DEBATE E PENSAMENTO, TEATRO novembro ↣ dezembro 2016
ARQUIPÉLAGO 2/6
DAS DIVERSIDADES textos: Cristina Santinho, André Amálio, António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, Fernanda Eugénio e Joana Braga
curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
setembro ↣ outubro 2016
6 ARQUIPÉLAGO DA RESILIÊNCIA
olhou para o regresso da imaginação política nos movimentos sociais que têm irrompido um pouco por todo o mundo nos últimos anos. novembro ↣ dezembro 2016
> ARQUIPÉLAGO DAS DIVERSIDADES
parte da crise dos refugiados para revisitar os problemas e as oportunidades da sociedade diversa. janeiro ↣ fevereiro 2017
6 ARQUIPÉLAGO COMUM
revisita os muitos projetos utópicos surgidos dos comunismos e anarquismos que nasceram no início do século XX. março 2017
6 ARQUIPÉLAGO DOS AFETOS
dá a palavra aos muitos que estão a repensar a política como uma atividade também afetiva. março ↣ abril 2017
6 ARQUIPÉLAGO CAPITAL
centra‑se nas forças imaginativas e destrutivas do capitalismo. maio ↣ julho 2017
6 ARQUIPÉLAGO VERDE
foca‑se no imaginário utópico mais influente da atualidade, surgido da necessidade incontornável de manter o planeta viável.
O ciclo UTOPIAS oferece um programa alargado que atravessa toda a temporada 2016‑2017 do Teatro Maria Matos, com espetáculos, instalações, palestras, encontros e eventos no espaço público, trazendo convidados que fazem do agir crítico e da imaginação política uma tarefa diária. As UTOPIAS da temporada estão organizadas em seis arquipélagos, seis territórios para conhecer possibilidades que estão já em curs e de imaginar outras. Neste caderno que acompanha o Arquipélago das Diversidades encontrará textos da autoria de alguns dos convidados e artistas que estarão connosco nos meses de novembro e dezembro. Abrimos aqui o debate sobre a diversidade cultural com um texto da antropóloga Cristina Santinho que nos introduz ao tema da integração de refugiados em Portugal e na Europa; o ator, encenador e investigador André Amálio mostra‑nos como a sua prática de teatro documental tem origem numa interrogação enquanto cidadão acerca do que foram as experiências vividas no passado recente português, no que diz respeito aos processos de colonização e descolonização, e também do que dessa experiência ficou nas nossas memórias privadas e coletivas; o texto de António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, ao refletir sobre o debate da pós‑memória, aprofunda essa interrogação referindo‑se à herança deixada por estas memórias na forma como se têm configurado as identidades europeias; Fernanda Eugénio e Joana Braga apresentam o projeto Topias Urbanas, que nos levará a envolvermo‑nos com a diversidade cultural, social e económica da freguesia de Chelas.
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No segundo arquipélago do ciclo UTOPIAS, iremos olhar para a forma como estamos a lidar com a diversidade cultural e com a multiplicidade de proveniências das pessoas que fazem a realidade da maioria das cidades europeias. Até há bem pouco tempo, o debate em torno da diversidade centrava‑se na discussão de dois modelos multiculturais predominantes: a opção republicana francesa, que aposta na integração das populações oriundas de outros países no modelo cultural e social nacional, e o modelo anglo‑saxónico que defende a convivência e coexistência de várias populações, com respeito total pela autonomia cultural de cada uma. A crise dos refugiados, os reflexos securitários espoletados pelo terrorismo e o crescimento impressionante da extrema‑direita, varreram todas estas discussões de cima da mesa, deixando no seu lugar uma questão central: a Europa ainda está disposta a receber imigrantes, sejam eles trabalhadores ou refugiados? Ainda somos capazes de imaginar uma Europa em que o convívio de cidadãos de todo o mundo seja não só possível, mas desejado? No Arquipélago das Diversidades, abordaremos o modo como os processos de colonização e descolonização europeus e portugueses sobrevivem nas nossas memórias e comportamentos; escutaremos a experiência de integração de quem procura refúgio na Europa; imaginaremos formas de convivência e vizinhança com culturas e configurações sociais diversas. Começamos com Passa‑Porte, uma peça de teatro documental de André Amálio. A partir dos processos de independência das antigas colónias portuguesas de Angola e Moçambique e apelando a testemunhos reais, esta peça retrata a fuga da violência decorrente do fim do colonialismo ou do início da guerra civil em Angola. Segue‑se o debate Quando a luz se apaga sobre os desafios da integração de refugiados em território português, realizado em parceria com a Associação de Refugiados em Portugal e o Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA/ISCTE‑IUL). Vamos escutar a experiência de quem é refugiado. E refletir acerca do espaço que, todos nós, podemos criar para perspetivar um futuro comum.
ARQUIPÉL AGO
No fim de novembro, Geometrias da Memória: Configurações Pós‑Coloniais, título homónimo de um livro a ser lançado nesse mesmo dia, junta artistas e investigadores do projeto Memoirs, do CES — Universidade de Coimbra. Será o momento de debater o impacto atual na Europa das memórias coloniais e dos processos de descolonização e independências africanas partindo das pós‑memórias de quem cresceu e vive em Portugal, França e Bélgica. Em dezembro, numa peça que nos convoca a olhar, simultaneamente, para uma das principais portas da Europa no que diz respeito a imigrantes e refugiados, e para a história do conceito de “limpo” que, na Europa se tornou pedra de toque de ideologias racistas, Clean City, é uma peça de teatro que parte de uma simples questão: porque é que quem limpa a cidade de Atenas são, maioritariamente, mulheres e imigrantes? Fechamos o Arquipélago das Diversidades com a primeira apresentação pública do projecto Topias Urbanas que, durante nove meses habitará a freguesia de Chelas, procurando (re) criar planos comuns para a convivência e (re)imaginação conjunta das potencialidades daquele lugar. Com Cartografias do Bairro iremos pensar sobre a convivência e vizinhança com culturas e estruturas sociais e económicas díspares. curadoria: Liliana Coutinho e Mark Deputter
DAS DIVERSIDADES
* Excerto do texto da comunicação proferida no Congresso APA, junho de 2016, Coimbra, Painel 091 — Estratégias de sobrevivência, subjetividades e trajetórias de superação.
