz essa entrevista servem como grandes indícios do que ela acredita e transmite ao público leitor. Quanto à reportagem de capa, trata-se do conteúdo jornalístico mais importante da publicação. Um trabalho extenso anunciado como principal chamada de capa e que é a principal referência dos debates levantados pelo periódico.


51 “Desde a criação do Manifesto Tpm, em maio de 2012, algumas matérias questionam os padrões impostos pela sociedade às mulheres, como a busca pelo corpo perfeito ou por uma família „margarina‟. Outras contam histórias de mulheres interessantes, desde uma executiva que largou tudo para trabalhar em um país em guerra até prostitutas de luxo.” (EDITORA TRIP, 2014a)

De fato, as três edições a serem analisadas são influenciadas pelo Manifesto TPM e adotam um assunto que rege cada edição. TPM diz que pretende descontruir estereótipos e padrões por meio do manifesto, elementos que se associam à hegemonia ideológica de Gramsci. Mas, será que nessa busca pelo rompimento dos padrões estabelecidos, a revista contribui para a libertação das mulheres ou tenta encaixá-la em uma representação aceita por seus parâmetros de mulher contemporânea?


52

5 EDIÇÃO 128 – ESPECIAL NUDEZ

A edição 128 da TPM, referente ao mês de fevereiro de 2013 (a revista não circula novo material no mês de janeiro), adotou a nudez como tema central de toda a publicação. Reportagens, entrevistas e colunas tratavam a nudez sob diferentes vertentes e opiniões. Como o título e a linha fina do editorial, assinado pela diretora de redação Carol Sganzerla, mostram (O nu e o tabu – há algo muito além do sociológico na questão da nudez), a intenção da revista é exibir o que há na nudez humana que a transforma em um tabu, quais significados se anexam à nudez para torná-la incomum. A diretora de redação justifica a adoção do tema – e marca sua relação temporal - pela circulação da revista ocorrer no mês do Carnaval e antecipa questionamentos expostos nos artigos informativos: “Lá se vão 13 anos desde o janeiro que marcou “o verão do topless” nas praias cariocas. Depois que uma comerciante decidiu enfrentar os policiais que a reprimiram por tomar sol sem a parte de cima do biquíni [...].Mas, espera aí, peito de fora na praia é ato obsceno? E na Sapucaí tudo bem? Em fevereiro, mês do Carnaval, o público das passarelas do samba Brasil afora não parece exatamente escandalizado com a profusão de seios à mostra.” (SGANZERLA, 2013)

Mas, por se tratar de uma revista feminina, o editorial também demonstra que a temática será tratada em contexto mais pessoal. “Mesmo nos lugares onde isso é tão inevitável quanto natural – o vestiário da academia, o provador de roupas coletivo, o consultório médico –, ficar pelada em geral é desconfortável para a maioria das mulheres, o que diz muito sobre nossa relação com o corpo, independentemente do país em que estamos.” (SGANZERLA, 2013)

A revista traz a atriz Luana Piovani na capa cobrindo os seios e a púbis com placas retangulares pretas. A chamada principal é “MENOS PUDOR, MAIS PODER Luana Piovanni sem roupa, sem vergonha e sem papas na língua: „nosso país é hipócrita‟” e a chamada para a entrevista ping-pong é “PÁGINAS VERMELHAS J.R. Duran libera geral: „Não acredito no tal nu artístico‟”.


53 5.1 PÁGINAS VERMELHAS COM J.R. DURAN A entrevista ping-pong foi divulgada integralmente no site da TPM em 14 de fevereiro de 2012. O entrevistado é o fotografo de origem catalã Josep Ruaix Duran, mais conhecido como J.R. Duran. Por trabalhar com imagem e ser reconhecido internacionalmente pelos ensaios nus que fotografa, a escolha do entrevistado está ajustada ao tema. A linha fina da entrevista explica à leitora essa relação do personagem com a proposta da edição e já incita a curiosidade ao expor que o entrevistado, cuja profissão está ligada às artes, “não acredita em nu artístico”. Nos seis parágrafos que antecedem a reprodução da entrevista, o jornalista Bruno Torturra mistura parte da discussão travada com Duran à informações pessoais e profissionais do mesmo. Torturra inicia a entrevista questionando Duran sobre a relação entre a fotografia e a crença - aparentemente compartilhada pelo jornalista devido ao uso de verbo “viver” conjugado na primeira pessoa do plural – de que a sociedade atual é obcecada pela imagem. Após discordar do jornalista, Duran lhe pergunta sobre os motivos da afirmação anterior, Torturra, então, expõe a relação histórica das pessoas com a própria imagem e tem suas afirmações novamente desapoiadas. Durante as onze perguntas iniciais, o que se vê é a tentativa do jornalista de obter falas de Duran consonantes com o conceito de sociedade imagética, apresentado desde a primeira interrogação, e de busca pelo corpo estético ideal. Em uma sequência das perguntas iniciais, é possível ver como Duran é direto sobre sua discordância: “E em relação às pessoas que você fotografa nuas? Existe uma preocupação maior com o resultado, como um padrão estético? Acho que não. Sempre foi igual. Mas existe essa impressão, pelo menos no senso comum, de que a gente vive em uma sociedade mais exigente, com um padrão mais inatingível. Eu não sinto tanto isso. Mas nada mudou desde quando você começou a fotografar até agora? A única coisa que muda é o corte de cabelo. Você reconhece que um filme, uma foto são dos anos 60 ou 70 pelo corte de cabelo. No nu também. O que muda mesmo é o tipo de depilação.”(TORTURRA, 2013)

De fato, Torturra admite insistir em um assunto cujas negativas se mantém por parte do entrevistado:


54 “Mas insisto: não estamos assistindo a um aumento na idealização de um padrão de corpo, sobretudo o feminino? É mais difícil para a mulher se aceitar imperfeita hoje do que há 20, 30 anos? Acho que não. No geral, acho que as pessoas estão mais confortáveis com o próprio corpo do que antigamente. Hoje, fotos de mulheres nuas não são mais tanto motivo de frisson. Se há algo que talvez deixe as pessoas mais obcecadas pela imagem, é a expectativa de vida mais longa. Talvez por isso exista cada vez mais essa indústria de tentar prolongar a juventude.”(TORTURRA, 2013)

O que se observa é a tentativa de apoio com relação a uma concepção de mundo, a uma ideologia. Ainda que Duran discorde de tal ideologia presente, segundo Torturra e estudiosos da Comunicação e Ciências Sociais, na atualidade, por meio de perguntas o jornalista parece tentar convencer o entrevistado de que sua ideologia é correta. O profissional apresenta exemplos, sugere hipóteses e deixa seu discurso um pouco mais flexibilizado: “É que a impressão é a de que isso passou para um nível muito mais difundido e, talvez, banalizado. [...] Mas o que levas as meninas a desejarem isso não é um dado cultural também? Uma exposição massiva que leva quase à imposição de padrões de beleza?” (TORTURRA, 2013)

O jornalista reproduz crenças e ideias editoriais ao discutir conceitos de sociedade e padrões estéticos. Em uma das quatro janelas da entrevista, é ressaltada uma fala de Duran que casa com o a ideia de repressão da nudez apontada no editorial: “Quando cheguei ao Brasil, onde achei que seria a maior liberdade, a nudez na praia não acontecia” (TORTURRA, 2013). Mas diferente do que pode imaginar o leitor que se atém somente à informação contida nessa janela, Duran não critica a cultura brasileira. O fotógrafo diz que se surpreendeu, devido às expectativas que possuía sobre o País, mas que compreende o contexto do comportamento e, ainda, utiliza essa impressão pessoal como argumento para reforçar sua opinião de que, atualmente, as pessoas estão mais confortáveis com seus próprios corpos. Após não conseguir a concordância de Duran na discussão ideológica, Torturra muda o foco das perguntas e inicia uma entrevista sem indução de respostas. Ele questiona o fotógrafo acerca da história profissional dele e as opiniões que o mesmo possui sobre o trabalho fotográfico na atualidade e relacionado à nudez. Ainda que volte a sugerir hipóteses em algumas perguntas (“Mas aí o que facilita é o fato de você ser famoso, não? As pessoas topam tirar a roupa mais tranquilamente para o J.R. Duran...”),


55 Torturra abandona as insistências ideológicas e leva ao leitor um retrato do, previamente declarado, “cultuado fotógrafo” (TORTURRA, 2013). Já que as análises desse trabalho pretendem investigar, também, a identidade do veículo como feminino ou feminista, é importante destacar as semelhanças de postura entre a revista e representantes do movimento político. As já comentadas crenças defendidas por Bruno Torturra em entrevista à J.R. Duran são compartilhadas pela feminista Jessica Valenti em artigo sobre a cultura da beleza: “Ugly is powerful. Nothing has quite the same sting. Especially for the ladies. None o fus want to be ugly; in fact, we all would really like to be beautiful – and it‟s killing us. Literally. Wheter we are puking or not eating or cutting ourselves (or letting doctors do it), young women are at the center of the beauty cult. We run that shit. […] I mean, they are: Cutting. Open. Your. Body. And you‟re letting them. And paying them. I don‟t know.... There is just something about that that defies logic. And it‟s become so normalized! Oh, don‟t like your tits? Shove some new ones in there! Hate your nose? Cut it off. Feeling chubby? Suck that fat out! [...] Not only is this obsession with plastic surgery totally superficial, but it also presupposes that we‟re all sick or broken and in need 7 of fixing.” (VALENTI, 2013, p. 204, 210-211)

7

Feiura é poderosa. Nada tem tanto poder. Especialmente sobre as mulheres. Nenhuma de nós quer ser feia; na verdade, nós todas gostaríamos realmente de sermos bonitas – e isso está nos matando. Literalmente. Seja porque estamos vomitando ou não comendo ou cortando nós mesmas (ou deixando médicos fazerem isso), jovens mulheres estão no centro da cultura da beleza. Nós seguimos essa merda. [...] Eu quero dizer, eles estão cortando e você os está permitindo. E você os está pagando. Eu não sei... Há alguma coisa sobre isso que desafia a lógica. E isso se tornou tão normal! Ah, você não gosta dos seus peitos? Empurre novos aí para dentro! Odeia seu nariz? Corte-o fora. Se sentindo gorda? Chupe essa gordura fora! [...] Essa obsessão por cirurgia plástica não somente é superficial, como também pressupõe que todos nós estamos doentes ou quebrados e precisamos de conserto (Traduzido do inglês pela autora).


56 5.2 REPORTAGEM DE CAPA: NUDEZ A reportagem de capa foi disponibilizada no site da TPM em quatro de fevereiro de 2013. A jornalista Letícia González assina o texto com colaboração de Bruna Bopp e Gabriela Sá Pessoa. O título da matéria (“Nudez”) repete o que já vem sendo dito em toda a edição. A linha fina lança explicitamente o questionamento iniciado no editorial: “Por que, afinal, há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez?” (GONZÁLEZ, 2013a). E o olho brinca com a ideia de censura da foto de capa ao tachar as palavras “nua”, “pelada” e “nudez” – esse recurso gráfico também é utilizado nas janelas. Na reportagem são entrevistados a atriz Luana Piovani - personagem da foto de capa e outras dentro da matéria - a também atriz Norma Bengell, a filósofa Márcia Tiburi, a modelo-vivo Vera França, a psicanalista Anna Veronica Mautner, o advogado Gustavo Romano e a ativista russa Gypsy Taub. Nos três primeiros parágrafos, González dedica-se a explicar o processo de elaboração e execução da reportagem. Ela detalha a indagação apresentada na linha fina com outras e afirma que a intenção não é encontrar respostas exatas. “A ideia, desde sempre, era discutir mesmo: tentar entender por que em geral nós, brasileiras, não nos sentimos à vontade nem nos momentos em que estar pelada é a coisa mais normal do mundo (como estar num vestiário de academia ou num provador de roupas coletivo, comuns em algumas lojas e bazares); questionar por que uma moça mais desencanada pode ir parar na delegacia se resolver fazer um topless em Ipanema (ou em qualquer outra faixa de areia em território nacional); refletir sobre a força que ainda tem, nos dias de hoje, o corpo nu de uma mulher em uma obra de arte ou em um protesto na rua; ouvir as motivações que levam uma famosa a posar nua em uma revista masculina – e, claro, as razões das que escolhem o contrário, não aparecer pelada de jeito nenhum. [...] Por que é melhor evitar? E o que representa, afinal, estampar uma revista ou a tela de cinema com o próprio corpo totalmente nu?” (GONZÁLEZ, 2013a)

A reportagem pode ser dividida em quatro subtópicos – a reportagem possui três intertítulos. Primeiro, discute-se a relação da nudez com o dinheiro, mais especificamente, mulheres que vendem a nudez de seus corpos em ensaios para revistas. Segundo, discute-se a nudez associada ao pudor. Terceiro, mostra-se a relação histórica da nudez com as leis e, por fim, a luta pela aceitação do nu como algo normal na sociedade. De fato, a pergunta lançada na linha fina não é respondida. Durante toda a reportagem, o que se lê são maneiras com as quais diferentes pessoas se


57 relacionam com o nu, a divisão de pesos entre o nu de cada gênero e quatro possíveis explicações sobre o porquê “há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez”: a vaidade que nos leva a ter pudor do próprio corpo, o machismo, a repressão sexual e o conservadorismo. A exposição de opiniões divergentes na matéria é rapidamente percebida pela escolha de falas nas janelas: “Na hora que fizer nu frontal, eu dei tudo”, “Quando você se vende como um pedaço de carne, você é uma pateta”, “Minha nudez mostrava a violência contra uma mulher. Hoje, 75% das que apanham não denunciam. O Brasil ainda é conservador” (GONZÁLEZ, 2013a). Porém, não é tão boa quanto poderia ser. Na primeira parte da reportagem, González apresenta a posição de Luana Piovani sobre vender a imagem de seu próprio corpo nu. Ela apresenta também casos de atrizes que o fizeram e acreditam ter se beneficiado com tal exposição graças ao cachê recebido. Em contraposição, aparece a posição de desaprovação de Márcia Tiburi com relação à venda da nudez feminina. É nesse momento que a jornalista levanta uma razão para o tabu do nu feminino por si mesma, já que não há aspas ou indicações de que tal conclusão de pensamento pertence à entrevistada. “Por reduzida ao corpo, Marcia entende o mesmo que Simone de Beauvoir, a feminista mais celebrada da história. “Somos marcadas pelo sexo. Simone diz: „Antes de você ser qualquer coisa, você é uma mulher. Uma mulher médica, uma mulher jornalista. Enquanto um cara é um médico e só‟.” Por causa disso, assim como o sexo da mulher grita mais alto que qualquer informação sobre ela, sua nudez também se sobressai em qualquer contexto. Por isso, um homem tirar a camisa é aceitável e uma mulher, ao fazer o mesmo, causa escândalo.” (GONZÁLEZ, 2013a)

Mais à frente, um entrevistado usa o mesmo exemplo dado pela jornalista sobre a diferença entre o nu feminino e masculino: “[...] “A lei não define o que é obsceno, apenas diz que o ato obsceno deve ser punido”, explica o advogado Gustavo Romano, criador do projeto Para Entender Direito, que explica o “juridiquês” para leigos. Lei confusa, cidadãos idem. “Por que o homem pode andar sem camisa, mas a mulher não? E por que uma mãe amamentar o filho é ato de beleza, mas a moça mostrar os seios é ato obsceno? Talvez não seja pela repulsa moral, mas o contrário: por desejarmos e não alcançarmos. Homens ainda fazem e aplicam as leis: se não podemos ter, que elas não possam mostrar o que nos negam.” (GONZÁLEZ, 2013a)

Utilizar a mesma exemplificação que apoia a ideia de maior aprisionamento da nudez feminina aliada ao fato de não haver na reportagem alguma fonte, tanto informal quanto de referência, que defenda o pudor – já


58 que as falas de Márcia Tiburi apenas desaprovam o envolvimento de nudez com mercado e desrespeito à mulher que se desnuda por livre arbítrio – levam a perceber que de tanto indagar, o real desejo da editoria é sugerir à sua leitora que aceite a nudez tanto no âmbito privado quanto no social. “Nesse embate, nudez e sexo voltam a conversar. Para a ativista russa Gypsy Taub, 43 anos, a repressão sexual é a grande inimiga da nudez desencanada. [...] Na cidade, munida de megafone e calçando sandálias com meias, Gypsy se despe em nome da liberdade nas questões do corpo. “Você me pergunta por que andar pelado na rua. Eu respondo: por que não?” (GONZÁLEZ, 2013ª)

Ao terminar a reportagem com a fala da ativista russa, que, mais uma vez, reflexiona sobre a aceitação da nudez, pode-se perceber o recurso utilizado pela jornalista – citado por Felipe Pena como “uso judicioso das aspas” – de levar a ideologia, tanto do profissional quanto do veículo, até o leitor. Encerrar um debate levando a leitora a pensar sobre seus próprios conceitos a respeito do assunto seria neutro se não se apresentasse apenas uma oposição ao nu ao longo de toda a reportagem.


59

6

EDIÇÃO 129 – ESPECIAL CASAMENTO A edição 129 da TPM, referente ao mês de março de 2013, selecionou a

instituição do casamento como tema central de toda a publicação. Reportagens, entrevistas e colunas discutem a união matrimonial sob diversos aspectos e conflitos. O editorial, assinado pelo diretor editorial Fernando Luna, intitulado “Lista de casamento” possui estrutura textual similar a uma lista. Com dez tópicos, Luna decreta as formas sobre as quais um casamento deve se formar e questiona, de maneira tendenciosa, diferentes impressões sobre o enlace matrimonial: “8. É implicância minha ou celibatários pontificando sobre o dia a dia do casamento costumam soar como um macaco prego tentando tocar Bach?” (LUNA, 2013a). Diferente do exposto no editorial da edição anterior, o que se vê nessa publicação não é a intenção de debater diferentes modelos de matrimônio, mas ir contra conceitos considerados conservadores sobre tal união. “6. A melhor razão para alguém se casar hoje em dia é que ninguém precisa mais se casar hoje em dia. 7. Quer dizer, ninguém mais tem que casar para viver junto. Ninguém mais precisa casar porque os pais decidiram que chegou a hora. Ninguém é obrigado a casar porque pega mal continuar solteira depois de uma certa idade. Ninguém mais precisa casar para ter filhos (finalmente descobriram que filhos nascem a partir de um outro verbo ou, simplesmente, são adotados). Assim, ficou mais fácil casar pelo melhor motivo: amor. [...] 9. A ilusão de posse: meu marido, minha mulher. Ninguém é de ninguém. Dois versos de Guardar, de Antonio Cicero: „Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que um pássaro sem voos‟. Fica com isso.” (LUNA, 2013a)

As seções a serem analisadas dessa edição possuem destaque na capa da revista. A apresentadora do programa Lugar Incomum, do canal Multishow, Didi Wagner é personagem de capa e da reportagem principal cuja chamada se mistura com outra matéria da edição: “Investigamos a obsessão, a fantasia, a real e a urgência do CASAMENTO. Fechado: Didi Wagner, um marido, 19 anos juntos: „Nas crises você faz força para voltar a gostar da pessoa‟. Aberto: Mrs. Catra, um marido (Mr. Catra, que tem outras três mulheres), 17 anos juntos: „Traição é viver na mentira‟. Hein?!: Michele Provensi, 28 anos, modelo, solteira: „Relacionamento não se constrói de um dia pro outro‟” . A chamada da


60 entrevista ping-pong é “PÁGINAS VERMELHAS Maria Berenice Dias, a juíza que abriu caminho para o casamento gay no Brasil”.

6.1 PÁGINAS VERMELHAS COM MARIA BERENICE DIAS

A jornalista responsável pelo texto da entrevista ping-pong é a mesma que produziu a reportagem de capa da edição anterior: Letícia González. O conteúdo foi publicado no site da revista em 13 de março de 2013. O formato de título com nome do entrevistado e linha fina que apresenta a relevância do personagem com o tema da edição são repetidos. Porém, dessa vez, a pingpong traz um olho que repete três informações da linha fina e é responsável por instigar a curiosidade da leitora: “Maria Berenice Dias, 65 anos, a primeira juíza do Rio Grande do Sul, mudou a cara do casamento no Brasil. Ela fez o país reconhecer as relações fora do papel, os direitos das mulheres, a primeira união homoafetiva – e quer que as famílias gays parem de ser ignoradas” (GONZÁLEZ, 2013b)

A posição favorável ao casamento gay, que não estava expressa no editorial, pode ser percebida por dar-se voz a uma personagem protagonista na luta por direitos para os LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais) e pelo início da matéria: “É bom que fique claro: os gays estão casando no Brasil. E do mesmo jeito que a sua vó fez nos anos 50, sua mãe nos anos 70 e sua amiga mês passado: no papel. Não dá para explicar o porquê sem trazer à tona o nome da advogada e juíza aposentada Maria Berenice Dias, 65 anos.” (GONZÁLEZ, 2013b)

Quando a jornalista usa a expressão “é bom que fique claro”, nota-se que, por conta do aposto utilizado no olho, a “claridade” poderia ser substituída pela “aceitação”. Há admiração pelos feitos profissionais da juíza entrevistada e grande valorização deles ao longo de toda a matéria. O texto que precede a transcrição de perguntas e respostas possui sete parágrafos e quatro deles misturam o protagonismo em causas LGBTs com a história profissional de Maria Berenice.


