Adeus à linguagem Livro de Exercícios

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ADEUS À LINGUAGEM Antologia de exercícios de conclusão do Curso Livre ‘ Como escrever um livro/ Módulo Prosa ‘

Marcelo Ariel, Letícia Wilhelm ( Org.)


Estes são os textos desenvolvidos em aula durante o primeiro módulo do Curso Livre ‘ Como escrever um livro ‘ , espero que entre os participantes estão certamente futuros bons escritores. Para mim foi uma honra aprender enquanto ensinava algo sobre esta arte cada vez mais rara, a de escrever para de algum modo tocar na realidade. Marcerlo Ariel


Letícia Martins da Quinta Barbuy Wilhelm, nascida em Dezembro de 1993 em Santos, é formada em Letras. Escreveu a quatro mãos, como trabalho de conclusão, a pesquisa bibliográfica “Zêgo e o Riso: o humor como estratégia argumentativa”. Gosta de histórias desde que se conhece por gente, escreve há quase tanto tempo quanto. Possui um blog pessoal e escreve para o site de notícias cinematográficas Não Compro Pipoca. Está escrevendo seu primeiro romance, “Pergunte à Ana”.

MARSHMALLOW Caminhavam pela rua deserta, animados. Os prédios não eram mais prédios. Eles mudavam, se transformavam. Refletiam cores como um prisma e, depois, tornavam-se pó e caíam, feito cachoeiras. Eram, então, cachoeiras que vinham do céu, o pó caindo constante. Tornavam-se nuvens ao chegar ao chão. Andavam alegres por entre prédios-cachoeiras e não sabiam para onde iam. Até que alcançaram um campo de trigo, com árvores de marshmallows espalhadas aqui e ali, muito ao longe, próximos aos horizontes e margens do campo. Pararam em meio ao trigo. Aves negras levantaram voo mais a frente. Então, era noite e as estrelas explodiram no céu coloridas. Deitaram-se no trigo. As árvores de marshmallow acenderam-se em uma luz roxa e iluminaram o campo e o céu estrelado. Os brilhos no céu mudaram completamente. Viram os nascimentos e mortes de milhares estrelas a sua frente.

GÊNESIS


Um arrepio por todo o corpo enquanto observava-o cercando e dominando o ambiente, pouco a pouco, até que tudo é parte dele. Faz-se silêncio e ele respira, lenta e preguiçosamente. Uma grande vastidão de nada... ou tudo. Ele é tudo o que há, ronronando enquanto descansa sua existência. Uma perturbação e tudo treme. Rachaduras em sua consistência e algo muito claro, muito forte, começa a passar pelas frestas. Domina o outro. Nasce o claro. Permanece em uma explosão de luz e cores durante muito tempo. Mal lembra-se de quando vivia sem isso. Exceto quando fechava os olhos. Então, relembrava do nada e da não-vida. Quando ficava só, com pensamentos circulando a cabeça, as vezes sentia-o dentro de si. O mesmo arrepio enrigelante, o mesmo silêncio, o mesmo vazio. Sentia, às vezes, paz nestes momentos. Como se, de repente, fosse tomado de um pertencer a um lugar que já não mais conhecia. Viveu, sem saber que seu fim seria exatamente como seu princípio. Escuro.

DO SEU LADO Quando foi que tudo aquilo começou? O que foi que fez para ser presenteado com tamanha sorte? Perguntou-se isso, sentado na beira da piscina, encostado na parede, olhando as ondas que suas pernas faziam na água, propagando-se lentamente pela piscina. Dois de seus amigos sentavam-se perto da mesa com comida. Enchiam as mãos de salgadinhos. Outro amigo tocava violão sentado em uma espreguiçadeira. O resto pulava e cantava pelo espaço livre do quintal. Suas vozes já estavam roucas. Seus cabelos úmidos grudavam nos rostos, pingavam, escorriam. E, no refrão, balançavam para todos os lados, respingando o mundo com notas de êxtase. Olhou para as gotas respingando e para as cordas vibrando. Viu os pés pulando. Viu um deles escorregando em uma poça e caindo dentro da piscina. Ouviu os risos quando o garoto emergiu do fundo da piscina, fazendo positivo com os dedos. Sentiu um calor no peito se espalhando por todo seu corpo, em todos os lugares que a água espirrada sobre si o tocava. Uma brisa soprava seu corpo molhado de respingos e ele sentia o calor aquecendo-o por dentro. - Alf, qual é, meu irmão. Vai ficar aí sozinho, todo deprê, o resto do dia? - disse Gui, sacudindo os cabelos enquanto andava pela piscina não muito grande em sua direção. - Eu to na boa aqui. - Vou te puxar pra água, cara. - Deixa ele, Gui. Jéssica sentou ao seu lado.


- Alfredo, por que está quieto aqui no canto? - Não sei. Acho que estou num clima para pensar. - Você pensa demais. Precisa viver um pouco, moço. Dizem por aí que a vida é uma arte. Jéssica era sua amiga há tanto tempo. Eles se conheceram na escola, há muitos anos, e faziam seus trabalhos juntos. Implicavam um com outro: ela era chata, ele era teimoso. Ela era perfeccionista, ele era tranquilo demais. Depois de criarem uma guerra, entregavam um trabalho excelente e tiravam a nota máxima. Aí tomavam suco na cantina para celebrar. No ensino médio começaram a passar o tempo juntos de verdade e fizeram seus amigos em comum. Seu grupo de amigos. O grupo que estava fazendo festa por nada em plena quinta-feira depois da aula, porque é assim que eles eram. A seleção de músicas deles já havia enjoado. O violão do Caio ia enjoar. Mas eles não iam parar. - Sobre o que está pensando, Alf? - perguntou Jéssica. - Sobre como eu, o cara caladão que curte ficção científica... - A ponto de saber mais klingon do que inglês... - ... fui incrivelmente sortudo na vida por me tornar amigo de vocês. Me sinto em casa, com vocês perto de mim. - Que lindo, Alf. Um brilho nos olhos de Jéssica refletiu aquele calor no peito de Alf. Caio começou a tocar outra música que fez todo mundo dar um berro e depois cantar em uníssono. Antes que fizesse qualquer coisa, duas mãos seguraram os tornozelos de Alf e puxaram ele para a água. Ele podia ouvir as vozes lá fora, acima da água, cantando. Cada molécula parecia vibrar com o som de seus amigos. Ele colocou a cabeça para fora d'água e cuspiu uma enxurrada neles. Primeiro, perseguiram uns aos outros pelo quintal. Depois, quando começaram a derrapar demais, começaram a dar as mãos. Formaram, sem querer, uma roda. E giraram. Giraram. Escorregaram. Giraram. Riram. O calor que aquecia Alf por dentro parecia irradiar de todo canto, fluindo de uma mão para outra. O calor o fazia rir e pular. Pular muito. Um sabor de grito molhou seus lábios. O violão não tocava mais. O pen drive não tocava mais. A música que cantavam e dançavam, então, com tanta devoção e êxtase, devia vir do fundo do peito das pessoas que estavam do seu lado.

LOTUS O tecido do tapete tocava sua pele nos pés descalços e onde sua bermuda não cobria as pernas. Era macio e grosso. Olhava a trama das cores se misturando em padrões e formas que desenhavam um mundo totalmente novo.


Uma linha vermelha parecia traçar um caminho por mares e vales até um amplo céu aberto, noturno, estrelado. Uma brisa soprou a franja do tapete. Erguei os olhos e viu vales e montanhas, um rio cortando-os e escorrendo pelo mundo, um céu estrelado erguendo-se sobre tudo e ao seu redor. Seu coração bateu com as asas dos pássaros que o cercavam, sua formação transformando-se como dança. Mergulharam e atravessaram dosséis de árvores, o frescor de verde e o perfume de jasmim tocando sua pele antes de se erguerem novamente acima de tudo aquilo. Segurava-se na trama do tapete. Sentia o mundo em si. Baixou os olhos e observou novamente as cores dançando suavemente. Piscou. Sentava-se no tapete sob o fresco sol da tarde no pátio de casa.

O FIM DELES Eu não tenho por que mentir: bem feito para eles. Sabiam que aconteceria há muito tempo. Mares secam, plantas morrem, seres se extinguem e, claro, humanos padecem. Meu povo tentou avisá-los. Não quiseram escutar, os poucos que ouviram a mensagem. De que adianta avisar justamente quem não vai ouvir? Dizem que não existimos, que não podemos nos comunicar... balela. Por isso, bem feito. Poderíamos ter ajudado. Temos a tecnologia. A terra podia ser salva, se não fosse habitada por um povinho tão sujo e orgulhoso. Depois de todo o sangue derramado por uma glória inexistente, feita de um pedaço de papel imaginário, eles se acabam. E posso ver de camarote aqui em cima. É uma pena, na verdade. O planeta era belo, rico. Mas estava infectado por uma espécie que precisava entender que dinheiro não se come. CAPITÃO FANTÁSTICO Reginald estava sentado ao piano dedilhando suavemente as teclas. Os óculos de armação grossa estavam escorregando de seu nariz, mas ele não parou para arruma-los. "Você vai ficar com um problema nos olhos usando óculos sem precisar, Reg!" disse sua mãe há muito tempo. Mal havia começado a se esconder atrás das lentes largas. Talvez eu precise mudar o visual, pensou Reg em uma nota mais doce. Talvez não estejam me vendo por falta de brilho. Ele olhou para a letra de Bernie a sua frente e a partitura que preenchia com a música que compunha. Tocou mais uma vez, agora cantando o que Bernie escrevera sobre a mãe de Reg, tão doce e boa para ele. Como é maravilhosa a vida agora que você está aqui.... Regueu a caneta para assinar a partitura. Elton John. - Este sou eu. - Ainda tinha alguma dúvida? - disse Bernie entrando na sala.


- Bernie, e se eu começasse a criar um visual novo para mim? Deixar Reginald para trás. De verdade. - Ótimo. O que tem em mente, Elton? Elton sorriu. Fechou os olhos por trás dos óculos, e viu a si com muito mais brilho do que o velho Reg jamais suportaria usar.

BORBOLETA Limpou a janela com um pano, vendo o reflexo do quadro de uma mulher, o cabelo preso e a roupa bordô, em seu cavalo saltando um obstáculo de hipismo. Viu o reflexo encardido da sala suja, potes de comida na mesa de centro e peças de roupa na poltrona, coisas largadas aqui e ali. Viu o reflexo do balcão da cozinha cheio de maquiagens e viu seu rosto pintado de branco, nariz vermelho de plástico e olhos tristes. Abaixo, na rua, duas crianças passam imitando um desenho animado. Cantavam a música e depois reproduziam as falas, com vozes e risos agudos. - Vamos caçar águas-vivas, Patrick? - Vamos, Bob Esponja! Correram pela calçada, estendendo as mãos para uma borboleta que passava voando sobre eles, como se fosse ela água-viva e a rua o fundo do mar. Esbarraram em um rapaz que vinha chutando uma pedra, uma sacola em mãos. - Desculpe, moço. - disse o garoto mais alto. - Sem problemas. Vá brincar com seu amigo. - respondeu, e chutou a pedra para o menino. Saiu jogando-a feito bola pela rua com o amigo. Parou de limpar a janela. Atendeu o interfone e deixou o rapaz subir. De dentro da sacola, tirou um napolitano e duas colheres. - Feliz aniversário, mocinha. Nada de hospital hoje. Vamos fazer uma festa aqui e as crianças lá podem sonhar sem você por uma tarde. Ela sorriu e tirou o nariz de plástico do rosto, enquanto via o rapaz abrir a janela. Enquanto a luz da tarde se desenhava no chão, uma borboleta amarela voou para dentro da sala.

FALSAS VITÓRIAS-RÉGIAS Naia não comia, não dormia e não parava de seguir os passos de quem havia roubado seu coração sem nem mesmo saber de sua existência. Ia em todos os festivais e festas, onde sabia que a música de Lua tocaria. Lua era DJ. Tinha o cabelo tingido de azul e usava undercut. No início, quando começaram a notar Lua, discutiam seu talento e sua aparência andrógina. Lua disse que o astro da noite que ilumina os céus não tem gênero, e é exatamente por isso que escolheu "Lua" como seu nome de DJ. Lua tinha um brilho próprio, ao contrário do satélite que lhe emprestou o nome. Em sua mesa, enquanto fazia mixagens, Lua brilhava. Mas poucas pessoas tinham a


atenção necessária para notar isso. A maioria dos que notavam estavam drogados demais para reconhecer o fato. Naia era a única pessoa que realmente percebia o brilho de Lua. Percebeu a primeira vez quando foi a uma festa com os amigos. Passou muito próxima da mesa de som e olhou para o DJ. Ou seria a DJ? Quem era aquela pessoa? De onde vinha a luz... A luz que pareceu acariciar seu rosto, suavemente, muito de longe e rápido demais para seu próprio bem. Lua ergueu os olhos e piscou para Naia. Aquela foi a única vez que Naia havia conseguido ver os olhos de Lua postos em si. A moça descobriu o nome e o itinerário de seu amor. Seus amigos disseram que Lua não era um partido decente pra ela, que ela poderia achar uma pessoa que realmente fosse lhe fazer bem. Naia não se importava. Ela queria apenas ver Lua tocar todas as noites possíveis e sentir aquela luz de novo. Depois de algumas festas, a caminho do banheiro, Naia encontrou Lua a um canto falando com uma moça. Seu dedo traçava uma linha suave na bochecha dela. - Então, minha estrela - dizia Lua em um tom suave - pronta para sua missão esta noite? A moça fez que sim e corou. Naia entrou no banheiro e, enquanto lavava as mãos, a moça de Lua, a tal estrela, começou a conversar. Ofereceu algo excelente para animar a noite, que havia acabado de receber de seu "amigo". Naia não aceitou o que a moça tinha a oferecer. Descobriu as estrelas de Lua: as moças escolhidas pessoalmente para vender suas drogas. Naia queria ser notada por Lua. Naia queria ser uma estrela. Era a melhor maneira que podia conceber para que tivesse a atenção que tanto desejava. Seus amigos lhe diziam para não sucumbir desta forma. Disseram que as estrelas se perdiam enquanto trabalhavam para Lua. Ela não escutou. Todas as vezes que ia ver Lua tocar, tentava arranjar uma maneira de ser notada e de oferecer seus serviços como estrela. Eventualmente, uma noite, Lua descarregava seu equipamento e Naia conseguiu falar. Lua não olhou para ela, mas respondeu. - Moça, você parece ser bem legal. Legal demais. Não queira ser uma estrela. Não é para você. - tocou seu ombro levemente e deixou-a sozinha à beira da calçada. - Encontre seu brilho sozinha, é isso o que Lua quis dizer - dizia sua amiga, com voz trêmula. - Não vejo onde pode haver brilho para mim sem viver meu amor. - Naia, Lua não é tudo isso. Você tem a sua vida. Você precisa ser, por si só. - Quem sabe não sou notada depois disso? - Naia disse sem emoção. - Não, Naia. Esquece essa história. Naia não esqueceu. Mas, também, não tentou mais que Lua a percebesse. Simplesmente ia de festa em festa, andando por meio da selva de corpos balançando ritmados, sem sentido. Naia não comia, não dormia e apenas andava sem buscar o que não conseguia alcançar. Uma noite, aceitou as drogas. Começou a aceitar sempre, noite após noite.


Estava em um clube, na sacada do andar superior. Abaixo de si, a música de Lua tocava no salão e uma grande piscina olímpica se estendia à sua frente, com enfeites de plástico imitando plantas aquáticas cujos nomes não conseguia lembrar. Verdes, com flores rosas e brancas. A noite a abraçava e Naia olhou com mais atenção para a água. Viu o céu, com as luzes das estrelas cintilando por toda a água e a lua brilhando, cheia, sobre a superfície. A lua, bem ali a sua frente, esperando por ela para se juntar às suas estrelas. Naia subiu na grade da sacada. Alguém podia ter chamado por ela, mas ela não saberia. Não teria escutado. Sua atenção estava na lua brilhando sobre a água. Podia ouvi-la em seu silêncio, chamando-a. Estendeu os braços e, com um suspiro de alívio, caiu lentamente, sentindo o frescor da noite em seu rosto exatamente como imaginou ser o toque de Lua, e abraçou a figura ao tocar a água. Sentiu seu corpo afundar cada vez mais, conforme percebeu o que havia feito. E o rosto iluminado de Lua que viu em sua mente se ofuscou pelas luzes coloridas da festa enquanto Naia percebeu que deveria tentar emergir. A moça agitou as pernas mas suas roupas encharcadas a mantiveram ali, no fundo. Na superfície, a música parara no instante em que um grupo de vozes gritou. Todos estavam ao redor da piscina agora e alguém mergulhara para buscar a moça que havia se jogado. Ou será que caíra? Lua viu o rosto já sem vida de Naia emergir em meio as falsas vitórias-régias, nos braços de um desconhecido. Ela não acordou enquanto tentaram reanimá-la. E Lua não conseguiu tirar os olhos daquela garota que, tinha certeza, era boa demais para cair do céu, como estrela cadente, e se afogar em águas traiçoeiras. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. E Naia nunca pôde ver os olhos de Lua em si novamente, ou ouvir sua vitória de ser notada na canção composta pelo seu amor.

UMA VISÃO EM UM PONTO DE ÔNIBUS Clara diz: querem um salgadinho? Júlia diz: vocês viram o que a Sara postou hoje de tarde João diz: aí ele pegou a arma e o cara gritava "abaixa a arma" foi muito foda Flávia diz: gente, como tá frio João diz: muito louco frio? João saiu da conversa Flávia saiu da conversa Júlia diz: minha mãe chega tarde hoje só porque quero bolo dela


Clara diz: manhê quero bolo! Clara adicionou João e Flávia a conversa João diz: melhorou do frio? Flávia diz: um abraço sempre esquenta

QUADRO URBANO Os raios de sol das sete da manhã passam pelas copas das árvores e iluminam o canal. Os tons brancos, misturados ao amarelo e o laranja e o verde claro e o azul mais claro ainda iluminam a avenida, passando pelas folhas de verde vivo em diagonal até atingir o concreto sujo de limo. As linhas de luz parecem dançar uma melodia suave que elas mesmas tocam saudando melancólicas os pássaros que pulam de árvore em árvore, dando harmonia ao seu canto. A água do canal segue em seu curso suave. Uma garça pousa no concreto sujo de limo, suas patas descascando a parede e fazendo o limo cair na água. A garça está agora sob a luz, sentindo a canção dos raios de sol em suas asas e penas. Então voa. E a luz ainda incide sobre o canal e outros montes de limo no concreto. Um som estridente e outro metálico enchem a rua e espantam os pássaros para os galhos mais altos. Uma grande caixa de metal cai sobre a água, como o limo fizera, arrastando consigo pedaços de concreto. A água segue seu fluxo agora com um obstáculo e um líquido viscoso e vermelho escuro misturando-se a si. Os pássaros não mais cantam junto aos raios de sol que iluminavam o sangue e o metal e o concreto e o fim naquela manhã.



Paulo Pascoal Gilio. Natural de São Paulo, nascido em 03 de setembro de 1951. Administrador de empresas aposentado, morando atualmente na Praia Grande. Nenhuma obra publicada.

A CADEIRA NO MEIO DA SALA Caminhava devagar e despreocupado. Prestava atenção a alguma coisa que queria ver através da janela aberta para a avenida. Desatento, não percebi aquela cadeira no meio do espaço da sala de aula da Estação Cidadania. Impossível evitar e acabei por me chocar com ela. Com o impacto ela se movimentou uns cinquenta centímetros pelo chão fazendo ruído característico de algo sendo arrastado. Imediatamente pensei em quem seria o engraçadinho ou imprudente que a deixara ali, não me dando conta de que se alguém errara esse havia sido eu. Apesar de ter chamado a atenção daqueles que estavam dentro da sala nada de significativo representou. Resolvi não dar mais importância ao fato do que a irritação momentânea que senti. Entretanto, aquela cadeira de plástico branca ali onde estava me chamou a atenção. Era uma cadeira comum, daquelas que se encontra em qualquer ambiente. Leve, resistente, prática e barata; é muito procurada para equipar salas de reuniões, de aula, etc... Focando minha atenção observei que não se tratava de uma cadeira nova, não era velha também. Acho que só estava encardida e um pouco gasta pelo uso frequente. Então me veio à mente um questionamento simples: será que nela já havia se acomodado alguém importante? Penso que qualquer pessoa é importante para nela sentar-se, porém o meu questionamento refere-se a alguém que realmente tenha ou tenha tido destaque em qualquer área e que efetivamente seja conhecido pelo que representa ou representou. No momento, mesmo sem qualquer resposta, considerei a possibilidade em ocupá-la, ao mesmo tempo em que procurava manter viva aquela minha questão. Prontamente puxei-a para perto afastando o suficiente a cadeira que ocuparia, e sentei. Pensei, brincando, agora sim sabia que alguém importante já tinha ocupado seu assento, esse era eu. Ri comigo mesmo, já tinha minha resposta e isso dissipou definitivamente a irritação daquele incidente. Como não poderia deixar de ser, outra estranha questão se apresentou na minha mente: será que uma cadeira passa a ser mais importante a partir do momento em que alguém importante nela se sentou?


Dessa vez senti vontade de gargalhar ao pensar no que acabara de cogitar. Estaria ficando maluco? Onde já se viu alguém se submeter a um questionamento tão absurdo? Meio encabulado pensei em desistir da questão e me propus esquecê-la. Saindo da aula seguia para casa e uma coisa não me deixava em paz. Era ela, aquela absurda questão. Quanto mais me esforçava para esquecer mais a questão me consumia. Naquela noite foi difícil até para dormir, tudo por causa dela. Gozado, sabia que alguém perdia o sono por causa de uma pessoa ou outro assunto importante, nunca por causa de uma cadeira. Pode isso? Que tipo de relação seria aquela? Procurei manter a esportiva e curtir minha obsessão e tamanha contradição. Assim que despertei no dia seguinte lá estava ela, viva na minha mente, a cadeira branca. Estava convencido de que só teria paz após encontrar alguma resposta convincente. Com alguma disposição acabei percebendo que intuitivamente acreditava ser realmente possível uma cadeira ter algum destaque que a diferenciasse das outras cadeiras, mesmo que exatamente iguais. À medida que me deixava levar pelo pensamento sem bloqueios, lembrei que muitas cadeiras acabam tendo destaque segundo tenham ou não mobiliado algum cenário especial. Lembrei do trono, porque não existe rei que não tenha uma cadeira cuja associação seja tão ligada ao poder temporal sobre um estado e um povo. Nesse caso o trono simboliza todo o reino. Interessante, morre o rei e o trono permanece e caso não seja útil para o sucessor irá para um museu e lá será cultuado como a cadeira, agora importante, na qual sentou o rei. Aí minha mente ficou convulsionada com tantos exemplos de cadeiras com nomes e até sobrenomes, servindo para propósitos diversos e para pessoas e sempre sendo consideradas como algo do mobiliário de destaque. Em minha mente vieram imagens de Deus sobre um trono. Até os papas também fazem uso dele. Quando alguém se destaca e a sociedade reconhece o seu destaque em alguma coisa logo afirmam que fulano ou sicrano tem cadeira cativa. O chefe também tem sua cadeira. É certo que sempre tem quem queira derrubálo dela e ocupar o seu lugar. Apesar de ser a mesma costuma-se dizer que foi trocada a cadeira mesmo que apenas tenha sido mudada a chefia. Ao serem mantidas e expostas acabam substituindo este ou aquele personagem especial desaparecido como se lá eles estivessem. Sempre nos referimos destacando que nela sentou-se alguém que fez isto ou aquilo de destaque. Outro bom exemplo, o da cadeira que simboliza concretamente um sentimento nobre. Qual o filho ou filha que nunca considerou dar de presente uma cadeira do papai para homenagear seu pai e manifestar materialmente a sua afeição e carinho.


Muitos outros exemplos eu poderia lembrar e citar, mas achei que seria o suficiente até agora. Efetivamente tinha conseguido minha resposta, muito mais até do que pude imaginar. Lembrei-me da cadeira plástica branca motivo que me levou a todas estas descobertas e constatações. Diante de tudo acabei concluindo que para mim até ela, uma cadeira comum, era muito importante.