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Os refugiados no seu labirinto CRISTINA SANTINHO * Antes de escrever esta apresentação e como é hábito, fui ler e‑mails recentes que recebi de redes de investigadores e ativistas posicionados em territórios de crise onde se acumulam refugiados, presos entre fronteiras e territórios, como a Grécia, Itália, França, Hungria, Macedónia… De um modo geral, diziam: “Trinta migrantes foram assassinados numa cidade líbia”; “A NATO prepara um bloqueio naval na costa da Líbia com o objetivo de encerrar a rota central do Mediterrâneo usada pelos migrantes. Esta missão da aliança militar foi revelada aos líderes europeus reunidos em Hannover na última semana.”; “Em Paris, a política de não acolhimento continua. Os exilados são deixados na rua, dormem por baixo dos viadutos ou no metro”. “Esta semana o parlamento britânico recusou albergar em Inglaterra 3000 crianças sírias que fugiram para a Europa.” Finalizando este “resumo noticiário”, reproduzo aqui, aquela que foi, para muitos de nós, a notícia mais surpreendente e icónica, após o acordo entre a União Europeia e a Turquia, pronunciada no dia 23 de abril pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk e que dá conta do cinismo que está na base dos interesses financeiros e políticos entre ambos os atores, Turquia e União Europeia. (…) Turkey is the best example for the whole world on how we should treat refugees. No one has the right to lecture Turkey what you should do. I am very proud that we are partners. I am absolutely sure that we will succeed. There is no other way. 1 www.consilium.europa.eu/pt/press/press‑releases/2016/04/23‑tusk ‑remarks‑visit‑gaziantep‑turkey
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Esta comunicação visa refletir um pouco sobre os processos de acolhimento e integração dos refugiados, em Portugal, nos anos recentes. Todos sabemos que o que acontece na política externa europeia tem, obviamente, consequências em Portugal, quer nas práticas e políticas migratórias, quer nas representações que a sociedade, de um modo geral tem, sobre os refugiados. Uma das minhas preocupações mais recentes relaciona‑se com o uso dos conceitos veiculados por alguns meios de comunicação internacionais que, aparentemente, obedecem a uma agenda política europeia pré‑determinada. Se fizermos uma rápida análise das notícias transmitidas pelos jornais e televisões reparamos que, após a assinatura do acordo entre a União Europeia e a Turquia 2 — que teve como uma das primeiras consequências, a deportação de refugiados vindos da Grécia — o uso de palavras mais recorrentes, nas notícias sobre refugiados foi, justamente, o de “imigrantes ilegais”, substituindo assim a palavra “refugiados”, anteriormente usada. Estes conceitos: “refugiados”, “imigrantes económicos”, “imigrantes ilegais”, correspondem agora a palavras com significados muito mais restritivos e condicionadores de uma legalidade, do que acontecia antes de 2015. Trata‑se de um modo subtil de mudança de paradigma: confundem‑se os termos, ignoram‑se as narrativas de sofrimento, deporta‑se quem teria direito inequívoco a uma proteção legal, de acordo com o estipulado no Direito Internacional e na Convenção de Genebra, prendem‑se pessoas inocentes, criminalizam‑se os refugiados, os imigrantes, um certo tipo de mobilidade, mas não toda! Excluem‑se desta perseguição, os turistas, os investidores, os usuários dos Vistos Gold 3, por exemplo. Na primavera de 2015, como resposta ao aumento do afluxo de refugiados à Europa, a Comissão Europeia tomou a decisão política de criar um sistema de hotspots, isto é, centros de receção e processamento de pedidos de asilo, instalados nos países mais afetados pelo afluxo de pessoas 2 europa.eu/rapid/press‑release_MEMO‑16‑1221_en.htm 3 www.goldvisaportugal.pt
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que pedem proteção, nomeadamente na Grécia e em Itália. Estes hotspots visam registar, identificar, tirar impressões digitais e selecionar as pessoas que pretendem pedir proteção internacional. As notícias sobre a abertura de mais hotspots, por exemplo na Grécia, e as missões militares que visam travar o fluxo de refugiados parece aumentar na proporção do número de mortos no Mediterrâneo e no Mar Egeu. A meu ver, contribuem também para reforçar a ideia, na opinião pública, de que está em causa a segurança europeia, devido principalmente à veiculação da ideia de que existe uma “invasão” de refugiados na União Europeia, escamoteando‑se a realidade, isto é, o número de refugiados na Europa é muitíssimo inferior aos que existem por exemplo, em países como o Líbano, a Turquia, ou o Paquistão, onde existem para cada um deles, mais de 1 milhão de refugiados. O acordo entre a União Europeia e a Turquia produziu igualmente efeitos simbólicos imediatos, na forma como o mundo passou a ver os refugiados: os que contaminam, que ameaçam com a sua presença, pela ousadia de pretenderem existir num território europeu “impoluto”. (…) Refletindo agora sobre Portugal: o que mudou nos últimos anos na fase de acolhimento e integração de refugiados? Quais as atuais consequências desta crise europeia que tem agravado, paulatinamente, o drama dos refugiados? Ao contrário dos restantes países europeus, Portugal tem recebido, desde que há registos oficiais (1995), um número de pedidos de asilo muito reduzido. Apesar da narrativa política e institucional do bom acolhimento e integração na sociedade, a etnografia diz‑nos que a realidade experienciada pelos refugiados, raramente corresponde aos compromissos redigidos pelas instituições que têm a cargo a “gestão” das suas vidas. A insegurança quanto ao presente e futuro, a dificuldade em garantir, aqui, uma autonomia social e económica, conduz muitos refugiados a uma mobilidade forçada, rumo a outros países europeus tanto antes, como após a obtenção da cidadania portuguesa. Mas, como é que tem decorrido este processo? Destaco três momentos na história recente de acolhimento e integração
