19 junho a 4 julho 2!18 TEATRO, DEBATE E PENSAMENTO, MASTERCLASS
O tema das migrações encerra a temporada 2!18-2!19 do Maria Matos Teatro Municipal. Neste caderno de textos, propomos que se prolongue o tempo de debate e de reflexão abertas pelas peças performativas e pelos debates deste programa. O texto de Claire Rodier, Fechar as fronteiras para esconjurar o medo: a resposta da Europa à “crise migratória” de 2!15 instiga-nos a pensar sobre a reação ao fluxo migratório que nos últimos anos se tem dirigido para a Europa, passando pelas resistências ao acolhimento e fecho de fronteiras, à distinção feita entre refugiados e migrantes económicos e pelas relações que a Europa estabeleceu com países terceiros na gestão da sua política migratória. Em Linguagem e deslocamentos: os efeitos das narrativas sobre mobilidades entre África e Europa, Iolanda Évora reflete sobre o modo como o uso que fazemos das palavras, e do imaginário que estas veiculam, interfere na integração e na possibilidade de participação social dos migrantes. Mehdi Alioua, em Viver nas fronteiras europeias: os migrantes subsarianos na África mediterrânica, dá-nos uma perspetiva do espaço Schengen quando visto do lado de fora, introduzindo-nos também ao continente africano como um espaço de grandes mobilidades internas. Estes são tópicos retomados na entrevista que Cristina Peres realiza ao encenador sul-africano Brett Bailey, a propósito do que o motivou na criação de Sanctuary, uma performance-instalação que trabalha com a experiência de migrantes refugiados que procuraram acolhimento na Europa. Já Gonçalo M. Tavares, tendo como mote o testemunho de uma mulher portuguesa emigrada em Great Yarmouth (Inglaterra), a vila que Marco Martins tomou como terreno de ancoragem e de criação para a sua peça, traz-nos a imagem de uma Europa cujos processos de controlo não se exercem somente nas suas fronteiras, mas se encontram também internalizados.
Migrações
O tema das migrações encerra a temporada 2"18-2"19 do Maria Matos Teatro Municipal. Neste caderno de textos, propomos que se prolongue o tempo de debate e de reflexão abertas pelas peças performativas e pelos debates deste programa. O texto de Claire Rodier, Fechar as fronteiras para esconjurar o medo: a resposta da Europa à “crise migratória” de 2"15 instiga-nos a pensar sobre a reação ao fluxo migratório que nos últimos anos se tem dirigido para a Europa, passando pelas resistências ao acolhimento e fecho de fronteiras, à distinção feita entre refugiados e migrantes económicos e pelas relações que a Europa estabeleceu com países terceiros na gestão da sua política migratória. Em Linguagem e deslocamentos: os efeitos das narrativas sobre mobilidades entre África e Europa, Iolanda Évora reflete sobre o modo como o uso que fazemos das palavras, e do imaginário que estas veiculam, interfere na integração e na possibilidade de participação social dos migrantes. Mehdi Alioua, em Viver nas fronteiras europeias: os migrantes subsarianos na África mediterrânica, dá-nos uma perspetiva do espaço Schengen quando visto do lado de fora, introduzindo-nos também ao continente africano como um espaço de grandes mobilidades internas. Estes são tópicos retomados na entrevista que Cristina Peres realiza ao encenador sul-africano Brett Bailey, a propósito do que o motivou na criação de Sanctuary, uma performance-instalação que trabalha com a experiência de migrantes refugiados que procuraram acolhimento na Europa. Já Gonçalo M. Tavares, tendo como mote o testemunho de uma mulher portuguesa emigrada em Great Yarmouth (Inglaterra), a vila que Marco Martins tomou como terreno de ancoragem e de criação para a sua peça, traz-nos a imagem de uma Europa cujos processos de controlo não se exercem somente nas suas fronteiras, mas se encontram também internalizados.