COMO ME MATEI O ato derradeiro de colocar um fim à própria vida é muito mais do que pensado e muito diferente de parecer algo sem nexo ou explicação. Ninguém se mata por acaso. OU SERÁ QUE SIM? Comigo foi assim. Não lembro bem quando começou, mas sei que teve um início por algo significativo que aconteceu lá na minha adolescência. Às vezes uma personalidade imatura, frágil e solitária, submetida a uma situação considerada extrema e sob a qual não se vislumbre saída sozinho, é a principal causadora dessa manifestação tão antinatural de suprimir a própria vida, que na verdade não é nossa efetivamente e sim da Providência Divina. Se esse ato se trata de um pecado eu não sei, mas que é um verdadeiro desperdício isso sim, eu agora sei disso e assino em baixo. Frustrações infantis e desajustes juvenis causaram as primeiras sensações de abandono extremo daí gerando o primeiro impulso de procurar colocar um ponto final naquilo que acreditava não deveria ter começado. No início me choquei, o paradoxo da contradição entre o que se pensou e o que se aprendeu até então é evidente. Choca porque é antinatural, a Lei de Conservação fala mais alto. Mesmo assim a semente estava lançada em um solo semi pronto, mas fértil o suficiente. Às vezes a idéia se cala, parece sumir, mas de repente retorna intensa. Revezando entre intervalos longos e outros mais curtos sempre volta, até que não se percebe mais esses intervalos de tempo, é como se tudo fosse contínuo. O que é mais perceptível é que a idéia já não se apresenta tão absurda e nem estranha, começa a parecer necessária e até natural. Se antes não refletia eco dentro da mente agora já se transformou em algo pessoal, individual e próprio, de tal forma que parece nunca ter deixado de estar lá, em estado hibernal. Fazia parte de mim, era eu mesmo. Um processo contínuo e progressivo como algo incurável. Acho que deixei de ter um motivo real para se tornar algo que faz parte da gente e que não pode deixar de ser feito, um compromisso.


Não me lembrava mais dos reais motivos por aquilo, se é que em algum momento eles realmente tenham existido ou se apenas eram frutos de uma mente solitária e insegura. Agora qualquer insatisfação, que são muitas quando o Espírito não tem mais o controle de si mesmo, prevalecendo a sensação de abandono e desconexão com o mundo real, o principal culpado por tudo aquilo. Lembro que algumas vezes já tinha tentado terminar aquilo. Sempre fraquejei na hora “H”. Covardemente desistia por uma motivação incompreensível e muito incômoda. Isso gerava uma intensa sensação de frustração o que aumentava a angústia. A depressão agora era também amiga e fiel conselheira, e tudo aquilo me tornava um joguete à mercê de algo muito grande que eu nem mais conseguia definir. Também fraquejei por causa do meu instinto de conservação. Não fui capaz porque uma força interna maior acabou me impedindo. Quantas datas, dias, horas eu escolhi para por um fim a tudo aquilo, sempre associando a algo que marcasse e fosse lembrado sempre. Novamente acabava falhando. Sempre sobrava a incerteza, a dúvida se eu realmente seria capaz. O tempo passava e nada acontecia para meu desespero. Um dia, seria naquele dia, resolvi que não recuaria mais e tomado de corajosa decisão saí para cumprir com aquela obrigação assumida, cujos resultados até ali agravavam a situação e cada vez mais eu me considerava um incompetente. Local escolhido. Decidido sai de carro a toda velocidade, nem o cinto de segurança coloquei. Mas pra quê colocar? Meus olhos marejaram e tinha dificuldades para ver o movimento do trânsito, continuava de pé em baixo naquela estradinha estreita e escura. Um sentimento de tristeza passou a me incomodar, tentava afastá-lo para não correr o risco de mais uma vez desistir. Não tinha mais o motivo de não ser naquele momento. Agora chorava copiosamente. Não conseguia mais ver direito a estrada, de um lado para outro atravessava a faixa sinalizadora do meio da pista daquele caminho ruim. O celular então tocou. Instintivamente procurei alcançá-lo, por um momento esqueci que não importava mais atender quem quer que fosse. Cadê ele? Maldito celular nunca está onde o colocamos. Não enxergava mais a estrada, alternava minha atenção entre tentar enxergá-la e a procura pelo celular que continuava tocando insistentemente. Acho que encontrei. E foi assim, sem perceber mais nada, perdi o controle do carro que se precipitou abismo abaixo. Era o fim, seria o fim mesmo que mais uma vez desistisse. A vida é assim, muitas vezes corremos atrás de alguma coisa por tanto tempo sem conseguir. De repente quando menos se espera essa coisa chega e pode ser o fim e por acaso.


O ANIVERSÁRIO Acordou cedo. Sentia-se bem disposto. Uma motivação especial o animava. Levantou-se sem fazer barulho, não queria acordar e incomodar a esposa. Normalmente ela dormia até um pouco mais tarde. Caminhou até a sala, abriu a porta de tela que o levaria até a varanda, passou e fechou-a atrás de si. Um hábito cultivado durante anos que permitia uma avaliação plena de como estava e ficaria o tempo. Sempre cuidou de manter a tela mosquiteiro fechada para evitar a entrada de indesejáveis pernilongos, mesmo sabendo que as condições mudaram e esses insetos não são mais tão frequentes. O sol já inundava toda a varanda e ele se aproximou do parapeito de vidro debruçando-se sobre ele. Antigamente tinha uma proteção adicional de uma tela em forma de rede para evitar riscos para os netos e outras crianças que ali vinham com seus pais. Após uma rápida olhada para a avenida, viu o ponto de ônibus e as pessoas aguardando, o supermercado e a escola, olhou para cima e se deteve no céu. O céu se apresentava sem nuvens e de um azul intenso, tudo indicava que permaneceria assim o dia todo. Apesar de próximo o final do inverno, o sol forte já se fazia presente na maioria dos dias. Sensação muito boa para quem detesta o frio, pensou. Agora mais desperto e interessado no ambiente apurou os ouvidos e ouviu o canto de um sabiá nas árvores próximas que se encontram no canteiro central da avenida. Um canto alto, forte e marcante, de um pássaro que não só encanta por sua beleza e canto, como pelo jeito de defender seu território. Sentia-se feliz naquele início de dia, dormira bem e afinal precisava estar bem pois era seu aniversário. Murmurando, orgulhoso e sorridente, disse a si mesmo: - Não se faz sessenta e três anos sempre. Como se tivesse acionado um poderoso gatilho, um filme começou a rodar na sua cabeça despertando sentimentos e sensações que já vivera até chegar ali. Decidiu que não pensaria naquilo. Virou-se, abriu a porta de tela e entrou, fechando-a como de hábito. Também era seu hábito levantar-se e isolar-se na cozinha após fechar todas as portas para diminuir o barulho que fazia na cozinha. Tomou seu comprimido de pressão, foi até o armário e ligou o rádio. Gostava de ouvi-lo para atualizar-se com as notícias. Verdade mesmo é que não gostava do silêncio, não gostava da sensação de estar ou imaginar-se sozinho. Mesmo quando viveu algum tempo sozinho bastava entrar em casa ou acordar para dirigir-se a um dos aparelhos e ligá-lo, tinha a impressão de ter companhia estando ou não presente no ambiente.


Isso reforçava a certeza de ser alguém metódico. Era o seu jeito, tinha consciência de tudo aquilo, mas não dava muita importância considerando apenas um detalhe. Logo se ligava nas suas tarefas e assim o dia passava completo entre atividades diversas. Além de comer frutas, tomar o café e, muitas vezes até fazer um suco, não deixava nenhum utensílio sujo sobre e dentro da pia. Era uma forma de ajudar nos afazeres de casa. Mesmo aposentado sabia que uma casa exigia atenção e tinha disposição para ajudar a mantê-la em ordem. Por isso não ligava de se ocupar com esses afazeres, acho até que gostava dessa quase obrigação. Muitas vezes, animado punha-se a bater um bolo de variados sabores. Seu espírito sempre atento se esforçava em manter-se animado e com pensamentos positivos, por isso pensou de forma reflexiva: - Um dia especial como aquele só seria verdadeiramente especial se realmente soubesse aproveitá-lo, e disso ele tinha plena consciência. Sairia para sua caminhada, sozinho como de costume, e depois com a esposa almoçariam em algum restaurante da região. Um dia especial para ele nunca era sinônimo de um dia tranqüilo, e aquele prometia ser bem agitado. Teve certeza disso quando o telefone fixo e o celular começaram a tocar. Muitos lembraram-se de seu aniversário e ligavam para dar os cumprimentos. Muitos aproveitaram a ligação para atualizar as informações sobre a vida. Eram muitos amigos e parentes, achou que não faltou ninguém. Se tivesse faltado alguém para ele tudo bem, também. Não era de dar importância às convenções sociais e, normalmente sempre encontrava uma forma de justificar aqueles esquecidos. Apesar de considerar aquele um dia especial, sabia que qualquer dia poderia sêlo, de acordo com os acontecimentos e com a sua disposição diante deles. Era capaz de ficar mais irritado por não poder comer um pedaço de bolo junto com o café do que com os outros por esse motivo. Depois do almoço sentou-se para descansar, esse dia estava exigindo dele muito mais do que o habitual e percebeu que ficara cansado. Não costumava dormir após as refeições e não seria ali e naquele momento que faria isso. Queria mesmo é só relaxar. Mesmo nessas condições não conseguia manter a cabeça em silêncio. Estava permanentemente em agitação, pensando em qualquer coisa. E quantas coisas iam e vinham. Gostava disso. Num terreno tão fértil como o das idéias para alguém tão vivido em um momento tão excepcional, é normal surgirem as muitas lembranças acumuladas e bem guardadas. Nessa hora vieram ao pensamento um turbilhão de coisas, ficou difícil a concentração em alguma delas em especial.


Pensou primeiro num horóscopo que lera muitos anos atrás num desses boletins impressos por um grupo holístico do Triângulo Mineiro. Riu de forma relaxada e discreta. Não tinha o hábito de ler horóscopos porque não acreditava neles, tanto por formação doutrinária quanto por não encontrar coerência de nexo causal no que eles diziam. Apesar disso, lembrou claramente das características enumeradas que de certa forma apresentavam uma certa coerência com seu jeito de ser e de se conduzir. Um flash se sobrepôs a esses pensamentos, um misto de saudade e emoção invadiu seu pensamento, tocou fundo seu coração e não foi possível conter algumas lágrimas. Disfarçadamente virou o rosto, não queria que a companheira visse e viesse a quebrar o encanto daquele momento mágico só dele. Como num passe de mágica, lembrou com muita clareza do que leu recentemente no seu diário escrito na adolescência e que descobrira não fazia muito tempo. Dizia o seguinte aquele precioso relato: -“03/09/1966 – Dia da minha renovação e do meu 15º aniversário – belo dia, chuva o tempo todo. Levei o bolo ao colégio e comprei uns refrigerantes; fizemos uma festinha na aula da d. Neide. Ganhei uma torta de presente da Lucinha, comemos lá mesmo. Ficou uma fatia de bolo no prato e as garotas (menos uma tenho certeza) obrigaram-me a dá-la para a Alva. Quando esta veio cumprimentar-me levei-a de mão dada para a classe. À noite um partida de batalha naval”. De repente veio à sua mente lembranças do tempo em que adolescente ficara apaixonado por uma menina graciosa da sua turma no ginásio. Exatamente aquela destacada entre parênteses conforme relatou no seu diário. Uma paixão fulminante, capaz de encantar e vencer o mais resistente dos indivíduos. Puxou pela memória mais profunda; no início pouca coisa para lembrar e esclarecer. Em seguida como se um véu caísse as coisas foram ficando mais aparentes mais vivas, pena que não tinham som algum. Parece que mexer em alguma coisa marcante na vida faz com que ela crie vida. Um movimento que a faz ressurgir com tamanha nitidez que tudo parece ter acontecido ainda ontem mesmo. Lola era o seu nome. Gostava de chamá-la pelo diminutivo - Lolita, o que só exaltava aquela menina graciosa, pequenina e magrinha. Uma bonequinha como ele gostava de pensar. Tinha um jeitinho delicado e um sorriso enigmático. Talvez porque fosse muito inibida mantinha aquele sorriso entre o discreto e o sapeca e nisso ela era única e muito encantadora. Talvez por isso ela conseguisse manipulá-lo apenas com o olhar. Isso o deixava sem ação, sem reação. Descompensado se revoltava consigo mesmo e por isso na maioria das vezes reagia de forma desastrada. Essa realidade os afastava e construía barreiras muito grandes e difíceis de transpor para os dois jovens adolescentes imaturos e inseguros.


Agora sentia falta do som de sua voz. Lamentava não lembrar nem levemente. Deixou o pensamento fluir e sentiu que se desprendia daquele ambiente naquele momento. Pareceu viajar e retrocedeu para um tempo do qual tem tantas lembranças, e tão intensas. A descoberta daquele precioso documento sobre sua vida o arrastava para um turbilhão de sensações e sentimentos. Tudo parecia convulsionado, sensações transitavam na sua cabeça se alternando entre o compreensível e o incompreensível, entre o real e o surreal. Fazia tempo que não pensava naquilo apesar de guardar aquela experiência entre as maiores preciosidades que tinha vivido. Lembrou no quanto aquilo fora importante em sua vida e descobria naquele momento que ainda continuava precisando daquilo como do ar que o mantinha vivo. De repente uma vontade daquelas que não admitem contradita, sentiu que precisava encontrá-la nem que fosse por mais uma vez apenas. E naquele dia tão especial, uma motivação ainda mais especial passou fazer parte de seus dias a partir dali. Decidiu que iria procurar e encontrar Lolita. Naquela mesma noite adormeceu com um pensamento apenas e uma pergunta nos lábios. - Onde estará Lolita?

O DIA EM QUE NASCI Nasci em 03 de setembro de 1951, no Hospital e Maternidade São José do Brás, Zona Leste de São Paulo. Refazendo os passos percorridos pelos meus pais naqueles dias até chegar a hora de ir para a maternidade, ficará mais fácil compreender como as coisas aconteceram e quais os fatos em destaque do dia. Era o final do mês de agosto, a barriga já tão incômoda agora pesava um pouco mais. Para mim, dentro dela, o desconforto é grande, para minha mãe devia ser muito maior. Uma barriga tão grande para uma mulher tão pequena. Além disso, o parto precisaria ser através de uma cirurgia cesariana. Não seria possível pensar em parto domiciliar através de parteiras como era habitual naquele tempo. Minha mãe sabia que o grande dia se aproximava, talvez não soubesse com precisão que dia seria. Poderia ser qualquer um a partir do final do mês de agosto. Naquele tempo a medicina não era tão precisa com o hoje, onde os bebes nascem em dia e hora programados quando o pré-natal ocorre normal ou tem cirurgia eletiva agendada. Uma grande preocupação adicional se apresentava, eles sabiam da dificuldade em se deslocar de onde moravam até a maternidade.


Amanheceu um bom dia e minha mãe até deve ter tentado realizar algum trabalho doméstico. Mesmo com dificuldades e um enorme esforço deve ter conseguido ainda servir o almoço para meu pai que estava envolvido com seu trabalho ali próximo. Ele era pedreiro e normalmente realizava serviços no sistema chamado biscate, um serviço pequeno e de curta duração. Logo após o almoço, no limite dos limites, os sinais se apresentaram mais claros e intensos, anunciavam a necessidade de imediatamente irem para a maternidade, devido os riscos envolvidos. Não podiam perder mais tempo. Com uma malinha, pronta há dias, contendo algumas roupas íntimas e um enxoval simples para o bebe, o casal fechou a casa e saiu para buscar o atendimento médico e hospitalar necessário e ver concretizado o sonho de gerar uma nova vida, um filho. Iniciava-se naquele momento uma jornada sofrida, cheia de expectativa e bem demorada, além de envolver muito risco pelos motivos existentes. Para chegar ao hospital minha mãe Yolanda e meu pai Argemiro devem ter caminhado uns 15 minutos pela rua Rouxinol no bairro de Vila Uberabinha, hoje Moema pássaros, até a linha de bonde para embarcar num deles. Os bondes elétricos chegaram em São Paulo no início do século XX , e o fator determinante para sua viabilização foi a construção da Usina Henry Borden em Cubatão no litoral. Essa era uma solução de infraestrutura, o desnível entre o planalto e o local das turbinas que era de 700 metros, aproximadamente, criava um potencial de energia hidráulica suficiente para movimentar 2 turbinas modelo Pelton e produzir energia suficiente para abastecer o Litoral Santista e a Grande São Paulo e com isso alavancar seu desenvolvimento. A empresa responsável por essa atividade foi a São Paulo Transway, Light and Power Company. Além de atender as demandas de fornecimento de energia elétrica para as indústrias, o comércio, residências, havia também o interesse de construir e explorar o transporte coletivo de passageiros na cidade através de bondes. Na década de 1960 os transportes coletivos elétricos, entre eles os bondes, deixaram de ser explorados pela iniciativa privada passando a ser administrados pela recém criada Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC. A linha para o deslocamento desse tipo de veículo de transporte ficava próximo da casa de meus pais e estava construída sobre o que hoje é a Av. Ibirapuera. O bonde era um dos meios de transporte mais comuns naquele tempo, seguido do ônibus que circulava apenas onde não haviam trilhos para os bondes, além dos carros particulares, muito poucos e pertencentes à famílias com mais recursos. Uma linha férrea dupla construída naquele espaço atendia os bairros da Zona Sul de São Paulo, entre eles o Paraíso, Vila Mariana, Vila Clementino, Indianópolis, Brooklin Paulista e Santo Amaro, ligando-os ao Centro onde chegava até o bairro da Liberdade, a Praça João Mendes, Praça Clóvis Bevilacqua e a Praça da Sé.


Lembro claramente quando era criança, no início de minha alfabetização, que eu lia com curiosidade os avisos dentro dos bonde. Achava engraçado os que diziam: “É PROHIBIDO FUMAR NOS PRIMEIROS BANCOS”, “PREVENIR ACCIDENTES É DEVER DE TODOS”, “PROHIBIDO CONVERSAR COM O MOTORNEIRO”. Assim, meus pais embaram no bonde que vinha de Santo Amaro com destino ao Centro, não antes de passar pela roleta de acesso existentes na parada de embarque, pois toda a linha era cercada por trilhos gastos e cabos de aço para impedir que animais como cavalos, bois e vacas entrassem naquele espaço comprometendo o deslocamento e podendo gerar acidentes. Meus pais, ambos falecidos há muitos anos, certamente também devem ter passado por mais um obstáculo colocado perto da roleta para impedir que os animais por ali tentassem passar para se alimentar da grama abundante que nascia próximo aos trilhos. Esse obstáculo era chamado de mata-burro, um fosso de pequena profundidade coberto por travessas de madeira ou trilhos gastos montados no sentido longitudinal da linha espaçados uns dos outros de forma a não impedir a circulação segura dos pedestres mas representando um obstáculo para o animal que se afastava quando encontrava dificuldades de coordenação motoras para colocar cada uma de suas quatro patas sobre as traves sem enfiá-las entre os vãos. Normalmente era uma viagem e tanto que fico imaginando como deve ter sido naquela situação, a gravidez do primeiro filho e um deslocamento que levaria pelo menos duas horas em condições tão especiais. Sempre gostei desse meio de transporte, inúmeras vezes fiz e refiz aqueles trajetos durante a minha infância. Deve ter começado nesse dia especial a minha identidade com esse meio típico de transporte e outros sobre trilhos. Hoje mato a minha saudade indo ao centro de Santos, na Praça Mauá, para embarcar num dos bondes preservados e que circulam ali num circuito cultural. Uma iniciativa que conforta e anima o coração da gente. Que viagem! O bonde seguia pelo corredor onde hoje é a avenida Ibirapuera, indo até o Instituto Biológico, que ficava nos baixos da Vila Mariana, subia pela av. Rodrigues Alves até o Largo Ana Rosa, hoje estação do metrô. Contornando a praça á direita, virava à esquerda e seguia pela av. Vergueiro realizando diversas paradas até chegar à avenida Liberdade parando na praça da Liberdade, onde hoje se encontra outra estação do Metrô, e dali até a Praça João Mendes, ponto final e área de balão para retorno. Dali uma pequena caminhada deve tê-los levado até a Praça Clóvis Bevilacqua, onde do outro lado iniciava-se a avenida Rangel Pestana para pegarem o ônibus em direção à Zona Leste e ao hospital. Esse era o caminho obrigatório para quem saia do centro em direção àquelas bandas. Minha mãe era uma mulher pequena, de estatura e constituição física. Tinha lá os seus 1,49 mts de altura e, talvez, uns 50 quilos me incluindo. Além disso, não era forte apesar de gozar boa saúde. Acredito que a motivação normal de todas as mães deve ter sido decisiva para ela enfrentar todas essas dificuldades para que eu nascesse.


Nunca soube o motivo porque optaram pelo parto naquele hospital, visto que naquela época existia um outro hospital, o Hospital dos Defeitos da Face, próximo ao aeroporto de Congonhas e próximo de nossa casa onde poderiam ter recorrido. Também não sei se por intuição de mãe ou pela Providência a escolha de um bom hospital acabou sendo um grande acerto. Sei apenas que nasci roxo e assim permaneci durante algum tempo, acredito que tivesse o cordão umbilical enrolado no pescoço, e que estar num ambiente adequado garantiu minha segurança e a minha vida. Outras limitações apresentadas por minha mãe a impediram de me alimentar com seu leite. Fui alimentado por uma tia, irmã dela, que amamentava meu primo nascido cinco meses antes. Somos irmãos de leite como dizem. O ônibus que saia do centro para a Zona Leste, descia pela Avenida Rangel Pestana, atravessava o Parque Dom Pedro, a ponte sobre o rio Tamanduateí que por ali atravessa, e entrava pela Avenida Celso Garcia, esta seguia em linha reta terminando no bairro da Penha e se constituía na principal ligação para os bairros existentes naquela região da Capital. Na Avenida Celso Garcia ficava o Hospital e Maternidade São José do Brás, hoje Hospital Santa Virgínia, e foi para lá que eles se dirigiram e devem ter chegado já no final da tarde desse dia três de setembro de 1951, após uma viagem de transporte público por mais de duas horas. Ufa! Também devo ter ficado cansado com a viagem e a agitação. Será que foi um dos motivos que ocasionou eu ter nascido com o cordão em volta do pescoço? Nasci às 21:30 horas de parto cesariana e necessitando de ajuda especializada. Talvez tenha recebido oxigênio para atender a minha condição de risco. Quem sabe não foi esse o principal motivo que me motivou trabalhar durante mais de 37 anos fornecendo esse preciosa gás para indústrias e hospitais, permanecendo na mesma empresa até minha aposentadoria em 2008. Eu não lembro, naturalmente, mas havia naqueles dias muita expectativa para o lançamento ainda no mês de setembro do filme americano “O dia em que a terra parou”. Nome bem sugestivo para comemorar o meu nascimento. O dia 03 de setembro, uma segunda-feira, era um dia útil mas antecedia o dia da Independência do Brasil , sexta-feira dia 07 de setembro, que era comemorado com pompa e desfiles civis e militares da era Getulina. Se isso teve alguma importância, a lua era Nova e as noites do final do inverno eram frias e certamente muito escuras. O certo mesmo foi que a garoa se fez presente. Nasci em São Paulo terra da garoa, cidade que já nessa época era a mola principal da economia e desenvolvimento desse país. O santo do dia pela Igreja Católica é São Gregório Magno. Dessa eu escapei, não me vejo chamando Gregório. Ainda bem que meus pais optaram por homenagear meus avós, Paulo (do avô materno Paolo) e Pascoal (do avô paterno Paschoal) que acabaram soando mais harmônico com o sobrenome Gilio. Deveria ser Giglio mas o meu pai foi registrado errado, nome que vem do Hebraico significa Lírio. Lembrei que até Jesus a eles se referiu. Pesquisando vi que nada de importante aconteceu e foi noticiado nesse dia e ano.