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de refugiados. O primeiro momento decorreu até ao final de 2012. Em termos estatísticos, nesse ano, Portugal recebeu 299 pedidos de asilo. O número de estatutos verdadeiramente reconhecidos é muito inferior: foram concedidos apenas 14 estatutos de asilo e 95 de proteção subsidiária. As instituições envolvidas na fase de acolhimento eram, grosso modo, as seguintes: o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, responsável pela avaliação do pedido, a Segurança Social, responsável pela atribuição dos subsídios, e o Conselho Português para os Refugiados, parceira privilegiada do ACNUR, responsável pela gestão do Centro de Acolhimento. Era também nas imediações deste local que a maior parte dos refugiados tentava encontrar o seu local de residência. Em 2012, foi criado um “Grupo Técnico Operativo em matéria de asilo”, constituído pelas seguintes instituições: Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural; Centros Distritais do Instituto de Segurança Social; Conselho Português para os Refugiados; Instituto de Emprego e Formação Profissional; Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O objetivo da criação desta parceria corresponde a uma mudança de paradigma: pretendia‑se, de acordo com os subscritores, uma maior eficácia na inserção social dos refugiados e requerentes de asilo, a nível nacional, resultante de uma desejada partilha de compromissos e responsabilidades entre todos. Definiu‑se uma política integrada de intervenção de todos os organismos com competência na matéria, com vista a “permitir a delineação de um plano de inserção individual, personalizado e efetivo para cada um/a dos/as refugiados/as” (pág. 29 do referido relatório 4). Assim, a partir do início de 2013, os refugiados passaram a ser redistribuídos por diversas capitais de distrito, a nível nacional. Atendendo à dificuldade estrutural no acesso ao emprego e habitação, a intenção política desta medida era a de contribuir para a dispersão dos refugiados pelo país, de modo a que pudessem melhorar as suas hipóteses de emprego, em geografias supostamente menos penalizadas pelo desemprego e até em processos de desertificação. 4 Este relatório não está disponível para consulta pública.
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Contudo, a pesquisa etnográfica realizada em muitas capitais de distrito, junto a refugiados, mas também diretores e técnicos destas instituições, revelou uma realidade muito preocupante: as instituições estatais não foram capazes de dar resposta às necessidades quotidianas dos refugiados, por diversas razões, nomeadamente: falta de articulação entre a principal instituição responsável por esta redistribuição: a Segurança Social central e as distritais que, já de si, estavam a braços com uma nefasta insuficiência de meios técnicos devido ao despedimento massivo de pessoal na administração pública; inexistência ou insuficiente articulação com as instituições locais: autarquias, empresas, escolas, hospitais; falta de conhecimento prévio e formação dos técnicos sobre os perfis e as necessidades concretas dos refugiados. Como consequência desta negligência e irresponsabilidade das políticas institucionais face à necessidade de proteção dos direitos dos refugiados, estes vivenciaram situações extremas de exclusão e sofrimento social. Para além de lhes estar proibido o regresso a Lisboa, sob pena de lhes ser cortado o subsídio, o que os coloca numa situação de isolamento pelo corte abrupto das poucas redes sociais que tinham conseguido anteriormente, também não lhes é garantido o emprego, a casa para habitar, ou, sequer, a aprendizagem da língua portuguesa. Muitos destes refugiados acabam por desaparecer, presumindo‑se que a extrema vulnerabilidade a que foram conduzidos os levou a arriscar a procurar dentro das suas redes familiares e sociais dos países do norte da Europa. Aí, muitos, pela força da legislação internacional, têm sido conduzidos inexoravelmente à condição de migrantes, sem dinheiro e sem direitos, prontos a ser explorados pela indústria que vive à custa da imigração “ilegal”. De 2012 a 2015, entra‑se num novo processo legislativo, com reflexos imediatos na gestão dos refugiados, agravando, particularmente, os direitos dos mesmos. Este período corresponde à agudização das políticas governamentais de então. O governo, constituído por uma maioria de direita no Parlamento, introduziu alterações à legislação, pretendendo adaptá‑la às diretivas europeias, o que representou um retrocesso na garantia de proteção dos refugiados.