Imaginar, para contrariar o extremismo e o ódio a quem não conhecemos e que se nos apresenta como tendo uma identidade diferente — cultural, social, religiosa, etc. — , é um convite que nos é feito por Joana Sá, responsável pelo Fórum de Cidadãos vindos de várias zonas e estratos sociais da cidade de Lisboa que se reunirá em junho e julho para decidir quais as condições de acolhimento que estamos dispostos a dar a quem entra no nosso país. Um convite que, de facto, está subjacente a todo o programa do ciclo Migrações. curadoria: Liliana Coutinho
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Fechar as fronteiras para esconjurar o medo: a resposta da Europa à “crise migratória” de 2"15 CLAIRE RODIER Fluxo “de carácter excecional”, “afluência em massa”, “crise migratória grave”, ou mesmo “sem precedentes”, “situação de urgência caracterizada por um afluxo repentino de nacionais de países terceiros”: estas são algumas das expressões utilizadas pelas autoridades europeias e difundidas pelos média a partir da primavera de 2"15, em especial na sequência de dois naufrágios ocorridos com alguns dias de intervalo no Mediterrâneo, durante os quais morreram afogadas perto de 15"" boat people que procuravam chegar à costa europeia. O campo lexical mobilizado dá crédito à ideia de que nada permitia antecipar, antes desta data, a chegada à Europa de um grande número de exilados em busca de um país de acolhimento. No entanto, ela era tudo menos imprevisível. Se os números oficiais indicam um aumento significativo das travessias irregulares das fronteiras exteriores da União Europeia, essencialmente na fronteira mediterrânica, entre 2"14 e 2"15 (segundo a agência Frontex, teriam passado de 28"""" a mais de um milhão ao longo este período), não podemos falar de uma explosão repentina ou inopinada. Estes números, na verdade, já tinham mais do que duplicado em 2"14, por comparação com o ano anterior (1"7""" em 2"13), nada indicando que o processo desencadeado tivesse razões para se interromper. Outro indicador é o da mortalidade migratória. Em 2"14, foi atingido o número então recorde de 3"72 pessoas que perderam a vida no Mar Mediterrâneo, fazendo da Europa, segundo a Organização Internacional para as Migrações (oim), o “destino mais perigoso do mundo” para os migrantes ¹. 1
Este pico de 2"14 foi ultrapassado em 2"15 (37"") e de novo em 2"16 (5"""). 3
No entanto, no fim de 2"13, a ue tinha tomado medidas enérgicas para conter a “pressão migratória”, nomeadamente o lançamento de dispendiosos dispositivos Eurosur, sistema de vigilância destinado a “detetar e combater a imigração irregular e a criminalidade transfronteiriça” e a “salvar vidas humanas”. A simples observação destes dados (mais chegadas e mais mortos apesar de um reforço dos controles e dos meios de vigilância) bastava para compreender que o número de pessoas que procuravam chegar à ue estava em franco crescimento desde 2"13. Além disso, uma análise das razões do fenómeno teria permitido antecipar-lhe as consequências, ao invés de ter de gerir em modo de urgência uma “crise” cujos ingredientes, pelo contrário, pareciam estar todos presentes para a fazer explodir. Pois se o aumento do número de migrantes que se puseram a caminho da Europa a partir de 2"13 se assemelha bastante a uma crise, esta não afeta principalmente a ue. Atinge antes de mais as centenas de milhares de pessoas forçadas a abandonar os seus países para fugir à guerra, aos maus-tratos ou a condições de existência que mal permitem a sobrevivência, e que embatem contra a impossibilidade de entrar legalmente num país de acolhimento. Atinge a proporção dramática dessas pessoas que, porque são obrigados a servir-se de vias ilegais, perdem assim a vida (mais de 5""" pessoas encontraram a morte tentando entrar em território europeu entre janeiro de 2"14 e dezembro de 2"15, e são da ordem dos 3" """ desde o fim dos anos 199"). Atinge também os países ditos “de primeiro acolhimento”, situados na proximidade das fontes do êxodo. O exemplo sírio é esclarecedor a esse respeito: em outubro de 2"12, o acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), constatando que a maioria dos refugiados em fuga da Síria (344 """ na época) eram acolhidos nos países limítrofes (Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia), exortava já os países da ue a “garantir o acesso [ao seu] território e aos procedimentos de pedido de asilo” e a “oferecer um auxílio mútuo entre os Estados-membros”. Este apelo foi em vão. 4