61 Nos três últimos, conta-se mais de sua trajetória de vida e contribuições para a mudança da “cara do casamento no Brasil”: a constante busca pela exclusão de leis machistas relacionadas ao direito de família e modernização de processos judiciais. Na última frase do sétimo parágrafo, González retoma a posição de apoio à união homoafetiva para, então, dar início à entrevista de fato: “Berenice fez suas ideias correrem o país por meio do site que leva seu nome. Nos anos 90, defendia, em artigos e sentenças, que os processos de paternidade fossem reabertos para incluir os testes de DNA, novidade da época que trazia a chance de uma prova clara. Também exigia que a “culpa” não fosse julgada em um processo de separação – e que as mulheres não fossem mais punidas por serem, por exemplo, adúlteras. Todas posturas que, passado o estranhamento inicial, viraram regra. Do mesmo jeito que devem se tornar comuns suas visões sobre a família gay.” (GONZÁLEZ, 2013b)

Diferente do jornalista responsável pela ping-pong da edição 128, González faz perguntas que guiam a fala de Maria Berenice. A jornalista poucas vezes sugere respostas e quando as faz é com base em afirmações anteriores da juíza e retoma o uso de perguntas curtas e objetivas. “Qual a consequência disso? A Justiça fez legiões de mulheres “famintas”, que, quando se separavam, não podiam cobrar nada nem para si nem para seus filhos. A postura de boa-fé era muito ligada à abstinência sexual, àquela mulher pura e casta. Ela era obrigada a adotar o nome do marido, mas, se fosse “culpada” pela separação, perdia. Se ficasse comprovado que havia traído, perdia a guarda dos filhos. Eu propunha novas interpretações da lei, mas muitas das minhas decisões eram revistas em Porto Alegre. Por colegas homens? Sim. Há toda uma estrutura de poder que está na mão dos homens. Eles que fazem as leis, eles que pagam pensão. Nessa área, por exemplo, sou a favor de escuta telefônica para descobrir onde o pai está enfiando o dinheiro dele. Tenho uma decisão, única no Brasil, que diz assim: escuta é só pra crime? Pois é um crime não criar filho. Que casos mais a marcaram? Tem dois. Em um deles, o homem queria deixar de pagar pensão porque a ex-mulher tomava pílula anticoncepcional. Ou seja, na cabeça dele, ela deveria perder seus direitos por exercer sua liberdade sexual. Tu entende a perversidade? Na outra disputa, um homem exigia metade da casa que a ex-mulher construiu sozinha depois que ele abandonou a família. Ele a deixou com cinco filhos, nunca mandou um tostão e voltou querendo parte do patrimônio porque, legalmente, ainda eram casados. Eu ficava muito incomodada com essas coisas. Aí, comecei a defender a ideia de que vale a separação de fato, não a do papel.” (GONZÁLEZ, 2013b)

Ao final da entrevista, o apoio à causa LGBT por parte a jornalista – também apoiada pelo veículo por permitir a publicação de tal diálogo – é explicitado quando Maria Berenice relata como é a experiência de ministrar casamentos entre homossexuais:


62 “E como são as cerimônias? Eu vou toda bonita. Peço para a tabeliã ler a escritura, aí pergunto se eles concordam com os termos, ou seja, tem o momento do “sim”. Aí peço para eles dizerem os votos, e para prepararem algo antes para não ter que dizer “na saúde e na doença”, essa coisa horrorosa. Aí eu afirmo para eles: “A partir deste momento vocês estão numa união estável, num estado civil, vocês estão convivendo, e portem sempre com vocês o documento”. Como se sente? Ah, eu adoro. Bem mais que os casamentos héteros a que sou convidada. Eles têm muito cuidado, alguns casais estão juntos há anos, fazem coisas como ter aula de canto para se apresentar na cerimônia. Só tem uma parte triste. Em 90% dos casos, os pais dos noivos não estão presentes. Triste mesmo. É muito. Eu sempre falo com um dos noivos por telefone antes. Teve uma vez em São Paulo que não reconheci ele, de tanto que chorava. Chorou a cerimônia toda. Eu pensava: “Não foi com esse que conversei por telefone”. No final, ele me falou: “Me desculpa ter chorado tanto, mas, sabe o que é, a minha família não veio. Eu convidei todo mundo, e ninguém veio”. Eu tive que dizer: “Mas então quem são essas 400 pessoas que estão aqui, chorando contigo?”. Procurei dizer isso, mas sempre fica uma coisa. É muito raro a família dos dois comparecer.” (GONZÁLEZ, 2013b)

A postura libertária da revista sobre o matrimônio justifica a escolha de Maria Berenice como protagonista de uma entrevista longa e de destaque na publicação. Não há perguntas que demonstrem crítica aos avanços judiciais estimulados pela juíza, de modo que o que se transmite para a leitora é uma ideia de que as escolhas da entrevistada e as mudanças propostas por ela são coerentes e aceitáveis. O posicionamento favorável ao casamento homossexual, identificado na entrevista ping-pong com a juíza Maria Berenice Dias, também é comentado pela escritora feminista Valenti (2013, p.153) “It‟s pretty unbelievable when you think about it: How can you legislate love? Hate to sound cheesy, but it‟s true. And if you‟re thinking, Well, there are always civil unions and partnerships… I call bullshit. Civil unions don‟t carry the same legal benefits as marriage. According to NOW, same-sex couples are denied more than one Thousand federal protections and rights, ranging from „the ability to file joint tax returns to the crucial responsibility of making decisions on a partiner‟s behalf in a medical urgency.‟ […] But for me, the biggest issue surrounding same-sex marriage is a pretty simple one – human rights. How can you relegate certain people (because of who they love!) to second-class citizenship because you think gays are 8 icky? Give me a fucking break.” 8

É um pouco inacreditável quando você pensa sobre isso: como você pode legislar o amor? Odeio soar piegas, mas é verdade. E se você está pensando, Bem, há sempre as uniões civis e as parcerias... Eu digo que isso é uma besteira. Uniões civis não possuem os mesmos benefícios legais do casamento. De acordo com a revista NOW, casais do mesmo sexo são negados de mais de mil proteções e direitos federais, variando desde „a habilidade de apresentar declarações ficais conjuntas até a responsabilidade crucial de tomar decisões em nome do parceiro em uma emergência médica.‟ [...]


63 Diferente da entrevista analisada anteriormente, não há embates ideológicos ou insistências para se obter a concordância do entrevistado sobre os conceitos do entrevistador. Mas, segundo a teoria gramsciana já revisada, não é necessário haver crises para que a transmissão ideológica aconteça.

6.2 REPORTAGEM DE CAPA: CASAR É...

A reportagem de capa foi disponibilizada no site da TPM em sete de março de 2013. A jornalista Luciana Obniski assina o texto. O título da matéria “Casar é...” está ligado à linha fina, que mais uma vez é feita com interrogativas: “A melhor maneira de viver? Uma posição social? Uma necessidade?”. O olho repete as pergunta da linha fina e acrescenta “[...] TPM ajuda a entender por que até hoje o casamento é tão desejado pelas mulheres” (OBNISKI, 2013). Na reportagem são entrevistados as psicólogas Giovana Perin e Lidia Aratangy, a historiadora – e referência neste trabalho – Mary del Priore, a antropóloga Mirian Goldenberg, a apresentadora e personagem da capa Didi Wagner, a atriz Ingrid Guimarães, a modelo Michele Provensi – citada na chamada de capa – e a chef Bel Coelho. São quatro fontes de referência e quatro personagens que relatam suas experiências com a instituição investigada. Logo

nas

quatro

janelas

da

reportagem,

duas

apresentam

posicionamentos desfavoráveis ao casamento: “„A brasileira ainda põe um peso muito grande no matrimônio porque não tem outros projetos‟ (Mary del Priore, historiadora)” e “„As mulheres não tem medo da solidão, elas têm medo do estigma de solteirona‟ (Mirian Goldenberg, antropóloga)”. A primeira pela supervalorização prejudicial à vida das mulheres e a segunda pela decisão feita por conta da pressão social (OBNISKI, 2013).

Mas para mim, o maior problema em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo é um muito simples – direitos humanos. Como você pode relegar certas pessoas (por causa de quem elas amam!) a uma segunda classe de cidadãos porque você pensa que gays são nojentos? Me dê um tempo (Traduzido do inglês pela autora).


64 Nas outras janelas, apresenta-se uma fala em apoio ao casamento “„Não é o casamento que acaba com o tesão, é parar de se preocupar em satisfazer o outro‟ (Didi Wagner, 37 anos, apresentadora)” – e outra, uma indagação pessoal de uma das fontes de referência sobre não haver mais a obrigatoriedade de casar-se: “„Me pergunto se as mulheres de hoje são mais felizes. O poder da escolha traz angústias‟ (Lídia Arantagy, psicóloga)” (OBNISKI, 2013). A afirmativa da linha fina, sobre o desejo das mulheres em se casarem, é comprovado na matéria pela apresentação de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Comenta-se brevemente a relação histórica das mulheres com o matrimônio, a complexidade de viver a dois e as implicações sociais de manter-se solteira antes de apresentar as informações fornecidas pelas fontes de referência. Ao longo da reportagem é possível perceber que os diálogos de todas as entrevistadas são unidos naturalmente. O assunto avança sem que haja uma divisão clara de perspectivas. Obniski aborda a escolha pelo matrimônio com opiniões positivas e negativas. Assim que se expõe o perigo da alta valorização do casamento como forma de felicidade, coloca-se uma maneira de evitar tal conflito. A jornalista mostra como duas entrevistadas encaram seus casamentos para então retomar a discussão de ideias. Comenta-se a pressão social sobre as mulheres, o relato de uma solteira é exibido, mostra-se uma mulher que está em uma segunda união e encerra-se com os possíveis caminhos de prosperidade da instituição nos dias atuais. Enquanto na reportagem da nudez, pode-se perceber uma tentativa de levar a leitora à aceitação do corpo nu e despi-lo de pudor, na reportagem de Obniski o discurso leva a leitora a apreender os conceitos expostos no editorial nos itens 3, 6, 7, 9, 10: hoje casa-se por amor; não se deve criar sentimento de posse em relação ao parceiro; casamento não é sinônimo de união de pares; em caso de desamor, separar-se é totalmente aceitável. A revista deseja ampliar a significação do casamento e passar essa ideia de um matrimônio menos conservador e cercado de regras sociais às suas leitoras. Tanto é verdade que a reportagem ainda é acompanhada de um box escrito por Denise Gallo, mestre em Comunicação e Semiótica e pesquisadora das representações da mulher na mídia e Publicidade. Gallo não escreve um


65 box científico. Ela apresenta as faces positivas e negativas de um matrimônio, de maneira informal, a partir das sensações desfrutadas por uma amiga para então comentar as altas expectativas sentimentais depositadas na união – já apontadas por Del Priore e Goldenberg – e a representação midiática negativa da solteirice feminina. Como já é de se esperar, o último parágrafo do box leva a leitora à reflexão: “Bom é pensar que, entre o casamento mais perfeito e a solteirice mais infeliz, existem infinitas possibilidades e formatos de vida afetiva que somos livres para desenhar e redesenhar. Quem vai definir esses formatos? O questionário do IBGE, com as quatro opções que oferece para a natureza das uniões (civil e religiosa, só civil, só religiosa ou consensual)? Ou cada história de amor, em particular, da forma e no tempo que convier?” (GALLO in OBNISKI, 2013)

TPM mostra-se em defesa da libertação da mulher com relação à pressão social e da construção pessoal de regras matrimoniais. A reportagem diz à mulher que quanto mais empoderada ela estiver de si mesma e unida a um parceiro que divide obrigações cotidianas com ela, maiores são as chances da união prosperar. E que essa tal prosperidade só pode ser definida por ela mesma. E mais uma vez, é possível encontrar semelhanças entre a postura editorial da TPM e os escritos de Valenti: “This isn‟t to say I‟m against getting married. I think it‟s great if people want to make that kind of commitment to each other. That worries me is that young women are being taught that unless you have a Tiffany ring and a Vera Wang dress, your wedding and marriage are crap. And what happens to the women who get married and then find out that marriage is not all it‟s cracked up to be? As we‟ve already figured out, women are still – STILL! – doing the majority of housework even if they have full-time jobs. And marriage is still being positioned as the „natural‟ thing people (women, 9 specially) should want to do.” (VALENTI, 2013, p.147)

9

Isso não é para dizer que sou contra se casar. Eu acho que é ótimo as pessoas quererem estabelecer esse tipo de compromisso umas com as outras. O que me preocupa é que jovens mulheres são ensinadas que, se não você não tem um anel da Tiffany e um vestido da Vera Wang, sua festa de casamento e o matrimônio são uma droga. E o que acontece com as mulheres que se casam e descobrem que matrimônio não é tudo aquilo que ele estava destinado a ser? Assim como nós descobrimos, mulheres ainda – AINDA! – estão fazendo a maior parte do trabalho doméstico mesmo trabalhando em tempo integral. E casamento ainda é colocado como um ato “natural” o qual as pessoas (especialmente as mulheres) deveriam querer fazer (Traduzido do inglês pela autora).


66

7

EDIÇÃO 130 – ESPECIAL TRABALHO A edição 130 da TPM, referente ao mês de abril de 2013, selecionou o

trabalho como tema central de toda a publicação. Reportagens, entrevistas e colunas discutem a maneira com a qual as mulheres se relacionam com o trabalho, as insatisfações e transformações do espaço laboral nos últimos anos. O editorial, assinado pelo diretor editorial Fernando Luna, intitulado “Faça amor, não faça hora extra” já convida a leitora a encarar o trabalho de maneira menos rígida. Luna comenta o modo masculino de se trabalhar como prejudicial e apresenta dados (LUNA, 2013b): “O filósofo Roman Krznaric, entrevistado na reportagem „Pau na mesa pra quê?‟, resume em seu livro Como encontrar o trabalho da sua vida a pandemia de insatisfação nas empresas. „Um estudo em vários países europeus demonstrou que 60% dos trabalhadores escolheriam uma carreira diferente se tivessem a opção de começar de novo‟, aponta. „Nos Estados Unidos, a satisfação no trabalho está em seu menor nível – 45% – desde que essas estatísticas começaram a ser compiladas duas décadas atrás.‟”

O diretor editorial ainda amplia o debate e mostra a desigualdade entre gêneros nas relações de trabalho enquanto emprego e enquanto serviço doméstico. “E adivinha quem costuma ficar com as piores mesas desse ambiente insalubre? As mulheres. De acordo com o último censo, elas recebem salários 30% menores que os homens com funções equivalentes e ocupam 20% dos cargos de chefia. A desigualdade cresce no tempo dedicado às tarefas domésticas, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho: 26,6 horas semanais delas para 10,5 deles.” (LUNA, 2013b)

Há a intenção de depor a hegemonia de trabalho masculinizada, de horas extras, priorização da vida profissional e estresse. As mulheres são colocadas como a mudança das relações laborais. “Igualdade profissional é mais uma batalha na guerra corporativa. A luta continua até que o modelo de trabalho masculino, que vem gerando frustração e medo em todos os níveis e departamentos, dê lugar a um outro, mais feminino, acolhedor e flexível. Faça amor, não faça hora extra.” (LUNA, 2013b)


67 7.1 PÁGINAS VERMELHAS COM DELAÍDE MIRANDA ARANTES

A jornalista responsável pelo texto da entrevista ping-pong é a editora Nina Lemos. O conteúdo foi publicado no site da revista em 12 de abril de 2013. O formato de título com nome do entrevistado se repete. Na linha fina, a entrevistada é apresentada a partir de sua posição e passado profissional acompanhado da seleção de uma fala que reforça a ideia de desigualdade laboral: “Ministra do Tribunal Superior do Trabalho e ex-doméstica: „temos que trabalhar em dobro pra provar que somos boas‟” (LEMOS, 2013). O olho reforça a história de superação profissional, elemento suficiente para gerar curiosidade em sua leitora, o desejo de conhecer a história de Delaíde Arantes: “Nos anos 50, Delaíde Miranda Arantes era uma menina pobre da zona rural de Goiânia. Nos anos 60, uma empregada doméstica. Hoje é Ministra do Tribunal Superior do Trabalho” (LEMOS, 2013). O texto que precede o diálogo direto mistura bastidores da entrevista, com um resumo da trajetória profissional de Arantes e a demonstração de que a ministra não é o estereótipo de mulher masculinizada: “[...]Esqueça qualquer imagem de figura sisuda que se masculinizou por alcançar o poder. Essa jovial senhora sexagenária é vaidosa. Demais. Usa as unhas pintadas de rosa e um colar que chama a atenção. Se movimenta rápido e pega o celular para exibir fotos de seus três netos pequenos. „Vou te convidar para ser minha amiga no „Face‟‟, diz ela. [...]Ela usa a mesma voz doce para avisar que nós, mulheres, estamos ferradas. Ainda ganhamos menos. Temos que trabalhar mais para alcançar posições de chefia e trabalhamos 26 horas por mês em média cuidando da casa. Ela conta todas essas más notícias sorrindo e fazendo piada. „Homem ajuda em casa, mas é cuidando do carro da família‟, ela ri. Ódio aos homens? Imagina! Ela é casada há 20 anos com o segundo marido, o ambientalista e ex-deputado Aldo Arantes (do primeiro casamento teve Patricia, 32 anos, e Lorena, 30), e define a sua vida com uma frase característica (e otimista): „A minha vida é uma delícia‟.” (LEMOS, 2013)

O ritmo da entrevista ping-pong se assemelha à introdução da mesma. Lemos inicia a sequência de perguntas com questões pessoais. Conversa-se sobre a infância de Arantes, as relações familiares e o início dos estudos. Logo as perguntas seguem o fluxo esperado e tocam questão profissionais: a experiência como empregada doméstica, a decisão de estudar Direito, a entrada no Tribunal e envolvimento com os direitos dos trabalhadores domésticos.


68 Pela experiência pessoal da ministra na profissão e seus 20 anos de estudo na área, grande parte da entrevista aborda as relações de trabalho vivenciadas por empregados e empregadores domésticos. As perguntas são feitas de forma neutra e exploratória. Quase não são sugeridos termos ou respostas que se relacionem com a postura editorial da revista no meio das perguntas. Essa situação ocorre em dois momentos: no primeiro, em meio a perguntas sobre a discriminação sofrida pela mulher no mercado de trabalho; no segundo, quando a ministra é questionada sobre como se sentiu ao ser nomeada para o cargo que ocupa atualmente. “Além de ganhar menos, temos que trabalhar mais para provar que somos boas? Sim, temos que provar mais. Temos que trabalhar o dobro para provar que somos tão boas quanto eles, o que é absurdo. A gente acaba se esforçando mais no tempo em que está trabalhando. No escritório, você tem que trabalhar mais, em casa também... Olha que maravilha [risos]. Como você se sentiu quando soube que tinha virado ministra? Sou ministra há dois anos. Fiquei muito feliz. Eu estava no trabalho, em Brasília. Quando recebi o telefonema, nossa, passou todo o filme da minha vida na cabeça. Era toda uma sorte de pessoas que me ajudaram, que aconselharam meu pai a me deixar sair da roça, tanta gente, tanta coisa que até me assustou. Foi muito, muito emocionante. Você chorou? Ministra chora no trabalho? Não chorei, acredita? Nem no dia da minha posse. Eu não sou muito de chorar, sabia?” (LEMOS, 2013)

Na entrevista, Lemos ainda questiona Arantes sobre assédio sexual e moral no trabalho, o posicionamento político da ministra, hábitos pessoais de consumo, religião, vaidade e rotina. Pode-se perceber que durante toda a entrevista, a jornalista despe a entrevistada de uma imagem superior e pouco acessível, comum a profissionais com altos cargos políticos. Caminha-se pela história pessoal e profissional da ministra, seus hábitos, escolhas e opiniões com leveza e informalidade. Ainda que apenas duas perguntas sugestionem a Arantes uma concordância com a ideologia defendida pela revista no editorial, a escolha de uma mulher com história de grande escalada profissional que mantém a “voz doce”, hábitos de vaidade e sabe se desligar das obrigações em situações de lazer e família já é uma mostra da intenção editorial. Leva-se uma mulher que é próspera e possui estilo de vida defendido pela revista às Páginas Vermelhas para mostrar às leitoras que é possível obter reconhecimento e sucesso na carreira sem se descaracterizar.


69 7.2 REPORTAGEM DE CAPA: PAU NA MESA PRA QUÊ? A reportagem de capa foi disponibilizada no site da TPM em 11 de abril de 2013. Mais uma vez, a jornalista Letícia González é quem assina o texto. O título da matéria “Pau na mesa pra quê?” se relaciona com a ideia defendida no editorial da 130ª edição. Assim como a revista defende a queda da rigidez e estresse no trabalho, ela indaga a leitora o porquê de mostrar poder no trabalho com uso de uma expressão popular. Se no editorial a mulher é apontada como a saída para a mudança de realidade laboral, a linha fina da reportagem indaga “Como as mulheres podem mudar o mundo do trabalho?” (GONZÁLEZ, 2013c). O olho, mais uma vez, repete informações anteriores de maneira mais detalhada e retoma o questionamento da linha fina: “O mundo do trabalho foi desenhado pelos homens. Pelo número de reclamações, não tem funcionado bem. Como as mulheres, que ganham cada vez mais espaço nas empresas, podem mudar essa situação?” (GONZÁLEZ, 2013c). Na reportagem são entrevistados a diretora de operações do facebook Sheryl Sandberg; o filósofo australiano Roman Krznaric; a socióloga Bila Sorj; a psicóloga americana Toni Schmader; a presidente da escola para mulheres Barnard College, Debora Spar; a cantora e atriz Clarice Falcão, a advogada Mariana Belisário, a empresária Juliana Motter, a partner account manager Samantha Giusti e a dona de casa Sayuri Kobaiashi. A reportagem fica claramente dividida entre a parte baseada nas entrevistas com fontes de referência e nas entrevistadas feitas com personagens. Na primeira parte, com discussão de papeis femininos e relações de trabalho, aborda-se com dados a injusta relação entre remuneração e escolaridade feminina, o boicote feminino à própria carreira por preocupar-se com os cuidados da casa e a maneira como a ausência de divisão igualitária dos serviços domésticos e paternos entre casais afeta a vida laboral da mulher. Nesse primeiro momento há uma apresentação do panorama atual das relações de trabalho com apontamentos entre especialistas a respeito das razões que levam a mulher a sofrer a desvalorização, comprovada estatisticamente. A pergunta da linha fina e do olho não é respondida de forma direta, mas entre críticas ao modelo atual é possível perceber quais mudanças


70 os entrevistados apontam como necessárias para que as mulheres possam desenvolver suas carreiras de forma mais plena. No segundo momento, González apresenta seis mulheres que “conseguiram equilibrar suas vidas com o trabalho”. A partir das personagens e dos subtítulos que precedem seus espaços na reportagem, são mostradas à leitora formas da mulher aliar a vida profissional com a pessoal. Não se mostra como mudar as relações de trabalhos em uma visão ampla, mas como ajustar a carreira individual de acordo com as expectativas pessoais. A atriz e cantora Clarice Falcão – que estampa a capa da revista – é que recebe mais espaço na reportagem. De fato, é feito um perfil da cantora. Não se atém somente à forma como Falcão equilibra sua vida pessoal e profissional. Comenta-se sobre a família da cantora, o namoro, a trajetória de carreira, para, enfim, ficar explicado como Falcão – assim como diz o intertítulo – mostra que “Ter prazer no trabalho pode ser uma meta de carreira” e ter “poder de escolha” facilita o encontro de tal mediania (GONZÁLEZ, 2013c). No próximo intertítulo “Você pode trabalhar menos. Só tem que aprender a viver com menos”, a advogada Mariana Belisário comenta as pressões que sofria para dar menos atenção à maternidade. Cansada de ausentar-se do convívio com as filhas, Belisário pediu para sair do escritório no qual trabalhava e começou a trabalhar de forma autônoma. Na sequência de depoimentos, há o da empresária Juliana Motter que fez como Belisário, saiu do emprego antigo em busca de maior realização pessoal. Por motivações diferentes, mas a medida é similar. A história de Motter vem precedida do intertítulo “Você pode (e dá pra) mudar de carreira depois dos 30” (GONZÁLEZ, 2013c). O que não remete à pergunta da reportagem, mas, de certa forma, mostra à leitora que carreira e emprego são coisas diferentes e ela pode buscar a realização não somente se dedicando mais à família. Dedicar-se a uma nova carreira pode trazer mais ganhos financeiros e psicológicos. Em contraposição, González apresenta a partner account manager Samantha Giusti como alguém que preferiu priorizar a vida profissional em busca de maior remuneração sob o intertítulo “Você pode mirar em ter mais dinheiro. Mas precisa saber as consequências dessa escolha” (GONZÁLEZ, 2013c). Apesar da carga negativa do intertítulo, a entrevistada se mostra


71 satisfeita com o estilo de vida adotado. Mostrar uma mulher que se sente bem com a priorização da vida profissional e pelo trabalho em um ambiente predominantemente masculino é interessante jornalisticamente, porém é perceptível pelo intertítulo que tal postura é vista com ressalva pela jornalista – cuja visão é, consequentemente, aprovada pela equipe editorial. “O cargo de Samantha Giusti, 37 anos, na gigante Microsoft é partner account manager, assim mesmo, em inglês. Isso significa que ela vende soluções de tecnologia para empresas e negocia sua implementação dentro delas. Os contratos fechados podem engordar seu salário em 40%, desde que ela bata a meta mensal estipulada pelos chefes. O trabalho é pesado, às vezes com 15 horas diárias e fins de semana sacrificados, mas, como ela mesma diz, „se você vender, ganha‟. Esse foi um argumento forte para que Samantha optasse pelas vendas. „A diferença [em relação ao marketing, em que ela trabalhou após se formar como analista de sistemas] era nítida. Essa é uma área na qual você cresce rápido‟, diz. É também um setor em que a maioria dos colegas é homem, e o clima é ditado por eles. „Com certeza o ambiente masculino nos torna mais „meninos‟‟, diz ela, que hoje afirma ter muito mais amigos do que amigas. A recompensa financeira segue sendo uma grande motivação para sua escolha de carreira, mas não é a única. A adrenalina das metas batidas também tem o seu poder. „Quando a coisa fecha, me sinto fazendo parte daquilo, é muito bacana.‟ E é por causa do dinheiro que ganha que Samantha virou uma mulher que se sustenta. Antes, quando era casada e tinha 20 e poucos anos, contribuía com apenas um quinto das despesas da casa. [...]Passados quase dez anos nesse ritmo, diz gerenciar melhor o tempo do trabalho e o da vida pessoal, que inclui um namoro de três anos. „Se deixar, acordo no meio da noite para ver e-mails, porque sei que vai ter algo pra fazer. Mas tento me policiar, deixar o que dá para o dia seguinte. ‟ E não pensa em parar. „Eu adoro o que faço.‟” (GONZÁLEZ, 2013c)