Melhor assim. Posso me sentir vaidoso sabendo que fui o fato mais importante desse dia, pelo menos para minha família. O jornal “O Estado de São Paulo” não circulou nessa data. Estranhamente nem a edição da “Folha de São Paulo”. Na bolsa de café em Santos o produto Tipo 1, mole, 10kg, foi negociado a Cr$ 195,00. O mercado estava calmo. No domingo, dia 02 de setembro, meu pai devia ter ficado contente porque o Palmeiras, nosso time do coração, derrotara o time do Santos por 2X1 no Pacaembu e passou à vice-liderança do Campeonato Paulista. A manchete não colocava em dúvida a vitória – “Merecida vitória do alviverde contra o Santos”. Como palmeirense hoje sinto saudade desses resultados. Assim, minha mãe deve ter dormido muito cansada mas em paz naquela noite. Como ela era pequena e franzina e eu um galalau com mais de 50 cm e 3,60 kg,devo ter incomodado a pobre coitada até o final da sua gestação. Espero que ela tenha achado que valeu a pena. Meu pai, como era habitual nos homens da época, pouco deve ter feito para que as coisas acontecessem, mas deve ter ficado muito contente e vaidoso por ter nascido um filho homem para dar continuidade ao nome da família.

O RETRATO Então, em dois tempos, ouviu-se o som mecânico do disparador de uma Rolleiflex - um som característico da famosa câmera fotográfica um orgulho alemão - e a imagem capturada se fixou para a posteridade. Uma imagem que hoje chamamos fotografia era à época apenas um retrato em preto e branco. Uma coisa chic, apenas ao alcance de pessoas com melhores recursos mesmo que sem habilidades fotográficas. Possuir uma dessas máquinas diferenciava o seu possuidor, era como ter uma motocicleta Harley-Davidson nos dias de hoje, privilégio de poucos. Aquela imagem capturada não podia ser classificada como um retrato de família porque nele, também, se enquadrara um personagem estranho, nem parente era. Apesar disso, poder-se-ia afirmar que a imagem não era inusitada e que bem podia passar pela tradicional foto familiar, tão comum nesses tempos em que tirar retrato era um luxo para poucos. A tecnologia evoluiu e hoje para um hábil conhecedor do Fotoshop seria molemole fazer desaparecer aquele intruso personagem relembrando cenas do filme “de volta para o futuro”. Apesar de tudo, aquela foto era para seu dono um documento histórico importante, para o presente e para os tempos vindouros, mesmo porque as pessoas retratadas duravam em vida menos que os ditos cujos retratos. Teimosamente os retratos insistiam em alongar sua existência, fixados cuidadosamente em álbuns protegidos com folhas de papel de seda ou até em caixas de sapato usadas como arquivo para documentos e afins familiares.


Com o tempo ficavam amareladas e perdiam a tinta preta, literalmente iam sumindo. Até o papel usado com o tempo apresentava dobras e acabava se partindo, mas certamente durava mais que a imagem. Se bem posso descrever esse retrato, ele não representava um instantâneo, era apenas uma cena comum onde os retratados posaram num cenário bem familiar e usual, na frente da sua própria casa. Essa era uma forma de mostrar para todos com orgulho a sua própria casinha. Um metro e dez centímetros era a altura do muro onde eles estavam encostados. Sem pintura nova, com manchas de musgo escuras próximo ao chão de cimento e outros remendos sobre o acabamento num chapiscado áspero com que se revestiam os muros, tinha nas extremidades um acabamento formando três degraus para cada lado e para cima o que aumentava a altura do muro uns trinta centímetros. Para melhorar seu aspecto rústico uma moldura de quinze centímetros feita em toda a volta, exceto na sua base próximo ao chão, se conservava ainda pintada de branco. Quando esse tipo de muro era construído a parte com o chapisco era caiada com cores vivas que se destacavam, enquanto a moldura era caiada na cor branca. A cal branca usada para preparar a tinta era misturada em água e adicionava-se um corante para as variações de cor. Para pintar usava-se uma brocha feita em estrutura de madeira e pelos de crina animal, e tinha a forma de uma tocha invertida. Coisa semelhante seria vista numa das mãos da estátua da liberdade caso ela não pudesse ser acesa como acontece, assim poder-se-ia brincar dizendo que ela seria como um pintor de paredes comemorando o término de algum trabalho. Acho que essa mesma tocha poderia fazer parte da estátua do Cristo Redentor no Corcovado, simbolizando assim uma luz iluminando a cidade. O Cristo Redentor, do jeito como é e se parece, nos leva a pensar numa possível acomodação natural das pessoas que sempre se colocam numa condição de receber alguma coisa, coisa tão habitual na cultura e formação em uma administração paternalista. Olhando o retrato da esquerda para a direita vemos o primeiro adulto, aquele homem que não é da família, está meio de lado e seu braço esquerdo não aparece porque ele ajuda na segurança de uma criança pequena sentada sobre o muro. Aparenta uns trinta e cinco anos e veste-se com roupas de trabalho, usa um gorro de lã sobre a cabeça. Sua roupa está suja de tinta indicando que parou seu trabalho para posar para o retrato. Não é possível saber seu nome, apenas que o tratam por espanhol, não se sabendo se por nascença ou descendência. Como participa da foto pode-se imaginar que se trate de amigo da família da foto. A criança sobre o muro, desatenta do objetivo do retrato, olha para ele como se estranhasse e indagasse sobre quem ele era ou alguma coisa que ele disse. Com seus três ou quatro anos, está vestida com uma roupa quente indicando que o dia está frio, usa botinhas corretivas para os pés chatos e pisada torta.


A mulher ao seu lado é sua mãe. Cabelos fartos e um sorriso feliz no rosto. Curiosamente a única expressão alegre no retrato. Acho que a formalidade, característica principal nos retratos não a influenciou. Veste-se de maneira simples num escuro vestido rodado longo até a canela, calça um sapato baixo de couro e uma japona escura de lã aberta. Seu braço direito pousa atrás da criança complementando a sua segurança. O homem ao seu lado posa no que poderíamos definir como o “self masculino” descontraído dos retratos. Encostado no muro apoiado sobre os cotovelos tem a sua perna direita dobrada e a sola do sapato apoiada contra a parede. Esse hábito masculino da época parece ser a principal causa dos remendos que se vê no muro. É magro como todos do retrato, trinta e poucos anos talvez, veste-se de forma sóbria, camisa muito branca manga curta e calça escura bem cinturada. Usa sapatos de couro escuros, provavelmente pretos e certamente são de amarrar. A última figura do retrato é um menino de uns sete anos de idade. Como o espanhol parece que não se encaixa na imagem, apesar de ficar claro que se trata de outro filho do casal. Acho que o fotógrafo não se posicionou exatamente de frente e no centro do enquadramento, confirmando minha observação de que tinham condições de ter a máquina fotográfica mesmo sem ter habilidades fotográficas. O menino tem altura pouco acima da parte baixa do muro, veste-se com uma camisa branca toda desleixada sob um macacão de brim longo e seguro por duas alças abotoadas acima do peito. Cabelos curtos com franja à moda dos recrutas do exército. Mãos e pés totalmente escuros no retrato, levando-nos a concluir que estavam sujos e que ele parou suas brincadeiras para participar daquele histórico evento. No entanto, olhando com mais atenção ele acaba se destacando pela sua atitude. Encostado totalmente ao muro, mantém suas pernas ligeiramente afastadas, os braços afastados do tronco formam um pequeno ângulo e mãos apoiadas na parede. Estranhamente seu rosto está limpo realçando seu olhar. Olhar fixo e direto na objetiva da câmera como se solenemente curtisse o momento e a oportunidade. Seu aspecto circunspecto destoa na imagem, contrapondo-se à sua mãe que sorri. O quê será que se passava naquela cabecinha infantil naquele exato momento? Ou aquilo apenas era um reflexo do tipo de vida dele e de sua família? Intrigado, me atrevo a conjecturar sobre ele, sobre aquela única imagem real. Para então dela imaginar a sua vida e, principalmente, suas expectativas futuras. Uma criança sempre é um desafio intrigante, inda mais aparecendo daquele jeito naquele retrato.

QUAL A SUA IDÉIA DE SUBLIME? Sublime é envolver e emocionar, oferecer sensações superiores e agradáveis para si e para os outros em qualquer situação ou coisa que se faça. Sublime foi ter a felicidade de poder sentir intuitivamente e aproveitar a oportunidade impar em atender à disposição de estar num determinado local cujo


endereço não sabia ao certo, em um dia e hora não programados, para aí ser abordado por alguém que não se conhece nem nunca viu. Nesse domingo, dia 14 de setembro, minha esposa e eu, já cansados de rodar com o carro por lugares que não conhecíamos, quase desistimos de procurar um local do qual eu tinha apenas uma vaga referência de onde ficava e onde esperávamos ver uma exposição de fotos de um artista santista. O nome também não conseguia lembrar, só sabia que ele tinha realizado e fotografado o Caminho de Compostela na Espanha. Depois de muitas voltas sem rumo passamos devagar em frente ao Memorial e já estávamos indo embora quando me deu vontade de voltar e perguntar ao porteiro se sabia onde estava acontecendo a tal exposição. Dei a volta no quarteirão sob os protestos dela que questionava sobre a possibilidade remota da exposição ser num local como aquele, um cemitério. Para nossa surpresa ele confirmou que era ali no Memorial a tal exposição. Ela acontecia na sala de recepção do prédio principal. Entramos e pudemos perceber que o local é muito agradável e oferece uma integração envolvente com o meio ambiente próximo. Logo, vimos a exposição e as primeiras fotos num dos corredores. Depois de percorrer dois corredores apreciando as lindas fotos e imaginando que o material era só aquele, sugeri para minha esposa sairmos pela entrada principal ali mais próxima. Havíamos deixado o carro pelo lado externo do prédio e entramos pelo estacionamento lateral, assim seria mais fácil sair por ali. Ela, sem sabermos o porquê, disse-me para voltarmos pelo mesmo caminho feito. Quando nos aproximamos da saída vimos que num outro corredor também haviam fotos para serem vistas. Voltamos e seguimos no corredor até onde estavam as fotos. Enquanto admirávamos a qualidade e a beleza das fotos fomos abordados por um cidadão que disse se apresentou como Luiz e que tinha feito o caminho com sua esposa falecida a pouco tempo. Em poucos segundos, sem uma razão específica e sem constrangimento, essa pessoa passou a falar de si, de sua vida pessoal e de como o falecimento de sua esposa havia mexido com sua vida, além de como fazer o Caminho de Compostela tinha sido importante para eles. De início pensei que se tratasse do autor das fotos, mas logo ele esclareceu dizendo que foi para ele uma coincidência a exposição já que aos domingos vem visitar o local de sepultamento da esposa. Deu detalhes de sua morte. Disse que ela já muito doente, tomada por um câncer muito agressivo e em estágio avançado, manifestou interesse de fazer a tal peregrinação, acreditando que isso a pudesse curar. Depois de muitas negativas dele e discussões familiares a respeito, para nós perfeitamente compreensível, ele acabou cedendo ao pedido dela quando o quadro se agravou. Em caráter de urgência fizeram a tal viagem e ela acabou conseguindo realizar todo o percurso, mesmo apresentando alguns percalços e muito sofrimento.


Depois do retorno ao Brasil ela faleceu e ele desde então, ainda em estado de choque, permanece em sofrimento permanente e todos os domingos passa o dia no memorial, se revezando entre o local do jazigo e a portaria onde estreitou amizade com todos os funcionários. Quando acabou de falar eu tentei confortá-lo, ele se pôs a chorar e preferiu se afastar para o outro corredor. Respeitando sua condição não fomos atrás dele, preferimos ver as outras fotos maravilhosas. Minutos depois me aproximei e começamos conversar. Agora era eu quem falava mais e ele ouvia com atenção. Convidou-me para subir ao quinto andar do prédio anexo e lá me mostrou o local onde ela estava sepultada. Curiosamente no mesmo corredor e a poucos metros do jazigo do cantor e artista Chorão. Conversamos bastante. Eu procurei animá-lo e aproveitei para tecer alguns comentários mostrando o que eu achava de suas palavras e comportamentos conforme ele os confidenciara. Senti que ali e naquele momento devia assumir mais do que fazer alguns comentários animadores. Seguindo meus instintos e a intuição, passei a falar mais de como ele deveria se comportar evitando permanecer naquela atitude tão destrutiva e improdutiva assumida pelo sofrimento e por aquela perda irreparável para ele. Depois de voltarmos ao estacionamento ele comentou o quanto havia sido importante nos conhecer e ouvir o que eu havia comentado. Prometeu refletir sobre tudo. Seguimos de volta para casa. Diante de tudo isso, concluo que a Providência promoveu esse encontro, tão improvável em outras circunstâncias, e que me mostrou que o sublime é algo real e totalmente tangível desde que nos apresentemos abertos para os sinais e as oportunidades que a vida nos proporciona.

SAUDADE DO TEMPO EM QUE O BULLING ERA SAUDÁVEL Ele chegou e entrou ofegante como quem havia corrido ou apertado o passo para estar ali. Engraçado, nem atrasado ele estava. Aparência cansada, pareceu claramente que a parte da manhã do seu dia havia exigido muito dele. Além disso, bastava olhar para perceber em seu rosto e braços os efeitos de quem passara muito tempo exposto ao sol inclemente daquele dia de verão. Sem se importar com nada, caminhou entre as carteiras da sala de aula e foi sentar-se na última da fila do meio. Acomodado, deixou-se escorregar um pouco como se procurasse uma melhor posição para relaxar e tornar mais suportável assistir as quatro aulas daquela tarde.


Quieto durante todo o tempo, ele teve o seu silêncio respeitado pelos colegas que já haviam entrado na sala e conversavam entre si. Colocou o material da primeira aula sobre a mesinha à sua frente. Abriu um dos cadernos, provavelmente o da matéria que iniciaria o dia, e tomando uma caneta esferográfica Bic iniciou alguma coisa na folha aberta. Não era possível saber o que ele fazia. Só mais próximo percebia-se que desenhava. Com certeza nada tinha a ver com aquela aula de português, além do que o desenho ainda se apresentava indecifrável à pequena distância. Parecia só um esboço. Não foi possível observá-lo mais, a professora Wilma entrou e logo concentrou a atenção de todos, digo, de quase todos porque nosso amigo estava muito concentrado no que fazia e que parecia ser muito importante. Em seu empenho para apresentar o melhor de sua matéria a professora talvez nem tenha percebido o que se passava, ou ainda, achou mais prudente não perder o foco porque entendesse ser uma perda de tempo e de energia. De vez em quando era possível observar que ele relaxava, como alguém que sucumbe ao cansaço, e cochilando deixava a cabeça cair de súbito, aquilo que costumamos definir como uma pescada. Assustado elevava a cabeça se colocando a prumo, e olhando desconfiado para os lados avaliava se alguém havia notado seu deslize ou à espera da admoestação do professor. Certo é que se preocupava mais com a cena que poderia render gozações dos colegas do que com qualquer ação da professora. Durante toda a tarde e em todas as aulas aquilo se repetiu. Acho que apenas o professor Enil, de matemática, deu alguma importância para a cena. Sorriu de forma sutil, deu de ombros e continuou a tratar do teorema de Pitágoras. Este sim deveria estar se virando em seu túmulo na Grécia observando tanta desatenção e desperdício de tempo. Terminada a última aula, aquele aluno levantou-se arrancou uma folha do caderno, fez uma bola amassada e arremessou-a em direção ao cesto de lixo. Acertou de prima na caçapa. É sabido que nadava bem e que também praticava outros esportes, entre ele o basketball. Arrumou seu material dentro de seu fichário, colocou-o sob a axila esquerda e foi saindo. Próximo da porta fez um leve aceno com a cabeça, sorriu de leve e foi embora deixando para trás imagens das cenas que produziu e um mistério: o quê havia na folha que arremessou para o lixo? Foi então que um dos curiosos, o mais ousado e espeeerrrto como se diz, caminhou em direção ao cesto. Queria ter a primazia de saber o que continha a bola de papel amassado dentro do cesto. Partindo de quem partiu a iniciativa, dava para imaginar que ele maliciosamente buscava muito mais do que matar sua curiosidade, queria mesmo é algum motivo concreto para mangar com o incauto que arremessara a bola de papel.


Diante do cesto de lixo ele abaixou-se, revirou o que havia dentro e separou algumas bolas de papel que encontrou. Colocou-as sobre a mesinha da primeira carteira e abrindo uma a uma foi vendo seu conteúdo e descartando para dentro do lixo. Como ocorre normalmente, a probabilidade de ser a última a bola de papel que ele procurava novamente se repetiu. Avidamente começou a desembrulhar a última bola. O ritual de abrir as outras não só aumentou o mistério como sua ansiedade. Aberta a bola ele esticou o papel para ver o que continha, e nada. Não era possível não conter nada. Pensou que a folha talvez pudesse ter sido amassada ao contrário e a virou. Fixou seu olhar e parou por instantes. De repente soltou um sonoro filho da puta, amassou o papel novamente e o lançou com raiva para dentro do cesto. A violência foi tal que a bola de papel acabou saltando fora do cesto. O curioso não disse nada e saiu irritado com muita pressa. Tudo levava a crer que o esperto havia caído numa armadilha. Fui em direção ao lixo e peguei a bola do chão. Desamassei e comecei a rir alto, até gargalhar. Nela se podia ler bem claro: te peguei, bobão. O desenhista realmente havia se preocupado em dar o troco em algum dos que dele riram. Durante todo o tempo intercalando cochilos e vigília, foi alvo de muitas risadas e cochichos indiscriminadamente. Com certeza simulou tudo arrancando outra folha que não a do desenho que fez durante todo o tempo em segredo. Depois disso, nos outros dias nosso amigo desenhista participou ativamente e normalmente das aulas e do relacionamento com seus colegas. Nem aos mais íntimos revelou nada, só ficou a curiosidade e os boatos sobre aquele dia especial. Quanto ao desenho? Até hoje permanece o mistério daquele tempo em que o bulling era saudável. Nem o trem e o apito da máquina permaneceram. Só o silêncio e a saudade.

UM DIA DE MUITAS SURPRESAS Acordei bem cedo. Preferi ficar mais algum tempo na cama. Mesmo assim, meia hora depois me coloquei de pé e fui me lavar. Passando pela sala resolvi chegar até a varanda. O dia estava lindo, céu azul quase sem nuvens e uma leve brisa fresca. Bons pensamentos e fluídos vieram à minha mente. Não posso esquecer que essa sensação é influenciada pelas muitas coisas boas que tem acontecido comigo. Na cozinha, como de hábito, consumi minhas frutas após a ingestão de meu comprimido para pressão.


Enquanto dava um tempo para melhor aproveitar as frutas consumidas, lavei os poucos copos que se encontravam dentro da pia. Lavei a jarra de vidro para fazer o café, coloquei a água e liguei a cafeteira. Programara sair para São Paulo por volta de nove e meia para encontrar os meus amigos com quem almoçaria para combinar o que seria feito no jantar dos amigos exfuncionários da empresa onde trabalhamos, realizado anualmente no final de novembro e por nós organizado. Enquanto me preparava, repassava na minha cabeça o roteiro que planejei para o livro em cujo rascunho tenho trabalhado intensamente. As ideias reavaliadas são fruto de um processo criativo permanente cujo ápice ocorreu logo após despertar essa manhã. Idéias muito interessantes que acredito darão corpo e movimento adequado à proposta em execução. Decidi que colocaria tudo em um esquema assim que retornasse de São Paulo. Para não esquecer nada do que pensava decidi levar na viagem minha agenda e uma lapiseira. Sempre gostei de escrever com grafite. Escreveria durante o trajeto de Metrô até a estação Carandiru onde um dos amigos me pegaria. O almoço estava programado para ser na Poesia onde outro amigo gostaria. Saudade,eu acho, do tempo em que trabalhava naquela região da cidade. Nesse momento meu pensamento viajou, acho que não foi por acaso. Quando estou bem descansado meu lado criativo é estimulado, por isso eu já havia pensado na estrutura do livro. Nessa viagem imaginária me via entrando no vagão do Metrô, onde um jovem levantou e me disponibilizou o banco azul reservado para idosos, perto da porta. Agradeci e sentei. Não acho mais estranho essa situação. Durante os últimos anos tenho vivido com freqüência essa experiência de cidadania e de educação. No início estranhava porque a atenção de todos se voltavam para mim, hoje acho tudo engraçado e a situação parece estranha quando não acontece. Sentado abria minha agenda e começava anotar aquilo que lembrava sobre a recente inspiração sobre o livro. Não havia ainda percebido no banco ao meu lado esquerdo um menino com sua mãe. Assim que comecei a escrever sentia que era observado insistentemente me virando instintivamente para o lado. Assim foi que pude perceber a presença daquela criança. Devia ter uns 5 anos, carinha redonda e o olhar curioso focado sobre o meu caderno. Sorrindo perguntei se ele ia bem. Não respondeu. Com uma pergunta, me surpreendeu querendo saber o que eu fazia. Disse que escrevia e esperei uma nova pergunta. Ela veio instantânea. Porque você não desenha. Não se interessou nem perguntou sobre o que eu escrevia. A pergunta me colocou diante de uma questão, de um dilema mesmo. Porque realmente eu não desenhava ao invés de escrever?


Da mesma forma que isso me veio ao pensamento, prontamente a resposta se apresentou. Porque preciso escrever e não desenhar. Nesse instante fui despertado desse transe e surpreendentemente o menino disse: - Porque você não desenha um pato? Percebi que não teria mais sossego, o diálogo estabelecido por ele estava longe de terminar. Virei uma folha e diante de uma outra página em branco perguntei a ele. - Por onde vamos começar o pato? Nesse momento muitas pessoas ao redor que acompanhavam o início do diálogo se puseram mais atentas ainda. - O que aconteceria aseguir? Devia ser a dúvida de todos no momento. O menino mais do que depressa respondeu. - Quero um pato branco. Sabia que desceria logo e não seria possível terminar o referido pato antes disso. Decidi por uma saída estratégica. Desenharia apenas a cabeça do pato naquela folha pequena, certamente o esboço seria concluído em pouco tempo. Defini o melhor ponto na folha de papel e iniciei o desenho. Fiz um bico de bom tamanho, diria que era bem respeitável. Em seguida aproveitando a posição do bico desenhei a cabeça. Escolhi a melhor posição para fazer o olho esquerdo. Tinha desenhado o pato ligeiramente de perfil voltado para a direita o que destacava o bico e o olho. Não esqueci os furos com a função nasal entre o final do bico e início da cabeça. Concluído esses elementos principais dei um toque destacando as penas e reforcei algumas sombras fazendo com que a cabeça ganhasse uma proporção tridimensional mais realista. Não tinha ficado uma obra de arte, o tempo e a qualidade do desenhista não permitiam. Assinei o canto inferior direito, destaquei a folha e a entreguei ao menino. Com os olhos esbugalhados e surpresos de encantamento disse espontaneamente. – Brigadu. Um agradecimento ingênuo e puro que desarmou o meu espírito. Não podia imaginar que um pato desenhado com tantas limitações artísticas fosse tão bem aceito e reconhecido. Vivendo e aprendendo muito com aquela criança questionadora. Em nenhum momento a mãe chegou a interferir, nem mesmo para exigir dele o agradecimento como se veria habitualmente. De repente a mãe levantou-se, puxou o filho pelo braço indicando que desceriam na próxima estação. O trem reduziu a marcha e já ia parando, desta vez ela se virou, me olhou e agradeceu.