Um milhão de pessoas tinham abandonado o país em 2"13, três em 2"14, quatro em 2"15, entre as quais só algumas dezenas de milhares conseguiram alcançar a Europa, com risco de vida. Pois, na sua grande maioria, os Estados-membros da ue recusam aos sírios a emissão de vistos, forçando-os a tentar a travessia do Mediterrâneo nas piores condições; os repetidos naufrágios que pontuam a atualidade são consequência disto. Simultaneamente, mantiveram-se surdos aos apelos insistentes das Nações Unidas, que os convidavam a financiar a ajuda internacional em auxílio aos países ditos de primeiro acolhimento, ao mesmo tempo que reforçavam os meios de vigilância das suas fronteiras. Ao longo dos quatro anos de uma crise que se desenrolava à sua porta, os governos europeus escolheram portanto, em nome da luta contra a imigração “clandestina”, fechar as portas aos refugiados e ignorar o encargo que o seu acolhimento representa em países como o Líbano (onde os sírios representam um quarto da população) ou a Turquia (que contava, no fim de 2"15, mais de dois milhões). A atitude de evitamento dos países europeus face aos exilados em busca de proteção inscreve-se na continuidade de uma partilha muito desigual à escala mundial. 8"% dos 6" milhões de vítimas de migração forçada vivem em países em vias de desenvolvimentos. Nos cerca de 16,7 milhões de pessoas refugiadas registadas pelo acnur, contam-se menos de 2"% nos países industrializados. O “bloco” constituído pela Europa, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Canadá só abriga 15%, enquanto 25% se encontram na África subsariana. Quanto aos 28 Estados-membros da ue, acolhem em conjunto tanto como o Paquistão sozinho (à volta de dois milhões), menos do que a Turquia. A chegada num fluxo contínuo, desde 2"13, de algumas dezenas de milhares de boat people à costa meridional da ue, apesar do seu lado espetacular, estava portanto muito longe da invasão cuja evocação suscitou nos líderes europeus, a partir do mês de maio, dezenas de encontros consagrados ao modo de gerir a situação 5
dos migrantes que já tinham chegado, todos reconhecendo que a Grécia e a Itália, países onde tinham desembarcado, não podiam continuar a assumir sozinhas essa responsabilidade. Este baile dos hipócritas orquestrado pela Comissão Europeia pareceu opor os partidários da atitude firme, como a ministra britânica do Interior, que defendia que se recambiassem os migrantes que atravessam o Mediterrâneo, e os defensores de uma repartição equitativa no seio da eu, fundada em variáveis como o PIB, a taxa de desemprego e o número de refugiados já acolhidos, como a França. Na realidade, estas discussões sobre as “quotas” de refugiados mostraram que os Estados-membros estavam, com raras exceções, preocupados com a dupla questão de receber a menor quantidade possível daqueles que já estavam em solo europeu e de só se responsabilizar por isso contanto que outros migrantes não conseguissem alcançar esse solo. Esta dupla preocupação constitui a pedra angular do programa implementado a partir do mês de maio de 2"15 para fazer face à “crise migratória” da primavera de 2"15. Organiza-se em torno de três eixos: uma política de não-acolhimento, a triagem entre “bons refugiados” e “maus migrantes” e terceirização dos controles migratórios.
Um “acolhimento” a contragosto: a relocalização
Ao fim de várias semanas de negociações, os Estados europeus puseram-se de acordo no mês de setembro de 2"15 para acolher, no quadro daquilo a que se chama “relocalização”, 16" """ pessoas chegadas por mar à Grécia e Itália. O número é irrisório, considerando nomeadamente o volume do êxodo sírio, numa altura em que chegavam perto de 6 """ por dia à costa grega ². 2
Na mesma altura, o Alto Comissário dos Direitos Humanos para as Nações Unidas estimava que a União Europeia tinha meios para “dar asilo, durante um certo número de anos, a um milhão de pessoas refugiadas vindas das zonas de conflito na Síria e noutros lugares”. 6
Em total desfasamento não só com a atualidade dos movimentos migratórios nas fronteiras europeias, mas também com a urgência que supostamente fundava as medidas adotadas. No entanto, dois anos mais tarde, não tinham sequer conseguido cumprir um quinto do seu compromisso (menos de 3" """ pessoas transferidas em setembro de 2"17), tendo certos países decidido mesmo não acolher nenhum “relocalizado”.