Por fim, apresenta-se a dona de casa Sayuri Kobaiashi. Uma relações pública que decidiu parar de trabalhar para cuidar dos filhos há alguns anos. A entrevistada se sente confortável com a decisão e diz que deve voltar a trabalhar no futuro, porém não de maneira tão intensa quanto antes. Sobre esse último relato, é destacável, mais uma vez, o intertítulo. “Você pode escolher ser dona de casa (desde que a escolha seja sua) Desde 2007, Sayuri Kobaiashi, 43 anos, dona de casa, não faz reunião, não pleiteia aumento, não bate ponto. Virou uma espécie de funcionária fantasma, só que ao contrário: trabalha e ninguém vê. „Dispensei a babá e comecei a buscar os meninos na escola. Passei a fazer esse trabalho invisível‟, diz. Chegou a ouvir de amigas: „Adoraria fazer igual, mas não consigo ficar parada‟. Parada? „Não quero passar a imagem de dondoca. Mas maturidade é se importar menos com os outros.‟ [...]” (GONZÁLEZ, 2013c)

A revista reforça a ideologia de que as mulheres devem ser protagonistas de suas vidas. A oração entre parênteses não é necessária para compreensão textual, mas se faz essencial para reforçar que o poder de


72 escolha a respeito da dedicação ou abstenção da vida profissional cabe somente à mulher. Em toda a reportagem não são indicadas ações que podem ajudar a leitora a transformar o “mundo do trabalho”, mas como ela pode encontrar opções que se adequem mais às próprias expectativas. As personagens que tomaram decisões em busca da priorização ou da vida profissional ou da vida pessoal são vistas com ressalva pela jornalista. Como se dissesse, à leitora que a melhor opção é separar o tempo de forma mais igualitária possível e fazendo um trabalho prazeroso. Ainda que você prefira estar apenas em família, reflita se essa escolha é somente sua. Ainda que você prefira passar a maior parte dos dias no escritório, pense nas consequências. Assim como a revista, Valenti escreve em seu artigo “Material World” sobre as discriminações sofridas pela mulher no ambiente de trabalho e acredita que o retorno da mulher ao lar deve ser apenas feito se esse for o desejo da mulher – e ela refletir sobre isso. “Most women work outside of the home – and have been for some time. So you would think that working life for the gals would be fine by now. Or at least a lot better. Unfortunately, not so much. Some of the same obstacles that existed decades ago are still in force. Wheter it‟s pay inequity, harassment, discrimination, or outright lies about the very existence of working women – we‟re still facing plenty of hurdles. [...] Plenty of people will become parents while they‟re working – but it‟s women who take the brunt of discrimination against parents and soon-to-beparents. Though it‟s illegal, employers will routinely not hire young women they think might get pregnant in the near future. […] The truth? Women aren‟t opting out. We can‟t! Even those who have the financial options ren‟t dropping out of the workforce. […] This isn‟t to say women aren‟t ever making the decision to stay home and raise families – they are. But given the economy and a host of other factors, it‟s just not as common as some people would like you to think. And when women do stay home, they have a new hole set of stories. […] The stay-at-home-mom stuff is talked about a lot in feminist circles. Some women say that the whole idea behind feminis mis that we exercise our choices – and that if some women want to stay at home rather than work, we should respect that. Others, like author Linda Hirshman, say that not-working is just a bad idea all around. […] I‟m all for having babies, but just keep this in mind: Research shows that for every year a woman in her twenties wait to have children, her lifetime earnings increase by 10 percent. 10 Just saying.” (VALENTI, 2013, p. 117-129) 10

A maioria das mulheres trabalha fora de casa – e assim o tem feito há algum tempo. Então você pensaria que a vida de trabalhadora estaria ótima para as garotas hoje em dia. Ou pelo menos, muito melhor. Infelizmente, não tanto. Alguns obstáculos que existiram há décadas ainda estão por perto. Seja o pagamento diferenciado, assédio, discriminação, ou puras mentiras sobre a existência de mulheres que trabalham – nós ainda estamos enfrentando muitos obstáculos. [...] A maioria das pessoas se tornarão pais enquanto trabalham – mas são as mulheres as que sofrem forte discriminação à respeito da paternidade ou possibilidade de se tornar mãe em


73

breve. Embora isso seja ilegal, empregadores rotineiramente não contratarão jovens mulheres as quais eles acreditam que podem engravidar em um futuro próximo. [...] A verdade? As mulheres não estão optando sair de seus trabalhos. Nós não podemos! Mesmo aquelas que possuem opções financeiras não estão indo embora da frente de trabalho. [...] Isso não é pra dizer que mulheres nunca estão decidindo ficar em casa e criar suas famílias – elas estão. Mas dada a economia e vários outros fatores, não é tão comum quanto muitas pessoas pensariam que é. E quando as mulheres ficam no lar, elas passam a ter uma completa nova gama de preocupações. [...] Assuntos relacionados às mães que ficam em casa são muito discutidos em círculos feministas. Algumas mulheres dizem que toda a ideia por trás do feminismo é a de que nós exercemos nossas escolhas – e se algumas mulheres preferem ficar em casa a trabalhar fora, nós devemos respeitar. Outras, como a autora Linda Hirshman, dizem que não trabalhar é uma ideia totalmente ruim. [...] Sou totalmente a favor de se ter bebês, mas apenas tenha em mente: Pesquisa mostra que para cada ano que uma mulher na faixa dos vinte anos espera para ter filhos, seus ganhos de vida aumentam por volta de 10%. Apenas dizendo (Traduzido do inglês pela autora).


74

8

CONSIDERAÇÕES FINAIS As informações disponibilizadas nas páginas dos periódicos femininos

cumprem funções específicas da imprensa. As revistas geram identificação na leitora, expressam opiniões, divertem, difundem a informação, dão bases para a organização social e cumprem funções ideológicas e econômicas. As mulheres comuns podem não estar estampadas nas capas das revistas, mas elas se identificam com o que está exposto na banca. Elas desejam ser como as celebridades. Elas desejam agir conforme a sábia amiga manda. Se para isso for necessário comprar cremes, tinturas, esmaltes, roupas e eletrodomésticos, ela comprará. Se para isso, a mulher precisar mudar atitudes, ela mudará. É em meio a essa identificação, nutrida pela revista, que a ideologia é transmitida. O jornalismo informativo está sujeito às opiniões do editor, à visão do mundo do jornalista. O jornalismo feminino informa pouco, mas forma muito. Para a leitora trata-se de um veículo jornalístico, trata-se da amiga sábia, da conselheira. A confiança depositada nas páginas da publicação permite a regulação social. Friedan (1992) identificou o uso do poder de influência das revistas femininas sobre o comportamento das mulheres no século XX. Mulheres norteamericanas abandonaram o lema “We can do it!” do período da 2ª Guerra Mundial para serem donas de casa. As revistas ressaltavam as virtudes de ser uma housekeeper, então, aos poucos, mais e mais mulheres seguiam as orientações da imprensa, espelhavam-se no comportamento das amigas influenciadas pela mídia. Se a organização social de um grupo é a representação da ideologia adotada por ele, segundo Gramsci, só podemos concluir que a imprensa feminina atua como difusora das ideologias tanto no processo de aquisição da hegemonia, quanto na manutenção de sua influência. Atualmente vive-se sob a hegemonia da ideia da mulher multi-tarefa, da mulher capaz de exercer variados papeis com a mesma competência e desenvoltura em cada um deles. Porém,

o

embate

ideológico

não

está

esgotado. Grupos de mulheres saem da bolha hegemônica e lutam por novas


75 ideologias, por uma nova adoção de papeis. Mulheres que não se sentem contempladas pelo modelo de controle social, político e econômico buscam identificação em outros meios de comunicação. De olho nesse público, a editora Trip lançou em 2001 uma revista feita para essas mulheres. A revista TPM é inovadora, promove discussões, aborda assuntos incomuns e evita o uso de verbos no imperativo tanto na capa quanto no interior da publicação. O caráter moderno e de desconstrução de papeis femininos da revista se mantém 13 anos após o lançamento. Com o número de assinantes subindo a cada ano, TPM dá mostras de que possui força editorial. Mas, que ideologia é essa defendida pela revista? O Manifesto TPM e o evento Casa TPM, ambos lançados em 2012, se dizem a favor da desconstrução “dos estereótipos que estão aí desde os tempos da sua avó”. Mas, ao desconstruí-los e retirar as mulheres de lá, sob qual organização social elas serão posicionadas? O veículo, que nunca se declarou feminista, aborda os assuntos analisados nesse trabalho de maneira muito similar à utilizada por representantes do movimento político que busca igualdade política, econômica e social entre os sexos. Com base nisso, retomo o questionamento da pesquisa: a revista TPM com sua proposta de postura editorial inovadora contribui para a libertação das mulheres de padrões sociais com promoção de um debate sobre o feminino ou tenta encaixá-la em uma representação aceita por seus parâmetros de mulher contemporânea? A revista promove, sim, um debate sobre o feminino a fim de libertar as mulheres dos padrões sociais atuais. Porém, isso não quer dizer que ela não promova a adaptação das mulheres a um novo papel. O que se percebeu, após a análise, é que não há relação de alternância entre as orações do problema de pesquisa, mas relação causal. É por tentar levar a mulher a um novo parâmetro que ela desconstrói os atuais. Sobre o segundo questionamento da pesquisa - partindo do princípio que revistas femininas, segundo Buitoni (2009), são aquelas voltadas exclusivamente ao jornalismo de serviço e entretenimento, enquanto revistas feministas são aquelas que incluem o jornalismo informativo a fim de promover discussões quanto à realidade da mulher; seria a Revista TPM uma revista feminina ou feminista? -, segundo os princípios classificatórios de Buitoni, a TPM é uma revista feminista. Porém, pode-se ir mais além, baseado nas


76 comparações entre as posturas editoriais e as do movimento feminista, a TPM é uma revista com ideologia feminista. É provável que a revista evite declarar-se como tal com base nos preconceitos existentes em torno do adjetivo “feminista”. Se muitas mulheres com posturas feministas recusam tal adjetivação por conta dos paradigmas negativos que cercam o movimento político, não é de se espantar que um veículo de comunicação prefira evitar a redução na captação de novos leitores ao declarar publicamente a ideologia que guia suas decisões editoriais. Além disso, declarar apoio a um movimento político passaria a demandar

da

revista

maior

cuidado

com

a

seleção

de

assuntos,

direcionamento de pautas e seleção de anunciantes. O veículo passaria a agir sob olhares atentos dos militantes. Situação que provavelmente não é desejada pelos editores, afinal ser fiscalizado por grupos políticos é mais complicado do que ser fiscalizado por leitoras comuns. Outro ponto importante que deve ser discutido é o fato de a TPM, assim como suas concorrentes, funcionar dentro de um mercado editorial e, por isso, ter sua sobrevivência e lucratividade apoiadas nos anunciantes. Se declarar-se feminista pode afugentar possíveis leitoras, que dirá empresas interessadas em ver sua marca ligada a um veículo de luta política. Ainda que a internet tenha – e tem - sido eficaz na propagação de ideias feministas, a realidade é que o período vivido é de transição. Cada vez mais mulheres encontram-se em processo de mudança de valores: recusam certas imposições midiáticas, mas se veem perdidas na luta contra o sistema por estarem em meio a lógica do consumo. E a revista TPM - que não se deve esquecer, é produzida por uma empresa capitalista – visa ser fonte de informação e entretenimento, ao que parece, tanto para as mulheres que já se enxergam feministas, quanto para as que recusam o título. Diante desse panorama, os questionamentos respondidos nessa pesquisa abrem espaço para um novo: quanto do conteúdo produzido pela revista TPM é influenciado pela ideologia feminista por apoio ao movimento político e quanto é produzido por interesses mercadológicos? Segundo as três condições para o processo de tomada hegemônica de Gramsci, a revista TPM já se utiliza da capacidade que um grupo fundamental teve de elaborar uma visão de mundo própria, e agora contribui para a


77 realização de uma reforma intelectual e moral capaz de fornecer base para um desenvolvimento coletivo e popular rumo a uma forma superior de civilização. Ironicamente, em uma revista de ideologia feminista, os cargos de editor, diretor superintendente e diretor editorial são ocupados por homens. Não que o feminismo exclua os homens do movimento político. Eles também são beneficiados pela ideologia e, portanto, o apoio masculino é muito bem-vindo. Porém, a ironia acontece quando o protagonismo feminino é estimulado por homens. Sem chocar ou sofrer preconceitos, a TPM vai crescendo no mercado editorial, ganhando notoriedade e espalhando ideais feministas para as brasileiras que anseiam a era de novos papeis femininos e desejam identificarse com um dos produtos jornalísticos expostos na banca de revistas – seja lá qual for sua motivação para tal.


78

REFERÊNCIAS

BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina-ARI, 1980.

BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BRANDÃO, Nágela Aparecida; DIAS, Edmundo Fernandes. A questão da ideologia em Antonio Gramsci. Trabalho & Educação. Belo Horizonte: vol. 16,

n.

2,

p.81-98,

jul./dez.

2007.

Disponível

em

<

http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/trabedu/article/viewFile/877/769> . Acesso em 20 de maio de 2014.

BUITONI, Schroeder Dulcília. Imprensa Feminina. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1990.

BUITONI, Schroeder Dulcília. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. 2ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 2009.

CASA TPM. CASA TPM. Disponível em <http://www.casatpm.com.br>. Acesso em 10 de outubro de 2014.

DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.

EDITORA TRIP. Mídia Kit: universo TPM. São Paulo: Trip, 2014a. Disponível em

<http://www.tripeditora.com.br/wp-content/uploads/2012/03/MidiaKit2014-

Tpm2.pdf>. Acesso em 10 de outubro de 2014.

EDITORA

TRIP.

Linha

do

tempo.

Disponível

em

<

http://www.tripeditora.com.br/linha-do-tempo/>. Acesso em 10 de outubro de 2014.


79

FRIEDAN, Betty. The feminine mystique. 4ª ed. Nova York: Penguin Books, 1992.

GIL, Carlos Antonio. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

GIL, Carlos Antonio. Estudo de caso: fundamentação científica, subsídios para coleta e análise de dados, como redigir o relatório. São Paulo: Atlas, 2009.

GONZÁLEZ, Letícia. Nudez. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição 128, fevereiro

2013a.

Disponível

em

<http://revistatpm.uol.com.br/revista/128/reportagens/nudez.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

GONZÁLEZ, Letícia. Maria Berenice Dias. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição

129,

março

2013b.

Disponível

em

<http://revistatpm.uol.com.br/revista/129/paginas-vermelhas/maria-berenicedias.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

GONZÁLEZ, Letícia. Pau na mesa pra quê? Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição

130,

abril

2013c.

Disponível

em

<

http://revistatpm.uol.com.br/revista/130/reportagens/pau-na-mesa-praque.html>. Acesso em 13 de abril de 2014. GUEDES, Gabriel de Castro. A emenda constitucional 66/2010 – “Novo divórcio”. Presidente Prudente: Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo,

2011.

Disponível

em

<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/2821/2 600>. Acesso em 21 de maio de 2014.

INSTITUCIONAL TRIP. Nossas marcas: revista TPM. Disponível em <http://www.tripeditora.com.br/marcas-trip>. Acesso em 21 de abril de 2014.


80 LEMOS, Nina. Delaíde Miranda Arantes. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição

130,

abril

2013.

Disponível

em

<

http://revistatpm.uol.com.br/revista/130/paginas-vermelhas/delaide-mirandaarantes.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

LIMA, Paulo. Eu não sou. Revista TPM. São Paulo: ano 1, edição 1, maio 2011.

Disponível

em

<

http://books.google.com.br/books?id=4isEAAAAMBAJ&printsec=frontcover&hl= pt-BR&rview=1&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em 10 de outubro de 2014.

LUNA, Fernando. Você é livre? Revista TPM. São Paulo: ano 11, edição 120, maio 2012. Disponível em <http://www.revistatpm.com.br/manifesto>. Acesso em 10 de outubro de 2014.

LUNA, Fernando. Lista de casamento. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição

129,

março

2013a.

Disponível

em

<

http://revistatpm.uol.com.br/revista/129/editorial/lista-de-casamento.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

LUNA, Fernando. Faça amor, não faça hora extra. Revista TPM. São Paulo: ano

12,

edição

130,

abril

2013b.

Disponível

em

<

http://revistatpm.uol.com.br/revista/130/editorial/faca-amor-nao-faca-horaextra.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. São Paulo: Vozes, 1985.

MIRA, Celeste Maria. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho D‟Água/Fapesp, 2001.

OBNISKI, Luciana. Casar é... Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição 129, março

2013.

Disponível

em

<


81 http://revistatpm.uol.com.br/revista/129/reportagens/casar-e.html>. Acesso em 13 de abril de 2014.

PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005

PUBLIABRIL.

Circulação

Geral.

Disponível

em

<http://www.publiabril.com.br/tabelas-gerais/revistas/circulacao-geral>. Acesso em 10 de outubro de 2014.

SGANZERLA, Carol. O nu e o tabu. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição 128,

fevereiro

2013.

Disponível

em

http://revistatpm.uol.com.br/revista/128/editorial/o-nu-e-o-tabu.html>.

< Acesso

em 13 de abril de 2014.

TORTURRA, Bruno. J.R. Duran. Revista TPM. São Paulo: ano 12, edição 128, fevereiro

2013.

Disponível

em

<

http://revistatpm.uol.com.br/revista/128/paginas-vermelhas/j-r-duran.html>. Acesso em 13 de abril de 2014. VALENTI, Jessica. Full frontal feminism: a young woman‟s guide to why feminism matters. Berkeley: Seal Press, 2013


82

ANEXOS ANEXO A – Capa da edição 128 da Revista TPM


83

ANEXO B – Editorial da edição 128 da Revista TPM O NU E O TABU Há algo muito além do sociológico na questão da nudez Lá se vão 13 anos desde o janeiro que marcou “o verão do topless” nas praias cariocas. Depois que uma comerciante decidiu enfrentar os policiais que a reprimiram por tomar sol sem a parte de cima do biquíni – e a revolução, neste caso, foi amplamente televisionada –, os protestos foram tantos que até o secretário de Segurança na época decretou que não era o caso de arrastar para a delegacia moças que quisessem seus bronzeados sem marcas. O recado do secretário soou como um “liberou geral”, mas o fenômeno passou rápido. Inclusive porque o Código Penal, que data de 1940 (quando os maiôs cobriam muito mais), não mudou até hoje. Embora não faça referência direta ao topless, uma garota mais desencanada na praia ainda pode ser autuada com base no artigo 233, que proíbe a “prática de ato obsceno em lugar público”. Mas, espera aí, peito de fora na praia é ato obsceno? E na Sapucaí tudo bem? Em fevereiro, mês do Carnaval, o público das passarelas do samba Brasil afora não parece exatamente escandalizado com a profusão de seios à mostra. Quando a festa termina, vestem-se as roupas e o pudor. Há algo muito além do sociológico na questão da nudez. Mesmo nos lugares onde isso é tão inevitável quanto natural – o vestiário da academia, o provador de roupas coletivo, o consultório médico –, ficar pelada em geral é desconfortável para a maioria das mulheres, o que diz muito sobre nossa relação com o corpo, independentemente do país em que estamos. A própria Luana Piovani, capa desta edição, acostumada a posar sem roupa em ensaios sensuais, conta que, quando teve a chance de fazer topless num lago da Suíça (isso no tempo em que ela não era seguida pelos paparazzi), se sentiu estranha: sem perceber, se viu cobrindo os seios com as mãos. O nu ainda é tabu. Tanto que é notícia: basta alguém tirar a roupa em público que prontamente ganha as manchetes de jornais, sites e revistas. Tem sido assim com as ativistas do Femen (no Brasil e no mundo), aconteceu aqui na Marcha das Vadias no ano passado e, no momento em que escrevia este texto, um portal da internet noticiava que um atleta brasileiro tinha sido fotografado nu para um calendário beneficente. Outro veículo avisava da nova mania virtual, iniciada por duas britânicas: postar fotos de nus, feitas na neve. Nenhum dos casos seria publicado se os personagens estivessem vestidos. As feministas em protesto, o atleta do calendário e os anônimos em seus retratos banais conseguem atenção porque ficar pelado é algo, no mínimo, digno de nota – isso quando não é caso de polícia. Carol Sganzerla, diretora de redação.


84 ANEXO C – ENTREVISTA PING-PONG COM J.R. DURAN J. R. DURAN Cultuado fotógrafo de nudez não acredita em nu artístico e gosta mesmo é de retratar gente (pelada ou não) Certos temas estão à flor da pele, analisados como grandes fenômenos dos nossos dias: superexposição da nudez feminina, padrões inatingíveis de beleza, hipersexualização da sociedade, narcisismo e insegurança em relação ao próprio corpo como regras... Nada disso parece fazer muito sentido para J.R. Duran, que dá de ombros toda vez que provocado: “Acho que non”, responde, insistindo em seu sotaque catalão, que não o abandona mesmo depois de 43 anos de Brasil. “Tudo sempre foi assim”, diz, evitando filosofar sobre um assunto que, no fundo, entende como poucos: mulher pelada. Talvez por ter despido, sob todos os ângulos, formas e luzes possíveis, mais mulheres do que qualquer sultão, Duran entenda a nudez e todo o imaginário que a cerca como algo... normal. Simples assim. Normal ou não, poucos vão discutir que no país da “mulher mais sexy do mundo” ninguém sabe deixá-la tão sexy como Duran. Desde os anos 70 até hoje, aos 60 anos de idade, realizou incontáveis ensaios e capas de revista com inúmeros símbolos sexuais do Brasil. Das top models mais abastadas às celebridades mais abestadas, das musas de gerações às turbinadas da semana... Mas esse portfólio, de longe, não lhe bate como um carma. “Não sou um fotógrafo de nu”, explica, “sou um fotógrafo. Ponto.” E, se tiver que detalhar, depois de muita insistência, o que está por trás de tantas fotos que ajudaram a definir boa parte do imaginário da nudez feminina brasileira, ele disseca: “São basicamente os mesmos personagens. O peito, a bunda e o púbis. O que faz a imagem especial? Pra mim é a sensação de intimidade que transmite o melhor do nu”. É intimidade, no fundo, o que ele busca com qualquer de seus retratados, vestidos ou não. Algo que Duran encara como a essência de seu ofício: “Me considero um fisionomista. Alguém que busca entender a pessoa através da imagem dela, que tenta ver algo real naquela pessoa que nem ela mesma sabe”. É assim que pauta não apenas seus ensaios de nu, moda, publicidade ou expedições, mas também a Revista Nacional, sua publicação anual. Distribuída para um mailing seleto (ou à venda por módicos R$ 278), é nessa revista que Duran clica e edita as matérias – e as moças nuas – que a imprensa não viu. Só mais um jeito de seguir sua vontade de “criar algo que passe verossimilhança. Revelar algo real, algo do mundo. Mesmo que a partir de uma ficção. No fundo, busco uma fotografia naturalista. Um tipo de luz que não saiu de mim desde o verão de 1969”. Capturar o tempo Duran está falando da temporada que antecedeu sua vinda ao Brasil, depois de os pais anunciarem ao jovem Josep Ruaix (o J.R.) que a família iria mudar de país. Foi, então, passar uns meses em Saint-Tropez. “Tudo volta para esse verão. Tinha uma coisa ali que de alguma forma busco nas minhas fotos.