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Aqui fica por alto a referência a todos os acontecimentos ocorridos em 2015 e 2016: o agravamento da guerra na Síria, os conflitos na Líbia, Somália, Afeganistão, Eritreia, os consequentes naufrágios no Mediterrâneo e Mar Egeu, as reuniões de emergência dos líderes Europeus, a concentração de refugiados na Grécia e em Itália, o encerramento de fronteiras, os hotspots, o famigerado negócio humanitário entre a União Europeia e a Turquia. Concentrar‑me‑ei agora apenas no que está a ocorrer em Portugal. No ano passado, Portugal recebeu, pelas vias normais, um total de 872 pedidos de asilo, o que corresponde a um acréscimo de 97,2% em relação ao ano anterior. Para além destes, e devido aos acordos políticos dos líderes europeus de redistribuição de refugiados, provenientes de Itália e Grécia, Portugal comprometeu‑se a acolher cerca de 5 mil refugiados num período de dois anos. Contudo, até agora, apenas chegaram 195, ao abrigo do atual programa de recolocação. Houve uma forte mobilização por parte das organizações da sociedade civil, para o acolhimento dos refugiados, a nível nacional. Surgiram organizações que nunca antes tinham tido na sua agenda a “causa” específica dos refugiados: registaram‑se novas associações de apoio, replicaram‑se projetos internacionais, surgiram novas fundações, organizaram‑se movimentos de solidariedade espontâneos, as autarquias prepararam os seus planos municipais de integração, inauguraram‑se centros de acolhimento temporários, a igreja católica mobiliza‑se para encontrar respostas de acolhimento a nível nacional, promove campanhas de “sensibilização” da sociedade civil. Mas, apesar das manifestações de solidariedade, novas questões se levantam. A primeira é: em pouco mais de um ano, a sociedade portuguesa passou de um país alheado totalmente da temática dos refugiados, para um país em que todos passaram a receber notícias diárias veiculadas pelos meios de comunicação, sobre a “crise dos refugiados”. Frequentemente, estas notícias associam o termo refugiados a outros termos perniciosos e alarmantes como “terrorismo”, “insegurança”, “ameaça islâmica”, “perda dos valores de uma suposta civilização “ocidental”, para além do que podemos encontrar
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nos comentários anónimos dos jornais, nas redes sociais e em alguns fóruns, frequentemente xenófobos e fruto de desinformação e ignorância. Contudo, muito pouco se tem feito, a nível nacional e internacional, para desconstruir as verdadeiras razões para a existência do atual drama dos refugiados. Essas razões são, a meu ver, indubitavelmente políticas e refletem os efeitos do pensamento neoliberal e da construção do sentimento psicológico da “crise”. Naomi Klein, com a sua obra A Doutrina do Choque, advertiu para os perigos das teorias que defendem o uso do conceito de crise para impor políticas impopulares, confundindo os cidadãos relativamente ao real motivo para o seu sofrimento social. Para alguns dos principais líderes europeus, a “crise dos refugiados” passou a ser o perfeito bode expiatório para esconder a verdadeira escalada do neoliberalismo que faz de nós, cidadãos nacionais, refugiados, imigrantes, meros peões descartáveis numa construção social baseada no consumo e na concorrência como característica ideal das relações humanas. A segunda questão relaciona‑se com os perigos inerentes à produção de algumas campanhas de “sensibilização” que se baseiam na mera criação de sentimentos de empatia para com os refugiados. A ideia de que a empatia é sempre uma virtude moral, carregada de valores altruístas, que conduzem indubitavelmente à solidariedade e coesão social, pode estar profundamente errada. Sabemos, pelo exemplo carregado de mediatismo do pequeno Aylan Kurdi, que os sentimentos de pena e simpatia gerada no momento, pelas imagens arrepiantes das televisões, rapidamente se transformaram em cliché, desinteresse, “mais do mesmo”. Já ninguém se importou com as dezenas de crianças que, depois dessa, morreram em iguais circunstâncias. A transformação das consciências morais e éticas reside na análise social, cultural, histórica e politica, tanto macro, por exemplo — qual a razão dos resultados eleitorais de viragem ideológica para partidos de extrema‑direita, na Áustria, Hungria, Holanda e agora com a ameaça de Trump nos Estados Unidos? Como micro: por que razão se desenvolvem campanhas de solidariedade apenas focadas nos refugiados,
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em abstrato (os que ainda não residem em Portugal), ou se apoiam preferencialmente aqueles que correspondem a um certo perfil: brancos, sírios, famílias instruídas e, paralelamente, se produz, sistematicamente, um não reconhecimento dos casos de insucesso de inserção na sociedade portuguesa entre os refugiados que aqui vivem há tantos anos? E uma última questão: há que discutir e questionar urgentemente as políticas internacionais que visam separar os “verdadeiros refugiados” dos “imigrantes económicos”. A confirmação e legitimação dos conceitos conduz, inevitavelmente, à exclusão. A arbitrariedade com que as polícias de fronteiras europeias estão a fazer esta separação entre uns e outros, tem apenas um propósito: segregar, definir quem tem direito a ser aceite no mito sagrado do continente europeu e quem não tem. Pune‑se e criminaliza‑se o direito à mobilidade, à sobrevivência física e também económica das vidas de cada um, sempre mais complexas que as categorias impostas pelos agentes securitários. Não é por acaso que atualmente tem aumentado o número de pedidos de apoio de imigrantes junto das associações. O canal de passagem e de reconhecimento de quem tem direito e de quem não tem é cada vez mais estreito. Fala‑se já, numa nova alteração da lei de asilo. Não tenhamos dúvidas que será pior que a anterior. Mais restritiva, mais excludente. Mas, são os refugiados, os imigrantes, que afinal, nos alertam para a importância da defesa dos direitos de cidadania, de cada vez que se fazem ouvir, de cada vez que participam ativamente nas reuniões com as instituições, aos balcões do SEF, da Segurança Social, ou nas ruas da capital em dia de manifestação pela defesa das conquistas de abril. Atuam como cidadãos, não para reclamar a diversidade, mas para alertar para a legitimidade das suas reivindicações do acesso de pleno direito à cidadania, com direitos políticos, culturais e sociais. É na estreita brecha de visibilidade das suas vozes que temos a confirmação de que não existe um “nós” e um “eles”. Somos todos, sem exceção, cidadãos de pleno direito.