Hotspots para fazer a triagem entre “bons” e “maus” migrantes
Como contrapartida da secção “acolhimento” do programa implementado para fazer face à crise migratória — e este balanço da relocalização mostra que ele está muito aquém das necessidades — foi instalado um dispositivo de triagem nos dois países de onde é suposto partirem os requerentes de asilo relocalizados, a Itália e a Grécia. Sob o nome de “abordagem hotspot”, visa tranquilizar os Estados-membros da ue — dificilmente convencidos a terem de acolher os requerentes de asilo selecionados no quadro da relocalização — organizando logo à chegada das boat people que desembarcam nas ilhas gregas ou no Sul da Itália uma seleção entre as pessoas elegíveis para uma proteção a título de asilo e os “migrantes económicos” destinados, esses, a serem recambiados para os seus países de origem. Empresa arriscada em vários aspetos. Primeiro, no que diz respeito à filosofia que a sustenta: a oposição entre migrantes e refugiados é cada vez menos justificada tendo em conta a complexidade das causas de partida das pessoas que abandonam os seus países à procura de uma terra de acolhimento, causas que muitas vezes misturam estreitamente fatores sociais, políticos e económicos, e a lógica da triagem transporta consigo arbitrariedade. Depois, devido às modalidades do seu funcionamento. É que a “abordagem hotspot” assenta na identificação dos recém-chegados — com vista a determinar a que categoria correspondem —, o que implica a implementação 7
de métodos coercivos, e a generalização de lugares de privação de liberdade nas fronteiras Sul da Europa. É assim que, em nome da procura das pessoas a proteger, se criam novos tipos de campos que, apesar da presença de funcionários europeus (os agentes da Frontex e os da Agência da União Europeia para o Asilo) nem são campos de refugiados, em princípio caracterizados por uma tomada de responsabilidade humanitária prevista pelo direito internacional, nem centros de detenção, cujas normas são enquadradas pelo direito europeu. Situados o mais perto possível dos lugares de chegada dos migrantes, os campos da “abordagem hotspot” simbolizam o “primeiro círculo” da deslocalização das fronteiras, eixo forte da política de imigração e de asilo da ue desde o início dos anos 2""". À supressão dos controles nas fronteiras interiores do espaço Schengen associou-se desde essa época um reforço da vigilância das suas fronteiras exteriores, destinado a impedir os indesejados de penetrar na “fortaleza Europa”. Ainda que, quinze anos depois, o edifício Schengen esteja cada vez mais vacilante, ainda que a tentação de voltar a erguer as barreiras nacionais seja cada vez mais partilhada no seio dos governos dos Estados-membros, ainda que muros e vedações venham entravar a liberdade de circulação instaurada no fim dos anos 199" no interior da ue, a “santuarização” do espaço europeu através da proteção dos seus perímetros, da qual participam hoje os hotspots, continua a ser atual.
Terceirizar a gestão das migrações
A terceira secção do plano da ue para fazer frente à “crise migratória” visa consolidar o “segundo círculo” da deslocalização das fronteiras, empurrando-as para os países de origem ou para aqueles por onde transitam os migrantes. Em nome da “partilha do fardo”, e para responsabilizar os seus vizinhos na gestão dos fluxos migratórios, os Estados europeus fazem render há muito tempo as parcerias económicas e a cooperação para 8
incitar os países de emigração a fixar as suas populações e a impedir a sua partida para a Europa. Numerosos acordos foram concluídos neste sentido com países do Magrebe e da África Ocidental ao longo da primeira década do século, que fazem de Marrocos, da Mauritânia ou do Senegal aliados fiéis na luta que a ue está a travar contra a imigração irregular, em condições frequentemente muito prejudiciais aos migrantes e aos candidatos a asilo: em 2""4 e 2""5, mais de uma dezena de pessoas morreu ao tentar atravessar os muros edificados em torno dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilha, vigiados por polícias e militares marroquinos. A terceirização da gestão das migrações está no coração das medidas adotadas pela ue durante o ano de 2"15, visto que em paralelo com a organização do acolhimento — muito relativo, como vimos — dos refugiados já presentes, se tratou de dissuadir aqueles que estariam tentados a pôr-se a caminho. Os esforços desenvolveram-se primeiro na África Oriental, no prolongamento de um diálogo euro-africano iniciado no fim de 2"14 que associa os 28 Estados-membros da ue a uma dezena de países africanos. Fala-se aí de “implementar uma cooperação entre os países de origem, de trânsito e de destino a fim de lutar contra a imigração irregular, e contra as redes criminosas, em particular por intermédio de iniciativas em matéria de assistência técnica, de formações e de troca de informação e de boas práticas”, de ajudar os países que participam no processo a implementar e gerir centros de acolhimento, e de fornecer acesso aos procedimentos de asilo “em conformidade com o direito internacional”. A presença, na lista de parceiros implicados, de regimes autoritários que são grandes “fornecedores” de refugiados” como a Eritreia, a Etiópia ou o Sudão não nos deve espantar: o comissário europeu encarregado deste dossier explicava, em março de 2"15, que “não devemos ser ingénuos. O facto de cooperarmos com regimes ditatoriais não significa que os legitimemos. Mas devemos cooperar nos lugares onde decidimos lutar contra o contrabando ou o tráfico de seres 9