85 Talvez, se não tivesse feito o que fiz, minha vida, meu olhar, minha fotografia fossem diferentes hoje.” Um tipo de nostalgia que não remói o passado, mas se manifesta no presente. Um tipo de obsessão por experiências que acompanha seu discurso avesso a ideais cristalizados, mas que faz todo o sentido para um sujeito tão apaixonado pelo presente que se tornou um colecionador de instantes. Alguém que tenta, em cliques, nos desenhos que faz, nos livros e diários que escreve e nas cartas que manda para si mesmo (e nunca abre), capturar o tempo. Na entrevista a seguir, Duran desnuda o senso comum de que a mulher está mais insegura em relação ao corpo. Que não se aceita nua. Que o excesso de fotografias transforma a relação das pessoas com a própria imagem. Que o padrão de beleza mudou. E nega que esteja, como tantos acreditam, em uma cruzada contra o Instagram. Então, em inglês, como o catalão mais requisitado do Brasil anuncia o começo de suas saraivadas de fotos: “It‟s showtime!”. Tpm. Vivemos em uma sociedade obcecada pela imagem. Você acha que a própria invenção da fotografia fez isso? Mudou a maneira como as pessoas se enxergam e se relacionam com a própria imagem? J.R. Duran. Acho que não... Por quê? Em primeiro lugar, antes as pessoas só podiam contar com a memória para saber como elas eram. A imagem que tínhamos de nós mesmos era sempre a atual. Não sei se concordo com isso. As pessoas comuns não tinham imagens, quem tinha que ter a imagem registrada tinha, que eram os reis etc. Sempre houve os pintores, a imagem idealizada sempre existiu. Tem uma coisa curiosa: as pessoas discutem muito sobre o Photoshop hoje, e claro que há barbaridades, mas sempre existiu a imagem manipulada. Tem a história de um pintor chamado [Jean-Auguste Dominique] Ingres. Em certo momento, ele queria ser um dos pintores favoritos do Napoleão [Bonaparte]. Ele fez uma pintura tão idealizada do Napoleão, que o cara não gostou, não reconheceu o retrato como dele. E ele perdeu o cargo. Não era Photoshop, mas era o mesmo processo de idealizar a alma, o ego do cara, sei lá. O quadro existe até hoje. Mas não sei, não sei. “Você reconhece que um filme é dos anos 60 ou 70 pelo corte de cabelo. No nu, o que muda é o tipo de depilação” É que a impressão é a de que isso passou para um nível muito mais difundido e, talvez, banalizado.Pode ser. Mas não penso muito sobre essas coisas. Sou um fazedor. Acho que sempre existiu a vaidade, seja masculina, seja feminina, e as pessoas sempre querem ficar bem na foto. Tem dois universos complementares: o fotojornalismo, em que você reproduz uma realidade e está transmitindo uma informação, e o resto, em que não há um compromisso com a realidade. O cara que fotografa as férias quer mostrar que


86 estava em um lugar mais bonito do que realmente estava. Sempre houve essa tentativa de otimização da foto. E em relação às pessoas que você fotografa nuas? Existe uma preocupação maior com o resultado, como um padrão estético? Acho que não. Sempre foi igual. Mas existe essa impressão, pelo menos no senso comum, de que a gente vive em uma sociedade mais exigente, com um padrão mais inatingível. Eu não sinto tanto isso. Mas nada mudou desde quando você começou a fotografar até agora? A única coisa que muda é o corte de cabelo. Você reconhece que um filme, uma foto são dos anos 60 ou 70 pelo corte de cabelo. No nu também. O que muda mesmo é o tipo de depilação. Mas não muda o tipo de corpo? Nas edições mais antigas da Playboy brasileira, as musas tinham peitos pequenos. Eu não posso falar pelas revistas, cada uma tem um ponto de vista e um público. Não consigo generalizar, até porque fotografo todo tipo de pessoa. Surgem fenômenos, existe o body building, a obsessão por determinado corpo. Mas nem todas as pessoas têm essa obsessão, não é assim tão evidente. Mas insisto: não estamos assistindo a um aumento na idealização de um padrão de corpo, sobretudo o feminino? É mais difícil para a mulher se aceitar imperfeita hoje do que há 20, 30 anos? Acho que não. No geral, acho que as pessoas estão mais confortáveis com o próprio corpo do que antigamente. Hoje, fotos de mulheres nuas não são mais tanto motivo de frisson. Se há algo que talvez deixe as pessoas mais obcecadas pela imagem, é a expectativa de vida mais longa. Talvez por isso exista cada vez mais essa indústria de tentar prolongar a juventude. Mas e as garotas que fazem cirurgia plástica cada vez mais cedo, colocam silicone aos 18 anos? Mas aí é problema dos pais, né? Mas o que leva as próprias meninas a desejarem isso não é um dado cultural também? Uma exposição massiva que leva quase à imposição de padrões de beleza? Não sei. Até porque não vejo isso como um problema ou fenômeno. Se você pensar na fotografia de nu... Antes da fotografia, os meios de transmissão de imagens eram a pintura e o desenho. E quase todo pintor de qualquer época pintava nus. Hoje tem mais porque tem mais gente no mundo. Tem mais tudo. Mais gente peituda, mais gente bunduda, mais gente a fim de ficar bem na foto. Acho que, teoricamente, não muda nada. Mas uma coisa que mudou foram as revistas. De que forma? O grande concorrente da revista masculina, do nu feminino, é a revista de celebridade. Antigamente não tinha esse tipo de revista. Então, uma atriz que queria ganhar um dinheirão rápido podia fotografar nua, não tinha concorrência na internet, nada. A nudez podia ser mais romântica e tinha um valor maior nas bancas. Agora, as atrizes, as celebridades são assunto de outra forma. E ganham seus cachês altos vendendo perfume, carro... Houve um deslocamento de personagens. E apareceram as celebridades instantâneas. Para elas, o nu é um meio de vida, um meio de aparecer.


87 Um meio de começar uma carreira? Mas isso não é um problema. Veja a Playboy, por exemplo. Fazer Playboy hoje é um multiplicador. É meio como o dinheiro. Ele só multiplica o que você já tem ou o que você é. Se você é uma pessoa feliz, vai ficar mais feliz se tiver dinheiro. Se você for canalha, vai ser mais canalha. Se você for infeliz, você vai ser muito mais infeliz. A revista de nu é mais ou menos assim. Tem pessoas que fizeram ensaios nuas e partiram para carreiras completamente diferentes. Tem gente que não dá em nada. E tem gente como a Grazi Massafera e a Sabrina Sato, essas mulheres incríveis. Fizeram Big Brother, fizeram nu, e quase ninguém lembra disso. Uma é uma baita atriz, casada com um cara maravilhoso, a outra virou humorista, com luz própria. Então a exposição funciona, mas depois cada um vai seguir um caminho de acordo com o que é. “Quando cheguei ao Brasil, onde achei que seria a maior liberdade, a nudez na praia não acontecia” Me fala da sua chegada ao Brasil. Por que veio morar aqui? Meus pais vieram pra cá, eu tinha 18 anos. No dia 2 de janeiro de 1970 desembarquei no porto do Rio de Janeiro. O que os fez deixar a Espanha? Acharam que a vida ia ser melhor aqui. Era uma época em que o Brasil estava começando o milagre econômico e importava muita gente qualificada. Meu pai comprou uma empresa no Brasil porque o governo oferecia muitas vantagens econômicas. E como você recebeu a notícia de que viria para cá? Era 1969. Meses antes, não sabia o que iria acontecer comigo. Então chutei o pau e resolvi me divertir. Fui passar o verão em Saint-Tropez e Ibiza. Saint-Tropez já era o que é, o topless era uma coisa normal. Em Ibiza as pessoas eram mais despirocadas do que em qualquer outro lugar. E, quando cheguei ao Brasil, onde achei que seria uau, a maior liberdade, era o contrário. A nudez na praia não acontecia. Fiquei surpreso. Mas era outro comportamento, outro jeito de lidar com o corpo. Por isso digo que as pessoas estão mais confortáveis com o corpo hoje do que antigamente. E você já tinha a ideia de ser fotógrafo? Não. Cheguei e não tinha a intenção de ser nada. Comecei a ser fotógrafo como assistente do assistente do Marcel Giró, um cara incrível. Quase tudo que aprendi foi com ele. Um catalão, como eu, que morava no Brasil. Quando me decidi pela fotografia, sentia que queria fotografar gente. Mas aquele verão em Saint-Tropez foi decisivo para me definir como fotógrafo. Como assim? Tinha uma coisa ali, uma luz que nunca mais saiu de mim e que de alguma forma busco nas minhas fotos. Ninguém inventa luz, sempre há uma referência, uma impressão que acabou ficando em você. Talvez, se eu não tivesse feito o que fiz naquele verão, minha vida, meu olhar, minha fotografia fossem diferentes hoje. E como explicaria essa luz que você busca? Me considero um fotógrafo naturalista. E muito porque tento sempre reproduzir essa luz, que representa para mim um estado de espírito. Fiquei três meses experimentando essa


88 liberdade. E aí voltamos à questão do nu. As pessoas eram descompromissadas naturalmente. E no Brasil foi o contrário. Quando montei meu primeiro estúdio, achei que seria interessante começar a fotografar nu. E como foi esse começo? Naquela época, no Brasil, não havia fotógrafo de nu. Achei que poderia seguir um caminho que ninguém explorava. Acho que quebrei certos paradigmas porque busquei um nu diferente, descompromissado, feliz... com aquele espírito de Saint-Tropez. E até hoje, na publicidade, sou chamado para dar naturalidade, passar uma sensação de que a coisa é verdadeira. Esse é o pensamento por trás das fotos que faço. E é como literatura, como ficção. O legal é quando a invenção parece real. Por isso também não acredito no tal nu artístico. Como assim? Não concordo com essa expressão. Uma vez perguntei pro Tarcísio Meira como era beijo técnico. Ele disse que isso não existia. O que existia era um beijo com um monte de técnico em volta. Acho que é mais ou menos isso. O que existe é a boa imagem e a ruim. Se a imagem tem qualidade, não precisa se escorar em nada. Ela se sustenta por si só. E o que faz uma foto ser boa ou ruim? Aí é o X da questão. Não tem resposta. Mas sabe por que decidiu ser fotógrafo? A fotografia, pra mim, é uma maneira de viver. É um trabalho que me dá o privilégio de conhecer os mundos em que eu queria viver. Porque a questão no fundo é esta: como quer levar sua vida? Como você entende o mundo? Para mim tem três maneiras: fotografando, lendo e viajando. E o tipo de fotografia que faço me permite viajar. E como se define como fotógrafo, se não enxerga muita diferença entre o nu, a moda e as imagens que produz nas viagens? Sou basicamente um fotógrafo de publicidade que divide a vida profissional em muitos lados. No fundo me considero um retratista. É que retratista é uma palavra estranha. Mas é algo como fisionomista. Gosto de buscar a alma através da fisionomia da coisa. Quantas vezes fotografo uma modelo e percebo que ela não estava bem com o namorado, ou que acabou de arrumar um? Consigo captar um pouco o fluxo das pessoas que vou retratar. No ensaio de nu tem alguma sedução para fazer a mulher se sentir mais a fim de tirar a roupa? Não para mim. Não sou um fotógrafo sedutor. Não chego fazendo jogo com a modelo. Explico o que quero fazer, vejo como a pessoa vai ficar confortável. Tem que haver cumplicidade. A sorte que tenho é de ter essa cumplicidade facilmente. Mas não existe nenhuma diferença na hora de fotografar alguém sem roupa? Quando a pessoa está nua, são basicamente os mesmos personagens. O peito, a bunda e o púbis. O que faz a imagem especial? Não pode ser a aproximação. Pra mim é a sensação de intimidade que transmite o melhor do nu. Essa sensação é o que dá a verossimilhança, o fascínio pela imagem. Mas tenho a sorte de as pessoas tirarem a roupa para mim muito facilmente. Mas é porque eu peço também. Se você não pergunta, ninguém tira.


89 Mas aí o que facilita é o fato de você ser famoso, não? As pessoas topam tirar a roupa mais tranquilamente para o J.R. Duran... Sim, mas quando você vira uma marca, vamos dizer assim, tem gente que acaba não gostando de você só pelo nome. Mas o lado bom de ter um nome é que as pessoas enxergam como uma garantia de que vai ter um bom resultado. Se a pessoa vai se colocar ali nua, ela quer uma garantia de que vai ficar bem na foto. E eu ofereço a garantia de que vai ser um trabalho memorável. Vai ser melhor do que o, sei lá, Instagram! “Quando viajo, me mando uma carta por dia. É aquela coisa de guardar o tempo” Eu tinha esquecido! Você tem essa sua cruzada contra o Instagram! Não é uma cruzada. É uma provocação. Isso veio do Twitter, que é um lugar que uso pra provocar os outros. Acontece que a difusão da tecnologia colocou câmeras boas no bolso das pessoas. Acho que, quanto mais foto, no fundo, melhor. Mas pego no pé do Instagram porque o repertório é gato, comida, asa de avião e pôr do sol. As pessoas não conseguem comer um prato sem tirar uma foto. É irritante demais. Na verdade acho o Instagram genial porque mostra que fazer uma foto boa é mais complicado do que se imagina. E não fotografo de celular por respeito a mim mesmo. Só vou fotografar o dia em que puder atender um telefonema na minha câmera. Mas aí você não está condicionando a boa fotografia a um tipo de equipamento? Não teria mais a ver com o olhar? E aí pode ser com um celular ou com uma Hasselblad (marca sueca famosa por suas câmeras de médio-formato)? Nada contra o celular. Mas o fotógrafo autêntico é o cara que não produz as coisas por acaso. Em inglês a palavra é shooting. Que é sinônimo de atirar. E para mim tem esse lado de caça, de mirar e disparar na hora certa. Aí acho que você começa a definir o que um fotógrafo é. A sensação que dá é de que todo mundo se deslumbrou com uma câmera no bolso e fica mostrando um pro outro: “Olha o que eu fiz, olha o que eu fiz!”. Não condeno, mas não é a minha. E sua carreira de escritor, como começou? Sempre escrevi diários, cartas. Mas, por acaso, o Paulo Lima me convidou para escrever uma coluna na Trip. Comecei a colocar coisas no papel e descobri que também podia escrever. E isso cria uma nova relação com os outros. Por exemplo: no último dia do ano recebi um e-mail de alguém que não conheço dizendo: “Duran, mudei minha opinião a seu respeito. Li seu livro e agora acho que você é um cara legal e não queria que passasse o ano sem te dizer isso, porque me deixei influenciar por algumas pessoas e queria dizer que você é um cara generoso”. Provavelmente a pessoa devia achar que eu era um cretino [risos]. No fundo, escrever tem algo muito parecido com fotografar. Servem para a mesma coisa. O quê? Para uma coisa curiosa, que é segurar o tempo. Isso é a minha grande coisa. Não é que queira parar o tempo. Mas quero, de alguma maneira, registrá-lo. Está lá, acumulando camadas. Como as cartas ali na estante.


90 O que tem elas? São cartas que mando para mim mesmo. Mas nunca abro... Isso começou muitos anos atrás. Em 89 fui morar nos EUA para trabalhar com moda. Acho que na história da fotografia de moda só tem dois brasileiros que trabalharam nos EUA, o Otto Stupakoff e, vou confessar, eu. Nessa época, passava muito tempo sozinho, comecei a escrever, a refletir. Até lá eu era um fotógrafo compulsivo, e passei a ser um fotógrafo mais reflexivo. Bom, aí comecei a viajar e mandava cartões-postais pras pessoas, mas ninguém mandava nada de volta. Aí falei: “Quer saber? Foda-se, vou começar a mandar coisas pra mim”. Com o tempo, depois que li que Proust mandava uma carta por dia, decidi que ia me mandar cartas. Hoje, quando viajo, me mando uma carta por dia. Coloco minhas impressões, um ingresso de museu, pedaços de memória e mando pra mim. E fica guardado, é aquela coisa de guardar o tempo. E não necessariamente voltar nele. Não, porque você não pode dirigir um carro olhando pelo retrovisor. Tanto faz, já foi, não lembro mais do que escrevi dois, três dias atrás. Só tem dois países de onde não chegaram as cartas: Bolívia e Índia [risos]. Nunca chegou a porra das cartas até hoje! E seu livro mais recente, Diários de viagem, é sobre isso? Não é sobre as cartas. Mas é uma tentativa de segurar o registro de três anos de viagens. São aquarelas que fiz de todos os quartos de hotel que dormi e os diários que escrevi. Mantenho diários com textos, fotos e desenhos há anos. Tem que ser bem metódico para manter essa disciplina? Acho que esse é meu lado catalão. Outro dia estava em um jantar, e perguntaram para um curador como ele define o que é arte e o que não é. O cara respondeu que era pela obsessão. O artista é obcecado. Não que eu seja um artista, sei lá... Você não é um artista? Acho que não. Tenho conhecimentos artísticos que aplico nas coisas que faço: fotografia, pintura, livros. Mas não tenho que me considerar nada. Só tenho a sorte de ter um lugar para publicar meu trabalho. Bom, você tem a sua própria revista, a Nacional. Falo que sou um fotógrafo publicitário. Mas tenho sonhos, devaneios. E vou atrás disso. Adoro fazer editoriais, entendo a linguagem de revista. Por isso me senti à vontade para fazer uma. E como tem sido fazer a revista? Uma coisa é ser entrevistado, outra é entrevistar. Eu ficava frustrado. Porque, fotograficamente falando, consigo transmitir quem uma pessoa é pela imagem. Reconheço como ela se portou, como se sentiu confortável em se expor. Mas, quando entrevistava as pessoas e começava a editar, sentia falta do ritmo, do jeito de falar. Então, eu tiro as perguntas e só transcrevo o que a pessoa diz. Ficar mais próximo? É, como a fotografia, que para mim é uma maneira de ver o mundo de perto. Consegui chegar perto de pessoas que tinha vontade de conhecer mais. Então é aquela história de levar a vida do meu jeito. É uma maneira de juntar tudo. “O meu talento é ter paciência, especialmente com as mulheres”


91 Trabalho e vida? Sim. E o olhar e a forma como trato as pessoas. A sensibilidade de entender as pessoas. Aprender os códigos. Tudo é a maneira como você fala com as pessoas e como isso funciona no estúdio... talvez o segredo desses anos todos seja exatamente isso, ouvir e entender as pessoas. Sejam mulheres nuas, vestidas, seja o universo da moda, que é muito etéreo, frágil, envolve padrões de beleza superavançados. Como tratar isso, como isso se traduz em imagem? Como traduzir o mundo corporativo da publicidade, da campanha de perfume, dos planos milionários de investimentos? Como fazer isso de uma maneira que dialogue com as pessoas? Isso pede um instinto. Esse é o seu talento? Ter esse instinto afinado? O meu talento é ter paciência. O grande talento no mundo é ter paciência, especialmente com mulheres, não? Você não pode falar pras mulheres o que elas têm que fazer. Você tem que deixar que elas façam e, depois, quando não sabem mais o que fazer, você pergunta: “E aí? O que a gente faz agora?”. Aí as coisas se encaixam e acontecem. É com esse fluxo de trabalho que você aprende, desenvolve e passa a ter um estilo. E esse estilo é o que faz com que, ao longo do tempo, você construa uma... não vou dizer obra, que é pretensioso. Mas faz você ser identificado por alguma coisa.


92 ANEXO D – Reportagem de capa da edição 128 da revista TPM NUDEZ Por que, afinal, há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez? No Carnaval, na praia, num provador, num set de filmagem, no médico, numa sala cheia de gente, sozinha no quarto. Cada mulher fica nua de um jeito. Tpm ouviu personagens para as quais ficar pelada é trabalho, ativismo, arte ou até moeda de troca. Por que, afinal, há tanto julgamento e tabu quando o assunto é nudez? “Oi, tudo bem? Estamos preparando uma edição especial sobre nudez e gostaríamos de ouvir você sobre isso.” Foram muitas as mulheres procuradas por Tpm para discutir o tema escolhido para este fevereiro – não por acaso, o mês do Carnaval e do clima de “liberou geral” que invade o país. A ideia, desde sempre, era discutir mesmo: tentar entender por que em geral nós, brasileiras, não nos sentimos à vontade nem nos momentos em que estar pelada é a coisa mais normal do mundo (como estar num vestiário de academia ou num provador de roupas coletivo, comuns em algumas lojas e bazares); questionar por que uma moça mais desencanada pode ir parar na delegacia se resolver fazer um topless em Ipanema (ou em qualquer outra faixa de areia em território nacional); refletir sobre a força que ainda tem, nos dias de hoje, o corpo nu de uma mulher em uma obra de arte ou em um protesto na rua; ouvir as motivações que levam uma famosa a posar nua em uma revista masculina – e, claro, as razões das que escolhem o contrário, não aparecer pelada de jeito nenhum. Foi nesse último tópico que a coisa pegou. Nossa reportagem levou não da maioria das atrizes convidadas a simplesmente falar do tema. “Não quero associar minha imagem a esse assunto” foi resposta frequente. Ficar nua, para uma celebridade, é de fato uma cartada significativa na condução da carreira. É compreensível que a decisão seja cercada de cuidados. Mas a recusa em fazer qualquer pronunciamento a respeito também não deixa de ser intrigante. Por que é melhor evitar? E o que representa, afinal, estampar uma revista ou a tela de cinema com o próprio corpo totalmente nu? Luana Piovani, quatro vezes capa da revista Trip (com ensaios sensuais produzidos aos 20, 25, 30 e 35 anos de idade), topou não só falar, mas também se despir na sessão de fotos para a reportagem e para a capa desta edição. Discorreu inclusive sobre o tópico que talvez seja o mais delicado da questão: o preço da nudez. Embora prefira não falar em números, a atriz, que hoje está na novela Guerra dos Sexos, na Globo, e é apresentadora do programa Superbonita, do canal GNT, é franca ao afirmar que o que a faria finalmente liberar o que nem a Trip mostrou – sua genitália – é uma alta quantia de dinheiro. “Tem que ser muito dinheiro”, resume. “Porque eu vivo muito bem sem isso, então seria para mudar a vida”, diz. Nos quatro ensaios, Luana mostrou os seios. Também já fez fotos de lingerie para outras


93 publicações masculinas. Mas traça uma linha muito clara quando o assunto é o nu completo. “Na hora que fizer nu frontal, eu dei tudo." “Na hora que fizer frontal, eu dei tudo. Acho que só abriria por um excelente motivo.” Por excelente, ela entende uma mansão no Jardim Pernambuco, o condomínio no coração do Leblon, no Rio de Janeiro, onde as casas não valem menos de R$ 12 milhões, ou um papel em um filme que fosse menos comercial do que os trabalhos que fez até hoje: um exemplo que ela cita é Amarelo manga, longa de Claudio Assis que ganhou mais de 20 prêmios em festivais de cinema. A nudez de Luana Piovani tem, portanto, um preço. A de muitas outras atrizes também. Christiane Torloni, que foi capa da Playboy três vezes nos anos 80, declarou que, hoje, nenhum veículo tem dinheiro para pagar o que ela cobraria. Assim como ela, Nívea Stelmann não aceitou o cachê oferecido pela revista e, na época, resumiu a questão de maneira bem-humorada ao site iG: “O empresário ganha, o imposto de renda ganha, mas quem fica no borracheiro sou eu. Então, quem tem que ganhar dinheiro sou eu”. Do lado das que aceitaram posar nuas, Nathália Rodrigues e Juliana Alves garantem que o cachê pesou na decisão. Nathália declarou ter alcançado estabilidade financeira com o pagamento e Juliana conseguiu comprar um apartamento à vista. Onde essas mulheres veem um preço a cobrar, a filósofa Marcia Tiburi, 42 anos, vê um preço a pagar. “Quando você se vende como um pedaço de carne, você é uma pateta. As mulheres que posam para aPlayboy, todas lindas e gostosas, são umas otárias do ponto de vista político. Elas não fazem ideia da relação que isso tem com o fato de a mulher ser rebaixada, ganhar menos que o homem no trabalho”, dispara. Para a escritora, o nu com apelo sexual é a própria linguagem do machismo. “Quem faz isso não tem noção que somos reduzidas ao corpo.” “Quando você se vende como um pedaço de carne, você é uma pateta" Por reduzida ao corpo, Marcia entende o mesmo que Simone de Beauvoir, a feminista mais celebrada da história. “Somos marcadas pelo sexo. Simone diz: „Antes de você ser qualquer coisa, você é uma mulher. Uma mulher médica, uma mulher jornalista. Enquanto um cara é um médico e só‟.” Por causa disso, assim como o sexo da mulher grita mais alto que qualquer informação sobre ela, sua nudez também se sobressai em qualquer contexto. Por isso, um homem tirar a camisa é aceitável e uma mulher, ao fazer o mesmo, causa escândalo. O buraco é ainda mais embaixo quando a nudez vem associada ao sexo. “Se você se deixa fotografar pelo namorado, você faz aquilo pelo seu prazer.