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Reescrever a história ANDRÉ AMÁLIO Comecei a ficar interessado sobre o colonialismo português durante o período em que vivi em Londres. Nessa altura, tinha vários colegas que me colocavam questões sobre o colonialismo português, o papel de Portugal na escravatura, entre outros tópicos que nunca tinha discutido. O que eu conhecia sobre o colonialismo português era o que tinha aprendido nas aulas de história da escola, com os descobrimentos, as conquistas, as caravelas, etc. E das coisas que mais me impressionou nesse tempo em Londres foi a força do movimento e pensamento pós‑colonial que existia na Goldsmiths, onde estava a tirar um mestrado, e essa experiência levou‑me a querer saber mais sobre a minha própria história colonial. Em 2013, comecei um programa de doutoramento na Universidade de Roehampton sobre teatro documental e o fim do colonialismo português, no qual tenho estado a desenvolver um ciclo de espetáculos de teatro documental sobre esta temática. Este trabalho de criação artística tem sido desenvolvido com a companhia Hotel Europa, da qual sou o diretor artístico, tendo até ao momento criado os espetáculos Portugal Não É Um País Pequeno (2015) e Passa‑Porte (2016), e estando neste momento a iniciar o processo de investigação para o último espetáculo Libertação a estrear em Setembro de 2017 no Teatro Maria Matos. O estudo sobre o colonialismo português esteve silenciado durante décadas, encoberto sobre o mito lusotropicalista, de Gilberto Freire, que foi tão utilizado pelo Estado Novo a partir dos anos 1950. A crença de que os portugueses eram uns colonizadores melhores do que os outros povos europeus ficou completamente enraizada no pensamento português. O sociólogo americano Gerald Bender, investigador do colonialismo português escreve sobre a dificuldade portuguesa em aceitar o seu passado, afirmando que “que existem muitas formas de lidar com esse passado, desde aceitá‑lo, a rejeitá‑lo totalmente e escrever relatos revisionistas para esconder este período”. Portugal tem optado ao longo de décadas por manter uma mitificação
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sobre os descobrimentos e esconder os crimes e danos provocados por quase quinhentos anos de colonialismo. De que forma queremos olhar para o nosso passado hoje? E quais são os instrumentos que permitem atualizar a nossa história? Estas são algumas das preocupações desta investigação. Tal como afirmam Gilbert e Tompkins (1996), no seu livro Postcolonial Drama, a história é um discurso que está aberto a interpretações como qualquer outro discurso narrativo, como se de uma ficção se tratasse. Passados mais de quarenta anos sobre a descolonização portuguesa, talvez consigamos finalmente olhar de frente este passado e desconstruir as narrativas do imperialismo português e do Estado Novo. É através do teatro documental que tenho vindo a articular um pensamento e uma reflexão sobre esta história, aliando uma pesquisa académica a uma prática de criação artística. Peter Weiss afirma que o teatro documental utiliza “material autêntico e coloca‑o em cena, inalterado em conteúdo, editado em forma” e acrescenta que “apresenta factos para escrutínio e toma partidos”. A matéria do trabalho documental é a realidade e não a ficção que como Carol Martin argumenta, “pode ser entendido como estando a intervir na história — mudando, ou tentando mudar, a própria história”. Este ciclo pretende precisamente lidar com esse passado difícil e complexo que tem sido silenciado. Utilizando a história oral como metodologia de investigação, dando voz às pessoas que viveram e testemunharam estes acontecimentos históricos, pessoas que muitas vezes foram silenciadas pela própria história e que agora têm um lugar central. O texto deste espetáculo foi criado através de um processo de verbatim, ou seja, de cópia palavra por palavra, o que se traduziu na escrita de um texto de teatro que utiliza fielmente as palavras das pessoas entrevistadas sobre a sua vida em África no período colonial português. A companhia Hotel Europa começou esta reflexão com o espetáculo Portugal Não É Um País Pequeno. Nesta peça contámos as histórias dos retornados que foram para África nos anos 1950 e 1960, traçando o retrato de pessoas que em muitos casos fugiam da pobreza e da miséria em Portugal para
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chegarem a uma África colonial que lhes permitia viver imediatamente num novo estatuto social: o de colono, acima do outro, o colonizado. Com Passa‑Porte levamos o nosso olhar para as novas complexidades trazidas para a nacionalidade e identidade portuguesa com o fim do Império Colonial sobretudo para os Africanos brancos e negros. Em Libertação iremos investigar o maior trauma do colonialismo português: a Guerra do Ultramar, um conflito que vitimou e mutilou milhares de portugueses. Olharemos também para este evento traumático sob a perspetiva da celebração, da libertação do colonialismo em África, que permitiu a derrota do fascismo em Portugal. Refletiremos também sobre a geração da pós‑memória (Hirsch: 2012), a africanidade que existe hoje em Portugal e as formas como são exercitadas e representadas essas diferentes especificidades culturais. Este trabalho de teatro documental sobre o fim do colonialismo português faz parte de um movimento maior que tem atravessado a sociedade portuguesa. Estamos a viver um momento em que artistas e académicos estão a propor espaços de reflexão sobre estas matérias, como por exemplo nos trabalhos de Manuel Botelho, Ângela Ferreira, Filipa César, Isabela Figueiredo, Dulce Maria Cardoso, entre outros. Também no teatro grupos como Teatro Praga, mala voadora, Teatro do Vestido, entre outros, têm estado a repensar a herança colonial portuguesa. Estamos a viver um período em que não apenas os artistas têm necessidade de discutir estas matérias, mas também a própria sociedade portuguesa está disponível para fazer parte desta reflexão. Em suma, tal como Calafate Ribeiro e Sousa Ribeiro defendem, estamos perante o que Primo Levi designa de “dever de memória”, uma passagem de testemunhos entre gerações, mas também uma reflexão a propósito dos motivos que motivam esse fenómeno, “uma dimensão que está para além da esfera privada e se torna necessariamente política, em todos os sentidos da palavra” (Calafate Ribeiro & Sousa Ribeiro). Na companhia Hotel Europa pretendemos com este ciclo de teatro documental contribuir para reescrever a história do colonialismo português, olhando criticamente o nosso passado para lá dos discursos memorialistas e comemorativos que nos têm silenciado durante décadas.