humanos.” ³ Estes projetos concretizaram-se numa cimeira euro-africana organizada em Malta no mês de novembro de 2"15, durante a qual os Estados europeus, afirmando querer “combater as causas profundas da migração, trabalhando em prol da paz, da estabilidade e do desenvolvimento económico”, tentaram, não sem encontrar resistência, comparar o auxílio público ao desenvolvimento — foi desbloqueado um fundo fiduciário de 1,8 mil milhões de euros para lutar contra a pobreza — com a cooperação dos seus parceiros africanos na sua política de contenção dos migrantes. O mesmo objetivo preside à decisão de ue de concluir, em março de 2"16, um acordo com a Turquia. Faz parte de um arsenal desenvolvido pelos países europeus para entravar a chegada de migrantes que, fugindo da guerra ou de perseguições, tentavam encontrar um país de acolhimento na Europa. A “rota balcânica”, como foi apelidada, era então a principal via de passagem para os países mais atrativos, a Alemanha e os países nórdicos, que os migrantes alcançavam depois de terem transitado pelas ilhas e pela península grega. Tratava-se então de bloquear o acesso à Grécia, separada da costa ocidental turca por apenas algumas milhas marítimas. O acordo prevê que, por cada sírio recambiado para a Turquia, os países europeus acolherão um sírio instalado nesse país (cláusula do “um por um”); que “a ue agilize o pagamento de três mil milhões de euros (…) atribuídos a título da facilitação a favor dos refugiados”. Que importa se, segundo a Amnistia Internacional, “a tinta do acordo ue — Turquia ainda não estava seca” e já dezenas de afegãos expulsos da Grécia para a Turquia tinham sido recambiados à força para Cabul sem terem beneficiado de acesso aos procedimentos de asilo. Que importa também se, com o decreto proclamando o estado de emergência na Turquia na sequência do golpe de Estado falhado de julho de 2"16, é possível, neste país, recambiar refugiados sob proteção a partir do momento em 3
Citado pela Agence France-Presse, 14 março 2"15 1!
que sejam suspeitos de ter ligações com organizações terroristas, e de o fazer sem demora nem possibilidade de recurso — e tantos sírios são vítimas deste procedimento célere. Pois, para a ue, os fins justificam os meios, e o acordo concluído com a Turquia simboliza o cinismo da Europa, cuja principal resposta aos dramas dos refugiados consiste em rodear-se de um cordão sanitário para os refugiados, sem se preocupar com os dramas. abril 2:18
Claire Rodier (França) é jurista, diretora do GISTI, Grupo de Informação e de Suporte aos Imigrantes, e cofundadora da rede euro-africana Migreurop.
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Linguagem e deslocamentos: os efeitos das narrativas sobre mobilidades entre África e Europa IOLANDA ÉVORA A leitura teórica sobre a construção de categorias e classificações e as relações de poder nas sociedades migratórias e pós-migratórias atuais aponta para o papel eminente que os estados e as instituições têm na enunciação das identidades públicas e o lugar estratégico que a “política de identidade” ocupa intersetando com a questão das formas de mobilização social e política das populações denominadas minoritárias. Neste sentido, o Estado tem um papel crucial na intensificação das identidades étnicas e na mobilização étnica, e no caso de contextos migratórios, constitui-se num ator central na criação, reprodução e mobilização da etnicidade, das características de origem ou de classe, através do reconhecimento que outorga ou recusa aos grupos de migrantes por meio de processos que aciona de modo a institucionalizá-los ou permitindo que “desapareçam” no conjunto geral dos cidadãos nacionais. Vale examinar, portanto, os efeitos práticos que as nomeações e o imaginário têm na implementação de políticas públicas dirigidas àquelas populações e, no âmbito das narrativas produzidas sobre migrações e mobilidades internacionais, a forma como a população migrante é representada, em termos da expressão escrita, é um importante indicador de como a linguagem é um instrumento de política migratória. O exame crítico do processo de construção e utilização de certos termos nesse campo permite reconhecer que conceitos como, por exemplo, o de “migrante ilegal” ou “migrante económico” legitimam políticas e decisões que se apresentam como reação necessária a factos vistos de forma fragmentada mas que, ao serem adotadas, determinam as condições que são colocadas à disposição dos novos habitantes. Ao mesmo tempo, tais classificações e conceitos ocultam aspetos das mobilidades e migrações que podiam minimizar os impactos graves 12