94 Quando as fotos vazam, você vira culpada. E é um problema a mulher aparecer como alguém que tem prazer”, afirma Marcia. Para a nudez do homem, lembra ela, há outro peso e outra medida. Para a da atriz que negociou e cobrou pelas fotos, também. A filósofa vê moralismo nessas diferenças. “A sociedade condena a nudez da menina que foi livre, por vontade própria, mas aceita a do outdoor. O mesmo cara que está batendo punheta com a revista é o que está condenando a menina”, reclama. No tempo das avós Conhece a moral e os bons costumes melhor do que ninguém quem trabalha há 52 anos tirando a roupa. A pernambucana Vera França, 71, se mudou para São Paulo aos 20 para ser modelo-vivo em escolas de arte. Apaixonada pela nudez desde criança, quando andava nua sobre os cavalos do sítio onde cresceu, não entendia por que a mãe a cobria de roupas. Descobriu sua profissão quando um estudante de belas-artes a convidou para posar em frente a uma turma. “Ele me explicou como seria e eu já logo associei a ideia do belo, do belas-artes, ao nu. Porque o nu é muito belo, né? Aí, topei.” Vera nunca mais parou de posar, nem mesmo grávida. Com o trabalho, criou as duas filhas, hoje com 50 e 31 anos. A modelo tem uma naturalidade incomum com o corpo. “Está todo mundo pelado debaixo da roupa, não está? Por que não pode expor isso?”, questiona. Enquanto está lá parada, sente que encarna um papel na formação de novos artistas. “Eu me considero uma musa, um objeto importante. Tão confortável que nem me sinto pelada.”

“Minha nudez mostrava a violência contra uma mulher. Hoje, 75% das que apanham não denunciam. O Brasil ainda é conservador” (Norma Bengell, atriz) Vera não conhece o desconforto que a maioria das mulheres sente ao tirar a roupa no vestiário da academia, por exemplo, ou o esforço descomunal que fazemos para manter o biquíni no lugar quando entramos no mar. Para a psicanalista Anna Veronica Mautner, esse tipo de vergonha é também um pouco de vaidade. “Pudor significa querer mostrar o melhor de si. O despir é uma coisa que gostaríamos que fosse perfeito. Você não quer mostrar uma cicatriz, uma mancha. E ficar nu na frente dos outros é quase sinônimo de mostrar tudo. Você pensa que seus defeitos são vistos – não só os do corpo, como os de alma, os seus sentimentos. Por isso passa pelo acanhamento total”, explica. Por ter resolvido essa questão há cinco décadas, Vera segue posando com prazer aos 71 anos, para espanto das colegas do curso de crochê. “Se eu vou ser sem vergonha, vou ser em qualquer idade. Eu engordei, envelheci. Até falo: „Pode desenhar a banha‟.” Vera chegou a ter problemas no início da carreira. “As mulheres não me cumprimentavam por vergonha do que eu fazia ou por ciúme dos namorados, que me desenhavam”, lembra. “A gente não podia conversar com os


95 estudantes.” A distância só servia para alimentar a confusão entre sexo e nudez que alguns artistas faziam. “Uma vez estava posando na casa do artista e ele veio me agarrar. Rodei a baiana, disse: „Eu não quero nada com você. Estou trabalhando. Você vai me forçar? Vou contar tudo para a sua mulher neste instante‟. Quantas ameaças já fiz... ”, conta, relembrando 1962. No mesmo ano, a atriz Norma Bengell chegou a sofrer ameaças por protagonizar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, em Os cafajestes, de Ruy Guerra. “A tradicional família mineira queria me matar”, lembra ela. O filme chocou a organização católica Tradição, Família e Propriedade, que mobilizou uma passeata contra a atriz em Belo Horizonte. No Rio, o filme foi retirado de cartaz por ordem do governador Carlos Lacerda, que cedeu aos apelos da arquidiocese do estado. Família e sociedade Norma tinha 27 anos quando filmou o longa, que traz a história de dois playboys que tramam um golpe. Na cena polêmica, eles a perseguem e a fotografam quando ela sai do mar. Os dois cafajestes do título também violentam outra mulher e tramam usar a nudez das duas como chantagem. Por causa do papel, a atriz enfrentou a resistência da família. “Meu pai só voltou a falar comigo dois anos depois.” O namorado da época, mais velho e ciumento, também não gostou. Mas Norma se manteve firme. “Eu jamais me arrependeria de ter feito algo tão bonito. O Ruy Guerra disse que iríamos fazer e, se eu não gostasse, ele cortaria. Eu vi aquilo e achei lindo.” Até hoje, a atriz crê no poder dessas imagens. “Minha nudez mostrava a violência de um homem contra uma mulher. Outro dia vi na TV que 75% das mulheres que apanham do marido não denunciam. Então não há liberdade, né? O Brasil ainda é conservador.” Conservador a ponto de proibir algo que, em praias europeias, é banal: o topless. Mostrar os seios em público é crime previsto no artigo 233 do Código Penal de maneira inalterada desde 1940. É “praticar ato obsceno em lugar público”. Na prática, distinguiur o aceitável do inaceitável fica a cargo do policial ou da pessoa que denuncia. “A lei não define o que é obsceno, apenas diz que o ato obsceno deve ser punido”, explica o advogado Gustavo Romano, criador do projeto Para Entender Direito, que explica o “juridiquês” para leigos. Lei confusa, cidadãos idem. “Por que o homem pode andar sem camisa, mas a mulher não? E por que uma mãe amamentar o filho é ato de beleza, mas a moça mostrar os seios é ato obsceno? Talvez não seja pela repulsa moral, mas o contrário: por desejarmos e não alcançarmos. Homens ainda fazem e aplicam as leis: se não podemos ter, que elas não possam mostrar o que nos negam.” Mamilos e sandálias Nesse embate, nudez e sexo voltam a conversar. Para a ativista russa Gypsy Taub, 43 anos, a repressão sexual é a grande inimiga da nudez desencanada. “A excitação em torno da nudez é uma resposta do corpo ao que ele é


96 sistematicamente privado de ver. É como mostrar comida a um faminto”, diz Gypsy, uma ex-stripper mãe de três filhos que milita pelos direitos individuais, inclusive o de andar nu pelas cidades. Ela e outros moradores de San Francisco, na Califórnia, estão indignados desde dezembro, quando o município aboliu o direito de andar sem roupa nas ruas. Eles lutam na Justiça para que a lei, prevista para entrar em vigor neste mês, seja anulada. Estão prontos para levar a briga até a Suprema Corte do país. Para Gypsy, trata-se de uma questão de princípios. Ela prefere ficar nua na praia ou em festivais de música e arte como o Burning Man, “onde as pessoas têm mente aberta”. Na cidade, munida de megafone e calçando sandálias com meias, Gypsy se despe em nome da liberdade nas questões do corpo. “Você me pergunta por que andar pelado na rua. Eu respondo: por que não?”


97 ANEXO E – Capa da edição 129 da revista TPM


98 ANEXO F – Editorial da edição 129 da revista TPM LISTA DE CASAMENTO Acredite, você não precisa de tantas travessas ovais assim 1. Acredite, você não precisa de tantas travessas ovais assim. 2. Um noivo ou uma noiva, porém, faz bastante falta. Se preferir evitar a palavra, pode chamar de namorado, namorada, companheiro, companheira. Um relacionamento raramente fica mais ou menos sólido por razões vocabulares. Enfim, casamento exige alguém com quem você queira muito dividir a vida – o que inclui manhãs de domingos e contas no final do mês. 3. (Ei, pode ser mais de uma pessoa? Pode, mas com apenas uma já é suficientemente complexo.) 4. Claro que isso não é daquelas coisas que se encontram em prateleiras de lojas de presentes. Talvez seja mesmo algo que não se procura, se acha. Mas talvez eu esteja só romantizando a coisa toda. Estou, com certeza. Os sites de relacionamento estão aí para isso. 5. Falando neles, seria possível conciliar as expectativas pedestres do Bang With Friends com os objetivos elevados do Par Perfeito? Só para manter as coisas em perspectiva... 6. A melhor razão para alguém se casar hoje em dia é que ninguém precisa mais se casar hoje em dia. 7. Quer dizer, ninguém mais tem que casar para viver junto. Ninguém mais precisa casar porque os pais decidiram que chegou a hora. Ninguém é obrigado a casar porque pega mal continuar solteira depois de uma certa idade. Ninguém mais precisa casar para ter filhos (finalmente descobriram que filhos nascem a partir de um outro verbo ou, simplesmente, são adotados). Assim, ficou mais fácil casar pelo melhor motivo: amor. 8. É implicância minha ou celibatários pontificando sobre o dia a dia do casamento costumam soar como um macacoprego tentando tocar Bach? 9. A ilusão de posse: meu marido, minha mulher. Ninguém é de ninguém. Dois versos de Guardar, de Antonio Cicero: “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que um pássaro sem voos”. Fica com isso. 10. Solidão a dois? Prometo te deixar quando acabar: uma parte fundamental de todo casamento bem-sucedido, frequentemente esquecida. Que seja eterno enquanto duro. Sem tesão não há solução. Fernando Luna, diretor editorial


99 ANEXO G – Entrevista ping-pong com Maria Berenice Dias MARIA BERENICE DIAS A juíza que mudou a cara do casamento no Brasil, os direitos das mulheres e foi pioneira em reconhecer a união gay Maria Berenice Dias, 65 anos, a primeira juíza do Rio Grande do Sul, mudou a cara do casamento no Brasil. Ela fez o país reconhecer as relações fora do papel, os direitos das mulheres, a primeira união homoafetiva – e quer que as famílias gays parem de ser ignoradas É bom que fique claro: os gays estão casando no Brasil. E do mesmo jeito que a sua vó fez nos anos 50, sua mãe nos anos 70 e sua amiga mês passado: no papel. Não dá para explicar o porquê sem trazer à tona o nome da advogada e juíza aposentada Maria Berenice Dias, 65 anos. Foi ela quem escreveu o primeiro livro sobre direito homoafetivo do Brasil, quem abriu o primeiro escritório do ramo e quem decidiu, ao lado de colegas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que um casal de homens assim o era, pela primeira vez, em 2001. Seis anos antes desse feito, Berenice abraçou a causa gay, quando já tinha mudado a cara do casamento no Brasil e se tornado uma das maiores autoridades no assunto. “Comecei a pesquisar e não acreditei que ninguém nunca tinha olhado e dito: „Alô, ali tem uma família‟.” E não uma sociedade civil, como tantos advogados e juízes defendiam. A diferença na definição está no centro do termo que ela cunhou para tratar do tema: homoafetivo. “Família é relação de afeto.” Penetra no Tribunal Hoje ela coordena centenas de pessoas envolvidas em fazer valer as novas regras. Aos fins de semana, no parque da Redenção, em Porto Alegre, o mesmo onde caminha todas as manhãs, vai munida de megafone para que suas ideias sobre o Estatuto da Diversidade Sexual sejam ouvidas. Entre outras coisas, o documento garante o direito de adoção por casais gays e criminaliza a homofobia. “Quero que as pessoas despertem, parem para pensar”, diz. Para conseguir apresentar o estatuto no Congresso como iniciativa popular, ela precisa reunir 1,4 milhão de assinaturas (já tem 50 mil). A causa gay toma quase todo o seu tempo – o pouco que sobra ela divide com os filhos (Cesar, 34 anos, Suzana, 32, e Denise, 31) e os amigos que recebe em festas na sua cobertura, num bairro de classe média. “Os convidados vão chegando e eu ainda estou no computador”, ri. É lá também que começa o dia respondendo e-mails e convites para palestras – só em janeiro, recusou mais de 50. O apartamento, onde mora sozinha, é movimentado: tem sempre alguém batendo à porta, além das duas empregadas e das duas assessoras particulares.


100 Quem ouve Berenice falar calmamente, encerrando as frases com um marcante “tu entende?” ou com uma risada anasalada, não imagina quantas brigas já comprou sem levantar a voz. Para se tornar juíza, precisou driblar a tradição do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, em cem anos de existência, nunca havia aceitado uma inscrição feminina. “Eles negavam na maior”, lembra a gaúcha, que seguiu a carreira do pai, desembargador, mas antes teve que se infiltrar no ambiente masculino para garantir sua chance. “Comecei sendo datilógrafa e virei assessora do presidente. Quanto mais me conheciam, menos desculpas tinham para não me aceitar.” Na entrevista final do concurso, já aprovada nos testes, ouviu do examinador: “A senhorita é virgem?”. Respondeu que sim e se tornou a primeira juíza do estado, em 1973, aos 24 anos, mas o machismo não parou aí. Foi oferecido a ela um posto administrativo na capital, sob a alegação de que a vida no interior era “difícil”. “Neguei, claro, e fui para bem longe”, conta. Em Ibirubá, a 300 quilômetros de Porto Alegre, fez suas primeiras interpretações da lei, como: separação vale quando um dos dois sai de casa, não quando o papel diz; e a mais importante, reconhecida só na Constituição de 1988: família é quem faz uma vida junto. "Na entrevista final [para o cargo de juíza], perguntaram se eu era virgem" Na época, não existia divórcio no Brasil (passou a existir em 1977) – sendo assim, ninguém podia casar de novo. “Mas isso nunca impediu as pessoas de irem atrás do sonho da felicidade”, ressalta. Novas uniões se formavam, novos filhos nasciam, só que, sem os papéis, se tornavam invisíveis. As famílias tinham tantos formatos que ela escreveu um Manual de direito das famílias, no plural mesmo. “O editor me ligou pra perguntar se eu tinha me enganado”, lembra. Berenice fez suas ideias correrem o país por meio do site que leva seu nome. Nos anos 90, defendia, em artigos e sentenças, que os processos de paternidade fossem reabertos para incluir os testes de DNA, novidade da época que trazia a chance de uma prova clara. Também exigia que a “culpa” não fosse julgada em um processo de separação – e que as mulheres não fossem mais punidas por serem, por exemplo, adúlteras. Todas posturas que, passado o estranhamento inicial, viraram regra. Do mesmo jeito que devem se tornar comuns suas visões sobre a família gay. Tpm. Como você se engajou na causa gay? Maria Berenice. Em 1995, me chamaram para encerrar um seminário sobre união estável numa universidade em Guarulhos, onde conheci meu último marido, que era professor. Eu pensei: cinco dias falando só de união estável, que coisa chata. Comecei a pesquisar e vi que não havia nada a respeito de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Quanto mais pesquisava, mais ficava abismada de ver como ninguém nunca havia parado para dizer: “Alô, ali


101 existe uma família”. Juntei os meus filhos e disse: “A mãe decidiu mexer num abelheiro”. Em 2001, o Tribunal gaúcho, onde você trabalhava, foi o primeiro do país a reconhecer a união estável entre dois homens num processo de divisão de bens. Foi difícil fazer a sua voz valer? Tudo foi avançando a muito custo. A cada semana casos iguais saíam com sentenças diferentes porque nem sempre eu conseguia a maioria. O tribunal tinha quatro desembargadores e, para decidir, se juntavam três. Como éramos dois contra e dois a favor, variava muito. A verdade é que as pessoas têm muita dificuldade em conviver com o novo. Sendo juíza na década de 70, via essa confusão nas uniões héteros também? Sim. A Constituição federal deixava claro: família era formada a partir do casamento. Tinha que estar no papel. Se não é casado, não tem direito a nada, não ganha pensão, cesta básica. Eu achava um pouco perverso, punitivo. E a lei também dizia que o casamento era indissolúvel [o divórcio só passou a existir em 1977 no Brasil, quatro anos depois de Maria Berenice se tornar juíza]. Mas acontece que o casamento nunca foi indissolúvel. As pessoas saíam dos casamentos, iam atrás do “sonho da felicidade” e construíam novos vínculos. Só que muitas famílias, por estarem fora do modelo, ficavam invisíveis. Qual a consequência disso? A Justiça fez legiões de mulheres “famintas”, que, quando se separavam, não podiam cobrar nada nem para si nem para seus filhos. A postura de boa-fé era muito ligada à abstinência sexual, àquela mulher pura e casta. Ela era obrigada a adotar o nome do marido, mas, se fosse “culpada” pela separação, perdia. Se ficasse comprovado que havia traído, perdia a guarda dos filhos. Eu propunha novas interpretações da lei, mas muitas das minhas decisões eram revistas em Porto Alegre. Por colegas homens? Sim. Há toda uma estrutura de poder que está na mão dos homens. Eles que fazem as leis, eles que pagam pensão. Nessa área, por exemplo, sou a favor de escuta telefônica para descobrir onde o pai está enfiando o dinheiro dele. Tenho uma decisão, única no Brasil, que diz assim: escuta é só pra crime? Pois é um crime não criar filho. Que casos mais a marcaram? Tem dois. Em um deles, o homem queria deixar de pagar pensão porque a ex-mulher tomava pílula anticoncepcional. Ou seja, na cabeça dele, ela deveria perder seus direitos por exercer sua liberdade sexual. Tu entende a perversidade? Na outra disputa, um homem exigia metade da casa que a ex-mulher construiu sozinha depois que ele abandonou a família. Ele a deixou com cinco filhos, nunca mandou um tostão e voltou querendo parte do patrimônio porque, legalmente, ainda eram casados. Eu ficava muito incomodada com essas coisas. Aí, comecei a defender a ideia de que vale a separação de fato, não a do papel. Essa visão virou padrão. Que outras mudanças defendia? Essa coisa de que primeiro precisa separar para, depois, divorciar. Tinha de estar separado há dois anos para poder se divorciar. Propus uma emenda constitucional para acabar com isso. Saiu em 2010, e a manchete do jornal foi a mesma de


102 quando aprovaram o divórcio: “Acabou o casamento”. Agora as pessoas podem casar num dia e separar no outro? Podem. Você enxergou isso como um avanço? Com certeza, e acho que isso faz bem pra família. As pessoas têm de investir mais, porque, se um quiser sair, entra com o pedido [de divórcio] e é quase automático. Eu acho que isso faz as pessoas cuidarem melhor da relação. Sem essa de discutir de quem é a culpa, outra coisa que sempre abominei. Culpa se discutia no tribunal? Sim, mas agora não mais. Não tem mais isso de “olha, traiu? Tem prova da traição?”. Toda uma mudança, né? "Hoje não tem isso de 'prova de traição'. Uma mudança, né?" Que outras mudanças propunha? Quando surgiu o teste de DNA [na década de 1990], eu recuperei casos de teste de paternidade que ficaram sem solução por falta de provas. Porque é difícil você provar que houve uma relação sexual. As pessoas apresentavam testemunhas que diziam que os dois iam juntos ao clube, às festas, só. Eu dizia que os processos podiam ser revistos. As pessoas falavam: “Mas o juiz já decidiu, não pode voltar atrás”. E eu dizia: “Mas acho que pode, sim”. E virou regra. Por que decidiu bater de frente tantas vezes? Por causa da discriminação que sofri. Sempre fui muito questionadora. Se não fosse assim, não teria nem entrado na magistratura. Como assim? No Rio Grande do Sul, as mulheres não podiam fazer concurso, um negócio horroroso. Era uma regra clara ou um costume? Historicamente, havia cem anos que as inscrições das mulheres eram recusadas. Para fazer o concurso, a pessoa precisa pedir para se inscrever. Mas as mulheres não chegavam nem nas provas. E como você conseguiu? Fui trabalhar no Tribunal de Justiça como datilógrafa e fui subindo até virar assessora do presidente. Quanto mais eles me conheciam, menos desculpas tinham para não me aceitar, tu entende? Nessa época eu também já dava aula na faculdade. Então, se eles recusassem alguém com essa qualificação, ia ficar muito escancarado que era preconceito. No ano em que me inscrevi, em 1972, tinha umas 60 mulheres requerendo inscrição. Deu certo, então? Sim, mas foi dolorido. Porque, logo que aceitaram a inscrição, começou um movimento meio surdo, tipo “então tá, vamos deixar as mulheres fazerem as provas para não acharem que estamos sendo preconceituosos. Mas elas vão rodar”. Quantas mulheres passaram? Das 60 passaram quatro nas provas escritas e, nas orais, só eu e mais uma. E aí, na entrevista final, me perguntaram se eu era virgem. Como assim? A virgindade na época tinha valor. Soube até que Brasil afora mulheres não foram aceitas porque viviam com alguém ou tinham filho sem ser


103 casadas. Era um demérito para a mulher não ser virgem. Na entrevista, me perguntaram isso pra ver se eu teria condições morais de assumir o cargo. E? Nessa época eu não dava bola pra ninguém, tinha o foco no que eu queria ser e sabia que não poderia me expor para não ficar malfalada, com fama de namoradeira. Era um negócio muito difícil, sabe? Eu tinha que ficar virgem, pura, a imagem imaculada da mulher [risos]. Esse machismo continuou depois de aprovada? Isso me acompanhou a vida toda. Quando engravidei, os colegas achavam que eu ia abandonar a magistratura. Isso nunca passou pela minha cabeça. Aí, quando o Cesar [primeiro filho, hoje com 34 anos] nasceu, só me deram uma licença médica de 30 dias. E tu acredita que eu voltei? Da segunda vez [quando a filha Suzana, 32 anos, nasceu], exigi que me dessem a licença-maternidade padrão. Anos depois, quando entrei no Tribunal de Porto Alegre, demorou para que um dos banheiros se tornasse feminino. Eles queriam que, em vez de ter um só pra mim, eu chamasse um guarda pra ficar na porta toda vez que quisesse usá-lo. Que outras discriminações sofreu? Eu nunca fui convidada para posto nenhum na carreira, sempre fui promovida por antiguidade. Até na hora de ir pro Tribunal como desembargadora, depois de 25 anos de carreira, ainda recebi sete votos contrários [de 21] para ser promovida. Depois de tudo o que já tinha feito. A sensação que tenho é que me doeu mais essa rejeição do que a inicial, porque lá era um movimento contra as mulheres, não contra mim. Mas sou melhor movida a ódio. Como a sua família viu a escolha de ser juíza? O meu pai ficou muito emocionado, porque ele teve cinco filhos e só eu estudei direito. Ele morreu pouco antes de me formar. Meus dois irmãos se tornaram engenheiros e minhas duas irmãs não se formaram e casaram com engenheiros. Fui criada dentro daquele modelo convencional: eu tinha um pai provedor, o profissional que se realizava, e uma mãe do lar. E foi sempre o modelo do meu pai que me serviu. Ele era um idealista. Para minha mãe, eu era a filha que tinha dado mais trabalho. Ela dizia que eu estava tirando o lugar dos homens. E os namorados? Antes do meu primeiro marido, fui noiva duas vezes, de estudantes de medicina. Os dois queriam que eu parasse de estudar para casar. Um se formou e estava indo para os Estados Unidos, queria que eu fosse junto. Ele tratava isso de um modo jocoso, me apresentava aos amigos dizendo: “Olha, ela quer ser juíza”, rindo. Não fui pros Estados Unidos e o noivado acabou. Casei com o primeiro que não me pediu para abandonar os meus sonhos. O casamento foi na igreja, tradicional? Sim, porque para minha mãe isso era muito importante. Eu nem queria casar de vestido, na foto tu vê que eu nem estou de véu... Eu casei com 26, 27 anos, já era juíza, não gostava da história do branco. Nunca gostei dessa simbologia. Por quê? Eu ainda não entendo muito, as mulheres ainda alimentam aquele sonho do casamento, do véu e grinalda, da roupa branca, que significa pureza e castidade. Mulheres da geração das minhas filhas... E aquele casamento do príncipe William, hein? Desculpa, mas ela [a Kate Middleton] estava de burca.