Puxando a criança que não parava de olhar o desenho encaminharam-se para a porta. Um movimento com um pequeno tranco indicou a parada, em seguida a porta se abriu e eles saíram. Perderam-se no movimento dos outros passageiros que desembarcaram também. Lembrei que nem seu nome eu havia perguntado. Mas que importava, para mim seria sempre o menino do Metrô. Nisso acho que outros passageiros que acompanharam e aprovaram a operação do pato também concordariam. Abriu-se a porta do outro lado indicando que outros passageiros embarcariam. Na frente de um enorme contingente entrou um jovem carregando um cesto de vime coberto. Parou ao meu lado, na saída da porta. Assim que as portas fecharam e o trem se pôs em movimento ele começou a se movimentar no corredor entre os passageiros, dizendo em voz alta. - Bom dia meus senhores e minhas senhoras. Estou trabalhando para sustentar minha mãe velhinha e vendo doces e agradeceria contar com sua compreensão e colaboração comprando alguma coisa. Não é habitual uma cena dessas. A segurança do Metrô age de forma muito eficiente impedindo a entrada de ambulantes nos trens. Ele continuou seu deslocamento até o outro lado da composição e na estação seguinte desembarcou de forma discreta. Se ele vendeu alguma coisa eu não sei, ainda estava em estado de transe pelo episódio com o menino. Logo depois de ter vivido uma experiência tão significativa com o menino do desenho, aquela cena do vendedor de doces acabou por me fazer viajar para um tempo muito distante. Pude me ver parado diante de uma vitrine de doces no armazém do Sr Valter e da dona Crispiniana, vizinhos de onde eu morava. Agora percebia melhor, era eu com a idade próxima daquela do menino do pato. Olhos fixos nos doces, assim como se os quisesse comer com o olhar. Percebia que ficava algum tempo naquela posição e sem ter acesso aos doces ia embora frustrado em direção à minha casa. Aquela cena marcante reascendeu em mim, agora desperto em frente ao espelho do banheiro, uma emoção muito grande. Não posso dizer que tive uma infância ruim, mas foi difícil em muitos aspectos e algumas vezes me lembro disso e fico sem chão. Meus olhas marejaram, lágrimas brotaram em maior profusão e correram pela face. E eu chorei. A realidade da situação e a necessidade de sair para meu compromisso quebrou aquele momento sensível. Lavei o rosto o que não foi suficiente para esconder os olhos vermelhos. Terminei o que fazia, peguei minhas coisas e depois de despedir-me sai. Dentro do carro refiz os procedimentos habituais enquanto aguardava o carro aquecer para colocá-lo em movimento.


Tomado de forte emoção novamente eu chorei. Agora chorava copiosamente; soluçava. Fazia muito tempo que não chorava, muito menos assim. Sabia que tudo era resultado das diversas situações vividas nestes últimos dias e que culminaram naquela lembrança infantil. Novamente um sistema de alerta foi acionado, tinha que chegar no horário para não criar um desencontro com os meus amigos. A viagem exigia um retorno á realidade. Enxuguei os olhos e movimentei o carro. Sai da garagem e em seguida liguei o rádio. O sistema aleatório de busca de áudio foi buscar entre as milhares de músicas do meu pen drive uma música qualquer. Então minha emoção só aumentou ao ouvi-la tocar - PELO AMOR DE UMA MULHER, do Julio Iglesias. Enquanto ouvia parte da letra meu pensamento foi buscar lembranças guardadas há muito tempo. Quando ela terminou, na sequência começou - LOVE com John Lennon. Mais emoção e muita coincidência. Minha cabeça agora viajava por caminhos conhecidos e de muitas lembranças antigas. Na subida da ponte do Mar Pequeno a música CONQUEST OF PARADISE do Vangelis intensificou aquela vibração ainda. Tudo porque eu adoro a música e o filme. Não sabia bem o que pensar. Entre tanta emoção, a surpresa e a dúvida da possibilidade de coincidência, sabia que meu dia já não seria mais igual a tantos outros. Começara intenso e despertando muita sensibilidade. Agora tudo parecia se amplificar como uma onda. Estava extasiado. Quando estava próximo ao final do trecho de faróis da estrada, em São Vicente, o celular tocou. Normalmente não atendo o telefone enquanto dirijo, mas algo me dizia que deveria fazê-lo. Procurei me manter à direita e reduzi a velocidade. Com algum esforço e cuidado tirei o aparelho do bolso e atendi a chamada. Era o meu amigo informando do falecimento de sua mãe. Estava cancelando nosso compromisso do almoço. Na emoção do momento só tive tempo de sinalizar para conseguir virar à direita na última saída antes de entrar na estrada. Não iria mais até a Capital. Meus pensamentos estavam confusos. A surpresa somada ao momento que vinha experimentando tinha mexido com os meus pensamentos e com os meus reflexos. Com o celular e o rádio desligados, pude concentrar a atenção necessária ao trânsito e definir o que faria. Uma placa onde se lia “Jockey Club” chamou minha atenção, sabia que ainda estava em São Vicente. Naquele momento sentia que não seria bom voltar para casa. Tinha a necessidade de me recompor e o melhor que faria seria continuar dirigindo.


Decidi rodar um pouco mais porque sei que isso permitiria que eu me acalmasse. Não sabia exatamente onde estava, mas pelo caminho que fazia podia ver os morros e sabia que por ali chegaria à divisa de municípios, entre Santos e São Vicente. Liguei o rádio e continuei a ouvir a música, agora ela me ajudava a relaxar. Uma nova placa me mostrou que o caminho era aquele mesmo. Muito mais longo, mas era um caminho que me levaria de volta para casa. Não tinha mais o compromisso e agora o tempo passava a contar a favor. Continuava com a sensação de que devia dirigir mesmo que sem um rumo definido. Curiosamente a música seguinte era um coro de abertura usado nas celebrações das monarquias do passado. Algo assim solene, com pompa e circunstância, que se ajustou perfeitamente ao momento. Aos poucos pude divisar melhor os morros e o prédio da Tribuna na av. Antonio Emerick, ali me sentia novamente em casa. Entrando a direita vi o quartel. Um ambiente familiar como aquele despertou uma vontade enorme de circular pela Vila Valença passando nos lugares tão conhecidos e aprazíveis onde vivi um dos melhores tempos de minha vida. Era isso, iria reabastecer meu espírito ali, como se um imã me atraísse para aquele lugar. Na frente do quartel contornei a guarita no canteiro central e na sequência desse movimento entrei a primeira rua a direita. Nessa esquina fica o restaurante Maria Bonita, que era da filha de um meu amigo e onde almoçamos diversas vezes. Já havia descido aquela rua diversas vezes, sabia que no seu final devia entrar à direita e seguir em frente até cruzar a avenida para alcançar a Vila Valença. Sabia que cruzando a avenida estaria na esquina onde morei, na primeira travessa entraria a direita e já poderia ver o número 527 da casa. Assim eu segui o improvisado roteiro. Quando entrei a direita iniciou a música - LONG LONG da Enya. Linda. Num entroncamento escolhi a rua em frente, sabia que devia ser por ali. Música alta contagiante. Mesmo me sentindo mais calmo, achava que precisava de algo mais, só que não sabia o que era. Uma placa me informava onde eu estava. A rua escolhida tinha nome, Uberaba. Não podia ser que estivesse ali apenas porque precisava de colo? Segui em marcha reduzida, atento a todos os portões, casas e jardins. Acho que esperava a sorte me ajudar. O que poderia eu encontrar ali naquele local pouco familiar? Talvez até conseguisse além do colo um café fresco que viria a calhar naquele momento. Pensei sorrindo. Quase no final da rua tinha uma obra no meio da pista, passei por aquele obstáculo e atravessei a avenida. Como era de se esperar nada aconteceu para satisfazer minha curiosidade e minha expectativa. Mesmo assim tinha valido muito aquela sensação e toda aquela expectativa.


Segui o plano inicial e pela Rua Fernando Costa, passei devagar pelo número 527. Continuei seguindo até a esquina onde fui ver o apartamento que algum tempo antes tinha ido ver para morar. Ao virar a esquina logo vi o número 377. Passei devagar como se pudesse rever o portão de madeira pequeno e baixo que um dia ali existiu. Segui até virar na Fernando Prestes para ir embora. Enquanto aguardava o sinal abrir tocou a música MIRACLE do Queen. Indo embora, agora bem mais calmo revi tudo que aconteceu e como aquela trilha sonora aleatória acabou compondo um fundo musical extraordinário num momento tão especial. Não acredito em coincidência. Preferi desconfiar das reais intenções do destino galhofeiro. Como nunca perco a fé na Providência, acredito que deve existir um motivo e um significado para tudo isso. Quem sabe algum dia isso venha a se descortinar. Até lá aproveito para curtir um dias de muitas surpresas.

UM ROSTO, MIL IMAGENS Intrigado, pensei já ter visto aquele rosto, aquele olhar. Impossível naquele momento esclarecer tanta cisma. Um rosto feminino normal que apresentava um carisma especial. Poderia enquadrá-lo entre uma infinidade de rostos bastante comuns, mas algo nele fez sobressair, atração pura. Percebi de imediato uma energia pura, transbordante e estimulante. No olhar, uma luz brilhante e muito sutil era potencializada no evidente embaraço daquela mulher. Meu pensamento ia e voltava num esforço transcendente de investigação. Ainda cismava, continuaria cismando buscando obter a resposta. Teimosia? Foi então que decidi relaxar, reduzir aquela ansiedade bloqueadora. Queria e enxergaria o que ainda não conseguia ver. Olhei detidamente para aquele rosto e percebi que não refletia exagerada vaidade, parecia até muito singelo. Novamente ele se desviou instintivamente, como se defendendo, constrangido diante de meu olhar insistente e inquisidor. Às vezes não me dou conta do quanto sou invasivo. Esqueço que os outros podem não gostar e não permitir tamanha intimidade invasora e inconveniente. Mesmo assim foi possível ver um sorriso fácil e franco, os lábios com leve colorido, nariz normal, cabelos compridos ligeiramente ondulados e orelhas usando brincos discretos e parcialmente ocultos. Mais comedido e sem tanto cismar, por empatia pude enxergar o rosto melhor, percebendo naquele olhar tímido agora mais acostumado, qualidades de uma alma especial.


Reconheci nele a imagem de um espírito guerreiro, daquele que escolhe e sabe seu destino, por isso busca o maior e mais nobre dentre os desafios, tornar-se sempre melhor. Saber e conhecer estão no seu caminhar seguro. Atenção e disposição mostram que leva jeito para não deixar passar as oportunidades. Atrevido inferi que aquela mulher apresentaria uma permanente disponibilidade para solidariamente estender as mãos a quem lhe solicitasse. Enquanto olhava através daqueles olhos uma diversidade de outras imagens desfilaram em minha mente. Assim satisfeito, pude encontrar e conhecer uma pessoa do nosso tempo. Questionadora, atualizada e integrada a essa sociedade em completa ebulição. Foi aí que me dei conta de que já havia visto aquele rosto. Agora tinha certeza absoluta. Não era de ninguém próximo a mim e nem conhecido, mas mesmo assim era realmente familiar e especial. Tudo teria sido mais fácil se ao invés de olhá-lo eu apenas tivesse sentido o que ele irradiava. Senti a bondade, dignidade e a nobreza que me mostraram verdadeiramente o rosto de um ser especial e de boa vontade.

VIAGEM A SÃO VICENTE Setembro de 1967, um sábado. Muito cedo, madrugada ainda. Seus pais ainda dormiam. Ele fez tudo que precisava no maior silêncio. Saiu fechando a porta da frente, trancando-a com duas voltas na chave. Abriu o portão e saiu. Tinha de caminhar rápido em direção à parada de bondes no final da rua em que mora. Está bem escuro e apesar de caminhar pelo meio da rua para evitar o risco de ataque de algum cão solto sabe que tem de olhar para o chão e não cair em algum buraco. Além da bagagem carrega um pedaço de pau para se defender caso seja atacado por algum cão. Os cães na vizinhança são muito agressivos e protegem o território próximo onde moram. Avançam em quem passar perto dos portões e grades das casas de seus donos. Quando o portão está aberto ou já se encontram na rua é impossível andar pela calçada sem ser mordido. Tinha uns seiscentos metros para percorrer e não queria perder o primeiro bonde que passaria em direção ao bairro de Santo Amaro. Avançou com muita disposição porque tem um bom motivo para chegar à parada do bonde.


No ponto final da linha que liga o bairro até o centro da capital, na Praça João Mendes, pretendia pegar o trem de passageiros da Estrada de Ferro Sorocabana em direção ao litoral de São Paulo. Como caminhava depressa chegou rápido ao seu primeiro destino. Quando passava o mata burros olhou para a esquerda e viu a luz fraca do farol da frente do bonde que se aproximava, mais ou menos lá na altura da igreja Nossa Senhora Aparecida. A parada do bonde onde se encontrava fica na da Avenida Pavão. Passando pela roleta aguardou o bonde chegar próximo para ser visto no escuro enquanto estendia o braço direito sinalizando sua intenção de embarcar. Eram seis e meia, a viagem até o embarque do trem deveria demorar em torno de 40 minutos. Pagou a passagem e se sentou num dos bancos de madeira próximo da porta de saída do lado direito. Acomodou melhor a pequena mochila que transportava e onde levava apenas roupas indispensáveis para apenas uma dormida na casa que seus tios mantinham em São Vicente. Voltaria no dia seguinte, no trem que passava em São Vicente ao meio dia e meio. A viagem era muito especial, tinha um encontro onde esperava resolver definitivamente uma situação que há dias vinha lhe atormentando o sono e a sua rotina diária. Sabia que tina bons motivos para acreditar que teria sucesso nesta viagem. Preparou-se para aquela entrevista com muito cuidado e carinho, além disso, abriria seu coração como nunca tinha feito até aquele momento, na experiência dos seus 16 anos de vida. Viajava de trem porque não podia viajar por um meio de transporte mais rápido, o ônibus intermunicipal que saia do centro da capital. Como menor de idade não poderia viajar sozinho e sem autorização dos pais. A viagem toda durava em torno de cinco horas, considerando uns quinze minutos para chegar até a parada do bonde, quarenta minutos de bonde até a estação do trem em Santo Amaro, quatro horas de trem até o destino e mais quinze minutos até o endereço final. A volta não seria muito diferente. Não reclamava e nem desanimava, sabia que aquilo era a única solução para ir ver quem ele gostava. Um grande esforço que não representaria nada depois de conseguir o que pretendia, reatar seu namoro. Amava muito aquela menina e faria muito mais se necessário. Exatamente às oito horas avista o trem se aproximando. Vem pela marginal direita do rio Pinheiros desde o bairro da Lapa. O trem saindo da estação próxima à ponte de Interlagos seguia pela zona sul do município de São Paulo avançando pela Serra do Mar numa estrada que serpenteava o


outro lado do vale por onde corre o rio Cubatão e podia ser vista do outro lado da serra da Via Anchieta. Hoje também pode ser vista da Rodovia dos Imigrantes. A composição fazia uma baldeação em São Vicente, no Bairro de Samaritá onde se dividia. Uma das composições seguia transportando passageiros até Peruíbe, passando pela Praia Grande, Mongaguá e Itanhaém e a outra seguia em direção ao centro de São Vicente e a Santos chegando até o porto. Seguia descendo gradativamente do planalto até o litoral parando em estações minúsculas pelo caminho. Seus nomes – Marsilac, Barragem, Pai João e Mãe Maria, antes de chegar a Samaritá. Bordejando pela encosta do morro atravessava vinte e nove túneis abertos na rocha e alguns viadutos de tirar o fôlego. Uma engenharia de muita competência que tornava o deslocamento em algo deslumbrante pela paisagem ao redor e de tirar o fôlego ao mais corajoso ao passar por abismos onde não era possível ver a sustentação dos trilhos. De lá seguia para o centro de São Vicente passando pelo que é hoje a Via Amarela. A estação ficava na esquina das Ruas Campos Salles e Benjamim Constant, atrás da fábrica de vidros Saint Gobain, antiga Vidrobrás. Ele descia do trem e seguia pelo lado esquerdo da estrada de ferro até passar a Avenida Antonio Emerick, seguindo pela Rua Marechal Deodoro até o número 705, a casa que seus tios ainda mantinham em SV. Acho que comeu alguma coisa na padaria na esquina da Rua Marechal Deodoro e Av. Nossa Senhora das Graças, cujo nome não lembrava mais. A grana curta deve ter permitido que comesse apenas um sanduiche misto quente e um refrigerante, com certeza um guaraná Antártica. Dali seguiu pela Av. Nossa Senhora das Graças, entrando à esquerda na Av. Julio Prestes. Esse era o caminho que o levaria ao meu compromisso especial. Um compromisso só seu, porque quem ele visitaria nem sabia que ele viria. Não tinha como avisá-la, tinha de correr o risco assim mesmo. Seria uma surpresa realmente. Determinação sempre foi um de seus pontos fortes. Tentaria mesmo que as condições fossem adversas e as chances fossem pequenas. Sabia que estava bem preparado, havia se esforçado para encontrar argumentos que mostrariam quanto gostava dela. Além disso, trazia como presente uma cópia do seu diário pessoal como forma de provar o que falava. Seria assim como um endosso. Chegou a pensar na possibilidade de ter de se humilhar, se fosse necessário. Não podia perder o amor da sua vida. Valia qualquer coisa. Acho que deve ter entrado na igreja antes de seguir até a casa dela, para uma conversa muito íntima para pedir ajuda na consecução de seu objetivo. Andou mais algumas quadras até chegar à frente da casa onde ela morava. Sonhara muito com aquele momento. Nada o faria desistir. Puxou o fôlego e tocou.


Quem o atendeu no portão de madeira baixo foi a sua avó. Depois de cumprimentá-la pediu para ver a jovem. Tremia dos pés à cabeça, mas tinha de manter o controle. Pareceu que estava com sorte, sua paixão estava em casa e sua avó pediu que aguardasse enquanto ia chamá-la. Coração aos pulos esperou pouco tempo, apesar de parecer uma eternidade. Entre surpresa e desconfortável pela visita ali em sua casa ela o cumprimentou. Ele retribuiu e permaneceram em pé junto ao portão. A conversa não engrenava e levou algum tempo para o clima entre ambos se dissipar. Algumas coisas foram ditas atualizando o tempo em que estiveram distantes. Conversaram outras coisas mais leves necessárias para ambientá-los e permitir que se entendessem. Acho que transcorreu mais de meia hora até que ele se sentisse seguro para cumprir o que se propusera fazer. Iniciou meio sem jeito, mas aos poucos foi ganhando confiança. Disse tudo que queria dizer, o que sentia e mostrou quanto queria que as coisas voltassem ao que era. Gostava muito dela e que sentia sua falta, tudo agravado pela distância que os separava depois que sua família mudou de município, para a capital. Relembrou as muitas cartas que foram trocadas até que recebeu a última desmanchando o namoro. Que chorara muito naquele dia e à noite. Comentou que a carta era muito fria, muito diferente das anteriores e que representou para ele um sofrimento intenso que já durava meses. Sua viagem não foi imediatamente após o rompimento. Não tinha como fazer isso de uma hora para outra devido os diversos obstáculos que se apresentavam. Foram necessários esforços especiais para materializar essa viagem e superar as dificuldades para conseguir viajar sozinho nas condições em que essa viagem ocorreu. Nunca se importou e nem desanimou, tinha de tentar e à medida que a data se aproximava mais seguro se sentia. Agora estava ali junto dela e nem lhe passava na cabeça a possibilidade de não conseguir reatar o namoro. O tempo passava rápido e já entardecia. Apesar de abrir seu coração como nunca havia feito e de reafirmar quanto gostava dela percebeu que ela não se sensibilizava. Ao contrário, demonstrava impaciência para entrar, alegando que seria reprendida pela avó por ter ficado tanto tempo no portão. Então, em dado momento ela falou que não tinha mais interesse em manter o namoro porque não gostava mais dele. Ele sentiu vontade de chorar, de implorar e pedir para ter uma nova oportunidade. Muito triste preferiu calar. Lembrou-se do diário pessoal, mas preferiu não falar sobre ele e nem dá-lo a ela. Sentiu que realmente nada adiantaria, isso ficara claro na forma como ela falara.


Despediram-se friamente. Nem a possibilidade em manter a amizade foi considerada. Ele pensou que nem isso ele teria. Nem para sua consolação. Saiu dali totalmente decepcionado e sem qualquer motivação. Não imaginava quanto tudo aquilo o faria sofrer a partir daquele momento. Atordoado conseguiu chegar à casa dos seus tios. Tomou um banho para relaxar. Ficou sentado ali na sala sem saber o que fazer. Não havia considerado em nenhum momento aquele desfecho. Esperava que tudo pudesse ficar bem e á noite os dois pudessem andar de mãos dadas pelo calçadão da praia. Tinha sonhado tanto em poder abraçá-la e beijá-la. Lembrou de que se esquecera de lhe deixar o diário. Confiava no impacto que ele teria caso ela o lesse. Considerou a possibilidade de sair imediatamente e levar. Seria uma última tentativa. Desistiu depois de considerar todos os acontecimentos daquela tarde. Estava convencido de que nada mudaria e nem poderia fazê-la rever sua decisão. Ficar na casa sozinho, naquelas condições, seria pior. Pensou. Saiu em direção ao centro, antes passaria no clube da cidade e veria se encontraria alguém conhecido com quem valesse a pena conversar e passar algumas horas. Não encontrou ninguém, nem atividades estavam acontecendo no clube. Sentiu fome e decidiu ir para a Praça Barão do Rio Branco onde sabia poderia comer uma pizza num restaurante conhecido. O restaurante Itapura era bem pequeno, naquele tempo ficava na esquina da rua Jacob Emerick bem na praça, depois se transferiu para local vizinho da Ponte Pensil e atualmente encontra-se na avenida Presidente Wilson. Sentou-se e pediu o tipo de pizza que mais gostava de comer, de mussarela. Arriscou pedir uma caneca de vinho tinto seco servida na casa. Ninguém perguntou sua idade e o serviram de meio litro da bebida, de fabricação do sul do Brasil, fracionada de um garrafão. Comeu a pizza toda e bebeu toda a caneca de vinho. Pareceu que precisava buscar uma compensação para tanta frustração e tristeza. Saiu de lá e seguiu em direção à casa dos tios. Cansado precisava descansar. Sentia que a quantidade de vinho consumida havia mexido com ele. Estava um pouco alto e durante todo o trajeto andou meio trôpego. Não era suficiente para cambalear e chegar a cair, mas em algumas vezes falseou o caminhar. Nessa noite dormiu pesado devido o efeito do álcool ingerido. Quando acordou já era adiantada a manhã. Percebeu que não conseguiria nem dar uma passada na praia para rever os amigos. Levantou-se rapidamente e se aprontou. Precisava seguir para a estação. No caminho faria o seu desjejum. O apito da máquina indicava que o trem chegava à estação. Pegou seus pertences e aguardou na beirada da plataforma. Durante a viagem pode pensar em tudo que se passara.


Concluiu que sofreria muito, mas sabia que a vida continuaria e ele nĂŁo se deixaria abater ao ponto de comprometer seu futuro. Quanto a ela nĂŁo sabia exatamente o que pensar e fazer. Preferia deixar o tempo se encarregar de fazer os ajustes necessĂĄrios. Talvez um dia pudesse superar aquele trauma e lembrar-se dela com carinho. Afinal ela sempre seria o amor da sua vida.


Luiz Antonio de Carvalho, um simples vendedor de pão de mel, nasceu no dia 23 de maio de 1956, em Santos, mas aos dois anos mudou-se para o Guarujá. Foi lá que viveu toda sua infância e adolescência. Começou a se interessar pela leitura aos nove anos e a escrever aos doze anos, época em que deu seu primeiro beijo. De família pobre, desde novo ajudou nas despesas da casa, vendendo sorvetes e doces na esquina do colégio em que estudava. Nas décadas de 80 e 90, sem muito incentivo, participou de alguns concursos de literatura, ganhando uma menção honrosa, em Guarujá, com o conto “Uma folha de papel” e vencendo um festival de poesias, sem premiação, em Cubatão com as poesias “Do Gênese ao Apocalipse” e “Pária”. Concluiu os cursos na Estação da Cidadania “Como escrever um livro” no ano de 2014 e “Escrevendo um livro” no ano de 2015. Escreveu o livro, ainda inédito, “Seredop, o escolhido”. Atualmente concluindo a trilogia de “Seredop” e escrevendo o livro “Alurê, o encontro das sombras”. Hoje, aos 59 anos continua escrevendo e se intitula um ajuntador de palavras.