dos conceitos e políticas caso a realidade fosse denominada e explicada de outra forma, tal como a que inclui a valorização do conhecimento e da experiência da pessoa migrante e o seu próprio entendimento sobre a migração como um deslocamento na posição social. Especificamente, as classificações acerca dos migrantes africanos na Europa não incluem as suas qualidades como integrantes de redes globais de mobilidades capazes de influenciar o funcionamento da sociedade global e que desenvolvem competências em conectar e em transcender mundos económicos e culturais diferentes. Interessa, pois, mostrar a relevância de se reconhecer como as categorias e conceitos produzidos são mais ou menos eficientes para a condução da ação pública, uma vez que esta afeta a sociabilidade em geral, como no caso da nomeação genérica de pessoa “migrante”. Esta nomeação fixou-se como uma identidade emblemática que interfere nas suas possibilidades de participação social, cultural, no acesso à saúde, à habitação e aos equipamentos urbanos e sociais e é resistente ao passar do tempo que deveria transmutar o migrante em cidadão do novo lugar. Ao focalizar o mundo do trabalho, verificamos que as denominações atuais de “migrantes” ou “refugiados” conduzem à ideia de que tais pessoas têm de aceitar qualquer trabalho que surja, enquanto a condição de “expatriado” — que se desloca para trabalhar por uma empresa — sugere a ocupação de outro lugar social que inclui a possibilidade de escolha. De igual forma, o mundo da educação configura-se como um espaço privilegiado para a observação de como operam as classificações com relação aos não nacionais (estrangeiros, imigrantes), em particular, como uma determinada nomeação pode relacionar-se, de maneira complexa, às múltiplas formas de discriminação presentes no ambiente escolar, levando o não nacional a afirmar ou negar sua própria origem. A discriminação terá impacto direto na realização do direito à educação para essas populações e a escola torna-se o lugar, por excelência, da criação da relação entre nacionalidade e 13
status social e, consequentemente, de lugar nos espaços de sociabilidade. No campo das migrações e mobilidades, os conceitos que sustentam os significados das palavras contêm o potencial de violência lexical e de opressão dirigidas a determinados grupos, podendo a linguagem converter-se em instrumento para discriminar ou integrar o outro pela forma como os termos são associados às pessoas e à sua presença na sociedade de chegada. Em síntese, hesitações semânticas como as que são encontradas entre “migrante/expatriado”, “migrante/refugiado” ou migração/diáspora remetem-nos à noção do contexto migratório como espaço de constituição de hierarquias, novas subjetividades sociopolíticas, de ideologias de pureza/autenticidade, de hegemonias e contra-hegemonias (de conceções de género, nacionalismos, raça ou classe), de continuidades coloniais, entre outros. Apesar das imagens mais difundidas fazerem crer que a Europa é o lugar mais procurado pelos migrantes africanos, as principais rotas e deslocamentos dos africanos são intracontinentais e a circulação e o movimento repousam sobre caminhos transnacionais (extracontinentais) há muito consolidados, muito mais antigos do que o da Europa. No entanto, entre os dois continentes, nas narrativas sobre os migrantes, as migrações e presença africanas na Europa, permanecem as construções sobre África e os africanos forjados durante a presença dos europeus no continente, as quais sustentam imagens de subalternidade do africano e de subdesenvolvimento do continente. Na atualidade, os cientistas sociais são convidados a buscar um conhecimento mais preciso e renovado das realidades migratórias africanas, distanciando-se dos prêts-à-penser que são difundidos pelos atores políticos e instituições internacionais a propósito dessas mobilidades e seus protagonistas. Sublinham-se os limites das abordagens que no período contemporâneo auscultam as mobilidades africanas prioritariamente pelo ângulo das partidas para o Ocidente, por razões principalmente económicas, e propõe-se 14
que é necessário promover uma leitura cruzada do diálogo África/Europa no contexto que inclui as articulações que as realidades africanas mantêm com as realidades sul-americanas e asiáticas sem a intermediação das epistemologias do Norte Global. A propósito das mobilidades, das diásporas africanas e seus descendentes, o foco recai muito mais sobre a presença africana no mundo vista como participação de África no contexto global, sobre a planetarização do continente e o resultado da contribuição das sociedades africanas para as transformações mais recentes do mundo. O debate recai sobre a necessidade de aplicar-se às mobilidades como as dos africanos pelo mundo, uma perspetiva da heterogeneidade das práticas e das estratégias dos atores desenvolvidas à escala transnacional. Recai ainda nas capacidades dos migrantes tomarem os seus destinos na mão e impulsionarem, também, novas regras do jogo. Nas leituras críticas a estas migrações e mobilidades, ao invés de se adotarem as migrações atuais para o Ocidente como paradigmáticas, propõe-se revisitar a questão da circulação e do movimento a partir de África incluindo outros ingredientes estruturais na forma como compreendemos a cultura das mobilidades africanas e que, certamente, devem ser consideradas nos sistemas de acolhimento e nas políticas públicas voltadas para a participação social dos migrantes e das diásporas africanas. Iolanda Évora é psicóloga social, investigadora em pós-doutoramento (PNPD/CAPES) no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Brasil, investigadora associada do CESA/CSG, ISEG e professora do mestrado em Cooperação em Desenvolvimento Internacional.