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+ informações: hoteleuropatheatre@gmail.com Bender, G., (2004) Angola under the Portuguese — The Myth and the Reality, Trenton: África World Press. Brown, P., (ed.) (2010) Verbatim, Staging Memory and Community, Sidney: Currency Press. Bruzzi, S., (2006) New Documentary, 2nd ed., New York: Routledge. Bandeira Jerónimo, M. and Costa Pinto, A. (ed.) (2014) Portugal e o fim do Colonialismo, Lisboa, Edições 70. Calafate Ribeiro, M. & Ferreira, A.P., (2003) Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo, Lisboa: Campo das Letras. Calafate Ribeiro, M. & Sousa Ribeiro, A. (2013) ‘Os netos que Salazar não teve: guerra colonial e memória de segunda geração’, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 5, n° 11. Chabal, P., (2002), A History of Postcolonial Lusophone Africa, Indiana: Indiana University Press. Fikes, K., (2009) Managing African Portugal, London: Duke University Press. Forsyth, A. & Megson, Chris, (ed.) (2011) Get Real: Documentary Theatre Past and Present, New York: Palgrave Macmillan. Hirsch, M., (2012) The Generation of Postmemory, New York: Columbia University Press. Hammond, W. & Steward, D., (ed.) (2008) Verbatim Verbatim, London: Oberon Books. Martin, C., (2013) Theatre of the Real, New York, Palgrave Macmillan. Mateus, D. C., Mateus, A., (2013) Angola 61, Lisboa: Texto Editora. Pollock, D., (ed) (2005) Remembering, New York: Palgrave MacMillan. Portelli, A., (2013) A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios, Lisboa: edições unipop. Ribeiro Sanches, M. (2011) Malhas Que Os Impérios Tecem, Lisboa: edições 70. Rosas. F., (2012) Salazar e o Poder, Lisboa: Tinta‑da‑china. Taylor, D., (2003) The Archive and the Repertoire, Durham: Duke University Press. Thompson, P. (2000) The Voice of the Past, 3º ed, Oxford: Oxford University Press.
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Geometrias da Memória: configurações pós‑coloniais ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO, MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
No ano de 2003, na sequência da Guerra do Iraque, dois dos mais destacados intelectuais europeus, Jürgen Habermas e Jacques Derrida, assinaram conjuntamente e fizeram publicar nos jornais Frankfurter Allgemeine Zeitung e Libération uma declaração intitulada “A nossa renovação. Depois da guerra: o renascimento da Europa”. O apelo teve grande ressonância e indiscutível significado. Nele se convoca a utopia de uma Europa capaz de se unir e de se refundar em torno de um programa fundamental de respeito pelo outro. Mas quem é este outro? Uma leitura atenta mostra que se trata, antes de mais, do outro europeu. A perceção de que uma parte fundamental da história da modernidade europeia se passou fora dos limites geográficos da Europa e, por outro lado, que a experiência colonial não transformou apenas diversas partes mais ou menos longínquas do mundo, mas transformou igualmente a Europa de forma radical, e que, por conseguinte, não é possível pensar a Europa fora de um quadro global, não surge nunca no texto. Apenas no breve parágrafo final surge, quase como um pensamento a posteriori, uma referência ao facto de muitas nações europeias terem entretanto passado pela experiência da perda do império, estando, assim, em condições de “assumir uma distância reflexiva em relação a si próprias” e de assumir a responsabilidade pelo que, de modo marcadamente eufemístico, é caracterizado como “a violência de um processo de modernização forçado e desenraizado”. Invocamos este episódio, tanto mais revelador por se tratar da iniciativa bem‑intencionada de dois intelectuais inspirados por uma ideia radical de democracia, porque ele revela com clareza a forma como o inconsciente político europeu continua preso a um grande silêncio sobre a forma como a Europa moderna se constituiu historicamente enquanto tal através da dominação colonial e, concomitantemente, sobre o modo como essa longa
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duração histórica continua a plasmar de modo profundo o presente europeu. Em particular num momento como o atual, em que essa história recalcada regressa sob a forma fantasmática do “Islão” ou, de modo que não podia ser mais dramático, na forma dos milhões de refugiados à procura da perspetiva de futuro que lhes é negada nos locais de onde provêm, a acrescentar aos milhões entretanto já radicados, em muitos casos há dezenas de anos, em países europeus, torna‑se irrecusável e premente uma reflexão que traga para o centro do debate as muitas incidências contemporâneas do passado colonial europeu. Na verdade, pensar a Europa pós‑colonial implica perceber que aquilo que mais a definiu como Europa foi a vocação imperial — nas suas várias declinações — e que, consequentemente, a descolonização não foi apenas um movimento a Sul e que atingiu os países descolonizados. Foi também um movimento que atingiu e atinge radicalmente o continente colonizador que foi a Europa e que precisa de ser descolonizado, ou seja, precisa de reler o passado e a linguagem imperial e inequívoca em que foi narrado para melhor compreender o presente e pensar o futuro num tempo equivocamente designado de guerra de civilizações. Um processo onde a Europa aprenda a vencer a sua condição de múltiplas nações pós imperiais e a descolonizar‑se das suas ex‑colónias, o que marca uma brusca inversão de paradigmas históricos, produzindo outras narrativas continentais e criando de facto, assim, e só assim, uma verdadeira hipótese de comunidade. Neste processo de recentramento do debate em bases diferentes das rotinas de pensamento instaladas, a consideração do trabalho da memória tornou‑se mais do que nunca num imperativo simultaneamente político e ético. Com efeito, como é bem patente no caso português, mas constitui um paradigma também observável em muitos outros casos, a intensidade das muitas declinações das memórias privadas, muitas vezes de segunda e terceira geração, não encontra correspondência na concomitante consolidação de uma memória pública robusta, capaz de construir pontos de convergência que permitam a construção de uma esfera pública crítica, que o mesmo é dizer, intolerante em relação