104 Usava um véu todo coberto, aquilo era uma burca, toda tapada. Até hoje tem noivas que casam assim. Que simbolismo é esse? Você acha que tem algo de errado em as pessoas ainda sonharem com isso e pagarem caro por um vestido? É um sonho sonhado desde sempre, né? A mulher não pode não casar, a sociedade não permite. Se a mulher não casou é porque ela sobrou, porque ninguém quis. Não é livre para não casar assim como não é livre para não ter filhos. Se a mulher casa e não tem filhos, ela falhou, é uma família com problemas. Eu vejo as mulheres avançando, ainda ganham menos, é verdade, mas avançam, trabalham. Onde elas não vão tão longe? No mundo privado. Nas relações familiares ainda existe uma relação de poder muito verticalizada. E elas ainda se submetem a isso por causa do sonho. Essas ideias ainda estão muito arraigadas? A mulher ainda tem que cuidar do marido, dos filhos. Se recebe uma proposta para ficar um mês nos Estados Unidos, algo que vai ser bom pra carreira, fica toda culpada, enche o freezer de comida, pede pra mãe dar uma olhadinha na casa. Se é o marido que recebe, é uma festa, “vou preparar a sua mala”. Olha este exemplo. O sogro da minha sobrinha colocou a mulher com Alzheimer numa clínica, desmanchou a casa deles e foi viver com outra. Todo mundo na família acha que ele é um marido maravilhoso, porque ele visita a clínica toda semana. Queria ver o que todo mundo ia achar se fosse o contrário, se a mulher tivesse jogado ele numa clínica e ao mesmo tempo estivesse vivendo com outro. O conceito ia ser o mesmo? "Se a mulher não casa, é porque ela sobrou, porque ninguém quis" Mesmo com tantos modelos, você casou quantas vezes quis, não é? Casei cinco vezes. Minha mãe se incomodava muito com essa história de eu sair de um casamento e entrar no outro. Ela passou a vida dizendo “coitado do João” [o primeiro marido] e eu respondendo: “Coitado, não!” [risos]. Quando casei com o segundo, meus filhos eram pequenininhos e queriam ter o sobrenome dele [por causa da convivência intensa que tinham com o padrasto]. Minha mãe apoiou, assim ninguém na cidade saberia que não eram filhos dele. Não topei. Eu tinha muito orgulho da minha vida. E quando casou pela terceira vez, o que sua mãe disse? Ela enlouqueceu, brigou comigo, não queria saber do marido. Perguntava que modelo eu ia dar pros meus filhos e eu respondia: “Um bom exemplo, ou seja, a gente fica junto enquanto estiver bom”. Sempre foi assim? Eu vivo em função da paixão, me envolvo, entro de cabeça. Com o segundo marido, decidimos casar e viver juntos três dias depois de termos nos conhecido, num restaurante. Com o último, estive a ponto de largar tudo aqui e ir para São Paulo. E como acabaram os relacionamentos? Saí fora de todos porque pra mim deixou de ser bom. Um dos meus maridos até me disse: “Sabe que nunca


105 imaginei que tu fosses te separar de mim?”. E eu falei: “Pois esse foi teu grande mal” [risos]. Nunca se arrependeu? Não, minha vida não tem retrovisor. Quando era juíza no interior, eu saía das cidades e nunca olhava pra trás. Tinha sido bom? Tinha. Então fui, vazei. É até um vício profissional. Se tu julga uma coisa num sentido, não pode ficar pensando naquilo, senão tu enlouquece. Isso acaba te influenciando, tu começa a agir na tua vida mais ou menos como ages profissionalmente. Depois que decidi, não paro para pensar. Está solteira há quanto tempo? Já faz uns dois anos que não namoro. O último namorado foi tão complicado... Ele dizia: “Homem é homem, mulher é mulher, puto é puto”. Acha que eu posso namorar um homem desses? Tem que ser alguém que eu admire e com quem consiga interagir, falar. Admiro muito quem faz a Suzana Vieira da vida e arruma um garotão, mas não consigo. Hoje estava caminhando com uma amiga e chegamos à conclusão de que não estamos mais a fim de namorar. Acho difícil encontrar alguém que acompanhe o meu ritmo. Eu vou pra praia, agora tenho um casamento lá em Recife, faço palestra aqui, passo uns dias na Itália, tenho esse ritmo. E, em geral, eles também se atrapalham um pouco com a minha visibilidade. Sempre foi uma questão? Teve um que disse que ele era o marido “sem sorte”, em vez de consorte. Uma vez, chegamos num hotel onde eu ia palestrar e ele não encontrou a reserva. Eu perguntei qual nome tinha dado na recepção e ele falou: “O meu”. Mas a reserva estava no meu, né, ele que era meu acompanhante. Desde que começou a militar pela causa gay, perguntam se você é lésbica? Sempre. Eu pergunto se a pessoa está a fim de mim. Se está, eu respondo. Se não, não interessa. Precisa saber a essa altura com quem eu vou pra cama? E por que decidiu deixar a carreira de desembargadora? Em função da causa gay. Esse é um segmento tão sofrido que o legislador, por medo de ser rotulado, não aprova nenhuma lei – além de ter essa bancada evangélica que se junta com a católica, é um grupo monolítico. E, se não tem lei, qual é a tendência do juiz que também é fruto dessa sociedade homofóbica? É não dar direito nenhum. Tem que romper isso. As primeiras sentenças a reconhecer uniões homoafetivas no Brasil foram do Tribunal do Rio Grande do Sul, do qual eu participei. Mas então por que não seguir no Tribunal? Porque as pessoas acham que não têm direito e não procuram a Justiça. Não sabem em que porta bater, acham que os advogados não vão atender, e eles não atendem mesmo. Via processos que entravam mal formulados e perdiam. Aquilo era extremamente frustrante. Então resolvi me aposentar, dez anos antes, e abrir um escritório de advocacia pra colocar na placa “Direito Homoafetivo”. Foi o primeiro do Brasil. De onde vem esse termo? Eu mesma cunhei, para conseguir trazer esses casais para dentro do conceito de família. Família não é só casamento, tanto que existe união estável. Também não é só procriação, tanto que há casais sem filhos, e também não é só sexo, porque hoje existe até procriação sem sexo. Então, o que é? É uma relação de afeto. Como a frase do Antoine de


106 Saint-Exupéry [o autor de O Pequeno Príncipe]: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Por que decidiu ministrar casamentos? Porque é importante. O casamento é um rito de passagem. O que é casar? É assinar um papel. Tu vai lá, assina e sai casado. Mas sai diferente do jeito que entrou. Então faço o documento e a solenidade também. Já viajei a Manaus, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, várias vezes, para celebrar casamento. Já fiz em clubes chiquérrimos, lindos. Num deles, tinha um velhinho que me disse assim: “Eu estava vindo pra cá e pensando... será que vai ter beijo? Aí eu vi: tem que ter, não existe casamento sem beijo”. Ele estava tentando vencer o próprio preconceito. "Em 90% dos casamentos gays que celebro, os pais dos noivos não estão" E como são as cerimônias? Eu vou toda bonita. Peço para a tabeliã ler a escritura, aí pergunto se eles concordam com os termos, ou seja, tem o momento do “sim”. Aí peço para eles dizerem os votos, e para prepararem algo antes para não ter que dizer “na saúde e na doença”, essa coisa horrorosa. Aí eu afirmo para eles: “A partir deste momento vocês estão numa união estável, num estado civil, vocês estão convivendo, e portem sempre com vocês o documento”. Como se sente? Ah, eu adoro. Bem mais que os casamentos héteros a que sou convidada. Eles têm muito cuidado, alguns casais estão juntos há anos, fazem coisas como ter aula de canto para se apresentar na cerimônia. Só tem uma parte triste. Em 90% dos casos, os pais dos noivos não estão presentes. Triste mesmo. É muito. Eu sempre falo com um dos noivos por telefone antes. Teve uma vez em São Paulo que não reconheci ele, de tanto que chorava. Chorou a cerimônia toda. Eu pensava: “Não foi com esse que conversei por telefone”. No final, ele me falou: “Me desculpa ter chorado tanto, mas, sabe o que é, a minha família não veio. Eu convidei todo mundo, e ninguém veio”. Eu tive que dizer: “Mas então quem são essas 400 pessoas que estão aqui, chorando contigo?”. Procurei dizer isso, mas sempre fica uma coisa. É muito raro a família dos dois comparecer. Acha que isso vai mudar? Gays casando e tendo filhos vai ser algo normal no Brasil? Isso está acontecendo e é irreversível. As uniões extramatrimoniais levaram 70 anos para entrar na Constituição, entraram na reforma de 1988. As uniões homossexuais estão percorrendo o mesmo calvário.


107 ANEXO H – Reportagem de capa da edição 129 da revista TPM CASAR É... A melhor maneira de viver? Uma posição social? Uma necessidade? A melhor maneira de viver? Uma posição social? Uma necessidade? Tpm ajuda a entender por que até hoje o casamento é tão desejado pelas mulheres Casar já foi imprescindível (até a metade do século passado), impensável (para os hippies dos anos 60) e careta (nos anos 90). E hoje? Que espaço o casamento, seja de papel passado ou não, ocupa na vida das mulheres em tempos de liberdade de escolha? Dá para priorizar a carreira, bancar as contas com salário próprio, adiar a maternidade, experimentar novos tipos de relacionamento (por que não a três?), curtir os dias sem compromisso. Por mais que existam inúmeras maneiras de tocar a vida, as mulheres ainda acreditam que construir uma história a dois é a melhor opção. Mesmo sabendo das dificuldades, seja por um casamento anterior, seja pela experiência dos pais, seja pela simples observação. Dividir a rotina, o mau humor, os perrengues da casa, a educação dos filhos, as diferenças, a pilha de roupa suja que insiste em crescer... Ninguém diz que é fácil. Dados de uma pesquisa do IBGE divulgada no final de 2012 confirmam que o desejo de se juntar a alguém ainda existe – e muito. As uniões consensuais cresceram quase 10% na última década e os recasamentos também aumentaram. É provável que parte desse crescimento seja resultado da facilidade com que hoje se faz (e se desfaz) um contrato (de união estável), e, por isso, mais casais optam por oficializar seus relacionamentos. Mas há também a estatística dos divórcios – 47% dos casais se separam antes de completar dez anos de união; um em cada cinco não fica quatro anos junto. Impossível negar que o estigma da solteirona não esteja ligado a parte das uniões (feitas e desfeitas), já que ainda hoje uma mulher com mais de 30 anos e sem marido é vista pela sociedade como... fracassada. Afinal, atualmente se casa por vontade ou necessidade? Tpm conversou com quatro mulheres e especialistas para ajudar a entender o valor e o papel do matrimônio hoje. "A brasileira ainda põe um peso muito grande no matrimônio porque não tem outros projetos" (Mary Del Priore, historiadora) Para a psicóloga Giovana Perin, que, em sua tese de doutorado na Universidade de Brasília, estuda o impacto da independência financeira feminina nos casamentos contemporâneos, o conceito de união mudou nos últimos 50 anos tanto quanto a vida das mulheres – e ainda não há um novo padrão estabelecido. “Vejo essa mudança com um olhar positivo. As pessoas ficam juntas por afinidade e por projetos em comum, e não mais porque precisam ser sustentadas ou porque é bom para as famílias”, opina. De acordo com a historiadora Mary del Priore, o período é mesmo de transição, mas exige


108 atenção. “A brasileira ainda põe um peso muito grande no matrimônio porque não tem outros projetos. Na Europa, as mulheres já dividiram sua fonte de felicidade entre o marido, um hobby, um grupo de estudos”, diz. Mirian Goldenberg, antropóloga que estuda o comportamento feminino há 25 anos, também aponta que as mulheres brasileiras concentram seus esforços no casamento e, por isso, têm dificuldade em se sentir realizadas nos relacionamentos. “Elas ainda não sabem o que esperam de uma relação e por isso cobram demais dos homens. O que mais ouço são mulheres reclamando que gostariam que os parceiros fossem mais românticos, mais prestativos, sempre mais. Já dos homens, ouço que gostariam que as mulheres fossem menos estressadas, menos exigentes, sempre menos. É uma diferença muito significativa”, avisa. Para a antropóloga, o caminho das relações mais saudáveis e duradouras depende do valor que a mulher credita a si mesma. “Só assim ela vai parar de procurar autoafirmação no casamento, no aval masculino, e perceber que ela é seu próprio capital. E que tem o poder de escolher se quer casar ou não para ser feliz”, avisa. Em comum, todas observam que há mais chance de dar certo o casamento que é tratado como um contrato livre, firmado pelas duas partes, e que só dura quando os objetivos são constantemente renovados – e agradam ambos os lados. No caso da apresentadora Didi Wagner, 37 anos, refazer a relação com o empresário Fred Wagner, que já dura 15 anos (mais os quatro de namoro), é algo essencial para que o casamento continue dando certo. Filha de pais casados há quatro décadas, ela nunca sofreu pressão para casar e não pensava em se unir cedo a alguém. Mas, aos 22 anos, quando disse sim em uma cerimônia ortodoxa, precisou definir do que não abriria mão para que o casamento funcionasse. Prezar a individualidade e não abrir mão da vida profissional foram decisões acertadas para ela. “Nunca me senti no direito de ler mensagem no celular ou de fuçar o bolso da calça”, conta. E emenda: “Para mim, traição é trair o projeto de vida. Tenho um casamento fechado, mas não digo como as outras pessoas devem viver as suas vidas”. Há sete anos à frente do Lugar incomum, no Multishow (em 2013 com duas temporadas, em países como Turquia e Itália), o programa exige que ela viaje por duas semanas, de tempos em tempos. “O Fred fica numa boa com as meninas [Laura, 9 anos, Luiza, 7, e Julia, 4]. Se tiver problemas na escola, ele resolve sozinho.” Nessa parceria bem-sucedida, Didi não gosta de dizer que o marido é “o homem da sua vida”. “O Fred é a pessoa com quem quero estar agora, não sei se ficaremos juntos para sempre”, solta. Para Didi, outro ponto (100%) fundamental é a vida sexual. “Não é o casamento que acaba com o tesão, é parar de se preocupar em satisfazer o outro”, acredita. Contornar as crises também faz parte.


109 "Não é o casamento que acaba com o tesão, é parar de se preocupar em satisfazer o outro" (Didi Wagner, 37 anos, apresentadora) A mais séria aconteceu há quatro anos e durou seis meses. “É muito difícil morar na mesma casa e se sentir tão desconectada da pessoa”, diz ela, que pensou em se separar nesse período. “Acho que ele também.” Com muita conversa, seguiram juntos, por acreditar que o casamento é feito de reencontros. “São relações que começam e terminam. Nas crises, às vezes você faz força para voltar a gostar da pessoa. Quando me dei conta, estava apaixonada de novo.” A atriz Ingrid Guimarães, 40 anos, conheceu o artista plástico Renê Machado, seu marido há sete, em Campo Grande (MS). Namoraram a distância durante um ano, antes de ele se mudar de vez para o Rio de Janeiro. Até então, Ingrid nunca tinha pensado em morar com um namorado. Muitos dos ex não entendiam sua postura independente e a rotina atribulada de gravações. Renê agia de forma diferente, e ela resolveu encarar a união – apesar de hoje a independência dela ser um dos motivos de discussão do casal. “Ficar casada é mais difícil do que estar solteira”, diz. Ingrid se refere às armadilhas do dia a dia, que podem transformar o casal em apenas amigos ou separá-los mesmo estando casados. “Tem gente que só tem prazer no casamento. Eu não. Tenho prazer com a minha família, com o meu trabalho, e ele também. Então temos que ficar atentos para não deixarmos de ter prazer juntos”, explica. Ela admite ainda que há uma terceira pessoa no relacionamento: um terapeuta. “Convenci meu marido a fazer terapia porque acredito que tem questões que precisam ser tratadas fora”, conta. O que sustenta o casamento? “O sentimento. E essa opção é feita diariamente. Acho que, se me separasse, casaria de novo. Gosto de estar com alguém.”

"As mulheres não têm medo da solidão, elas têm medo do estigma da solteirona" (Mirian Goldenberg, antropóloga) Para a antropóloga Mirian Goldenberg, essa sensação de só se sentir completa a dois não é algo natural, mas alimentado pela sociedade, que continua atribuindo mais valor à mulher casada do que à solteira. “Eu ainda vejo meninas que preferem casar, nem que seja para separar depois, do que ser solteiras. Porque a etiqueta da descasada vale mais do que a da solteira. É uma pena que as mulheres sofram tanto para fazer essa escolha”, diz. Para Mirian, as mulheres ainda não conseguiram se desvencilhar da obrigação de casar e por isso vivem relações infelizes. “As mulheres não têm medo da solidão, elas têm medo do estigma da solteirona. Enquanto isso existir, vão ficar presas a casamentos infelizes porque não se sentem à vontade para viver de outra forma”, acredita. A modelo Michelli Provensi, 28 anos, assume que sente pressão para casar. Do pai, dos amigos... e dela mesma. “Não quero casar na igreja nem assinar


110 documento, mas tenho vontade de construir algo com alguém. E também sempre tive vontade de ser mãe. Modelo sai muito cedo de casa, então chega uma hora em que você quer ter uma família”, explica. Mas admite que na última década, que passou longas temporadas no exterior, não deu abertura. “Via outras modelos com relações a distância e via que não dava certo. Então, se algum cara começasse a gostar de mim, eu fugia mesmo.” Atualmente, Michelli percebe os efeitos colaterais. “Tenho a sensação de que todo mundo já tem mais experiência, está pronto para casar, e eu ainda estou aprendendo a namorar”, reclama. Com muitos amigos prestes a subir ao altar, ela fica mais impressionada com os que já estão se separando do que com os que estão casando: “É triste ver casamentos que duram pouco. As pessoas, mesmo as solteiras, parecem ter pouca paciência. Relacionamento não é algo que se constrói de um dia para o outro”. Esse é para casar Um pouco mais experiente, a chef Bel Coelho, 34 anos, dona do restaurante Dui, admite já ter caído no “golpe” de ir morar junto com um namorado porque queria ter uma família. “Tem que ver se você está realmente apaixonada pelo jeito da pessoa, porque as pessoas não mudam”, explica. Bel conta que já testou relações alternativas, mas nenhuma deu certo. “Cheguei a achar que uma relação a três poderia funcionar como casamento. Me sentia atraída pela mulher e pelo homem, mas os elos não eram tão firmes e não rolou.” Há dois meses, ela decidiu apostar de novo no sonho da família própria, desta vez com o produtor musical Rica Amabis. Bel, que vem adiando uma possível gravidez por causa da carreira, admite que a vontade de ser mãe é tão grande quanto a de ser reconhecida profissionalmente. “Ter família não quer dizer que você não é moderna [risos]. É quase instintivo, né?”, diz. A decisão de ter um filho foi tomada também porque acredita ter encontrado o parceiro ideal. “Já nos considero uma família.” Barriga no fogão Lidia Aratangy, psicóloga de casais e autora de livros como O anel que tu me deste: o casamento no divã, acha que a inclusão do homem na vida doméstica hoje é fundamental para que o casamento seja vantajoso para a mulher (e, portanto, viável). Mas sublinha que não é só o homem que deve mudar sua atitude. “Como ninguém ajudou as mulheres a terem uma carreira fora de casa, elas pensam que eles também têm que batalhar para achar um espaço digno dentro de casa. O certo é que haja uma troca, cada um fazendo aquilo que mais gosta e tem competência.” Até porque a postura feminina de não permitir que o espaço doméstico seja “invadido” gera ainda mais estresse e acúmulo de tarefas, duas das questões femininas apontadas pelos psicólogos consultados. “Me pergunto se as mulheres de hoje são mais felizes do que suas avós por terem tantas opções. O poder de escolha traz mais angústia”, acredita Lidia. Giovana Perin vê com otimismo esse ponto de ebulição. “Pela primeira vez na história, o casamento pode facilitar a vida das mulheres, no sentido de dividir as funções e permitir que elas escolham quais querem exercer. Mesmo não


111 precisando, continuamos escolhendo ficar juntos. A diferença é que só vamos continuar casados enquanto for bom. Olha que maravilha.” "Me pergunto se as mulheres de hoje são mais felizes. O poder da escolha traz angústias" (Lidia Aratangy, psicóloga) BOX DA REPORTAGEM A (não) resposta Entre o casamento mais perfeito e a solteirice mais infeliz existem infinitas possibilidades e formatos de vida afetiva - Por Denise Gallo* Tenho uma amiga que está casada há mais de dez anos e gosta da vida que tem: marido com quem adora viver, conversar e namorar, filhos que adora educar, casa em que adora morar. E tenho uma amiga que está casada há mais de dez anos e sente-se distante do marido, não sabe lidar com a educação dos filhos, irrita-se com a rotina da casa. Uma ama viajar com a família. A outra vive momentos de profundo tédio nessas viagens. A primeira acha que o marido é o homem da sua vida. A segunda sente uma pontinha de inveja da amiga que recém se separou. O detalhe, que revelo com a maior esperança nas relações humanas, é que: as duas são a mesma pessoa. Minha amiga vive tudo isso e muito mais, ao mesmo tempo, na mesma vida. Alguns achariam minha amiga um pouco instável. Perguntariam, emprestando a questão de Freud: o que ela quer, afinal? Mas nada perguntarão, porque a plateia só terá acesso à família perfeita que minha amiga formou, ou melhor, postou. Olhamos a imagem de um casal na rede social e não pensamos que, somente naquele dia, existiram outras 23 horas, 59 minutos e 45 segundos além do instante da foto. Eu mesma, que convivo com minha amiga e sou ouvido atento em seus momentos de insatisfação, idealizo seu casamento. Deve ser por conta das muitas horas de comédia romântica que carrego na memória. Todos aqueles cafés parisienses e nova-iorquinos, aquela edição terapêutica que subtrai da vida a melancolia e o vazio, todos aqueles diálogos em que ninguém jamais diz o que não queria ou simplesmente fica sem ter o que dizer. E, quando fica, sobe o som do Cole Porter e não há mal-estar que resista. Meu ex-marido diz que a minha insistência em morar em um bairro de ruas planas e prédios charmosos, com praças, bancas de revista, cafés e casa de pães, nada mais é do que um projeto de transformar minha vida em uma comédia romântica. Evidentemente, como atesta o prefixo “ex” da frase anterior, o filme não saiu como o esperado. Num plano mais geral, que só pode ter sido desenhado por alguém que nunca se casou, persiste a expectativa de um casamento que supra nossos desejos mais inconciliáveis, de aventura e segurança, emoção e tranquilidade, risco e intimidade, frio na barriga e estabilidade, atração sexual, afinidade de almas, companheirismo, amor e amizade. Tudo com a mesma pessoa, ao mesmo tempo, por muito tempo. Não é à toa que o índice de divórcios venha batendo recordes a cada ano. Muito embora a taxa de recasamentos também não pare


112 de crescer. Ou seja, continuamos tentando… No extremo oposto ao casamento modelo, outra mitologia resiste às mudanças vividas pelas mulheres nas últimas décadas: é preciso estar em um relacionamento para ser feliz. Há algum tempo, em um estudo sobre mulheres solteiras, investiguei, entre outras coisas, como elas eram representadas na mídia. Basicamente, mulheres eufóricas, “curtindo a vida adoidado”, enquanto o príncipe não vem resgatá-las do fantasma da solidão. Ser solteira seria bom somente com a perspectiva de deixar de ser o mais rápido possível. Lembrome de uma reportagem que apontava as cidades brasileiras com o maior número de mulheres solteiras, cujo título já dizia tudo: “Capitais da solidão”. Alô, solteiras: esqueçam seus amigos, familiares, filhos, casos, ficantes e repitam comigo: solidão, solidão! Bom é pensar que, entre o casamento mais perfeito e a solteirice mais infeliz, existem infinitas possibilidades e formatos de vida afetiva que somos livres para desenhar e redesenhar. Quem vai definir esses formatos? O questionário do IBGE, com as quatro opções que oferece para a natureza das uniões (civil e religiosa, só civil, só religiosa ou consensual)? Ou cada história de amor, em particular, da forma e no tempo que convier? *Denise Gallo é pesquisadora, mestre em comunicação e semiótica e dedicase ao estudo das representações da mulher na mídia e na Publicidade


113 ANEXO I – Capa da edição 130 da revista TPM


114 ANEXO J – Editorial da edição 130 da revista TPM FAÇA AMOR, NÃO FAÇA HORA EXTRA Chega de botar o pau na mesa: as mulheres estão transformando o trabalho Você não precisa trabalhar que nem homem: para que se conformar com tão pouco? O modo testosterônico de ganhar o pão de cada dia (e quem sabe um brioche de bônus) é uma invenção da era industrial. Com processos rígidos e hierarquia militar, linhas de montagem e escritórios fabricaram o progresso e o estresse. Assim como o motor a vapor, essa lógica de produção ficou obsoleta. O filósofo Roman Krznaric, entrevistado na reportagem “Pau na mesa pra quê?”, resume em seu livro Como encontrar o trabalho da sua vida a pandemia de insatisfação nas empresas. “Um estudo em vários países europeus demonstrou que 60% dos trabalhadores escolheriam uma carreira diferente se tivessem a opção de começar de novo”, aponta. “Nos Estados Unidos, a satisfação no trabalho está em seu menor nível – 45% – desde que essas estatísticas começaram a ser compiladas duas décadas atrás.” E adivinha quem costuma ficar com as piores mesas desse ambiente insalubre? As mulheres. De acordo com o último censo, elas recebem salários 30% menores que os homens com funções equivalentes e ocupam 20% dos cargos de chefia. A desigualdade cresce no tempo dedicado às tarefas domésticas, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho: 26,6 horas semanais delas para 10,5 deles. (Dez horas e meia?! Três para lavar o carro, cinco para preparar o churrasco, duas arrumando os CDs e meia hora para enxaguar a própria escova de dentes após o devido uso. Bom, é só um parêntesis sem base estatística nem valor científico.) Se você achava que a revolução digital seria capaz de liquidar rapidamente os antigos vícios industriais, as notícias do departamento de RH do Vale do Silício são desanimadoras. Praticamente só tem homem trabalhando por lá – entendeu por que tanto fliperama nas “salas de descompressão”? E algumas das raríssimas mulheres em posição de liderança ainda têm se comportado como homens. Exemplo? A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, oferece uma explicação torta para a ausência de mulheres no topo dos organogramas: elas, ao contrário dos homens (e dela própria, por supuesto), não colocam suas carreiras como prioridade absoluta de vida. As malucas teimam em perder tempo com filhos, família, amigos, saúde, lazer e outros detalhes desimportantes, e aí adeus promoção. Só que esse não é o problema. É a solução.