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Viver nas fronteiras europeias: os migrantes subsarianos na África mediterrânica MEHDI ALIOUA Ainda que as mobilidades transnacionais das pessoas tenham sido elementos constantes e influentes da história mundial e as migrações estejam hoje em dia estreitamente ligadas às grandes problemáticas globais, os governantes julgam que se trata apenas de fluxos que caem sob a alçada da sua estrita soberania e que todas as negociações que lhes digam respeito devem fazer-se na base do interesse nacional, ou seja, da proteção dos Estados-nação e das suas fronteiras. É então por isso que são quase sempre as abordagens negativas, identitárias e securitárias que dominam as relações em matéria de política migratória. Na Europa, e nas suas fronteiras, nos países que lhe são limítrofes, este fenómeno foi acentuado com a criação do espaço Schengen, pois isso implicou uma política comum em termos de vistos, asilo e imigração, e ao mesmo tempo a necessidade de alargar as capacidades de ação da ue em matéria de segurança para gerir as suas fronteiras ditas “exteriores”. Muito rapidamente, depois de Schengen, criaram-se dispositivos a fim de melhor definir as modalidades de um controlo comunitário sobre os “fenómenos transnacionais” ¹ com uma grande determinação e um perímetro de segurança fundado na soberania e na territorialidade da ue. Pouco a pouco, impôs-se uma única fronteira aos países limítrofes da ue, onde anteriormente havia tantas quantas nações.
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É assim que, no jargão da ue, se amalgama imigração “clandestina”, redes “terroristas”, tráfico de estupefacientes e os tráficos ilegais de todo o tipo. Cf. Traité d’Amsterdam: liberté, sécurité et justice. http://europa.eu/scadplus/leg/fr 16
Foi exatamente nesse momento que o número de mortos ² nas rotas migratórias começou a explodir ³. Vista de dentro, a ue parece então trabalhada por duas lógicas aparentemente contrárias: uma força de integração coloca a questão dos seus limites, da gestão das suas fronteiras exteriores e das suas políticas de vizinhança, enquanto forças nacionais se levantam para resistir a esta integração. Vistas de África, no entanto, estas duas lógicas não surgem em contradição radical. A integração europeia permite também defender os interesses nacionais dos Estados-membros; certas veleidades de sabor nacionalista destes últimos obrigam a ue a ter em conta o modelo estatal-nacional, para o decalcar no funcionamento comunitário, nomeadamente em matéria de segurança e gestão das fronteiras ditas “exteriores”. Podemos então interpretar as políticas migratórias restritivas implementadas na União, tanto a nível nacional como comunitário, e aquelas que ela tenta impor aos países vizinhos ⁴, como um meio de se definir nos planos político, identitário e territorial por uma delimitação estrita do “dentro” e do “fora”. Também a migração desempenha um papel na construção de um “nós” coletivo europeu, cultural e simbólico que, longe de ser um produto objetivo e acabado, é um projeto político indefinido e perpetuamente recomposto. Isto revela-se muito claramente na diplomacia migratória europeia, que vai beber ao jargão militar: contenção, vaga, rechaçar, afastamento, países-tampão, países seguros, hotspots, etc. 2
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Hoje fala-se de mais de 35 """ mortos às portas da Europa! O jornal alemão Der Tagesspiegel publicou a identidade de 33 293 migrantes mortos enquanto tentavam chegar à Europa entre 1993 (logo depois de Schengen) e maio de 2"17. Link: https://www. tagesspiegel.de/downloads/2"56"2"2/3/listeentireberlinccbanu.pdf Olivier Clochard (ed.), Atlas des migrants en Europe. Géographie critique des politiques migratoires, Migreurop, Armand Colin, Paris, 2""9. Claire Rodier, “Externalisation du contrôle des flux migratoires: comment et avec qui l’Europe repousse ses frontières”, Migrations Société n°116, 2""8, pp. 1"5-122. 17