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a quaisquer manifestações de racismo, xenofobia ou, em geral, de toda a lógica excludente que, cada vez mais, ganha força na Europa. A memória pós‑colonial é, por definição, multidirecional, no sentido em que é dialógica e assenta no princípio de que a concorrência das memórias não significa nunca menos, mas sim mais memória. É transterritorial e é transnacional, no sentido em que mantém sempre presente que se trata de uma memória partilhada, mesmo que de diferentes maneiras e a partir de pontos de vista muitas vezes diferentes ou antagónicos, em territórios e em contextos nacionais diversos. Geometrias da Memória: configurações pós‑coloniais 5, organizado por António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro lança uma reflexão sobre o conjunto de questões expostas, abordando temas relevantes para uma análise do modo como constelações do passado, nomeadamente do passado colonial, se projetam e condicionam o presente: na forma de conceber a relação com o outro, na arquitetura das relações de poder, na persistência de formas de violência, nas dinâmicas através das quais o campo político e cultural procura construir uma reflexão virada para a construção de um futuro que não constitua uma repetição do passado. Na sua maioria, a obra integra um conjunto de reflexões em torno do projeto Memoirs: Filhos de Império e pós‑memórias europeias do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e financiamento do European Research Council, que interroga o tempo europeu contemporâneo, a partir de diferentes contextos históricos e de diferentes países — França, Bélgica e Portugal. Os casos analisados foram escolhidos a partir da sua relevância para um presente concebido, não como simples atualidade, mas sim como um tempo denso atravessado por tensões que só são compreensíveis do ponto de vista da longa duração histórica, como é a questão colonial e o seu fortíssimo impacto na evolução política e construção identitária destes países na contemporaneidade: o Congo Belga é o cerne do imaginário 5 Geometrias da Memória: configurações pós‑coloniais, (Org: António Sousa Ribeiro, Margarida Calafate Ribeiro), Porto: Afrontamento, 2016. Este livro é lançado no teatro Maria Matos, no dia 24 de Novembro 2016
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colonial da Bélgica e hoje a Bélgica é um país com uma densa população que tem origem nos trânsitos coloniais; a guerra da Argélia e a sua independência foram os eventos políticos de maior significado na história francesa pós segunda Guerra Mundial; no caso de Portugal, o “Ultramar”, a guerra colonial e as independências das colónias africanas são incontornáveis para entender a segunda metade do século XX, nomeadamente o fim da ditadura e o processo de democratização e reconfiguração identitária do país. Memoirs estuda a diversidade da Europa contemporânea, olhando para o impacto das memórias coloniais e dos processos de descolonização e independências africanas das ex‑colónias nas gerações seguintes, aqueles para quem tudo isto seria já história, mas que, muitas vezes, pela densidade da dimensão de cruzamento das suas memórias de família com as memórias públicas, é também pós‑memória. Aqueles que cresceram, foram marcados e influenciados por esses processos históricos e os reconhecem ou interrogam nos gestos políticos que se prolongam, nas palavras pronunciadas, em narrativas e ações ou ainda nas representações que eles próprios criam. Memoirs interroga a geometria e a geopolítica das memórias europeias exigindo‑nos uma Europa e uma democracia com memória. Coimbra, 26 de setembro de 2016
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Topias Urbanas FERNANDA EUGÉNIO e JOANA BRAGA Que práticas concretas dão corpo a um determinado espaço urbano? Que constelações de trajetórias, humanas e não‑humanas, com temporalidades e intensidades diferenciadas, o constituem? Que limites, implícitos ou explícitos, sempre provisórios, sempre permeáveis, o circunscrevem? De que modo o enquadramento geográfico e histórico mais alargado em que esse lugar se insere o tem reconfigurado e condicionado? Como se concretiza, em cada lugar, o desafio da coexistência que todos os espaços nos colocam? Como podem o uso e a habitação fazer das condicionantes com que nos confrontam, condições? Por outro lado, como somos afetados por esse espaço que nos interpela? Como somos transformados pelo desafio da coimplicação? O espaço urbano não cessa de se fazer e refazer enquanto matéria consequente desta complexa teia de relações. Da multiplicidade dos gestos quotidianos que se intersectam, justapõem, contrapõem; e da sua articulação variável com geometrias alargadas de forças diferenciadas, emergem momentos de antagonismo. O espaço, relacional e sempre em devir, confronta‑nos continuamente com o desafio de viver em conjunto. Implicando a negociação constante da coexistência, é o locus do político. Por isso as imaginações sociais e políticas são recorrentemente associadas à imaginação de espacialidades específicas: utopia, distopia, heterotopia, a tríade de topias que emergiu em relação de tensão. A materialidade incontornável do topos foi sucessivamente pensada, contestada e reimaginada através de mecanismos de idealização e abstração. Alguns procuraram contornar o presente lançando‑se na imaginação do não‑lugar fantástico, do mundo paralelo, situado em qualquer parte que não o aqui, em qualquer tempo que não o agora. As Utopias foram muitas, desde a solar e perfeita sociedade imaginada por Thomas More há cinco séculos atrás, às decadentes distopias retratadas pelas ficções científicas mais ou menos contemporâneas na literatura e no cinema. Outros ainda operaram a máquina utópica‑distópica em diferentes frequências, sintonizadas