Ajuntando Palavras

GÊNESE Sou o tudo num nada. Uma alma encanada através do silêncio que está em mim. Atravesso o tempo e em instantes revivo os três tempos. Sou o nada num tudo. E nesse nada, eu me transformo e fico mais feliz.

MEU MUNDO E NADA MAIS Setembro de 1976. O inverno findando, mas ainda rigoroso. Num fusca verde musgo, ano 68, quatro amigos inseparáveis estavam indo ao bailinho de fim de semana. No volante, Ferreirinha, um baixinho de cabelos por sobre as orelhas com uma pele bronzeada, o mais bonito dos quatro e o mais galanteador. O carona ao seu lado, conhecido por Moreno, fala mansa, um cara sempre tranquilo. Sentados no banco de trás, Zoiudo e Marinho.


Zoiudo por causa dos olhos grandes e sempre alertas na captura da presa da noite. De todos era o que tinha menos atrativos, entretanto o mais pegador. Por último, Marinho, um jovem sonhador de olhos claros e cabelos compridos, romântico e o poeta da turma, apesar de estar passando por um momento de revolta. Essas saídas de final de semana dos amigos eram muito interessantes porque somente o Ferreirinha tinha carro. Se ele arrumava uma namoradinha e um dos outros três também, esse tinha carona garantida e os outros dois se viravam com o buzão. Mas se fosse o contrário, que era muito difícil, e o Ferreirinha ficasse de mãos abanando, os solteiros voltavam com ele e os pares ou par se limitava ao FNM. Isso tudo era preestabelecido para não causar constrangimentos. Entendiam-se muito bem, pois no tempo que a amizade esteve mais próxima, nunca brigaram. Pois bem, naquela noite decidiram que se um deles conhecesse alguém marcaria um encontro para outra semana, porque após o baile, na madrugada adentro haveria a reunião da FAB¹, um grupo que ganhou força nos meados da década de 60. Durante o trajeto eles ouviam no toca-fitas do carro uma coletânea de sucessos recentes de vários autores e uma música chamou a atenção dos amigos. __ Essa é explícita. __ Observou Moreno. __ Fala claramente sobre a Ditadura. __ Que Ditadura o quê? __ retrucou Marinho, dando um tapinha na cabeça do amigo. __ Pega aqui que tu vai ver a dita dura, seu mané. __ E deu uma sonora gargalhada. Os outros dois também riram, mas Zoiudo questionou: __ E não é sobre a Ditadura? __ Eu não estou falando da música, apesar de que ela me transmite sensações diferentes às de vocês. __ Marinho responde num tom melancólico. __ Eu falo da palavra que vocês empregam. Para mim e para muitos o que aconteceu no País foi uma intervenção militar que dura por doze anos. __ Eu estou dentro desses muitos. __ Observou Ferreirinha, sempre de olho na estrada. __ Tinha que ser dado um fim nos terroristas comunistas que queriam tomar o País. __ Mas o que você me diz de tantos inocentes que morreram por aí a fora? __ Perguntou Moreno, olhando de soslaio para trás. __ Bicho, inocente morre todo dia. __ Falou Marinho num tom aborrecido. __Pergunta para teu cunhado que é zagueiro e joga, como eu, o futebolzinho na várzea se, depois do jogo ele ficar de bate papo com os bandidinhos que jogam no mesmo time, não corre o risco de ir para o buraco... Ferreirinha para o carro bruscamente. __ Zoiudo, troca de lugar comigo rapidinho. Minha carteira está vencida. __ Putz! Uma batida policial. __ Exclamou Moreno. __ Minha carteira está vencida. __ Gritou Ferreirinha. O carro parou a uns cinquenta metros da batida e os quatro saíram observando um dos pneus simulando que havia furado. Nesse rebuliço houve a troca de motorista e seguiram até serem barrados pelos policiais. O interrogatório e a vistoria no veículo foram rápidos até que o policial que os interrogava dar a ordem para seguirem em frente. Antes do término do baile, os amigos decidiram sair porque se aproximava o horário do encontro da FAB¹. Zoiudo como quase sempre se enroscou com uma mina qualquer, mas a prioridade naquele momento era a ideologia existente em suas mentes.


Avançava a madrugada pela a noite adentro quando os quatro amigos voltavam para suas casas. No toca fitas rolava a mesma fita e por coincidência tocava a música polêmica. __ Essa música tem tudo a ver com o que foi falado hoje na reunião. __ Disse Moreno. __ Cara, já vem com esse papo da música novamente? __ Perguntou Marinho fazendo cara de mau. Ele sempre fazia essa cara quando discordava de algo. __ Então, diz aí o mané! Por que essa canção lhe toca tanto? __ Perguntou Zoiudo num tom de deboche. __ Sem tirar sarro, zoinho de cururu. __ Retrucou Marinho. Dando um tapa na cabeça do motorista. Depois da batida houve uma troca de motorista permanente. Ferreirinha estava renovando a carteira naquela semana. __ Tudo bem, meus parças. Vocês venceram. Sabe aquela mina que eu estava com uma transa legal até o mês passado? Pô! Ela ficou sabendo das nossas ideias e me largou. Ela é a favor dos que queriam tomar o País. __ E tu já estava gostando da mina? __ Perguntou Ferreirinha galanteador. __ Até que estava curtindo a mina, mas levei um pontapé na bunda por causa de ideologia. E quando ouvi a música pela primeira vez percebi que tem a ver com tudo que ultimamente está acontecendo comigo. Como assim, Marinho? __ Questionou Moreno. __ Fiquei revoltado com a atitude dela e ao mesmo tempo culpado pelas minhas atitudes. Ainda bem que a culpa já passou e continuo com o mesmo objetivo. Pensei muito em ir embora, dar um sumiço, mas a falta de dinheiro por estar desempregado e amizade que tenho com vocês pesou muito na balança. Além disso, o desapego pela família em geral e o distanciamento de Deus, faz tempo que não oro, me fez refletir ao ouvir essa música. __ É verdade! Lembra muito a letra da música. __ Observou Zoiudo. __ Mas a gente não sabia de nada disso... __ Não fica assim não, bicho. __ Falou Ferreirinha. __ Tudo vai melhorar na sua vida. E estaremos sempre juntos. Marinho foi o último a descer do carro de Ferreirinha, pois morava na mesma rua que o amigo. O tom escuro da madrugada transformava-se na claridade do amanhecer quando entrou em sua casa. Tomou um banho e, mesmo com o corpo cansado, o cérebro ainda transgredia o cansaço mental. Sentou-se à frente da pequena mesa em seu quarto e escreveu: Meu “eu” presente Meu chiclete de bola na boca, minha roupa amassada e rôta porque não quero trocar. Meu bolso sempre sem dinheiro, minha madrugada não tem paradeiro porque não posso parar.


Meu cabelo ao vento espalhado, meu rosto cansado e marcado porque não quero dormir. Meu desejo de sumir deste lugar, meu trio que me força a ficar porque não posso partir. Meu ideal de ainda ser gente, minha tristeza me torna contente porque não quero chorar. Minha vida que é problemática, minha noite solitária e apática porque não posso falar. Meu baile de fim de semana, minha mãe que todo dia reclama porque não quero ouvir. Minha poesia para novos e antigos, minha turma me chama de amigo porque não posso ferir. Meu mundo, meu corpo, minha mente, minha criança está em mim presente porque não quero calar. Meu início, meu meio, meu fim, nunca vou deixar de ser assim porque não posso mudar. 09/09/1976 Aquela poesia foi o divisor de águas em sua vida. 1. No meu mundo e nada mais – Musica do álbum “Guilherme Arantes” lançada no ano de 1976 em pleno Regime Militar. 2. FAB – Facção Anticomunista Brasileira – Grupos de jovens que lutavam contra o Comunismo.

O PRANTO DAS NUVENS


Eu e minha netinha estávamos voltando da escola dela quando próximo ao portão da casa, ela olhou para cima e disse: __ Olha vovô, que linda! __ O quê, querida? __ Perguntei e também olhei na mesma direção que ela. __ O coração. __ Disse ela com um sorriso nos olhos. __ Que coração, Bebella? __ A nuvem-coração, vovô. __ Ela apontou para o céu. __ Ah! A nuvem-coração... Como eu não haveria de ver. Vou tirar uma foto. __ Tira, vovô... Tira, vovô... __ Ela toda alegre. __ E manda pelo WhatsApp. __ Tá bom! Eu falo para a tia Renata enviar pelo WhatsApp. __ Disse o avô fazendo uma cara de que não tinha paciência com essa modernidade. __ Você sabia, Bebella, que há muito tempo as nuvens falavam? __ Verdade, vovô? E elas falavam o quê? __ Perguntou a menina meio desconfiada. __ Falavam muitas coisas. Eu vou te contar uma história sobre as nuvens. Entraram na casa e de imediato a menina sentou-se no sofá e pediu para o avô contar a história. ‘Há muito tempo os homens viviam brigando entre si. Cada um se importava consigo mesmo sem querer saber do outro. Lá em cima, no céu, as nuvens assistiam a tudo e ficavam muito triste. Por isso elas choravam e caia uma chuvinha aqui, outra ali. Existiam vários tipos de nuvens e dentre elas, as nuvens vigias. Num certo dia, duas nuvens vigias conversavam: __ A nuvem-Rainha está muito chateada com o que está acontecendo na Terra. __ Disse a nuvem Zela. __ Acho que logo, logo, ele vai dar alguma ordem para as grandes nuvens cinzentas. __ Falou a nuvem Zinha. __ Você vê como os homens lá embaixo vivem em guerra. __ Nuvem Zinha falou com os olhos entristecidos. __ Pois é, a maioria deles são egoístas. Nuvem Zela, preocupada. __ Só olham para o seu próprio umbigo. __ Vamos voando contar todas as novidades para nuvem Tinho, a porta-voz da nuvemRainha. Nuvem Tinho de imediato foi contar à nuvem-Rainha. __ Então, Vossa Majestade, a coisa lá embaixo está feia. __ Conte-me tudo nuvem Tinho. Não quero que fique um arzinho de fora nessa conversa. __ Os homens estão se matando em forma de guerras e matando os animais sem distinção do qual é necessário ou não. __ Isso é muito ruim. __ Disse a nuvem-Rainha, indignada. Ela tinha um nome muito bonito. Ela se chamava nuvem Tania. __ Precisaremos tomar providência e fazermos algo descomunal para acabarmos com isso. Enquanto isso as nuvens-vigias vigiavam é lógico. __ Você percebeu que entre todos os homens maus existe um que respeita os ensinamentos do grande Deus? __ Perguntou nuvem Zela. __ Sim. __ Disse nuvem Zinha. __ Ele e toda sua família.


__ Acredito que exista algo extraordinário para esse bom homem e os seus. __ Observou nuvem Zela. E lá foram elas novamente voando avisar a nuvem Tinho que por sua vez foi até a nuvem-Rainha contar a novidade. __ Senhora, entre toda a maldade dos homens foi encontrado a bondade de um homem e sua família. __ Disse nuvem Tinho, reverenciando nuvem Tania. __ O que fazer? __ Vamos enviar uma nuvem em forma de anjo para comunicar a esse bom homem o que ele tem que fazer junto a sua família. Então foi enviada à Terra a nuvem mais rápida que havia no céu. A nuvem Daval. Ela foi em forma de anjo e encontrando o bom homem disse tudo que ele deveria fazer antes do grande acontecimento. Passaram-se alguns meses e num certo dia, quando os preparativos nas terras do bom homem haviam encerrados, a nuvem deu uma ordem à nuvem Tinho: __ Avise a todas as nuvens cinzentas e também as menos cinzentas para que fiquem mais tristes e caiam em prantos. Aconteceu que o choro foi tão grande que durou quarenta dias e quarenta noites e quando o chororô terminou, somente o bom homem, sua família e todos os animais que ele colocou na grande arca estavam vivos para um novo recomeço.

NUM PISCAR Naquele instante, no exato instante, ele não pensou, não viu, não falou, não ouviu, não cheirou, não sentiu e nem o sangue percorreu as suas veias. O coração parou. Um instante transcorrido em milésimo de segundo. Um instante em que não aconteceu absolutamente nada. Do mundo para ele e dele para o mundo. Se durante os seus noventa e seis anos fosse possível agrupar esses instantes, ele ficaria numa inércia total por quatorze dias seguidos. Ele morreu sem saber dessa descoberta, mas o que acrescentaria à sua vida tão intensa em saber que por mais de um bilhão de vezes as suas pálpebras se encontraram? Acho que apenas seria mais uma informação.

A PRAINHA Houve um tempo no qual um menino loirinho de cabelos esvoaçantes imaginava que um lugar como aquele nunca deixaria de existir. Um lugar em que as tardes de sábado passavam, mas ele continuava ali aguardando o outro sábado. Nos dias de hoje se fala para uma criança de quatro anos: “Que menina linda!” E ela retruca: “Eu não sou menininha... Eu já sou uma mocinha.” E a mãe acha engraçada a forma como a filha fala. Também estamos vivendo a era Anitanaldiana, onde crianças com menos de sete anos balançam o bumbum no ritmo alucinado do funk, até um bom ritmo para se dançar, mas com letras apodrecidas construídas por mentes poluídas. E os pais vêm tudo com certa naturalidade que profetiza algo de muito ruim lá na frente.


Mas naquela época do menino loirinho, início da década de 60, época do rock roll, jovem guarda, as músicas eram mais suaves e as letras menos infectantes. E nessa época um menino loirinho com a idade de sete anos ainda era considerado uma criança. Criança que gostava de jogar bola no meio da rua, empinar pipa, rodar pião, e também ir às tardes de sábado naquele lindo lugar. Da sua casa até o lugar mágico era pouco mais de mil metros de caminhada. Pouquíssimas casas ainda existiam por lá e todos se conheciam. Normalmente ele ia com a mãe, a irmã solteira e o pai, quando não estava trabalhando. Às vezes, o irmão adolescente também acompanhava a família, mas somente quando os compromissos da sua idade não atrapalhavam. Mas Pafúncio, o fiel amigo do menino loirinho, esse sempre ia ao passeio, não faltava um sequer. Pafúncio era um cachorro da raça teckel, pouco maior que o tamanho padrão da cor marrom e muito esperto. O menino havia ganhado o cachorro recém-nascido com a idade de dois anos. Então nessa época, Pafúncio contava com cinco anos e poderia ser chamado, por que não, de um menino marronzinho. E os dois, juntos, se divertiam muito. Chegando-se ao belo lugar, o menino e Pafúncio caminhavam deixando marcas na areia branquinha até a beira d’água. Ali, as mansas marolas molhavam os pés do menino e as patinhas do animal. Então, o menino pegava um pedaço de pau e o arremessava a uns cinco metros de distância. Pafúncio se jogava na água e logo em seguida trazia a madeira entre os dentes e depositava aos pés do menino. Em alguns desses passeios, a família catava grandes mariscos incrustados nas pedras que a mãe, no dia seguinte, preparava uma gostosa panelada de arroz branco. E assim eram alguns sábados do menino loirinho e sua família. Uma parte do lugar ainda existe, mas infelizmente, o branco da areia ficou acinzentado e o pedaço de pau se transformou em ferro. O porto do lado de lá também tomou conta do lado de cá.

UMA LUZ NO ABISMO __ Mayday! Mayday! Mayday! O pequeno submarino de três metros de diâmetro começou a cair e do observatório no fundo do navio-mãe os tripulantes viram a luz da sonda, diminuir de intensidade na imensidão de um abismo sem fim. Ao leste da costa da Groelândia, o geólogo John Lindsay e seus dois assistentes, Michael Logan e Diego Benites, funcionários de uma empresa petrolífera canadense faziam suas pesquisas a setecentos metros abaixo da superfície marinha. Um serviço rotineiro em mapear e monitorar o solo oceânico, e através desse trabalho encontrar reservas de petróleo e gás natural para futuras explorações. O submarino, com os seus tripulantes, estava posicionado numa plataforma rochosa reconhecida como segura. Dali, por um determinado tempo podia-se observar e ficar na escuta para se ter a certeza que não havia mamíferos nas redondezas, pois o funcionamento do sonar pode acarretar danos enormes em baleias e golfinhos. Estes animais, muitas das vezes, têm


seus tímpanos perfurados e até por fugirem de seu habitat, encalham em outras praias e morrem. Durante esse intervalo os três companheiros de trabalho, e amigos particulares, aproveitam para assistirem o balé impressionante de pequenos seres luminosos, transparentes, algumas espécies ainda nem conhecidas. Eles filmam tudo para também mostras a seus familiares. Naquela profundidade o mar é frequentemente calmo. A pouca correnteza é quase imperceptível, mas de repente um turbilhão veio de encontro ao pequeno veículo e o arremessou à parede rochosa. Ao bater na rocha, o submarino voltou e despencou para as profundezas. Ainda deu tempo de ver o enorme tubarão, tão grande como uma baleia da Groelândia com seus 14 a 18 metros. Eles perceberam que se tratava de uma espécie de tubarão por causa da cauda e nadadeiras dorsais típicas deste animal. Mas não haveria tempo para comunicarem o fato ao mundo porque o impacto fora tão grande que danificou a parte elétrica e instrumental do veículo. Eles estavam indo de encontro à morte. Após alguns segundos de uma descida vertical, o submarino aportou em areias tranquilas que tinham um brilho inexplicável e davam certa luminosidade naquele lugar profundo. Havia afundado por mais dois quilômetros além da plataforma. O submarino fora construído para suportar apenas mil metros de profundidade. Logo o ar no compartimento estaria rarefeito e com a pressão externa morreriam em alguns minutos. Deram-se as mãos e rezaram como nunca o fizeram antes. De repente, numa das escotilhas laterais, surgiu uma mão membranosa e muito clara. Logo em seguida um rosto muito semelhante ao homo sapiens, mas ossudo e também esbranquiçado com um par de olhos enormes e esverdeados. O medo já não mais existia para John e seus assistentes, pois sabiam que de uma forma ou de outra a morte era iminente em poucos minutos. Os três olharam para a escotilha central e avistaram dezenas daqueles seres esbranquiçados, adultos e filhotes, nadando em alta velocidade e volteando o submarino. Tinham enormes nadadeiras caudais semelhantes as das baleias e longos braços. Aquela massa juntou-se ao redor do submarino e numa ação conjunta levantaram o veículo do piso e o transportaram, numa subida crescente e diagonal, até à superfície. Os amigos perceberam que aquilo era um ato de solidariedade. As criaturas eram inteligentes, talvez, ou por que não, certamente, mais humanas do que os humanos. John, Michael e Diego saíram pela escotilha principal, jogaram o barco inflável ao mar. Estavam muito distantes do local que ocorrera o acidente. Subiram no barco a tempo de ver o submarino afundando novamente. Acionaram o sinalizador e ficaram aguardando o resgate enquanto as sereias retornavam para o seu habitat.

UM SIMPLES ROUBO Durante trinta anos eu fui servente daquela escola. Presenciei muitos momentos alegres e também momentos tristes. Assisti tantas e tantas crianças e tantos e tantos


adolescentes se formarem. Todos os meus filhos estudaram até o último ano do ensino médio. Eu morava na mesma rua da escola com meu marido e meus seis filhos. Aquela escola continua lá até hoje. Ela é enorme com dezesseis classes e cada uma com capacidade para trinta e cinco alunos. Eu lembro que naquela época, no seu pátio externo havia uma quadra poliesportiva e um campo de futebol de dimensões menores que o padrão. Os alunos que lá estudavam nos três períodos tinham total liberdade de praticarem esporte durante o dia, lógico que com a apresentação da carteirinha do colégio. Luan, o meu irmão caçula, estudou nessa escola até o segundo ano do ensino médio e ele, por ser meu irmão, os inspetores davam mais liberdade a ele que os demais alunos. Naquele tempo, as crianças e os adolescentes nem sonhavam que um dia existiria o videogame (ainda bem) e as diversões eram jogar bola no meio da rua, empinar papagaio, jogar pião e os mais velhos também jogavam o tal de pebolim, o futebol virtual de agora. Sempre tinha uma mesa de pebolim em algum boteco, mas ao seu lado também havia uma mesa de bilhar. O interessante que era proibido por lei menor jogar bilhar, mas o pebolim que a mesa ficava ao lado era permitido. Os adolescentes menores de idade sempre davam um jeitinho para jogar umas partidinhas de bilhar. O meu irmão Luan não era diferente. Na rua que ele morava que era paralela à rua da escola havia o boteco do professor Chiquinho. Quando o Luan não estava na escola estudando ou jogando bola, passava algumas horas jogando pebolim ou bilhar com seus dois amigos, os irmãos Serginho e Gilberto que moravam colados ao boteco do professor. Para pagar as fichas das partidas, eles arrumavam dinheiro indo catar coquinho no mato e vendiam no portão da escola ou juntavam ferro velho e vendiam por quilo. Às vezes jogavam fiado, mas o professor sempre cobrava a dívida. Certo dia, o professor sugestionou que se eles conseguissem uma boa quantia de giz branco para passar nos tacos de bilhar, ele liberaria a mesa grátis por uma semana. E ainda mais, na escola seria muito fácil eles conseguirem. Não deu outra, na manhã seguinte, os meninos estavam lá como quem não quer nada, aliás, estavam atrás de um montante de giz branco, com certeza. Os bebedouros, antigamente, pareciam cochos com várias torneiras e o da escola ficava ao lado da secretaria. Quando passaram na frente da secretaria indo em direção ao bebedouro, notaram que em cima de uma mesa próxima à porta que estava aberta, havia dezenas de caixas de giz fechadas e lacradas. De imediato, o mais sabidinho, Gilberto, disse: “Pega”. E o mais bobinho, Serginho, pegou duas caixas e colocou nos bolsos da jaqueta. Rapidamente levaram o produto do furto para o professor Chiquinho. Qual foi o espanto dos três ao saberem que no dia seguinte bem cedo, o Sr. Hamilton, Diretor matutino já havia sido comunicado do fato e levado o mesmo à Dona Cadi, Diretora dos outros dois períodos. A primeira pessoa que ela procurou foi a mim e disse que, os meninos, provisoriamente estariam suspensos e, infelizmente, as consequências seriam drásticas. Eu, muito triste, comuniquei o Luan e também meus pais. Aquela noite, provavelmente, foi a pior noite do meu irmão caçula. Mas, eis que no dia seguinte, logo cedo, meu querido irmão me aparece com esse poema:


Simples roubo Sentia-se como impelido por uma força imoral, que o reduzia e o transformava num homem medíocre e banal. Sem ter ao menos vivido uma parte de sua vida; fazendo de um pequeno gesto uma consequência sofrida, surgida por entre lágrimas que molharam suas faces. Arrependido e magoado porque tudo morre e também nasce, a cicatriz ficará nele mesmo que a tristeza passe. Eu li e reli aqueles versos e percebi que foram feitos com muita emoção, foram escritos com o coração, então resolvi leva-lo para o Sr. Hamilton ler. E não é que deu certo. Algo muito forte naquelas linhas mexeu por dentro do Diretor e, antes mesmo de eu ir conversar com a Dona Cadi, ela já sabia da decisão do Sr. Hamilton e também já tinha lido o poema feito pelo Luan. Quando cheguei à Diretoria para falar com Dona Cadi a encontrei com a folha nas mãos e com os olhos cheios de lágrimas. Ela me disse: “Pode falar para os meninos voltarem a jogar bola”. Naquela tarde, Luan, Gilberto e Serginho retornaram para suas classes e no dia seguinte, o professor Chiquinho foi demitido.

O MILAGRE DA CRIAÇÃO __ Boa tarde, pessoas do bem! Tem mais um início o seu programa de variedades “Quem sabe faz agora, não espera anoitecer”. Como vocês sabem, esse é um programa que pode fazer uma pessoa sair do anonimato para o hall da fama. O entrevistado de hoje é um torneiro mecânico, mas podem ficar sossegados porque ele tem todos os dedos da mão e nunca roubou ninguém. Senhoras e senhores, com vocês, Jael, o homem das mil invenções... Muito aplausos na plateia. __ Gente, não se assustem com o nome. Garanto para vocês que ele não é o pai do super-homem. Além disso, o nome é muito mais comprido. Sr. Jael pode nos dizer seu nome todo?