115 Justamente por se importarem com o que acontece além do expediente, as mulheres podem não apenas ocupar seu espaço nos negócios, mas transformar nossa relação com o trabalho. Transformar o trabalho. Igualdade profissional é mais uma batalha na guerra corporativa. A luta continua até que o modelo de trabalho masculino, que vem gerando frustração e medo em todos os níveis e departamentos, dê lugar a um outro, mais feminino, acolhedor e flexível. Faça amor, não faça hora extra. Fernando Luna, diretor editorial


116 ANEXO K – Entrevista ping-pong com Delaíde Miranda Arantes DELAÍDE MIRANDA ARANTES Ministra do Tribunal Superior do Trabalho e ex-doméstica: "temos que trabalhar em dobro pra provar que somos boas" Nos anos 50, Delaíde Miranda Arantes era uma menina pobre da zona rural de Goiânia. Nos anos 60, uma empregada doméstica. Hoje é Ministra do Tribunal Superior do Trabalho “Onde está a ministra?” Os funcionários de um hotel de luxo no Rio de Janeiro, onde acontece um seminário sobre direito trabalhista, apontam imediatamente para uma sala. Dentro daquele ambiente cheio de garçons e pessoas sérias, Delaíde Miranda Arantes é autoridade máxima. Motivo: aos 60 anos, ela é uma dos 27 ministros do Tribunal Superior do Trabalho (cinco são mulheres), o equivalente ao STJ, na área do direito trabalhista. O ponto mais alto da carreira de um advogado. Foi indicada pelo ex- presidente Lula. Trabalha em uma sala de 100 metros quadrados, comanda 40 empregados, tem três secretárias, motorista particular. Esqueça qualquer imagem de figura sisuda que se masculinizou por alcançar o poder. Essa jovial senhora sexagenária é vaidosa. Demais. Usa as unhas pintadas de rosa e um colar que chama a atenção. Se movimenta rápido e pega o celular para exibir fotos de seus três netos pequenos. “Vou te convidar para ser minha amiga no „Face‟”, diz ela.

"As domésticas vão diminuir no Brasil, mas eu acho isso ótimo. É sinal de progresso" Agora a história de vida por trás da figura pública. A ministra, que convive hoje nas altas rodas de poder (“A Dilma esteve outro dia no Tribunal”), foi criada na roça, na zona rural de Pontalina, a 130 quilômetros de Goiânia. É filha de um agricultor e de uma dona de casa, em uma família com nove irmãos. Para “sair da roça” e realizar seu maior sonho de vida (estudar), ela trabalhou como empregada doméstica por duas vezes. A primeira quando tinha 16 anos. A segunda aos 20 e poucos, para pagar seus estudos em Goiânia. “Tem gente que experimentou uma ascensão social muito grande e se tornou uma pessoa revoltada. No meu caso não. Sou grata a tudo o que vivi.” Vida de doméstica Não por acaso, ela é especialista em legislação de empregadas domésticas. Lançou o livro O trabalho doméstico – Direitos e deveres, dirigido a empregadores e empregados, e estudou o assunto por mais de duas décadas. Como ministra, esteve no congresso em Genebra, em 2011, que estabeleceu pela primeira vez uma lei trabalhista mundial para os empregados domésticos, que são a maioria dos empregados no Brasil, conforme ela explica. Na ocasião,


117 contou sobre sua situação de campo, cozinhando, ajudando a cuidar de crianças. Delaíde já militou no Partido Comunista e diz querer uma vida socialista. “Não podia ser diferente depois de tudo o que passei. Vejo meus amigos de Pontalina, que não puderam estudar por causa da desigualdade social que existe no país.” Ainda sonha com um mundo em que as empregadas domésticas sejam tratadas como “trabalhadoras normais” – graças à PEC (Proposta de Emenda à Constituição, com aplicação imediata, que dá às empregadas o direito de terem hora extra e jornada de oito horas diárias), que foi aprovada por unanimidade na sua primeira votação no Senado (e seguia, até o fechamento desta edição, para a votação em segunda instância), e ao documento assinado em Genebra, que reconhece a profissão como “as outras”. “Sim, as domésticas vão diminuir no Brasil, mas eu acho isso ótimo. É sinal de progresso. Se as madames ficarem chateadas, problema delas. Vão ter que se adaptar.” Isso significa pagar hora extra, cumprir jornada de trabalho e não praticar discriminação. “Separar comida de empregada da comida da casa é assédio moral”, ela explica. Tudo sem rancor. Com voz doce. Ela usa a mesma voz doce para avisar que nós, mulheres, estamos ferradas. Ainda ganhamos menos. Temos que trabalhar mais para alcançar posições de chefia e trabalhamos 26 horas por mês em média cuidando da casa. Ela conta todas essas más notícias sorrindo e fazendo piada. “Homem ajuda em casa, mas é cuidando do carro da família”, ela ri. Ódio aos homens? Imagina! Ela é casada há 20 anos com o segundo marido, o ambientalista e ex-deputado Aldo Arantes (do primeiro casamento teve Patricia, 32 anos, e Lorena, 30), e define a sua vida com uma frase característica (e otimista): “A minha vida é uma delícia”. “Lembro de pedir a Deus todas as noites para que ele me ajudasse a estudar” Tpm. Como foi a sua infância? Delaíde Miranda Arantes. Tive uma infância muito feliz. Morava na zona rural, mas sempre tive desejo de estudar. Desde quando tinha uns 7 anos lembro de pedir a Deus todas as noites para que ele me ajudasse a estudar, porque era muito difícil. Meu pai, que era agricultor e uma pessoa muito humilde, me dizia: “Não adianta, você não vai poder estudar, não tenho condições financeiras para isso”. Na roça o estudo ia só até o quarto ano. A minha mãe conta que acordava de noite e eu estava estudando com luz de lamparina. Acordava com o nariz todo sujo. Hoje você é uma ministra que mora em Brasília. Ainda é próxima da sua família de origem? Meu pai tem 84 anos e minha mãe, 79. Eu vou vê-los todo mês, às vezes mais de uma vez. Não dá para esperar quando tenho saudade deles. E a gente não tem pai e mãe a vida toda. Somos nove irmãos, alguns ainda moram em Pontalina, e sou muito ligada a eles. Tenho mais de 20 sobrinhos.


118 Como você deu seus primeiros passos para conseguir estudar? Saí da zona rural com 14 anos para estudar. Fiz até o quarto ano primário em uma escola rural. Aquelas escolas onde o professor dá aula para a primeira à quarta série na mesma sala. Meu professor dessa escola foi na minha posse [como ministra do Tribunal Superior do Trabalho], uma gracinha. A minha mãe trabalhava em casa. Eu aprendi a cozinhar tão pequenina que subia em uma banquetinha para cozinhar no fogão a lenha. Como conseguiu sair desse ambiente de falta de recursos e se tornar ministra? Deus atendeu às minhas preces e fiz a minha parte com as minhas ações. Na primeira fase, trabalhei como doméstica em Pontalina, com 16 anos. Esse trabalho tinha o objetivo de custear os estudos. Depois fui recepcionista de um consultório médico. Depois fui para Goiânia e fiquei uns seis meses trabalhando como empregada doméstica, também para custear meus estudos. Trabalhei em casa de construção, em escritório de advocacia, como secretária e acabei conseguindo virar secretária executiva. Como foram suas experiências como empregada doméstica? A primeira foi muito boa. Quando fui trabalhar na casa deles, não tinha experiência. Meu passado era na área rural. Meu patrão era contador de um banco, o que era quase equivalente ao status do juiz do banco [risos]. E a minha patroa era diretora de escola primária. Eles eram meu espelho. Parâmetros do que eu queria ser. Eles foram meus padrinhos de casamento e meu padrinho até hoje me diz: “Não entendo por que fui tão importante para você”. Mas, gente, eles, além de me tratarem bem, eram meu espelho. O que você fazia? Cuidava de criança, cozinhava. Mas minha patroa me ensinou muito. Minha casa era muito simples na zona rural. Ali tinham móveis, utensílios, coisas que eu nem conhecia. E vou te contar uma coisa, minha experiência como empregada doméstica me fez ser uma dona de casa exigente. Porque sei passar, sei fazer cama, tudo. Então, se alguma coisa está malfeita, eu reclamo. Mas sem cometer assédio, viu? A minha segunda experiência como doméstica foi diferente. Uma das pessoas da casa era muito exigente. Tudo o que eu fazia era ruim. Mas as outras eram legais. Era uma casa que pais de Pontalina alugaram para manter as filhas em Goiânia. E elas ajudavam. Eu tinha um quartinho, que não chegava a ser um quartinho de empregada. "Às vezes, quem experimenta uma ascensão social fica revoltado. No meu caso não" E por que você decidiu ser advogada? No interior, as opções culturais e de lazer são muito poucas. A cidade tinha uma sala de cinema e as festas anuais da Igreja católica. Boa parte da população lotava as sessões dos tribunais de júri. Achava aquilo lindo. E tinha a figura do juiz de direito. A gente falava: “Ali é a casa do juiz”. Essa era uma figura muito respeitada, que chamava muito a atenção de uma criança, de uma mocinha. Acho que foi por isso que me tornei advogada.


119 Você era empregada doméstica e hoje é ministra. Qual o choque causado por essa mudança? Às vezes, a pessoa que experimenta uma ascensão social dessas fica revoltada. No meu caso não. Foi uma infância muito feliz, uma juventude feliz. Eu tenho muitas lembranças boas. Outro dia me perguntaram como eu definiria a minha vida e respondi: “A minha vida é uma delícia” [risos]. E como é o seu trabalho no Tribunal? Ocupo a vaga da advocacia. Advoguei por 30 anos. É uma experiência muito interessante. Quando vou examinar um processo, é muito importante a minha ótica de vida e de experiência de campo. O Tribunal Superior do Trabalho cuida das causas que são julgadas nos tribunais regionais e tem decisões que contrariam a Constituição. Trabalho escravo, trabalho infantil, negociação sindical, isso tudo. E tem um volume muito grande de casos. Sou uma dos 27 ministros e julgo por mês cerca de 900 processos. São todos os tipos de questões. E como foi seu envolvimento com o direito das trabalhadoras domésticas? Pesquisei isso por 20 anos e escrevi um livro chamado O trabalho doméstico – Direitos e deveres [1995]. É dedicado a ambas as partes, para orientar empregadores e empregados. E o que você aprendeu com isso? Acho que existe um histórico de discriminação contra as domésticas. Em 1943, tivemos a primeira lei trabalhista e os trabalhadores domésticos foram excluídos da Constituição. Em 1972 veio uma lei outorgando alguns direitos aos trabalhadores domésticos: salário, férias de 20 dias e só. E em 1988, depois de muita discussão, passeatas, novamente os trabalhadores domésticos foram excluídos da nova Constituinte. Mais de 20 direitos dos trabalhadores entraram na Constituição. Desses, apenas oito ou nove foram dados aos domésticos. Os trabalhadores domésticos foram discriminados! De 1988 até 2006 foi discutido nos tribunais trabalhistas o direito de a mulher ter garantia de emprego por gravidez. Essa lei só veio em 2006. Eu coloco isso no meu livro. Gente, não importa se a mulher é doméstica, executiva ou ministra. Se ela ficou grávida, isso tem que ser um direito para a mulher. Eu posso dizer até na linguagem do direito que está em jogo um serviço para a sociedade. Se essa mulher perder o emprego, como fica a criança? Isso é completamente absurdo e injusto! E só em 2011 foi aprovada em Genebra a implementação dos direitos dos trabalhadores domésticos. A lei ainda não foi ratificada. Mas isso tem que ser executado agora em caráter de emergência. Porque isso trata de direitos humanos. O que vai mudar na vida das empregadas domésticas daqui para a frente? Vai mudar a jornada. Dormir no trabalho passa a ser parte da jornada. Elas também terão fundo de garantia. E temos a PEC [Proposta de Emenda à Constituição, com aplicação imediata, que dá às empregadas o direito de terem hora extra e jornada de oito horas diárias], que acaba de ser aprovada. Às vezes me perguntam: “As pessoas vão ficar desempregadas?”. Não, não vão ficar! Se alguém vai ser prejudicado, serão os empregadores. Ontem conversava no avião com uma pessoa que tinha três empregadas. Ela vai ter que reduzir para uma. Mas, como vivemos uma situação de pleno emprego no país, vai haver uma absorção delas pelo mercado de trabalho. Não vai ter um


120 desemprego em massa, garanto. Mas não tem nada que justifique que a maior categoria de trabalhadores do Brasil, de 7 milhões de pessoas – e o Brasil tem o maior número de domésticas do mundo –, seja tratada como subcategoria. O quanto isso está arraigado na sociedade? Quando voltei de Genebra fui visitar uma amiga e um homem me serviu um café e um pão de queijo. Dez da noite veio o mesmo homem me servindo um café. Ela falou: “Como vamos ficar, você que veio de Genebra?”. Ora, ela vai ter que pagar dois turnos para esse trabalhador. E os salários no Brasil são muito baixos. Além do problema da jornada, muitas patroas, por exemplo, separam a comida das empregadas da que se come na casa, e as proíbem de comer em restaurantes. Isso é crime? É discriminação mudar a comida. É discriminação não levar uma babá em um restaurante [agitada]! Mas no nosso país não temos legislação que garanta o emprego. Então, a pessoa fica com medo de reclamar. Mas a babá se dá por satisfeita por poder comer alguma coisa, mesmo que seja diferente da que ela serve para a criança. Isso é assédio moral? É, é assédio moral, sim. Uma babá poderia processar. Mas acho que isso vai melhorar aos poucos, com a sociedade avançando, estudando mais e ficando mais consciente. E na vida das mulheres de classe média, como fica o trabalho doméstico? Temos a chamada dupla jornada. Não acho nem que é dupla, é tripla, quádrupla [risos]. A divisão de tarefas em casa é um assunto muito sério. A mulher ocupa 22% de seu tempo com afazeres domésticos e da família. O homem, 9%. E eu brinco que esses 9% do homem são gastos no tempo que ele passa limpando o carro com os filhos[risos]. Se eu entro em casa com meu marido em um sábado, com o jornal, adivinha quem vai ler o jornal? Ele, né? Porque sábado de manhã eu tenho uma série de cuidados com a casa, cuidado com as plantas, ver se está tudo bem. Temos que ensinar isso para nossos filhos e para nossos netos. Para que os meus netos não achem que eles não vão poder lavar prato. Precisamos mudar isso, para que melhore a vida da mulher. Poderemos estudar mais, viver mais. E como é a situação da mulher no mercado de trabalho? A mulher ganha menos que o homem. O padrão do Brasil é de 14% a menos. Mas se o cargo é alto, como uma engenheira, uma advogada, a diferença é de 40%. Quanto maior o cargo, maior a diferença. No serviço público, por exemplo, o salário é igual. A diferença é que o homem é mais promovido, chega mais às posições de poder. No serviço judiciário, nas posições de poder, apenas 18% são mulheres. Poder é coisa de homem, né? "É discriminação não levar uma babá a um restaurante" Além de ganhar menos, temos que trabalhar mais para provar que somos boas? Sim, temos que provar mais. Temos que trabalhar o dobro para provar que somos tão boas quanto eles, o que é absurdo. A gente acaba se esforçando mais no tempo em que está trabalhando. No escritório, você tem que trabalhar mais, em casa também... Olha que maravilha [risos].


121 Como você lida com a jornada dupla e tripla de trabalho na sua vida? Consegue relaxar? Eu procuro uma alternativa. Vou ao cinema nos fins de semana. E vou ficar com meus três netos em Goiânia, vou para o parquinho com eles. Minha filha fala: “Você deve sentir falta da estrutura de Brasília”, mas não. Sim, tenho três secretárias, motoristas, mas quando chego em casa eu sou avó. Pego o carro, dirijo, esqueço que sou ministra. Como você se sentiu quando soube que tinha virado ministra? Sou ministra há dois anos. Fiquei muito feliz. Eu estava no trabalho, em Brasília. Quando recebi o telefonema, nossa, passou todo o filme da minha vida na cabeça. Era toda uma sorte de pessoas que me ajudaram, que aconselharam meu pai a me deixar sair da roça, tanta gente, tanta coisa que até me assustou. Foi muito, muito emocionante. Você chorou? Ministra chora no trabalho? Não chorei, acredita? Nem no dia da minha posse. Eu não sou muito de chorar, sabia? Como seus pais reagiram quando você virou ministra? Meus pais ficaram muito orgulhosos e me incentivaram muito. Minha mãe foi à posse, meu pai não porque ele tem mal de Parkinson. Depois ele foi a meu gabinete, que é muito bonito, tem uma vista linda para o lago Paranoá. E ele perguntou: “Quantas pessoas trabalham nesse gabinete?”. E levou um susto quando eu falei que era só eu [risos]! Hoje você ajuda os seus pais? Sempre tive a noção de que nasci em condições de poucos recursos financeiros e que precisava vencer. Uma das razões para isso era poder dar uma vida melhor para os meus pais. Cuido deles. Comprei uma casa para eles antes de comprar meu primeiro apartamento, minha casa própria. Graças a Deus hoje eles têm uma vida tranquila. E, no meio de tanto trabalho, sobra tempo para namorar? Estou casada há 20 anos com o meu atual marido, que é ambientalista. Ele se chama Aldo Arantes, foi perseguido pela ditadura militar, preside uma ONG e é uma pessoa maravilhosa. Me separei com minhas filhas pequenas. Falei para uma amiga: “E agora, como vou cuidar dessas meninas, uma de 5 anos e outra de 7?”. E ela falou: “Que diferença vai fazer?” [risos]. Mas psicologicamente fazia. Casei dois anos depois e meu ex-marido ajudou também, do jeito que homem ajuda, né [risos]? Minhas duas filhas são maravilhosas, fantásticas, as duas também são advogadas trabalhistas. Em um determinado momento conquistei uma independência profissional. E abri um escritório em Goiânia. Hoje as minhas filhas cuidam dele. É muito bom. Elas e dois irmãos meus. Tudo em família, uma maravilha. Ainda existem muitos casos de assédio sexual e moral contra mulheres? Existem, sim, muitos casos de assédio sexual, e sempre contra as mulheres. Quando fui secretária, isso era muito comum. Tivemos um caso muito interessante. Éramos sete secretárias. E tinha um gerente de banco que cada vez convidava uma das secretárias para almoçar. Fizemos um plano, o convidamos para almoçar com a gente, as sete [risos]. Ele teve que pagar o almoço para todas e nunca mais nos convidou.


122 Essa linha do assédio é tênue, né? A linha é tênue, sim. Geralmente, quando existe uma denúncia de assédio, é assedio mesmo, na maioria das vezes. O que caracteriza muito é a subordinação hierárquica. Se um secretário convida uma secretária para sair, não é assédio. Mas, quando existe uma posição hierárquica grave, que a pessoa pode ser prejudicada, aí é assédio mesmo e deve ser denunciado. E o assédio moral, é mais em cima das mulheres? Esse é outro assunto muito sério que precisa ser denunciado. A pessoa que é assediada fica muito desmotivada, se sentindo por baixo. Além de ficar com medo de perder o emprego. O assédio moral faz um mal psicológico muito grande para a pessoa. E o assédio moral é mais em cima da mulher, porque ela é mais vulnerável. E nesses casos é possível tomar uma medida contra a empresa e contra a pessoa também. Por danos morais. "O assédio moral é mais em cima da mulher, porque ela é mais vulnerável" Além de advogada, você tem algum envolvimento político? Tenho uma história de militância política no PC do B. Me desfiliei para tomar posse do meu trabalho no Tribunal. Mas fui militante por 20 anos. Antes era simpatizante do PT. Gosto de política desde criança. Meus avós eram Arena e eu e meu pai, MDB[Movimento Democrático Brasileiro]. Sempre fui apaixonada pelo Juscelino Kubitschek, acho que ele foi um dos grandes presidentes que o Brasil teve. A minha condição, de ter lutado tanto para poder estudar, ver vários amigos meus que ficaram até hoje na roça porque não tiveram como sair de lá, não puderam estudar, me fez pensar nas injustiças. Sempre soube que não podia lutar só por mim, que tinha que lutar por um mundo menos desigual. Você se considera comunista? Não sou mais filiada ao Partido Comunista. Mas a minha visão socialista do mundo continua. Eu quero um mundo mais socialista, sim. Quando defendo os profissionais domésticos, quando defendo trabalhadores, isso é por razões sociais. Você está arrumada, de unha pintada de rosa. É muito vaidosa? A vaidade eu herdei da minha avó materna. Ela era uma mulher impressionante para a época dela. Faleceu com 70 e poucos anos e deixou um estoque de cremes antirrugas. Meu genro, que está casado com a minha filha há cinco anos, diz: “Nunca vi minha sogra desarrumada”. Eu trabalho muito em casa, mas, mesmo assim, arrumada. Passo uma maquiagem leve, ponho uma roupa boa. Não consigo trabalhar em casa de camisola, por exemplo. Você é consumista? Não sou muito compradora. Gosto de colar, de brinco, de bolsa. Mas não tenho um guarda-roupa grande. Contribuo com instituições, com a minha família. Isso seria até incompatível com o que acredito. Gosto de um bom sapato, de uma bolsa, mas tenho poucos, claro. Porém vou sempre ao dermatologista, ao cabeleireiro. E como cuida do corpo, faz esporte? Emagreci 30 quilos. Operei o estômago. Sempre fui magra, mas em dez anos engordei 30 quilos por causa de um problema na tireoide, que ainda tenho que operar. Então, tenho que me


123 cuidar. Não precisei fazer plástica depois porque parti para a malhação. Só fiz uns tratamentos no rosto. Acordo às seis da manhã e vou para a academia, eu e meu marido, três vezes por semana. Ir para a academia na minha idade é uma exigência médica. Como é a sua rotina? Chego no Tribunal nove e meia e saio lá pelas oito horas. E sempre levo trabalho para casa. E ainda faço um curso de direito constitucional e estudo inglês. O inglês é o que está mais mal resolvido na minha vida. Tento fazer uma aula por semana e não consigo. Claro, não pude estudar inglês jovem. Hoje, se viajo, não passo fome. Mas para falar em eventos, por exemplo, preciso de intérprete. E dá para tirar férias e desligar? Tenho uma capacidade de fazer mudanças muito grande. Consigo mudar. Quando estou na casa da minha mãe, sou só filha e sobrinha das minhas tias da zona rural. Se eu estou com as minhas filhas, sou mãe. Com meus netos, sou uma avó babona. Não sou ministra o tempo todo. E costumo tirar férias, sim. Gosto de passear, de sair. E tenho uma preferência por lugares boêmios, como Paris, Veneza. Gosto de festa. E, quando bebo, tomo um uísque, mas pouco. Quando vou a uma festa de casamento com meu marido, ele quer ir embora às 11 horas, já eu quero ir embora uma e meia. Você disse que rezava muito para Deus para conseguir estudar. É uma pessoa religiosa? Sou evangélica desde os 15 anos de idade. E vou até hoje à igreja rezar. E isso me faz muito bem. Em Goiânia, o Partido Comunista deve ter 30%, 40% de evangélicos. Nem todo comunista é materialista. Eu às vezes tenho conflitos na igreja, claro que destoo de algumas questões. Mas incompatibilidade completa eu não tenho e nunca tive. Você é evangélica e feminista. Isso faz você ser contra ou a favor da legalização do aborto? Se eu sou a favor? Eu não sou contra. Acho que a mulher que tem que decidir. A Igreja não deve se meter com isso nem o Estado. Se a religião dela não atingir isso, qual o problema? A mulher que tem que decidir. Ninguém tem nada a ver com isso mais do que ela. O que você acha da presidenta Dilma? Gosto muito da presidenta. Ela é uma mulher extraordinária. Sou fã dela. Ela tem um outro olhar para o Brasil, para o social, para os excluídos. Claro que ainda tem muito o que fazer. Mas já é um outro olhar. Você chega no aeroporto hoje e tem todo tipo de gente. Tem quem reclame, mas eu acho isso lindo. Ver uma senhora calçando chinelo no aeroporto, tem quem não goste. Mas o nome disso é inclusão. E você tem empregada doméstica? Sim. Hoje, tenho uma diarista na minha casa em Goiânia e uma em Brasília. Quando minhas filhas eram crianças, tive empregadas que cuidavam da casa e olhavam as meninas, mas não dormiam. Fiz questão que todas elas fizessem faculdade. Minhas filhas diziam: “Você trata melhor as empregadas do que a gente”. Mas, pela condição social delas, elas precisavam mais de mim.