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com o desejo de controlo através do planeamento total do espaço, da predeterminação dos seus usos e formas, e da vigilância e segregação dos corpos. Numa relação simultaneamente alheia e afinada a esses tantos discursos, os espaços atualizam‑se incessantemente, sobretudo como heterotopias. Por vezes porque logram funcionar, contingente e provisoriamente, em condições não‑hegemónicas. Outras porém (e serão estas a maioria), simplesmente porque na sua dimensão praticada, as topias só se fazem diferindo — não havendo, portanto, senão heterotopias. Os espaços reportam constantemente a outros espaços; incorporam múltiplas temporalidades e indícios de outros tempos; operam funcionalidades outras que não as predeterminadas; produzem articulações entre o aparentemente incompatível e inconciliável; materializam o sonho e o desejo, a ilusão e desilusão, a crise e o desvio. A imaginação da Utopia chegou, no melhor dos cenários, a produzir heterotopias, e no pior, a endossar e legitimar distopias. Mas pode ainda ser ativada de modo vital como motor plural para o fazer situado, contingente, e sempre inacabado; não como discurso com pretensão de completude. Falamos de micro‑utopias, modos de operar que guiam algumas práticas menores atentas à dimensão singular de cada espaço e à especificidade das dinâmicas relacionais. Fundado em modos de operar micro‑utópicos, o projeto Topias Urbanas vai instalar‑se no vale de Chelas; espaço urbano na proximidade do Teatro Maria Matos, mas ao mesmo tempo imensamente distanciado. A urbanização deste vale transformou‑o num arquipélago de bairros habitacionais de promoção pública até agora social e culturalmente separados entre si e do restante tecido da cidade. A imaginação dominante destes bairros produziu imagens distópicas que os identifica como enclaves de risco: territórios associados tanto à violência e criminalidade como à pobreza e exclusão social. Afirmada como “verdadeira”, esta visão distanciada da constelação de relações e trajetórias que constituem Chelas acabou por se tornar forma de controlo social, opressão e supressão da diferença.
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A partir de um espaço‑casa que ali vai habitar ao longo de vários meses, Topias Urbanas propõe um conjunto de práticas situadas para a escuta e o (re)conhecimento deste espaço urbano em colaboração com os seus habitantes, mais ou menos temporários. Vai procurar mapear coletivamente as trajetórias que ali se justapõem e os encontros, indiferenças e conflitos que as ligam; o desenho e a porosidade dos limites que o circunscrevem, e as exclusões que operam; os modos como se relaciona este território com o resto da cidade; os indícios que nele se manifestam da complexa rede de relações com uma geografia e uma história alargadas que o constitui(u), reconfigur(ou)a e conform(ou)a espacialmente. O objetivo, a haver, será o de encontrar em conjunto modos situados e contingentes de reprogramar e reconfigurar o que já lá está em micro‑utopias que potenciem a construção de planos comuns para a convivência, necessariamente dissensual; e a abertura de brechas para a valorização das formas de ser e estar menos prováveis (e entretanto muito vivas) que já lá se encontram. Cruzando ferramentas de mapeamento, criação de performances e dispositivos espaciais situados que vêm sendo experimentados pela antropóloga Fernanda Eugénio e pela arquiteta Joana Braga nas suas trajetórias singulares este projecto convocará uma equipa permanente de investigação, composta por moradores locais e por um grupo de artistas e investigadores convidados.
Durante a temporada 2016/2017, o Teatro Maria Matos irá editar seis cadernos de textos do ciclo Utopias, dedicados a cada uma das partes: Arquipélago da Resiliência 1/6, Arquipélago das Diversidades 2/6, Arquipélago Comum 3/6, Arquipélago dos Afetos 4/6, Arquipélago Capital 5/6 e Arquipélago Verde 6/6.
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HOTEL EUROPA Passa–Porte ● teatro sex 4 ↣ 15h30 (escolas) e 21h30 sáb 5 ↣ 16h30 e 21h30 dom 6 ↣ 18h30 ASSOCIAÇÃO DE REFUGIADOS EM PORTUGAL Quando a Luz se Apaga — Integração de Refugiados e Futuros Comuns ● debate e pensamento qua 9 ↣ 18h30 PROJETO MEMOIRS, com ANDRÉ AMÁLIO, ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO, FILIPE MELO, JÚLIA GARRAIO E MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO Geometrias da Memória: Configurações Pós‑Coloniais ● debate e pensamento qui 24 ↣ 18h30
DEZEMBRO 2016 TOPIAS URBANAS Cartografias do Bairro ● debate e pensamento sáb 17 ↣ 18h ╓─── ANESTIS AZAS ║ E PRODROMOS TSINIKORIS ║ ║ Clean City ║ ║ ● teatro ║ ║ ╙ Æ sex 09 e sáb 10 ↣ 19h ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
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