__ Jael Ebenezér Sóstenes Uzias da Silva a seu dispor. __ Seu Jael, o senhor pode nos dizer qual o significado do seu nome? __ Minha mãe dizia que era tudo nome de santo tirado da bíblia. Ela lia muito o livro sagrado. Só o Silva que é do meu pai. Mas lá no Belenzinho todo mundo me conhece pelas iniciais. __ E pelo jeito nesse bairro famoso, famoso lá é o senhor... __ Mais ou menos... Lá eu sou amigo de todo mundo. __ E quando o Sr. não está trabalhando, o que fica fazendo? __ Fico lá no meu reino... __ No seu reino? __ Sim, lá na minha oficina reinando, inventando coisas. __ Bom... Acho que já podemos mostrar aos nossos telespectadores e ao público toda a sua criatividade. O que temos aí, Sr. Jael? __ Isso aqui é uma bala de chupar antigripal. __ E em que consiste essa bala? __ Oras, curar a gripe. E cura qualquer gripe. __ O Sr. está de brincadeira? __ Não estou não, meu filho. Como dizia um técnico de futebol que precisa chupar uma das minhas balas “Aqui é trabalho”. __ É verdade que cura até a gripe do pato louco? __ Verdade verdadeira. Lá em Belenzinho houve um caso e o moço está vivo até hoje. __ E quanto tempo leva para fazer efeito? __ Menos de duas horas. __ Opa! Podemos fazer um teste aqui mesmo no programa. Alguém se habilita? Ali em cima, aquela mocinha. Qual o seu nome? __ Agripina. __ Nome bem sugestivo para a ocasião. Topa fazer o teste? __ Topo. __ Muito bem! Se até o fim do programa você não morrer e essa coriza ir embora, vai receber uma caixa de balas antigripal do Sr. Jael e mais um belo prêmio oferecido pela produção. Ainda sobre a bala, de que ela é composta? __ Pó da casca de mexerica... __ E por que não de ponkan? __ Ora, a mexerica é muito mais rica em vitamina C e além disso a ponkan deixa um certo amargor na bala. __ E os outros componentes? __ Açúcar mascavo, raiz de um certo tubérculo e mais um ingrediente guardado a sete chaves. __ Muito esperto o Sr. Jael. Ele conta o milagre, mas não fala quem é o santo. Bem, qual a próxima criação? Duas, três, quatro, cinco, seis...


__ Agora vamos para a sétima e última invenção... O que temos aí? O quê? Um homem andando por sobre as águas? Tem vídeo? Essa eu quero ver... Como isso é possível Sr. Jael? __ Na realidade, vendo o Medina surfando me ocorreu essa ideia de produzir um par de calçados que nos desse a oportunidade de caminhar e até correr por sobre a água. __ Quem diria? O nosso grande campeão mundial Medina servindo de muso inspirador para esse gênio aqui presente... Antes de passarmos o vídeo, tem como explicar essa nova surpresa? __ Tem sim. O meu filho também é surfista e junto com um amigo possuem uma fabriqueta de pranchas. Eu desenhei um par de mine-pranchas com quilhas maiores que o normal e muito semelhantes a chinelões. Na parte superior, sapatilha feita de silicone moldada aos pés de quem irá usar. __ Até aí, tudo bem, mas como se consegue caminhar na água com esses chinelões? __ Bem simples! No centro da parte inferior foi posto uma chumbada com peso superior ao calçado para se manter um equilíbrio e no fundo de cada quilha foram adicionados sensores que interagem com as moléculas de oxigênio submersas. Os sensores emitem fortes ondas contínuas de energia causando a falsa flutuação. __ Sensacional! Além de lazer, esses chinelões teriam uma utilidade mais funcional? __ Com certeza! Os salva-vidas chegariam com mais rapidez nas vítimas em afogamentos do que se fossem nadando... __ Espera aí... E os drones, como ficariam? __ Um drone pode ter uma pane, vir com defeito de fábrica. Os sapatos flutuantes só serão inúteis se não servirem nos pés que irão usá-los. __ Parabéns, Sr. Jael. Vamos ver o vídeo... Ei, esse vídeo, não. Esse é o lagarto Basilisco que anda sobre as águas. Coloca o outro. __ Olha, moço, esse vídeo já me fez ter outra ideia. __ Esse é o Sr. Jael, o homem de grandes ideias. E não é que o homem anda e corre sobre as águas. Bem, pessoas do bem, esse foi mais um progra... O Sr. Jael quer dizer algo mais. __ Eu quero dizer que o pessoal lá do Belenzinho diz que eu faço milagre, mas não faço não. Todos nós somos capazes porque todos somos irmãos e filhos do mesmo pai que é Deus. __ Antes de encerrarmos, o Sr. Falou no início da entrevista que lá no seu bairro é conhecido pelas iniciais do seu nome. Pode repetir, por favor, vagarosamente. __ Pois não, Jael Ebenezér Sóstenes Uzias da Silva a seu dispor. __ Jael, o futuro inventor mais famoso dessa nossa era! Aplausos para J.E.S.U.S.!

ENTRE DOIS BURACOS


Neste fim de semana que passou, fui convidado para participar de três eventos culturais. Dois aconteceram no sábado, um de literatura e o outro de dança. O terceiro, no domingo, apresentação de novas bandas de rock. Nos dois que aconteceram no sábado, minha netinha Bebella me fez companhia, ela é uma figura muito presente em minha vida. No domingo fui com minha esposa, pois seu filho, um bom baterista, se apresentaria com os amigos. Poderia ter sido tudo perfeito se, num dos eventos, não houvesse ocorrido algo surreal que vos relato abaixo. Minha netinha havia levado alguns livros para serem doados e trocados. Estávamos escolhendo livros na banca infantil que ficava ao lado da banca de livros adultos. Entre as duas barracas culturais tinha um espaço vazio que como por encanto foi ocupado por um ser iluminado. O fascínio dominou a minha mente e meu comportamental transformouse em grande curiosidade. Percebi que Bebella estava entretida entre princesas e fadas e fui de encontro àquele ser. Ele parecia um tanto frágil, mas seus singelos olhos por detrás dos óculos quadrados transmitiam sagacidade e força. Os cabelos esbranquiçados pareciam centelhas a brilhar sobre o céu de Shangri-lá. A suavidade da sua voz era como um cântico melodioso numa opereta progressista. Eu direcionei meus passos até aquele ser de luz e me fiz apresenta-lo. E me senti orgulhoso por esse ato e uma felicidade imensurável por estar diante de um ser de enorme simplicidade, mas de grandeza singular. Num momento ímpar como esse, nós mortais, devemos mais ouvir do que falar, mas eu tinha a necessidade de lhe dizer o quanto passei a admirá-lo ao conhecer um pouquinho da sua história. Infelizmente não houve tempo para travarmos um diálogo. Quase que da mesma forma que o ser iluminado surgiu, do nada, apareceu um alienígena das profundezas do cosmos do inferno e, sem ter ao menos uma partícula da porcentagem maior de uma educação que nos foi ensinada pelo Universo, abduziu, abruptamente, o belo ser de luz, interrompendo naquele instante o meu crescer intelectual. Deixo aqui um alerta. Provavelmente, muitos desses seres desprezíveis povoam a nossa esfera nas diversas formas físicas e posições sociais. A maioria por ter uma espiritualidade muito primitiva, ainda estão radicados nos 3E que os fazem mais perigosos do que os demais. O alienígena de sábado não tinha uma fisionomia grotesca, mas a sua postura e comportamento tinha tudo a ver com um ser do mal. Ele se apresentou com uma estatura média-alta, longilíneo e de cabeça branca. Tudo bem! Acredito que não era para ser dessa vez, mas os Celestiais vão me reservar outro momento com aquele ser iluminado e o tal alienígena... O das profundezas do cosmos do inferno, esse sim, antes de terminar a abdução, direcionou seu olhar maligno e patético para a minha pessoa. Eu, sem pestanejar, lhe enviei uma mensagem telepática juntamente com movimentos labiais: “Vai tomar bem no meio do furinho do olhinho do seu... Puffff! Abduziu”.


Naquele dia voltei para o meu lar muito aborrecido e triste. Como pode existir no Universo um ser tão ardiloso? Acho que no fundo ele engana a si mesmo desde que nasceu. Será que ele nasceu de chocadeira? Sei lá... Eu sei que estava muito indignado com o ocorrido e até cheguei a dizer para o meu amor que, talvez, não participaria mais das aulas do curso que estava fazendo. Indignada ficou ela com meu posicionamento e me fez entender que não é qualquer alienígena das profundezas do cosmos do inferno que fará com que eu desista. Além disso, por ser um 3E, ele é ignorante e de criaturas assim devemos ter pena e orarmos para que acelere o seu desenvolvimento espiritual e moral. Também me disse que sou mais inteligente e esperto do que qualquer ser dessa estirpe e que um brasileiro digno e verdadeiro como eu não desiste nunca. E aqui estou eu.

PERSONIFICANDO Espelho “Sem reflexo” Uma vontade louca de tê-lo novamente? Aquele sentimento de poder já não existe, Há muito deixou de existir. O algo aconteceu sem me deixar entender o porquê. Já não consigo fazêlo entrar dentro de mim. O mundo não é mais meu.

Passarinho “À mercê” Voei para baixo Caí no espaço Olhei para cima Senti a perda Estou sem ninho.

Pedra “No caminho” Estou no meio do caminho. No meio do caminho eu estou. Se passar um bom jogador de futebol, ele vai me dar um chute de três dedos, mas se passar um perna de pau, este vai me dar uma bicuda. O primeiro me jogará para o lado e eu estarei mais segura. Já o segundo me arremessará para frente e avançarei um pouco mais.


Em qualquer uma das duas opções continuarei com minha sina, mas bem que um escultor poderia me encontrar antes.

Nuvem “Evolução” Hoje não é dia nem de barulho e nem de choro. Hoje é dia de brandura e clariência. Vou sair por aí sem rumo e aproveitar esse meu dia de folga. Amanhã está previsto um despencar e mudanças de estados. Este meu caminhar tem muita semelhança com contínuas reencarnações.

Animal grande “Submerso” Nossa espécie está indo em direção à extinção. Por anos e anos ela é rasgada pelos homens de olhos rasgados. Eles são implacáveis. Dessa vez eu tive sorte. Fui salva pela turma do Greenpeace.

Escritor “Entendimento” O livro poderia estar pronto se anos atrás eu tivesse tido a consciência da minha inconsciência. Eu achava que era escritor por escrever poesias que, somente eu as lias. Escritor não se acha escritor. Hoje, eu acredito que seja um ajuntador de palavras. Talvez, agora, quem sabe, o meu livro fique pronto daqui a alguns anos.

Morador de rua “Abandono” Estou sentado embaixo dessa árvore à beira da calçada. Carros passam velozes jogando o vento na minha cara, onde duas lágrimas rolam por um sentimento que já não existe. E eu ainda tenho apenas dez anos.



Ricardo Rutigliano Roque escreve desde 1991. Livros: Deságue – Em Santos, Catando Guaru – ensaio e conto (¹); Fortaleza da Barra Grande (*), Poesia à Rua, Caiçara em Haicai, Uma Chama Atlântica, Da Mata Atlântica ao Neruda e Diálogo Caiçara com Saturnino de Brito – poesia (**) (²); Mar Selvagem - romance (³); Liberto de Si - novela (4); editoria (5); antologia (6); oficina literária (7); performer (8) e produção (9). * já filme – Fortaleza da Barra Grande; ** já musicadas – Epitáfio de Um Amor Filial, Chatice Sem Você, Reboca o Navio, Caiçara Poética, Brincante Charleaux, Desculpa e Sua Música. 1 - FACULT-2011 – classificado com nota sete; 2 - “Acervo dos Autores Santistas’ – ‘Biblioteca Mário Faria”, 2015; 3 - "Prêmio SESC de Literatura 2015" - classificado; 4 - “Como Escrever Um Livro” - em oficina atual; 5 - Caiçara Catadora – artesanal; 6 - “Cafezinho Médico Literário’, ‘Sociedade dos Poetas Vivos’, ‘Grêmio de Haicai Caminho das Águas” - grupos literários; 6’ - “Oficina de Literatura II' - 'Estação da Cidadania"; 7 – “Escola Estadual Santa Cruz dos Navegantes” – Guarujá, 2013 - oficineiro; 8 – Saturnino de Brito – 150 anos de nascimento, em parceria com Instituto Histórico e Geográfico de Santos, em praça pública; 9 - Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande - pintura do monumento, em 1991, autor, coordenador e produtor - com 500 escoteiros, e chefe da Tropa II - "Grupo Escoteiro Morvan Dias Figueiredo".

PRÓLOGO Perceptível está o servir desse espaço de memória, até então virtual e da sala de aula, para acesso do leitor – o motivador, desse vestir de capa próprio do ato da criação do intuir e do imaginar, em postura literária da antologia, antes pré-literária da oficina. Idiossincrasias, entonações desproporcionais, reações exacerbadas, leitura ativa e passiva concomitantes à busca de sentidos, quentes e bem vindos, acontecem na oficina - "Como Escrever Um Livro", do coordenador Marcelo Ariel, até que simultâneos aconteçam à êxtase, agora nessas páginas, pela voz do personagem que fala por si. Em ousadia quase poética crê o oficinado.

UM MORADOR DE RUA


Tiro projetado, liberta o cano do revolver, risca o céu, desfaz a fumaça, desloca o ar que queima: foi escutado em diálogo de morador de rua com policial, enquanto olhavam a água do canal 3, que refletia algo etéreo. Morador de Rua - Combustão da vida, que não para. Policial - Para no vácuo provocado, incombustível. - Essa é a ponte, sob a qual eu moro, com trilhos do trem elétrico. - Mais silenciosa e limpa, que da época à diesel? - Sim! - Como se sente? Invadido em sua casa? Silenciosa e sem a fumaça, com os dormentes fixos em concreto, com trem movido à eletricidade em velocidade constante com os semáforos abertos à passagem. - Sinto-me na rua de minha infância, na garupa de bicicleta. - Sobre qual roda você ia? - A detrás. - Qual roda você admira? - Aquela, do meio. - Por que não é a da frente? - Ela pega vento e fica entretida com o futuro, a detrás me remete ao passado, já a do meio à vida presente. - Você enxerga em qual desastre está metido? - Rompo o casulo, dessa sua crítica fundamentada. - Eclodo borboleta, então, com suas asas assertivas. Morador de Rua - Faça fotossíntese em folha, que me nutra enquanto lagarta. Policial - Que meu ego de avenida caiba em sua rua de criança. - Remo para singrar! - O que esse trem faria!? tecida em união uma ponte de passarinhos – Vega e Altair

DESFRALDAR SENTIDOS Surpreende-se com sorriso nos lábios. Ao lembrar de seu amor, deixa-se ver enamorado, para o amigo, em água que reflete luz, com certo movimento, no canal 7. Amigo - A partilha acabou ou foi a tinta de sua caneta? Enamorado - Tampouco falta papel! - O que falta, então!? - Intuir nesse sentir, pra construir meu pensar! Em branco e azul chegam-lhe tais esboços soltos, mas de mãos dadas como papel e tinta.


- Pinte, então. - Tão logo me desnude, depois de tal pensar consolidado, pra sentir. - Desenhe tal universo, então, pra obter enxergar merecido. - Ao parecerem, esgarçados e fugidios, os meus pensamentos cerzidos, melhor alinhavados estarão, com abraços íntegros, sob lençol. Desfraldado imaginar de muitas cores, mesmo se desdenhado pelo sentir fascista, vitimado público, destratado por poderosos, ao sublimar o ego, ao emancipar umbigo, em imensurável querer cuidar, dos frutos imaturos. - Pororoca de um rio, chamado Atlântico, que murmure sob sua cama, em meio à festa, de vitoriosa paz, em seu lençol. - Enquanto isso o que é azul resplandece, rosa se levanta e cinza descansa. Olhar inspirador, o dela, aqui perceptível está, nesse enxergar generoso, em gozosa palavra grata por tal existir. - Flanar com crítica, transcende o pássaro seu ninho, ao bater asa. suas belas asas pretas como areias ondulam – voa Pintassilgo

UM URSO FERIDO Dois ursos conversam, enquanto um se banha no rio, este que sorve a luz que perpassa objeto que plaina sobre sua água. - Estou ferido. - Quem o acertou? - O caçador de pele, esta, antes lambida por minha mãe. Você ainda tem o necessário, calor dos pelos e da capa de gordura, pra se esconder na caverna. - Perderei tudo, se ele tiver, em arma, me alcançado. - O vermelho de seu sangue é, jorrado da ferida, sentença de morte. - Peço que lamba minha ferida, agora, pra cicatrizá-la. - Antes que o perdigueiro sinta tal cheiro? - O vermelho é vida, mas mostra o caminho por mim tomado. Minha vida é sua vida, em amizade. Se você verter uma gota, de seu corpo, em minha ferida. - Minha saliva o protege, de um olfatar canino. - Caçador estará ausente, nesse apressar de passos na água do rio e na margem oposta. - Ao encontro, pois o caçador sempre presente estaria em nosso desencontro. - Sim, ao encontro! rastro de sombra... aparece à frente um caminho – Lua ilumina


NUVENS Fuligem - Sou nuvem, oriunda da queima das folhas da cana de açúcar. Nuvem de chuva - Tão longe da plantação!? – Elevada nesse céu azul, seco e quente. - Qual a velocidade, que você atinge? - Aquela, do vento que me traz. - Como você é recebida, ao perceberem o pouso de sua fuligem? - Como a um moleque travesso, por repetidas vezes, a cada safra. Você também é uma nuvem escura, com a minha velocidade, tal qual do vento e, aparece, assim como eu, nas mais prováveis estações. - Chego antes do outono e, por isso, molho a roupa no varal, mas sou tratada como filha predileta, pra testemunho do céu azul, este que terá, até então, pairado sobre nós – duas nuvens escuras. - E você - nuvem branquinha, sempre vem aqui? - Em sua ausência, sim, nuvem pretinha. - Tal contraste é poético e, por isso, faça-se poesia ao comparecer, também, em dias carregados de chuva, minha branquinha. - Qual o ganho, minha pretinha, com tal prestigiosa presença, a minha, em sua orquestrada tempestade? - Poderá ver quanto os pássaros fogem, de minha chuva, coisa que você não faz – dar susto em passarinho. - Em solitária presença, essa minha, tantos pássaros alçam voo, mesmo debaixo de chuva. - Eu queria aprender a voar com sua leveza, branquinha, ao descarregar toda água, pra poder praticar tal voo de passarinho, com você. - Os passarinhos que comem insetos estão com fome, com a fumacinha que acaba com o mosquito do Dengue. - Mas, essa fumacinha branca é, contra mosquito, leve como você, porém voa, livre, como pássaro? - Inabilitado pássaro, de desengorduradas penas, que retém, por isso, a água de sua chuva, nuvem pretinha e isso pesa, ao tirar dela seu voar. - Então é você fumacinha que, ao penetrar nas asas do passarinho, oferece este aos gatos, em meio a água da pretinha? - Somos nuvens branquinhas, mas, com conteúdos e qualidades diferentes. Na água empoçada vê-se os contornos sombreados por algo que arremete ao céu. diversão passageira – Pé d’água apaga pegadas na areia


UMA PEDRA - Sou uma pedra, sobre você - simples papel. Folha de jornal - Sim, mas até ontem soberano, no mundo da palavra. Pedra - Não presuma o que não possa presumir. - O peixe é, hoje, por mim embrulhado. - Agora a palavra cede, a vez, ao pescado!? - Cada qual com seu qual. - Anuncio que vim, do paraíso geológico, ao mundo: por arrancamento. - Há repetição desse evento partido, que você reflete nos outros - chegada abrupta ao mundo. - Posso sublimar, assim, o que é passível de compreensão, em tais atos violentos, relevados por meus convivas. A pedra fundamental é a convivência íntima, atualmente em apartamento. O Cavalo de Tróia é a taxa de condomínio, porque tolhe o sentir - voar de alma da borboleta e brincadeira do palhaço, existente em cada um, agora ao sentir queimadura da águaviva. Pé do jogador de futebol fica parado, só deambula em areia, próximo de pingo de sorvete que caia, durante o verão. - História intui, merece atenção, onde um sonho flui, pulsa o coração. - Gestar e nascer, pensar e escrever, no tempo existente está recorrente. - Uma parição - criada semente, afetuosa e quente é mais louvação. - Caule dá sombra, tronco a sustenta, flor um aroma, e eu a molhar. - Come-se a polpa - a Semente de Jatobá germina aqui. - Romantizo o escrever, só pra me proteger, foi num útero aflorado que me senti bem amado. - Nutro assim a raiz e terra ao redor, caso o apresente à colheita - mais prazer que um amor. - Seiva nova que a nutra, é salgada, deixa doce, alagada. Em tal lâmina d’água, formada, cintilam cores trazidas pelos raios de sol que perpassam folhas de papel agrupadas, geometricamente.

UMA FESTA Festa - Sou o evento, efêmero, de seu aniversário. Aniversariante - Ausente estarei. - Será uma festa, então, só para os convidados!? Com um grande vazio me sentirei. - Fico com vergonha, pois os olhares me constrangem se voltados pra mim. - Quando deu-se conta de sua existência, ficou com vergonha também? - Foi ao acordar, de sonâmbulo retorno, ao pé da cama de minha avó, apartado que fui do quarto – por uma noite.


- Sentiu-se notado? - Sim. Estava ali, então, a festa na forma de abraços da sua avó, mas ele estava, ainda, meio dormido - por isso sem vergonha. - Saí de casa e do bonde olhei, após acenar pra minha avó, e vi pela janela a orla do mar, dali sentado, num banco voltado pra janela lateral oposta, daquele bonde fechado – o camarão. Eu era apenas o que via, lá fora: uma paisagem que corria. - Você estava só? - No caminho sim, da natação pra encontrar o Leiva - meu técnico, do Clube Saldanha, num bonde vazio, até que subiu alguém com mais que meus 14 anos, junto a outro com menos. Sentou-se junto a mim aquele maior, que lateralmente tocou-me o ombro, com seu cotovelo. Ali eu era o mar, que via e, como tal, fluí pra adiante. Fui tocado novamente. Mas aí, eu já era a areia, que em ventania aspergia pra diante. Mais forte foi o toque seguinte e ali eu já era a nuvem, daquele céu, que eu via, e assim flutuei, logo adiante, como se ao vento estivesse. Um novo empurrão e eu era a pedra do costão rochoso e assim e ali permaneci. - E? - Pra fora rolei. O motorneiro nem viu, esse meu périplo. - Com esse peso adquirido, você, afundou na piscina? - Antes eu estendi meu corpo, alongado naquele treino, assistido por meu “irmão mais velho” – o técnico. - Seu sorriso, de canoa, já navega, vó, em meu mar de esperança. - Depois de você o gene cora, lá diante de sua história, há doces que adora, filhos fazem sua dedicatória. - Linha escrita desde Santos, que vem de lá madura, deixa frutos além caule, verso dá a sua cura. - Fica longe de algoz, mora em um rio da casa, com livro pesca em nós e tira-nos da água rasa, esta que dá liberdade aos pés e deixa ver o leito, mas sem refletir o que paira no céu. a vara enverga desde o manguezal – emerge o Robalo

CÉU ESPELHA Gavião - Você é minha testemunha. Poça d'água - Em que? - De minha performance, hoje, em voo. - Sim. Eu o refleti, mas agora estou vazia. - O passado me condena, se levado em conta voos havidos.