124 ANEXO L – Reportagem de capa da edição 130 da revista TPM PAU NA MESA PRA QUÊ? Como as mulheres podem mudar o mundo do trabalho? O mundo do trabalho foi desenhado pelos homens. Pelo número de reclamações, não tem funcionado bem. Como as mulheres, que ganham cada vez mais espaço nas empresas, podem mudar essa situação? O censo de 2010 poderia vir com um tapinha nas costas das mulheres. Elas têm a maioria dos diplomas de 15 dos 20 cursos universitários mais populares do país, incluindo medicina e administração. Também têm mais pósgraduação, segundo pesquisa da agência de contratação Catho. Só que, apesar da melhor formação, seguem empacando em cargos mais baixos e ganhando menos que irmãos e maridos. A situação já era assim em 2000, quando o censo anterior foi divulgado. A novidade é, justamente, que pouco mudou desde então. Em 2012, a consultoria de contratações Michael Page mapeou os salários, em cargos de gestão, maiores que R$ 8 mil no Brasil. Constatou que 72% caem na conta bancária dos homens. Que o mercado é sexista, a maioria dos especialistas já reconhece. Mas uma nova corrente de pensamento diz também que falta às mulheres ambição e, principalmente, saber negociar carreiras que se encaixem em suas vidas. É o que defende a diretora de operações do Facebook, a americana Sheryl Sandberg, no livro Faça acontecer (Companhia das Letras), que chega este mês às livrarias brasileiras. Sheryl diz que, ainda muito jovens, as mulheres fazem escolhas de carreira que beiram o autoboicote. “Por exemplo, quando são advogadas em um escritório e pensam: „Não sei se devo me tornar uma sócia, porque vou querer ter filhos um dia‟.” Fazer escolhas precipitadas, diz ela, é o pior caminho. “Se voltar a trabalhar depois de ter filhos for opcional, você só vai fazê-lo se o trabalho for atraente. Mas, se anos antes você parou de se desafiar, a essa altura já vai estar entediada.” Ela admite que as mulheres não cavam o próprio buraco por burrice. Estão, na maioria das vezes, prevendo a sobrecarga causada por trabalho, casa e filhos. Sheryl chama a atenção para o fato de as americanas empregadas em tempo integral fazerem o dobro de trabalho doméstico que seus maridos. Mas, no Brasil, o número é pior: fazem quase três vezes mais que os companheiros (26,6 horas semanais contra 10,5 deles), segundo a Organização Internacional do Trabalho. Mas a sensação de sobrecarga não é nem de longe exclusividade das casadas. E a culpa também não é toda do acúmulo de funções imposto pelas empresas. Estar ocupado, de alguma maneira, virou algo positivo para a nossa imagem nos últimos anos. “Temos a ideia equivocada de que a atividade vai nos fazer felizes”, diz à Tpm o filósofo australiano radicado em Londres Roman Krznaric, especialista em empatia e autor de Como encontrar o trabalho da sua vida (Objetiva). “Mas isso pode ser uma distração de coisas que


125 realmente importam na vida, como viver no presente e focar na qualidade das experiências mais que na quantidade.” Por causa do trabalho, diz Roman, negligenciamos família, amigos e a própria saúde (leia o boxe de Nina Lemos na página 43). “Há tantas pessoas tentando desesperadamente chegar ao fim do mês e pagar suas dívidas que trabalhar muito é visto como algo necessário e justificável”, afirma, para em seguida completar: “Por outro lado, é extraordinária a obediência que damos ao nosso empregador, quando muitas vezes somos tratados como peças anônimas da engrenagem, podendo ser rebaixados ou demitidos a qualquer momento. Nossos amigos e familiares não nos tratam de forma tão desumana (ao menos não normalmente)”. Para a socióloga Bila Sorj, especialista em relações de trabalho e desigualdade de gênero, equilibrar a vida pessoal e o trabalho é o maior desafio das mulheres brasileiras hoje. Ela desdenha a ideia de que, na maioria dos lares, as mulheres optam por centralizar as tarefas, irritadas com uma pretensa “incompetência masculina” para lavar louça ou varrer a casa. “O que existe é uma grande resistência da parte dos homens em aprender essas tarefas. Claro que as mulheres se irritam e tomam a vassoura deles. Mas acho muito engraçado que os homens consigam aprender a manejar programas complexos de engenharia e, ao mesmo tempo, sejam incapazes de fazer montinhos de sujeira quando varrem o chão”, cutuca. "Trabalhar muito é visto como algo necessário e justificável" Roman Krznaric, filósofo Rainha do lar Seus levantamentos mostram que, nos anos 1980 e 1990, as brasileiras contaram com uma boa ajuda em casa para entrar no mercado de trabalho, mas não foi a dos maridos. “A empregada doméstica foi a grande propulsora das mulheres de classe média. Permitiu que elas [as patroas] ocupassem posições, neutralizando o peso das tarefas da casa.” Mesmo assim, diz Bila, muitas mulheres seguem priorizando os cuidados da casa por pura falta de alternativa. “Há uma correlação muito forte entre o formato da família e o tipo de emprego. Não à toa, mulheres não casadas conseguem empregos melhores”, diz. A estudiosa acha que a coisa não vai melhorar sem políticas públicas. “Não é mais possível resolver de forma privada. Precisamos de creche, pré escola, escola em tempo integral. Não há país desenvolvido no mundo em que as crianças permaneçam apenas quatro horas na escola”, afirma.

"Nenhuma mulher consegue fazer tudo. Nenhum homem consegue. Nenhum humano consegue" Debora Spar, cientista política


126 O filho é mais dela? Essas medidas seriam mais eficazes, acredita a socióloga, do que a flexibilização da carga horária, o que ela vê como um tiro no pé. “O caminho errado que muitas empresas estão tomando é criar „tempo parcial‟ para as mulheres. Só que são cargos sem carreira, sem investimento em capacitação. Sob pretexto de auxiliar, acabam criando uma trabalhadora de segunda categoria”, critica. Outra coisa que traria equilíbrio às famílias, defende a pesquisadora, são licenças-maternidade e paternidade conjugadas, em que pai e mãe podem dividir uma folga mais longa como preferirem. “Mas sem transferência. Se o homem não usa a parte dele, a família perde o benefício.” É assim que funciona na Suécia, onde os casais têm 16 meses para dividir como quiserem, desde que cada um use no mínimo dois. Para a psicóloga americana Toni Schmader, autora do estudo, na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, sobre a transmissão de valores de pais para filhos, um mundo em que homens e mulheres lavam – literalmente – a roupa suja só pode ser construído com bons exemplos. Toni e outros três colegas entrevistaram 625 pais e filhos de 7 a 13 anos para entender como as crianças enxergam os papéis de homens e mulheres. Se surpreenderam ao constatar que, entre as meninas, as atitudes do pai eram fundamentais para a cristalização de valores. Se o pai ajudava pouco em casa, suas filhas tendem a entender os cuidados com a família como algo feminino, enquanto veem o trabalho remunerado como masculino. Isso ocorreu mesmo em famílias que defendiam um discurso igualitário, mas que, na prática, não o aplicavam. Os especialistas concordam que não há avanço no horizonte das mulheres sem um maior equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho. Mas isso passa, também, por diminuir expectativas e não aceitar a pressão de ser ótima em tudo. “As mulheres de hoje cresceram ouvindo que são capazes de qualquer coisa. A mensagem é reiterada nas escolas, na mídia, nas famílias”, diz Debora Spar, presidente da escola para mulheres Barnard College, filiada à Universidade Columbia, de Nova York. “O fracasso é um dos maiores medos das mulheres e, com tanta pressão para ser perfeita, não surpreende que estejam tentando „ter tudo‟, mesmo que isso não seja realista ou satisfatório”, afirma Debora. “Nenhuma mulher, por definição, consegue fazer tudo. Nenhum homem consegue. Nenhum humano consegue.” Ter prazer no trabalho pode ser uma meta de carreira Dia típico no trabalho de Clarice Falcão, 23 anos: gravar um episódio da do programa veiculado na internet Porta dos fundos, em que atua, posar para a capa do seu primeiro disco, Monomania (previsto para o fim de abril), dar entrevista à Tpm e ver um filme com o namorado, o também ator e roteirista Gregório Duvivier, 27. “Às vezes, estou no cinema e pensando no filme que poderia fazer”, diz, explicando por que tem dificuldade em separar trabalho de vida pessoal. Do mesmo jeito que o dia a dia serve de inspiração para roteiros,


127 muitos compromissos parecem lazer. “Não tem nada mais divertido do que ir a uma gravação de Porta dos fundos”, afirma. O jeito misturado de encarar ócio e produção tem a ver com os pais, o cineasta João Falcão e a escritora Adriana Falcão. “Lá em casa sempre foi meio circo, todo mundo trabalhando e vivendo junto”, lembra. As primeiras lições sobre roteiro foram na mesa de jantar, ouvindo os pais debaterem sobre peças de teatro. Ficaram mais concretas quando a mãe passou a usar a mão de obra da filha nos roteiros que escrevia para o seriado A grande família, da Globo. “Nem sei se posso contar isso, mas, quando ela estava muito enrolada, me chamava: „Clarice, faz esta cena aqui‟”, lembra. “E ela me mostrava o que estava bom, o que estava horrível. Era uma aula.” De “ghost-writer” passou a escritora oficial de Louco por elas, seriado criado pelo pai e inspirado na vida dele – na trama, o personagem de Eduardo Moscovis vive rodeado só por mulheres, como a avó, a filha, a enteada e as alunas. A ideia do coletivo pegou, e Clarice segue achando que os melhores projetos são aqueles feitos entre amigos, em família, ou, no mínimo, com prazer. “Você passa muito tempo da vida trabalhando. Não pode só esperar as oito horas passarem pra ganhar dinheiro”, diz. “E a gente faz com mais esmero as coisas de que gosta.” É o caso de um dos vídeos mais vistos da Porta dos fundos, “Spoleto”, que tem mais de 4 milhões de acessos, e do primeiro curta-metragem que dirigiu, Laços, vencedor de um concurso internacional do YouTube. Por causa dele, Clarice chamou a atenção da TV Globo e foi convidada para atuar em A favorita, de 2008. Um pulo ideal para uma atriz iniciante, mas que não bateu como um sonho para ela. “A novela e o [autor] João Manuel Carneiro eram incríveis, mas eu não estava pronta.” Poder de escolha Sofreu também com a exposição e as críticas. “Era a época do Orkut e eu custava a entender, por exemplo, que tinha gente em Belo Horizonte falando de mim.” A fase ajudou no traquejo com a internet, de onde vem boa parte de seu público atual, e para mostrar que gostava de coisas mais leves, como comédia. Fez um papel na peça Confissões de adolescente e, na noite de estreia, ficou pela primeira vez com Gregório, com quem está há três anos. “As pessoas talentosas me atraem”, pontua. Não demorou muito, os dois já estavam trabalhando juntos na websérie e, em 2012, estrearam O fantástico mundo de Gregório, reality show de mentira sobre a vida dele. Dormem juntos todos os dias e brigam mais quando estão em projetos separados. “Um fica com ciúme do trabalho do outro. Quando fazemos juntos, pode até ter uma discussão mais acalorada sobre o trabalho, mas acaba e um diz pro outro: „Onde vamos jantar?‟.” A criação coletiva e as diversas frentes que abriu – atuação, escrita e música – também servem para garantir a independência em relação aos contratantes. “É legal você ter dinheiro entrando de vários lados porque isso dá poder de escolha”, analisa. “No ano passado, eu estava escrevendo o Louco por elas. Ao mesmo tempo, podia gastar dinheiro fazendo música.” Agora, espera


128 inverter a balança com o lançamento do seu CD. E torce para que a fama não tire o prazer da coisa. “Óbvio que quero que o meu trabalho atinja mais pessoas. Visibilidade é fundamental. Mas tenho medo de crescer e o trabalho se transformar num negócio burocrático. Não quero isso.” Você pode trabalhar menos. só tem que aprender a viver com menos Trabalhando por mais de dez anos com advocacia de alto padrão, com casos complexos e muitas vezes milionários, a advogada Mariana Belisário, 36 anos, se irritava com a falta de flexibilidade do escritório com quem tinha filhos, como ela. “Não precisa ter rigidez de horário. Se você quiser dar conta, vai dar.” Ela costumava acordar às três da manhã para adiantar o trabalho – que era muito – em casa. Mesmo assim, quando o relógio batia as 19 horas, e queria deixar o escritório, recebia olhares fortes. “Minha chefe dizia: „Por que você não tem uma babá que dorme?‟”, lembra. “Eu não via sentido naquilo.” Corria do trabalho para casa e vice-versa sem nunca se livrar da impressão de estar devendo. Pedindo para sair Quando a filha mais velha tinha 7 anos e quebrou o dedo na escola, Mariana ia saindo para o pronto-socorro quando ouviu da mesma chefe: “Não tem ninguém que possa fazer isso por você?”. “Falei: „Não é que não tem, é que eu não quero‟, e disse que ela podia me demitir.” Quando engravidou da segunda filha, não recebeu parabéns. A gravidez foi tão complicada e com tantas ausências que, no fim da licença-maternidade, não deu outra. “Fui mandada embora.” Foi para outro escritório, onde comandava uma equipe de 14 pessoas e tinha um chefe – homem – mais compreensivo, mas as longas jornadas a afastavam da bebê, que nasceu com problemas de saúde. “Quando me peguei gritando com um cliente ao telefone, com o salto enfiado na caixa de areia do jardim de infância no meio da adaptação da minha filha, vi que tinha algo errado.” Pediu para sair e montou um escritório de direito da família em casa, onde trabalha sozinha. É ela quem atende o telefone, vai ao correio, entrega processos e, quando precisa receber um cliente, usa o salão de festas. “Sei que coloquei o pé no freio na carreira, que não vou chegar aos altos cargos e ter esse status”, diz, admitindo que isso a incomoda ainda mais do que trocar as férias na Disney por uma viagem de carro pelo interior de Minas. Hoje, a família tem um carro só e Mariana não faz mais tratamentos caros no dermatologista. Priorizou a escola das filhas e concluiu que, se a primeira – nascida numa época de vacas magras, quando a mãe era universitária – está ótima, a bebê também pode ser feliz numa família com menos dinheiro. “Eu escolho como usar o meu tempo. Posso passar uma tarde no clube com as meninas [hoje com 13 e 3 anos] e, no domingo, sentar para terminar um processo. Eu que decido.” Você pode (e dá para) mudar de carreira depois dos 30


129 Pessoas a evitar, se você planeja uma mudança radical de carreira: amigos, namorado, pais. Esse é o conselho que Juliana Motter, 36 anos, dona da doceria Maria Brigadeiro, tem para dar. E ela fala por experiência. “As pessoas mais próximas projetam as coisas delas em você, têm medo por você”, diz. Quando estava prestes a trocar oito anos no jornalismo para fazer suas receitas sofisticadas do docinho, ouviu de um amigo “entendido em negócios”: “Se a ideia fosse boa, já teriam feito”. E da chefe: “As portas estão abertas para quando você quiser parar de brincar”. Desde menina, Juliana quis seguir o ofício da avó, doceira, mas fez a mesma faculdade que a mãe, jornalismo. “Ela foi a primeira da família a romper com o ciclo da dona de casa, chegou a fazer greve de fome para que a deixassem estudar”, lembra. “Quando eu dizia que queria fazer doce, respondia: „Eu fiz um esforço tão grande para você sair da cozinha, não acredito que vai querer voltar por livre e espontânea vontade‟.” E, no fundo, queria mesmo. Você vende? Mas só encarou o fato depois de ter tomado três taças de vinho numa festa e ver sairem da sua boca palavras que ela nunca tinha dito antes: “Eu tenho um ateliê de brigadeiros gourmet”. A festa era o aniversário do filho de uma amiga e Juliana tinha preparado os doces. Quando os convidados quiseram encomendá-los, resistiu, mas dali saiu com a sua nova profissão. No dia seguinte, mil brigadeiros estavam encomendados para ser servidos no lançamento de um livro. Foram três meses operando de madrugada na cozinha apertada do seu flat, enquanto encarava o dia seguinte na redação, que não a satisfazia mais. Desde que a mãe morrera, um ano antes, ela se perguntava o que estava fazendo da vida. As encomendas trouxeram de volta o prazer de ficar perto do fogão. “Pedi demissão e aluguei uma casinha de vila.” Em um ano, já tinha muitos clientes e o quarto tomado por caixas, então foi morar com o pai por um tempo. Ele até hoje se encanta com o sucesso da ideia – a Maria Brigadeiro foi a primeira loja de brigadeiros gourmet do Brasil e hoje faz 5 mil doces por dia. “Ele chega aqui e diz: „Filha, não é que está dando certo?‟.” Você pode mirar em ter mais dinheiro. Mas precisa saber as consequências dessa escolha O cargo de Samantha Giusti, 37 anos, na gigante Microsoft é partner account manager, assim mesmo, em inglês. Isso significa que ela vende soluções de tecnologia para empresas e negocia sua implementação dentro delas. Os contratos fechados podem engordar seu salário em 40%, desde que ela bata a meta mensal estipulada pelos chefes. O trabalho é pesado, às vezes com 15 horas diárias e fins de semana sacrificados, mas, como ela mesma diz, “se você vender, ganha”. Esse foi um argumento forte para que Samantha optasse pelas vendas. “A diferença [em relação ao marketing, em que ela trabalhou após se formar como analista de sistemas]era nítida. Essa é uma área na qual você cresce rápido”, diz. É também um setor em que a maioria dos colegas é homem, e o clima é ditado


130 por eles. “Com certeza o ambiente masculino nos torna mais „meninos‟”, diz ela, que hoje afirma ter muito mais amigos do que amigas. A recompensa financeira segue sendo uma grande motivação para sua escolha de carreira, mas não é a única. A adrenalina das metas batidas também tem o seu poder. “Quando a coisa fecha, me sinto fazendo parte daquilo, é muito bacana.” E é por causa do dinheiro que ganha que Samantha virou uma mulher que se sustenta. Antes, quando era casada e tinha 20 e poucos anos, contribuía com apenas um quinto das despesas da casa. Luxos privados Hoje, Samantha paga as próprias contas e faz planos ambiciosos. Quitou em três anos um apartamento financiado para ser pago em mais de 30. Também comprou, com a irmã, um imóvel para a mãe e costuma usar o “a mais” no fim do mês para pagar viagens de férias, carro novo e alguns luxos. Há alguns anos, passou a não se importar em gastar em bolsas Gucci e Balenciaga e sapatos Louboutin. “Quando comprei o primeiro, fui com um amigo e ele dizia: „Você parece uma criança na loja de brinquedos‟. E é essa sensação mesmo, com a diferença que não ganhei de ninguém, fui eu que conquistei.” Passados quase dez anos nesse ritmo, diz gerenciar melhor o tempo do trabalho e o da vida pessoal, que inclui um namoro de três anos. “Se deixar, acordo no meio da noite para ver e-mails, porque sei que vai ter algo pra fazer. Mas tento me policiar, deixar o que dá para o dia seguinte.” E não pensa em parar. “Eu adoro o que faço.” Você pode escolher ser dona de casa (desde que a escolha seja sua) Desde 2007, Sayuri Kobaiashi, 43 anos, dona de casa, não faz reunião, não pleiteia aumento, não bate ponto. Virou uma espécie de funcionária fantasma, só que ao contrário: trabalha e ninguém vê. “Dispensei a babá e comecei a buscar os meninos na escola. Passei a fazer esse trabalho invisível”, diz. Chegou a ouvir de amigas: “Adoraria fazer igual, mas não consigo ficar parada”. Parada? “Não quero passar a imagem de dondoca. Mas maturidade é se importar menos com os outros.” Sayuri sempre se motivou com elogios e com a sensação de ser uma peça fundamental na engrenagem das grandes empresas pelas quais passou, como Kaiser e Brastemp. “Era isso que me capturava, mais que o dinheiro”, lembra ela, que é formada em relações públicas e trabalhou na área desde a faculdade – assim pôde pagar o curso e ajudar os pais. Glamour de corporação No dia a dia, as jornadas se estendiam facilmente até as 22 horas, e os eventos à noite faziam parte do “glamour da corporação”. Mas começaram a perder o brilho quando o primeiro filho, Pedro, nasceu. Antes, o foco de Sayuri era trabalho, trabalho e trabalho. No dia marcado para o parto – cesárea – ela foi ao escritório, “dar uma última olhadinha nas coisas”.


131 Depois que virou mãe e voltou ao trabalho, “recebia fotos da babá e me perguntava se estava no lugar certo. Não era que o bebê precisava de mim, mas eu é que estava perdendo”, afirma. Quando engravidou de Vitor, dois anos depois, optou por um ano sabático. O tempo do bebê foi também o tempo que ela precisava para curtir o jardim da casa nova, a cozinha – “até bolo aprendi a fazer” – e descobrir prazeres cotidianos. Quando o ano acabou, não se animava com as propostas que recebia. Pensava em abrir negócio, mas as ideias não iam para o papel. Decidiu ficar, dando atenção para os filhos. Topou ser sustentada pelo marido, também executivo, mas passou por uma fase de adaptação. “Eu relutava em ter conta conjunta, queria ser autossuficiente. Mas essa postura parecia dizer ao meu marido que não estávamos no mesmo barco. Faltava dizer: „Preciso de você, quero sua opinião, estamos juntos‟.” O casal ficou mais unido com a mudança e, quando a crise veio – ele perdeu o emprego em 2010 –, tinham uma base sólida para enfrentá-la. Hoje em dia, ela se diz feliz por ver os filhos, 9 e 6, crescerem de perto. “A minha família é japonesa, não tive tanto contato físico.” No futuro, eles não precisarão tanto dela, e Sayuri pensa em voltar à ativa. “Mas não quero trabalhar daquela forma.” Como gosta de escrever, planeja narrar, com anedotas, a história de famílias comuns, como a dela.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.