- Sim. - Hoje poderia, refletir-me por mais tempo. - Você faria o que com tal imagem? - A filmaria, pra tê-la pra posteridade. - Sua imagem em mim era, até então, a de um pássaro caído do ninho. - Eu estou no encalço, com meu bico curvo, predador. - O ninho está em árvore, enquanto você está no chão gramado de experiências, mas sem asas, pra voar, suficientes. - Você espelha o meu céu, testemunha de minha habilidade e coragem. - Façamos uma aliança. - Qual? - Eu - poça dágua, refletirei o seu ninho, e formarei assim a sua casa. - Mas como eu habitarei essa minha nova casa, que me é oferecida? - Primeiro salvando-se do instinto de gavião, que o habita, ao constituir amizade com o sabiá-laranjeira. Como sublimar seu instinto!? - Você - sabiá-laranjeira, quer ser meu amigo? Ofereça seu conteúdo, a mim que habitará com você esse ninho. Mostre-me antes como voar com minhas asas, mas com suas qualidades. Sabiá-laranjeira - Eu serei você amanhã? - Como meu amigo, você – sabiá-laranjeira, estará com asas de gavião, bico entortado pra baixo e minhas qualidades de rapinador de ninhos. - Comerei os ovos, não eclodidos, de minha mãe? - Sim. - Torno-me seu conteúdo, gavião, mas se abrir mão de seu intento. Ofereço-me em sacrifício. - Amém. Nhac.

O SABIÁ E O GAROTO 2015: Próximo ao museu Pelé há uma rua, a Gonçalves Dias, onde canta o sabiá, este audível mesmo se preso, estivesse, na caixa de sapateiro do Edson Arantes do Nascimento, em tal museu. Essa caixa de sapateiro seria, se percutida, ouvida daqui? 1800: - Como habituar, nesse trabalho, o homem induzido a escravizar-se, mesmo com salmora, tascada, intracicatrizes de açoites? - Ultrajar, mesmo com manifestado afeto, em sublime ação estará o homem e seu trabalho, se remontado ao tempo da escravidão, enaltecidos? 1915: - Investimento de acionista, que recebe emolumentos sem uma boa medida, inclusiva, a cada um dos trabalhadores! - Já não basta a invasão, cultural, do primeiro homem aqui chegado? 1999:


- Aquela caixa que eu percuti, aqui ontem, mal repercutida está. - Aquele sabiá, aqui liberto, se fará ouvir, em estabelecido ambulatório médico de especialidades, na mesma rua? - Miiiickeeeeyyyyy? Esta paciente, por favor, você chama pra nós? – o médico à paciente já consultada. - Não escuta? Será que não veio?! – paciente ao médico. - Seu nome deve estar na agenda. – médico à enfermeira. - Só se estiver no banheiro! A sala de espera está cheia. Já dei uma olhada! – enfermeira ao médico. - Espera aí. É surdez do Mickey ou é o clipes que cobre o “L”! – médico. - Mickeeeely?! - Pronto. Sou eu. - Agi como o Pateta! Também, voz do Pato Donald, nesse barulhão! - Já vi de tudo, mas Mickey?! Mickely aqui é, na letra feia e sacolejar do caminhão em rua de pedra, uma roça sem chuva! - Você dá fé pública do ruído e audição, em reclamação? Sinto que os pingos caem da folha, mas é a força do vento que balança o chorão. - Pra não dizer que não falei, também, do pé de chumbo. Eu engraxo e batuco, denúncia do silêncio roubado, na caixa de sapateiro do Pelé, em seu museu, aqui ao lado. Hoje: Obter cânhamo - semente de cannabis, para alimentar o passarinho engaiolado. Será melhor libertar o pássaro, até então, mantido junto!? Esse estará melhor, possuído ou solto, neste tardar, de seu cuidador, em supri-lo? Essa minha ficção - aventada, invade a sua realidade - vivida. Se o seu ensaio referencia o mensurável, já o meu é, praticamente, arreliação descabida. Fecho meu conto, presunçosamente adulto, para abrir meus ouvidos ao que há, em sua história, de força motriz que toca meu coração, desarvorado, procurando sua raiz. Poeta sentido dizer cantado choro chorado. É ouvido da janela, primeiro acorde maroto, patente em som dedilhado. Ágora volta, Garoto menino é acordado. Tamanho pé direito, finito pé esquerdo, notas do cavaquinho na XV, uma flauta, caminhar é marinho.


Que o cais do Valongo dê, ao despertar, um trapiche, à cultura, do beirado, em cujo choro só aja, um Garoto mais sonhado.

PALAVRA ENTRECADA Palmeira - Oásis, é o que você é, pra mim. Oásis - Você é, nesse oásis, minha palmeira. - À sombra de mim – palmeira, espero seu descanso sob sol forte. – Eu já quero que frutifique e traga os pássaros, em busca de suas sementes, agora. – Que o verde de minhas folhas o tranquilize. – Vejo ao longe a areia trazida, por vento forte. – No ponto mais alto de seu oásis ficarei, em fotossíntese. Vivo estarei pra contar, aos pássaros, o porquê do fim do nosso pequeno mundo. – Que a chuva transforme, no dia mais improvável do deserto, em lama essa areia, para que eu renasça em argila, moldando um muro que a proteja e a liberte, assim, do mal vento. Desnecessário é o medo, coletivo expresso em barbárie, que provoque sinergia coletiva. Remo para migrar o que esse deserto faria!? Ausência em mortificado pensar mortificado por ausente palavra, entrecou-se por uma lavra entrecada. Escrito no modo da poesia, acordo pro pressuposto discordo com presença para convencimento de pensamentos quaisquer que não façam desbloquear fluidez criativa. Entrecou-se por uma lavra entrecada ausência em mortificado pensar, mortificada por ausente palavra. Ao meio dia... mistério na floresta presença de Trinado!


O medo de cada pai é, impresso com suavidade em seu filho, sublimado, ao ser transformado em virtude. após chuva fina efêmera beleza crepúsculo de verão

BURACO NA CASA DA PALAVRA Na mudança de postura troquei a moldura. Pavimentei nosso jardim desapareceu o jasmim. Esse novo caminhar faz-me repensar. Na quebra do asfalto, mangue enfraquece o salto. A culpa do muro é nenhuma no escuro. No perfume da flor alheia ouvi apenas canto de sereia. Tentou-se cavar um buraco negro, no mar daqui, com saques a metais nobres, trazidos do Rio da Prata, por navios fundeados em nosso povoado, protegidos por cascos forjados em cobre, pelo ferreiro Withal, casado com a filha de Adorno - octagenário dono de engenho de cana de açúcar, no século XVI. Obstada fluidez de pensamento, em singradas águas de nossos mares, como em avenida, metrificada por semáforos, em seu asfalto. Tentou-se cavar um buraco branco, na praia daqui, com lojas no emissário submarino, em meio à fluidez de pensamento, que se mantém ao caminhar-se em suas areias. Tenta-se obstar pensamentos forjados em tantas caminhadas, com lojas empilhadas sobre buraco descolorido, cavado na casa da palavra, esta afastada, assim, da dança de roda, por ausente fruto da cultura caiçara. Cerzir o esgarçado, tão importante quanto diagnosticá-lo com civilidade, no tecido social tratado. - Como proteger a palavra? gira na mão movido à correria cavento colorido



Robertino da Silva. Nascido em São Vicente. Cronista inveterado do tempo, dependente assumido por artes e apaixonado perdidamente por pessoas; faço da leitura e rascunhos meus passaportes para viajar por sonhos que nunca me cansam.

A VIDA LOUCA DOS MORADORES EM SITUAÇÃO DE RUA 1-E aí ,companheiro? como foi a bagaça hoje? 2-Beleza, maluco.O bagulho é doido, mas tirei a do "rangu". 1-Ki cê tem aí?é pedra lôco? 2-Cachaça,cê sabe que não curto essas "doideras". 1-Tem que entrá nas "doideras" mano , porque as "finas" que os bacanas tiram de nós nas ruas ,só "noiado". Sabe, nem sinto o peso da carroça, ouço as buzinas dos folgados;amanhã tõ logo cedo no ferro velho do Alemão prá descarregar e vou lá na "biqueira" de novo. 2-Se liga mano. Tu sacou o "malaco" que chegou aí?diz a galera que é "cadeeiro" e já matou uns "X9". Fica esperto, tu sabe que a calçada é terra de ninguém. 1-Ô cumpade ,tô ligado , mas o cara é "171", malandro pau no c....,sacou e tô cheio desses otários que pagam de "malacos" e são mãezinhas quando os "homi" apavoram. 2- Tenho de dá um jeito de dá um "pinoti" nessa vida de rua; não dá mais malandro, me sinto um Gasparzinho cara,mas eu tenho família, profissão e a "mardita" me jogou na sarjeta. Preciso dá um basta nisso tudo, fico aqui esperando que aqueles crentes venham trazer comida, roupas, ficam falando de Deus, que Jesus te ama. 1-Meu, se liga doido, aqui é areia movediça, caiu aqui só se afunda, e, as autoridades nem quer saber de nóis . Tá ligado? 2-Já tomei 1 litro ,mas tô legal e acho que vou dá um tapa no teu bagulho. 1-É nois doido, pega aí o cachimbo da paz. Tem vida melhor maluco? ninguém prá pegar no pé, acordo quando quero e ainda dou uns pega na moral. 2-Ké isso doido? o céu desceu? tá aqui ? 1-Aí cara,agora tu tá legal.Vamos fazer uma corrida agora. 2- O que? tu tá de "zuação". 1-Se liga ,vamos fazer uma revolução,passeata prá colocar umas escadas rolantes nessas ladeiras. 2- Põ meu,aí é show ,acessibilidade para todos.


O ATLETA E O PALHAÇO - E aí palhaço, você está triste? - Triste? eu nem posso,tenho que fazer as pessoas rirem. - Eu também,faço as pessoas felizes. - Caramba,não sabia que eramos tão iguais. - Sou palhaço moderno sobrevivo só de vitórias, mas nas derrotas jogam-me pedras.Independente da minha performance tenho uma carreira meteórica,tenho que parar no auge do vigor físico;com estes contratos mesmo de riscos vou formando meu pé de meia com apartamentos,petro dolares, papeis, mesmo tendo que ir para China,Índia e Emirados Árabes.Que maçada!E você palhaço Quindim? -Meu futuro é feito de sonhos,de amizades com meus fãs eventuais com seus risos contagiantes, sorrisos impagáveis e gargalhadas tsunamicas. Ah! o sorriso de uma criança é como domar um alazão,o riso de um idoso é o voo das borboletas amarelas do "Gabo",mas a piada sem riso é água viva queimando a pele na praia dos meus sonhos. -Pegou pesado colega, fiquei com inveja da sua atuação.Posso lhe pagar um sorvete?

CORRENDO COM UM CAMPEÃO.* - Ei, você não é o Éder Jofre? - Sou eu mesmo. - Você vai correr também? - Não, nem dá mais,eu só vim participar, andar talvez. - Ah! Pôxa Éder você foi o ídolo do meu pai, sabia? e cheguei até a ouvir a sua luta pelo rádio,e, era um "capelinha" em ondas curtas. - Verdade?que legal. - Campeão, agora vejo como o sucesso é ingrato,solitário e ilusório. - Como assim? - Sabe que 99% deste povo que está aqui nesta corrida com quase 20 mil pessoas,nem sabe quem você foi e é ainda. - Eu não me importo,sabia? - Pois deveria.Eu ainda ouço a voz embargada do meu pai,quando o locutor narrava os golpes certeiros que você aplicava no japonês e emocionou toda a minha família ,como toda a nossa nação que estava com os ouvidos grudados no rádio. - Sei o quanto meu povo ficou extasiado com aquela vitória. - É triste cinturão.Gostaria de fazer uma pergunta prá você,mas fico constrangido. - Faça eu permito, mas você não vai correr? - Desisti ,e decidi que vou caminhar contigo e conversar com você e saber.... - Saber o quê? fala vai. - Me perdoe,mas como uma estrela de tamanha amplitude se sujeita a ter a sua imagem ultrajada?Qual o preço que este magnata está pagando para maculá-lo, Éder?


- Não estou sendo explorado. - Éder, você é um astro nacional e está no mesmo patamar de Sena,Pelé ,e, é muito grande para estar aqui anonimamente ,pois não há dinheiro que pague os seus feitos e a família Jofre é uma lenda.Ei, não chore você é o nosso "Galinho de Ouro", e deixou-nos vaidosos naqueles dias em que ouvíamos seus feitos pelas ondas do rádio,lá do Japão. Quantos brasileiros gostariam de abraçá-lo neste momento. - Ô meu amigo,vou ficar por aqui, prá mim chega. - Valeu campeão, você é o nosso herói,neste pais sem memória desértico de heróis.Tô contigo vai ,vamos andar neste jardim. *Corrida 10 km do jornal A tribuna, onde Éder Jofre participou.

O FOGO ACABOU E O JOGO COMEÇOU Bombeiro no meio do incêndio da Alemoa e um repórter de uma rede de comunicação infiltrado como um deles para pinçar um furo de reportagem;o vice governador criando secretaria,o prefeito fazendo selfie e a imprensa não solicita entrevista com a assessoria de imprensa da empresa "Ultracargo". Bombeiro - Ei, quem é você? Reporter- Parceiro, companheiro. B - Não te conheço,tu tá me tirando? R - Relaxa,meu chapa. B - Como relaxa? já estamos aqui a muitos dias. R - Então, vamos aí. B - Quem é você? tô te filmando a dias. R - Fica frio camarada. B - Tô te sacando,você não tem as manhas. R - Como assim? B - Tu tá perdido,confessa senão eu vou te dedar. R - Tá bem eu confesso.Eu sou repórter de uma grande rede de comunicação. B - Bem que eu desconfiava. R - As noticias não rolam e o meu diretor mandou que eu viesse prá ver de perto. B - Vocês estão loucos?Só acontece essas coisas comigo. R - Eu tenho curso de brigadista e.... B - Meu, se acontece algo contigo vai sobrar prá gente, entende? R - O porta voz de vôces não passa nada. Todo dia é tudo igual. B - Mas é perigoso,não é brincadeira de criança. R - Eu sei mas eu fui mandado colega para cavar noticia. B - Você viu quantos peixes estão morrendo,pássaros dizimados e os moradores do entorno estão em alerta.O meio ambiente será terra arrasada quando tudo terminar. R - Eu sei o vice governador está se promovendo, criando secretaria e ele já foi deputado federal e não fez nada pelo porto. B - Mas o fogo não é moleza


R - O prefeito fazendo selfie com o secretariado, e só o ministério público está se virando. B - Nós estamos precisando de reforços de peso, de tecnologia de ponta,pois já fizemos o que tinha que fazer ou seja represar o fogo e não deixar passar para outros tanques. R - A Ultracargo não designou porta voz prá dizer o que houve.por que aconteceu?Nós descobrimos que houve um incêndio dias antes e ficaram na surdina. Será que foi debelado completamente?O agressor não abre a boca e ninguem aperta eles. B - Com multinacional é assim,eles é que dão as cartas. R - Mas isso tem que mudar, o país é nosso. B - Tá certo companheiro,creio que estamos no fim, mas eu vou te confessar algo; fiz o que pude a cada dia com afinco, disposição,e, fiquei tão focado que esqueci de mim, da minha família e da minha vida.Mas, a cada dia fica a sensação que poderia fazer mais ,e, o stress, cansaço me derrubam. Me incomoda algo que se torna a cada dia incontrolável, insolúvel e cada dia é um recomeço;já começo a sentir saudades da monotonia saudável e não aceito o que se apresenta.Preciso descansar minha tez, minha mente e refestelar-me na rede do meu encontro. R - Ih! apagou companheiro. B - Ufa!o jogo começou camarada e a bola está contigo.

DIÁLOGO ENTRE NUVENS Nuvem nº1 - Olá Nuvem nº2- E aí? 1- Beleza? 2- Tô aí 1- "Di" boa? 2- Sempre. 1- Que jeitão é esse? 2- Tô me esparramando... 1- Por que? 2- Tava pesada com muita água estes dias. 1- Eu também. 2- Tô desestressando. 1- Rrs..rs.. tá parecendo uma centopéia. 2- Você uma pipa com uma baita rabiola. 1- Deixa eu no relax, vai. 2- Eu também. 1- Às vezes preciso de umas coreografias novas. 2- Eu me refestelo neste céu. 1- Mas os pássaros zoam tudo. 2- E os aviões então.


Avião não me incomoda. Pássaros prá mim é light. Xiiii.. lá vem as aves de arribação. Deixa elas são do bem. Não aguento elas. Você aguenta porque não ficam na tua aba. Engraçado mas elas não passam aqui. 1- Sabe? quando mais rezo ,mais elas aparecem. 2- Relaxa..o que é isso? 1- Vou me transformar em um espantalho 2- Rs..rs..rs...você é uma comédia. 1- Dizem que elas têm medo. 2- Espantalho do paraguai elas não tem mêdo. rs..rs..rs. 1- Preciso fazer algo prá elas "me errarem" 2- Vai ser difícil, neura. rs...rs..rs.. 1- Ei, lá vem um jumbo, se segura. 2- Ah! não. 1- Seguraaaaa peoa!!!! 2- Olha lá . ele vem rasgando tudo 1- Respira fundo,vai. 2- Como? me desconjuntando toda? vê se pode? 1- Olha lá o povo nos olhando pela janelinha.Sorria.. 2- Não quero nem vê. 1- É a nossa sina, nóia. 2- Queria só me esparramar, entendeu cumulus? 1- Vai fundo,então. 2- Sabe como é foi uma semana carregada. 1- Sei, mas é preciso. 2- Você viu como aumentou o tráfego aqui em cima? 1- É tá brabo. 2- Jumbo, helicóptero e agora um tal de drone. 1- Você viu como está punk lá no chão? 2- É . agora querem bagunçar aqui? 1- Conseguiram tornar um caos lá embaixo. 2- Logo,logo vão detonar nosso ares. 1- Antes, nós passeávamos numa boa. 2- É sem passar sobressaltos,sustos. 1- Eu falava:-vamos dar um rolê, nimbus? 2- E eu também vivia o dia todo num céu de brigadeiro. 1- Agora tenho que pedir licença prós folgados. 2- Isso mesmo,mas não pode ficar assim. 1- Mas, quando estamos carregadas e nos chocamos? 2- Aí eles ficam espertos,porque é raios prá todos os lados. 1- Fica uma muvuca lá embaixo. 121212-


Raios prá que te quero? Só mandando trovoadas. Não senhora ,temos que ser respeitados Taca-lhe pau!!!!!! Sossega leão. 1- Não posso nem me alongar,é broca. 2- A poluição a gente tira de letra. 1- Mas este congestionamento. 2- Antigamente, as crianças ficavam a nos adivinhar: um trem,um urso. 1- Hoje não dá prá fazer nenhuma performance. 2- Também não somos mais jovens assim. 1- Não senhora eu estou enxuta ainda. 2- Só se for sem água. 1- Bem,vou andando você só me avacalha. 2- Não senhora é a realidade. você não tem espelho? 1- Ei! que fumaça negra é aquela que vem subindo? 2- Amiga parece que o bicho pegou pegou lá embaixo. 1- O bicho não, o fogo. Que fogaréuuuuuuu.Cof...cof...cof. 2- Cof....cof.....cof.... 21212-

BALADA PARA GILBERTO MENDES Palmas(ao ritmo da música: Beba coca cola)

ABRE-TE “GILBERTO MENDES” ABRE PORTAS,UMBRAIS, ABRE-TE “GILBERTO MENDES” ROMPE COMPORTAS,BARREIRAS, ABRE-TE “GILBERTO MENDES” ENCLAUSURA A ESTÉTICA ,E, LIBERTA A MÚSICA EM NÓS. VIVER É-NASCER E MORRER, BEBA COCA COLA ,E, BAILAR O “ÙLTIMO TANGO EM VILA PARISI”. ABRE-TE “ GILBERTO MENDES”

A CANTILENA ENFADONHA -Não esquece o guarda chuva,filho.Dizia ela.


Ressoa ainda em mim este dom,carinho e acalanto.É o fim do mundo,e, será que minha mãe estaria satisfeita com a minha trajetória? com a minha performance?com o meu status? Ficaria mais seguro se estivesse aqui? mais tranquilo? Percebo agora quantos lastros carregava,afetos,cuidados ,e, que se ela pudesse carregaria-me ainda no colo;corria invariavelmente para o seu regaço,e, então creio que ela colaria-se à minha alma,pois o cordão umbilical não foi cortado por ela, apesar de eu tê-lo rompido. São vozes que hoje sei que eram apenas desvelos,precauções,e, quando jovem eram cantilenas enfadonhas.Brumas de saudades invadem-me no corredor,estertor ou em vasta amplidão e parecem rastros,sombras a seguir-me, guiar-me neste fado que ela mesma traçou para até o fim do mundo. Levanto-me, e ouço sua voz terna,dócil,calma e balizadora diuturnamente alicerçando-me,mantendo-me em pé; e concluo que é um pé no saco ficar firme,forte,macho, e berro: - O mundo não vai acabar não mãe.....e ouço ela responder. - OH! HOMEM SEM FÉ.

RAIOS DE SOL E O FIM DO MUNDO Sol do meio dia no asfalto quente da avenida, ao longe vê-se reflexos dos raios criando miragens frenéticas.A carroça vai rasgando a via e deixando marcas dos pneus "xiiiii,xiiii,xiiii' como numa chapa quente,e, o astro rei vai lamuriando-se com os impertinentes intrusos. Ele desce incandescente numa miscelânea de cores, ora amarelo ora laranja com seu -xuuuu,xuuuuu, é impetuoso como flecha pontiaguda. E ela arrasta-se agora modorramente fugindo do implacável algoz que segue-a, persegue-a, acompanha,e o Zé da carroça vai tirando uma onda nos carrões climatizados-oásis modernos. Zé saiu do sertão nordestino e veio para o inferno escaldante da avenida Paulista e carrega sua "Estrela do asfalto", é assim que a chama para o ferro velho do Alemão, que os espera até as 14 horas para fechar o movimento do dia. Pensa: " O Alemão deve estar à beira de um AVC como sempre". Ele e sua Estrela do asfalto param no na "Bodega do Portuga" e pede uma do barril que é prá aguentar o "porre" que é o Alemão na hora do acerto. Levou o copo à boca, e só deu tempo de ver a sua Estrela entrar num abismo e junto carros,prédios,ônibus sob muita gritaria,berros. E tudo tornou-se um breu.

O PASTOR E O SUICIDA Calor senegalesco em plena avenida Paulista-uma selva de pedra envidraçada, movimentada de zumbis passantes,máquinas possantes que não conseguem imprimir nada mais além de 20km horários ,não é porque é sexta feira ,e sim porque é parte da


rotina estressante e desesperante neste corredor polonês paulista ; ali ou acolá todos somos invisíveis,insensíveis dependendo do lado que estamos, e estou no vão livre do Masp- um filete menstrual - neste Saara de calcário e ouro ,em que impérios são montados,mantidos e destruídos num piscar de olhos, onde não se tem rostos , só olhos arregalados de cifrões e de várias casa decimais, e onde disputo uma brisa fresca depois de rodar com minha carroça de papelões,pets e outros descartáveis por todo dia,não sei se é pelo calor mais há um frisson no ar.São manifestações tem feito parte desta rotina, e parece que começou bem antes do horário de rush,ou seja antes do pôr do sol; palavras de ordem ecoam no grande complexo financeiro: `e hora, é hora, a presidente fora, ou mais factível . “ queremos transportes gratuitos” , alguns com de cara limpa outros com toucas ninjas, e, um corre- corre eventual quando de estrondos de molotovs ou balas de borracha que a policia atira prá tentar conter os manifestantes faz da Paulista um reboliço tremendo; corro meu olhar inquiridor e curioso em cada figura e que pinta nessa torre de Babel moderna e modorrenta.Detenho os olhos em 2 engravatados que parecem discutir,devem estar com a sociedade em frangalhos, mas, parecem doutores.Serão advogados divergindo dos honorários?quais problemas devem ter?eu é que tenho problema não tenho um teto,devo mais tarde disputar um espaço embaixo do viaduto;vou camelar até o ferro velho prá desovar esta mercadoria,vou ver se o que arrecadei dá prá comer e pelo menos tomar uma tubaína,banho vai ser na praça mesmo.Aproximo-me pé ante pé, e , ligo minha parabólica wi fi e ouço : -Pastor não existe esta manhã, de costas afirma o mais exaltado. - Que manhã meu filho? Que toca-o e busca olhar nos olhos. - A que eu sempre persegui ,garimpei, suei,e, fui escravo do meu trabalho,estudos ,pós graduei-me ,mestrado e nem vi meus filhos crescerem,meu casamento parecia um pregão da bolsa,cheio de altos e baixos.Estou no fundo do poço,depressivo, vazio,desesperançado e não quero mais viver ,o senhor me entende? Já em tom de prece. - Não meu filho, calma a vida é valiosa e você é o filho amado de Deus ,foi feito a sua imagem e semelhança.Reaja, ELE é convosco, o pastor o exortava com pulso firme. - Como reagir pastor?O senhor não entendeu , que graça tem essa vida?Trabalhei duro para ser rico,chegar ao meu milhão,ter uma aposentadoria tranquila e agora fui despedido com uma cartinha politicamente correta dizendo: “Você não se enquadra nos planos de futuro da nossa corporação .”Meu beneficio é insuficiente para viver e tampouco sobreviver.As empresas que fiz corretagem estão ricas e eu a ver navios.Todo ano eu ia para Europa,trocava de carro,meus filhos estudavam em colégios particulares,tinham babás, seguranças ,empregadas e minha mulher até motorista particular com carro blindado tinha.E agora? nem plano de saúde possuo,meu carro é usado,sem empregadas e meus filhos terão que abandonar a faculdade, e, estou dilapidando meu patrimônio pastor,contundente com o nó já desfeito da gravata de seda. O pastor,ora folheava a Bíblia, ora apertava contra o peito como se desejasse introjetar a palavra no peito, e havia em seu semblante um desespero mudo ,diante de uma ovelha tosquiada.Embora houvera uma coincidência peculiar no desassossego


do homem,que interpelara o pastor , ao ver as Escrituras embaixo do braço. Neste momento mais uma explosão que ecoava naquela via e muita correria com bombas de efeito moral espalhando-se , e, o pastor inflexível continuava. - Jesus Cristo ensina :”Guardemos tesouros no céu,pois os tesouros da terra a traça e a ferrugem destroem” ;Só ELE que deu a vida pode tirá-la,mas ELE quer nos dá a vida eterna e vida em abundancia, filho, com olhar altruísta paralisava o irmão . - Vida em abundância? só consegui enfarto, avc, câncer e estresse muito estresse pastor;sempre ajudei os pobres e o que ganhei com isso? Eu vou me jogar embaixo do primeiro carro que passar,tenho vergonha da situação que estou, e ,não vou conseguir olhar nos olhos dos meus filhos quando sentirem que eu sou um fracassado.Um carrinheiro é mais feliz do que eu.Que perspectiva eu tenho?e olhava para avenida procurando algum. E eles nem notaram a minha presença . E eu podia sentir seu peito arfando,sua boca seca.Enquanto o pastor lânguido pinçava versículos aleatóriamente, no Novo e Velho Testamento, e senti que ele teria que abandonar as outras ovelhas e ir atrás daquela que insistia em ir ao precipício, mas continuava enfático. - Deus exorta que fé sem obras é morta, e , que vendamos tudo para segui-lo amando uns aos outros como a si mesmo, abrindo a Bíblia e tentando mostrar-lhe como um camelô desesperado para convencer o cliente . - Vender tudo? Eu vejo os templos faraônicos que são construídos dia após dia e o show da fé que é instituído nas igrejas e há uma em cada esquina;os sacos de dinheiro que arrecadam dos cultos monumentais .O irmão que me jogou neste lodaçal como amá-lo?É fácil para o pastor que nunca teve nada na vida ,nem aspiração.Eu era o Midas do mundo financeiro...eu quero morrer e vou me jogar do viaduto mais próximo ,fez menção de correr para a rua,mas foi seguro pelo reverendo. - O suicida filho, terá choro e ranger de dentes no inferno,ma você pode arrepender-se até o ultimo momento como o bom ladrão.O Deus que servimos é um DEUS de bondade.Ele é fiel, e,ELE vai voltar para buscar os seus,que os seguem e o servem,com as mãos levantadas o pastor inflamava-se. - Quem garante que o pastor vai para o céu e eu para o inferno?Você é feliz com essa vidinha sem graça?A pouco tempo que estou nesta vida de miséria e não estou aguentando tamanha desigualdade, eu vou acabar com a minha vida custe o que custar.Ninguém vai me segurar,já sem força para esboçar. O pastor o segurou pelos ombros e olhou-o fundo nos olhos e clamou como se pregasse no deserto,assim como João,mas na anarquia dos confrontos no metro quadrado mais caro do Brasil como ouvir?e prosseguiu. - A graça é viver uma vida tranquila, amparando quem está caído, levantar os caídos e sustentar quem quer cair .”A seara é grande e são poucos os trabalhadores da fé” Jesus falou , e tudo que tenho é o que preciso. Para que mais? Procure viver com o que você tem, e, verá que independente da sua situação o sol vai nascer amanhã e vai anoitecer. E o PAI ensina: “O choro pode durar a noite inteira, mas na manhã haverá risos.” Reflita filho, dê uma oportunidade para quem fez esta vida, o universo , a via láctea para você e conta com você para viver intensamente.Até hoje o seu deus foi o $$$$,status,prazeres e cultuou-os fervorosamente em vão.Cultue o meu DEUS,que é de bondade, que livrou


seu povo do cativeiro ,e você vive num cativeiro;nos deu Canaã e o seu filho unigênito para nos salvar.Filho você verá a diferença que ELE fará na sua vida, e abriu os braços tentando envolvê-lo, mas o homem correu em direção a avenida desvencilhando-se e bradou. “Afasta de mim este cálice”e mais um estrondo no vão do Masp tomou conta do lugar, um clarão aos pés daquele homem que gemeu alto , urrou de dor, e fomos arremessados cada um para um canto,só vi a figura do homem ensanguentado entre cortinas de fumaça e as sirenes tresloucadas de ambulância e de policia na metrópole que anoitece trabalhando invadindo mais a paisagem.


William Gois, 47 anos, natural de Santos-SP. Participou em 2013 de Concurso literário da Secult de Santos no gênero poesia com o poema “A vida é uma luta sagrada” que lhe rendeu uma menção honrosa. No ano de 2014 participou da oficina literária “Como escrever um livro” ministrado por Marcelo Ariel, poeta e escritor, quando iniciou o livro “O Velho, o Homem e o Menino” (Em criação). No ano de 2015 participa da 2ª edição da oficina literário “Como escrever um livro”, também ministrada por Marcelo Ariel. Onde iniciou o livro “Bola e Piano” que já está em fase de fechamento, devendo conclui-lo até o fim deste ano. “Se você quer ver o mundo, então feche os olhos” O professor Marcelo Ariel nos convida um a um, a ir à frente da classe falar sobre o nome e a ideia do livro que queremos escrever. Depois nos pede um texto sobre como escrever sem que o ego domine a narrativa.

COMO ESCREVER PARA ALÉM DO “EU” Se eu entender o "eu" como um inimigo a ser vencido, eu devo compreendê-lo, dissecá-lo para poder ultrapassá-lo. Há que se discernir entre a fala da consciência livre e a fala do desejo disfarçado. É fácil cair nas armadilhas que preparamos para não nos distanciarmos do ego. A própria mente está condicionada a ceder a esses encantos; portanto a própria mente deve ser doutrinada a nos servir enquanto instrumento do ser. É lógico que isso não é fácil de fazer; imagine domar um animal selvagem que há bilhões de anos faz o que quer ou o que lhe manda o desejo. Para se escrever além do "eu", que são vários, têm-se que conhecer suas multifacetas para não cair em suas armadilhas. O silêncio. Acredito na voz do silêncio. Esse nos guia para caminhos além do "eu". E é por esses caminhos que devemos escrever.

OS DOZE SIGNOS ZODIACAIS


Soam os primeiros acordes, sua consciência se transforma em atenção. Volátil e vibrante viaja pela sensação causada pelas cordas marteladas com as teclas do piano. Soa, por conseguinte a melodia. Seus olhos se fecham obedecendo a vontade da emoção. No escuro de si mesmo, abrem-se as portas da percepção. Sentado na poltrona de seu quarto, após um merecido banho depois de um dia extenuante de trabalho, começa o exercício de relaxamento: Procura sentir os dedos dos pés, manda as vibrações das notas musicais exatamente para lá. Ao sentir os pés relaxados sobe as notas pelas suas panturrilhas, então sente Peixes nadando em Aquário. Nos joelhos de Capricórnio e nas coxas de Sagitário sente o formigamento causado pelas picaretas dos gnomos que cavam nas minas de diamantes. A música ganha corpo e nesse momento a orquestra que substitui o piano eleva a uma oitava maior, a sensação de vitória ao se passar pela casa de Escorpião sem se deixar cair. Piano e orquestra agora se intercalam na protagonização da música. Rins e baixo ventre, simbolizados por Libra e Virgem, pesados e limpos, alimentam a emoção que o momento permite. Piano e orquestra se juntam novamente e agora é a vez do coração de Leão não conter-se em si: Brota fogo nesse Rei e lágrimas em seus olhos. De repente volta a calmaria do início da música pelo teclado do piano, que o leva ao colo do maternal Câncer que com os braços do irmão Gêmeos o acalanta soprando suave a voz de seus pulmões. Pela última vez se juntam orquestra e piano na conclusão da viagem interior: O Touro altivo mantém o pescoço ereto e forte enquanto Áries, dono da mais alta montanha, contempla o céu estrelado que é a morada do Pai. Se nesse momento alguém entrasse nesse quarto e o visse sentado na poltrona, estático. Nem imaginaria o universo de vida interior que o reino musical lhe proporciona.

ADEUS À LINGUAGEM (FILME DE GODDARD) A imagem é a linguagem. Nesse filme a natureza interage com a natureza: O cão enfermo procura nas folhas da planta certa o remédio para se curar. No reino mineral, toma banho de riacho; brinca no campo do reino vegetal; na natureza é feliz e integrado. O homem não consegue isso, não tem tempo para isso. Na mesquinhez do seu pequeno mundo, as nuvens não deixam que o sol se manifeste. Vê-se que o sol procura a todo o momento brilhar, porém a nuvem, simbolismo de uma mente opaca, é contra a iluminação. O homem é um eterno insatisfeito; quando vai à natureza é sempre correndo atrás de algo, sempre querendo tirar esse algo em proveito próprio, sem nada oferecer em troca. O cão, ao contrário, além de brincar com os elementais deixou o adubo para a terra. Quando o sol por fim consegue aparecer, está vermelho: Sangrando por nossos pecados.


DIÁLOGO ENTRE NUVENS Nuvem Alfa: - Será que alguma vai chover hoje? Nuvem Beta: - Não sei dizer. Só sei que nessa vida essa é a única certeza de todas nós: Todas um dia iremos chover. Nuvem Alfa: - Tenho saudade da época em que era sal no mar. Nuvem Beta: - Todas temos, no entanto cada época da nossa vida tem a sua beleza e utilidade. Nuvem Alfa: - As Nereidas eram tão amigas! Lembra como brincavam com a gente, enquanto trabalhavam nossos organismos sob a orientação dos Anjos chefes dos elementais? Nuvem Beta: - Lembro e sinto saudade. Mas a vida aqui também é boa. É a melhor vista do mundo: Mar e terra, céu e ar. Os ventos nos levam aonde devemos chover e numa nova forma de organismo continuar a existência. Servimos de poltrona aos Anjos do céu, que pacientemente esperam pelas mensagens que devem levar, em forma de sonhos, ao ser humano específico, pelo qual é responsável. Nuvem Alfa: - É verdade. Mas às vezes é triste quando eles ficam épocas inteiras sem uma mensagem para levar. Isso é sinal de que seu filho na terra, não faz por merecer mensagem, aviso ou visita de entusiasmo. É sinal que seu filho se afastou do céu e não faz a menor cerimônia em não querer voltar. Gosta tanto da gravidade que acaba por ser engolido por ela. Como sofrem os Anjos no céu quando seus filhos se prendem tanto a terra, que nem em sonhos conseguem voar. Nuvem Beta: - É verdade, é triste pensar nisso. Por isso prefiro pensar em que quando eu chover, que seja num momento e lugar que precisem de mim, num lugar onde eu possa ajudar, num lugar que me recebam com alegria e até mesmo como alívio. Nuvem Alfa: Você prestou atenção na aula de hoje? O Anjo Mestre disse que não devemos tentar agradar, apenas servirmos como instrumentos da providência para a natureza. O Homem parece estar fora de controle. Enquanto uns agradecem pela chuva "Obrigado Deus Pai pela chuva, tão necessária para nossa sobrevivência", outros repudiam "Chuva chata que não pára! Tinha que cair logo agora?!". Vai entender a psicologia humana. Nuvem Beta: - É que enquanto uns enxergam como um todo, outros se preocupam apenas com seu pequenino pedaço de chão, que num futuro inexorável lhe servirá de cova. Nuvem Alfa: - É como você disse antes "Um dia todas nós iremos chover".


Nuvem Beta: - Pois é, nós chovemos e alimentamos a natureza. O homem morre e alimenta a natureza. Será o destino de todos, nos sacrificarmos? Nuvem Alfa: O sacrifício voluntário é um "Sacro Ofício", Trabalho Sagrado. O homem por temer a morte, demora a entendê-la, e por isso sofrem os que se foram e os que ficaram. Nuvem Beta: - Sim, é verdade. Por isso que quando chegar minha hora de chover, gostaria mais do que agradar, de ser compreendida. Não é minha vontade fazer mal ou alagar, destruir bens, casas e moveis; desabrigar. Mas se assim acontecer, Deus me perdoe, não foi minha intenção. Nuvem Alfa: - Não se martirize assim, irmã nuvem. Somos apenas instrumentos da providência para a natureza. E se assim vier a acontecer, é sinal de que alguma coisa está fora da ordem na vida do homem na terra. Nuvem Beta: - Olha lá, mais um avião passando! Olha como se enchem de Anjos as janelas! Com certeza procurando por seus filhos desgarrados. Nuvem Alfa: - É verdade. Olha, já voltam alegres para nós, suas poltronas! Mestres, o que viram vos agradou? Anjo Mestre: - Sim crianças, o filho de um de nós estava no estado propício para receber sua mensagem; e nosso Irmão conseguiu entrar em seu sonho para se manifestar. Nuvem Alfa: - Mestre, trata-se de alguém especial? Anjo Mestre: - Todo aquele que procura contato com seu Anjo da Guarda é especial. Esse é um futuro governante de um belo país. Busca orientação para ser justo e perfeito para governar, e enquanto merecer terá toda a ajuda que precisar. Nuvem Beta: - Olha irmã nuvem, nem tudo está perdido. Quando um futuro governante imita o sábio rei Salomão e pede sabedoria e amor ao invés de riqueza para governar, isso significa que nem todos os homens estão descontrolados. Nuvem Alfa: - É verdade, quem dera todos os homens imitassem esse e se abrissem a possibilidade de seu Anjo particular ajudar. Anjo Mestre: - Sim minhas crianças! Porém não se esqueçam das palavras ditas pelo Mestre dos Mestres, o Divino Rabi da Galileia "De mil que me procuram, um me encontra. De mil que me encontram, um me segue. De mil que me seguem, um é meu".

O QUE É ESCREVER?


Quando a casa se abre com suas portas e janelas escancaradas, entram juntos a natureza e o entusiasmo. Nada fica sem ser dito pela caneta no papel, ou na parede do quarto, ou da sala, ou da cozinha, ou mesmo na do banheiro. Aonde vai a natureza preenche com sua vida a vida que faltava ser contada. As lágrimas de emoção lavam um rosto que sorri. O dia passa e o almoço espera pacientemente seu momento. Ouvidos ouvem o silêncio e mãos detêm, retêm e abraçam o vazio. Cria-se sim. Quem diz que não? Quem diz que canetas não podem falar? Chega a noite com o luar ou com a chuva. Agora é hora de ir pescar. Fecham-se portas e janelas. O que entrou durante o dia, só sairá em forma de um livro.

SONHO DE UMA AMIZADE DE VERÃO O menino nunca vira o mar. A não ser pela televisão, de onde não desgrudava os olhos encantados com tanta vida bela debaixo d´água. O menino, morador da cidade de Guariba, interior de São Paulo, cuja população é de um pouco mais de 35mil habitantes, onde borboletas passeiam aos bandos pelas árvores da cidade, e cavalos são animais domésticos, tinha se decidido por ser jogador de futebol, mas por enquanto se deliciava com a ideia de um hobbie que um palhaço de um circo que todo ano voltava à cidade prometeu lhe ajudar: manter um aquário sem peixes. Todo ano o menino espera com ansiedade pela volta do circo que traz o palhaço. E todo ano o palhaço lhe traz alguma novidade para o aquário. O aquário já tem motor para oxigenar a água, já têm um navio naufragado, já têm pedras coloridas com as quais o menino fez um recife de corais. A cada ano o aquário fica mais lindo e colorido. Sentado num banco da praça central em frente à prefeitura, o menino toma seu sorvete de massa, sabor de chocolate enquanto lembra-se da última reportagem que assistira na televisão: a invasão de águas-vivas no litoral paulista nesse verão. Diz que queima e dói muito. Pensando nisso tomou uma decisão. Quando crescer e se tornar prefeito da cidade, ou um jogador de futebol rico e famoso (O que acontecer primeiro), mandara construir um aquário enorme e mandara trazer todas as águas-vivas de Santos. Assim todos poderão viver em paz. Por um momento invejo esse menino. Sentado na poltrona do meu apartamento em frente à praia, não tenho nem 10% de sua imaginação.

LUZES DA CIDADE Ao assistir o filme, me levo a querer falar sobre a última cena: O reencontro entre o Vagabundo e a, agora não mais cega, Florista. No entanto, quero falar sobre o que aconteceu para que essa cena pudesse ser feita. A humilhação constante a que o Vagabundo se submete durante todo o filme perante o Milionário ébrio, que sofre de amnésia quando sóbrio.


A dolorosa lição que aprende, quando se vê desempregado e precisando do dinheiro para pagar o aluguel atrasado da florista, que caso não o faça será despejada. Não pensa duas vezes em entrar numa luta combinada que dá errado, e acaba com uma surra e sem o dinheiro. Tal qual um cão de rua que livre de orgulho e vaidade, em busca de companhia em troca de lealdade, se submete a situações embaraçosas que em muitos seres humanos tidos como normais, seria o suficiente para ferir o Milionário de morte e merecer a prisão. Soubesse o Milionário que maravilha o seu dinheiro pôde comprar, não mandaria o Vagabundo para a prisão e tão pouco o expulsaria diversas vezes de sua casa, para que, quando bêbado de novo, o raptasse de volta para servir-lhe de companhia. Como um Elemental inocente, o Vagabundo percebe apenas a oportunidade de fazer o bem a quem ama sem apego. Pois quando a florista, já operada e podendo ver, quer lhe entregar uma flor na última cena, tenta fugir para não quebrar o encanto do seu sonho; o sonho de que seu benfeitor é um príncipe encantando e não um vagabundo que foi para a prisão por lhe fazer o bem. Fica a pergunta: O que é um Herói?

O PONTO DE ÔNIBUS A árvore observa as pessoas no ponto de ônibus. Um intruso pergunta à professora: - Que árvore será essa? - A árvore do ponto de ônibus. - Responde a professora ao intruso de sua espera. - Pergunto o nome dela! - Têm cara de Cecília. - A professora não perde a elegância. - Por quê? - O intruso não pretende deixar barato a falta de informação. - Porque quase ninguém conhece uma Cecília. - Será possível? Eu conheço duas. - E elas são parecidas com essa árvore? - Realmente não sei. Não conheço essa árvore! - Já te disse quem ela é: a árvore do ponto de ônibus com cara de Cecília. Eu também conheço duas Cecílias: A Meireles e agora essa árvore. O professor Marcelo Ariel lê um conto de Clarice Lispector intitulado “O mistério de São Cristóvão” onde uma família aproveita com entusiasmo a prosperidade de um mês de maio, que enfim chega e que torna a todos felizes. Um casal, a avó, três crianças e uma bela donzela de dezenove anos. Após um tempo todos vão dormir felizes. Menos a mocinha que ficou debruçada na janela do seu quarto, prometendo para o dia seguinte uma atitude de abalar os jacintos e o jardim. Vai para sua cama e adormece. Da casa da esquina saem três mascarados: O Galo, O Touro e o Demônio com olhos cândidos. Nesse ponto do conto o professor para de ler e diz “Continuem de onde eu parei. Escrevam o resto do conto”.


- Olha só. – Disse o Galo, o chefe intelectual. A janela aberta e convidativa chamava a oportunidade. - Nem pensar, conheço a menina. – Protestou o Demônio com olhos cândidos. - Não perguntei nada, apenas me sigam. Os três com a facilidade dos gatunos pularam para dentro do quarto da donzela. Na penteadeira imagens de santos. O da máscara de Demônio com olhos cândidos se estremeceu, como se um presságio lhe avisasse. Não pôde nada falar, queria, mas a voz não saiu. Então agiu. Pisou no pé do Touro por querer. O Galo tapou a boca desse num susto e olhou para o Demônio que tapava a boca da donzela que já tinha lágrimas escorrendo dos seus olhos. O Demônio apontou os anjos espalhados por toda a penteadeira. O Galo soltou o Touro e disse a donzela: - Vou voltar! A donzela acordou do sonho e nas orações que fez a todos os anjos, pediu proteção e que o único galo que retornasse fosse o do despertar. Quanto ao demônio com olhos cândidos pediu proteção redobrada, pois esse intuito de querer rebelar-se na manhã seguinte aparece convidativo, mas sem consequência protegida. O professor Marcelo Ariel leu as duas primeiras páginas do livro “Alice no país das maravilhas” e nos mostrou que a ação pensa e se torna o próprio narrador. A narrativa tem a lógica de um sonho e cria imagens autônomas. Sugere-nos escrever em lugares com muita gente. Escrever em lugares onde ninguém ainda se atreveu. Pediu sete pequenos textos em que devemos nos colocar no lugar de sete personagens diferentes, à saber: 1- Eu sou um espelho que não reflete: Preso dentro do mim mesmo e criado para refletir luz. Sofro com a ausência das coisas que não consigo trazer para o meu mundo. Entrego-me em cavar cada vez mais fundo e sem limite. Até onde vou para alcançar o momento em que me descubro e, quebrado, me liberto? 2- Eu sou um pássaro que cai do ninho: Minha mãe não está, e agora? Fico para a morte ou fujo para a vida? A serpente sorrateira desliza já aqui perto, e ainda não sei voar. Nada me custa cair desse ninho que antes era meu aconchego, porém agora se torna meu cadafalso. Sim, nada me custa cair daqui direto para aquele buraco onde entraram antes o coelho e depois a menina. 3- Eu sou uma pedra: Aqui espero por eras inteiras alguém me chutar, para avançar na evolução das espécies. Alguém que me arremesse pelo mundo afora. Tenho


sede de saber o que é ser um vegetal. Acho que já desperto. Alguém me lance no lago profundo e calmo dos cisnes que se amam. 4- Eu sou uma nuvem: Amigo vento, por favor, me sopre para o topo daquela montanha. Quero regar as flores do jardim do Mestre Tao. 5- Eu sou um animal grande que está sendo perseguido: Quantos são os que correm atrás de mim? São muitos. Ambiente frio e escuro se tornou meu habitat. Lanças, flechas, palavrões e gritos de morte diferem contra mim. Pensei que veria o cemitério dos elefantes, assim como meus ancestrais. 6- Eu sou um escritor com dificuldade de escrever seu livro: Preguiça, querida inimiga! Como vai, tudo bem? Quantas ideias que não vêm até mim, porque você as barra na porta da minha mente. Vida bela ao longe e um jato para chegar logo. Ansiedade e descaso não ajudam em nada. Uma página por dia, quantas terei ao fim do ano? 7- Eu sou um morador de rua: Com o absurdo dos meus atos do passado, isso foi o que consegui: tornar-me um morador da rua. Vítima das circunstâncias por descaso de mim mesmo e pelos desejos de sonhos baratos. Sonhos baratos ou pesadelos? E pesadelos são mais pesados que a realidade da gravidade. Na gravidade em que me encontro. Vergonha de depender da solidariedade das pessoas. Preguiça de sentir vergonha, na verdade. Amigos e parentes de mentira. Amigo mesmo, de verdade, somente o Au; com quem divido minha refeição.


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