Assim, a instauração do sistema Schengen teve um impacto considerável nas rotas e nas formas migratórias na África mediterrânica. A maior parte dos africanos que desejavam migrar para um país-membro teve de se adaptar, procurando novas portas de entrada e produzindo novas estratégias para contornar obstáculos, sem deixar de investigar novos destinos, reforçando assim as migrações Sul-Sul. É por isso que centenas de milhares de migrantes percorrem a África. Uma das formas essenciais das suas mobilidades reside no encadeamento de numerosas etapas nacionais e urbanas em que estas populações se juntam. No entanto, essa não era a sua vontade primeira: ao querer “procurar uma vida melhor” (fórmula utilizada para explicar a sua migração), tiveram de se adaptar a um modo de vida quase nómada para escapar aos controlos — para não dizer às repressões do Estado. Foi por necessidade que seguiram rotas migratórias ditas “clandestinas”, já “desenhadas” e balizadas em etapas já estabelecidas por migrantes anteriores, que depois reproduziram o seu saber -circular, ou até mesmo o seu modo de vida. No entanto, esta “aventura” é apenas uma etapa na vida destes migrantes que, originalmente, se destinavam aos mercados de trabalho de países europeus e de alguns dos países do Magrebe. Mas ela é suficientemente longa para ter efeitos sobre eles e sobre certas populações que os veem passar e instalar-se. Para estes migrantes, atravessar a fronteira europeia sem visto leva anos, o que esvazia de sentido a noção de “trânsito”. A própria noção de “imigração” é insatisfatória para dar conta do que se passa na região, pois esta migração desenrola-se ao longo de vários anos e em vários países que não tinham previsto a sua vinda nem a sua instalação. Estas trajetórias migratórias são ritmadas por etapas ao longo das quais os migrantes se reorganizam, o tempo de atravessar a fronteira que se ergue à sua frente. A cada etapa do percurso, têm de encontrar alojamento, trabalhar, comerciar, tratar-se, 18
às vezes até defender os seus direitos ⁵, antes de tentarem passar a uma nova etapa. Assim, para viver nestes países magrebinos, foi preciso que estes migrantes encontrassem intermediários sociais locais. Foi preciso que as pessoas os aceitassem, os ajudassem, comerciassem com eles, os alojassem, os tratassem, os informassem e apoiassem face aos controlos policiais dos Estados financiados pela ue e pela sua estratégia de terceirização. Senão, não teriam conseguido instalar-se, ainda que para eles se tratasse antes de mais de recuperar o fôlego, de se reorganizarem e de tornar habitável a sua etapa no Magrebe, sobretudo instalando pouco a pouco uma presença suficientemente estabelecida para ajudar os que se seguem. Alguns destes migrantes, em especial os que têm uma consciência coletiva da sua “aventura”, chamam a isto “deixar aberto o itinerário de viagem”. Mas como têm cada vez mais dificuldade em chegar à Europa, foi preciso que encontrassem meios de tornar mais “suportável” a sua longa espera, foi preciso que encontrassem meios de subsistência, trabalho, alojamento mais “decente”, mas também escolas para os filhos, locais onde se pudessem tratar, etc. — e tudo isto sendo “sem-papéis”. Foi assim que se solidificaram coletivos de entreajuda em torno de laços de solidariedade cada vez mais fortes, sem se substituir inteiramente às comunidades de origem e sem “sufocar” os indivíduos e os seus projetos pessoais. Estes migrantes, em particular os subsarianos, inseriram-se assim completamente nos tecidos urbanos das grandes cidades magrebinas, antes até de os magrebinos tomarem verdadeiramente consciência disso. A sua visibilidade no espaço público, em particular mediática, cresceu em simultâneo com o aumento flagrante do racismo quotidiano, dos controlos policiais e dos atos de 5
Mehdi Alioua, “Le passage au politique des transmigrants subsahariens au Maroc», in A. Bensaâd (ed.), Le Maghreb à l’épreuve des migrations subsahariennes, Karthala, Paris, 2""9, pp. 279-3"3. 19
discriminação racial. Isto contribuiu para os fazer sair da sua invisibilidade e defenderem os seus direitos, como na Tunísia e em Marrocos, levando a debates societais que até então não tinham sido considerados. Há uma nova história migratória a escrever-se nesta região da África mediterrânica… Para concluir, parece-me importante lembrar que a fortificação das fronteiras um pouco por todo o mundo contribui para ampliar a duração das migrações e para endurecer terrivelmente as condições para certas categorias da população, mas isso não quer dizer que as detenham. O exílio torna-se um tempo social cheio, a duração da migração uma prova moderna. Um efeito de temporalidade submerge então os marcadores espaciais, quer isso tenha sido antecipado quer não, fazendo do exílio uma experiência contemporânea cada vez mais partilhada por categorias de populações muito diferentes. Estes seres estranhos que no entanto não nos são estrangeiros, será que são apenas desenraizados, mal-integrados, rejeitados que a terra vomitou, ou será que também eles participam, apesar de si, apesar de nós, na escrita de uma memória comum? A de uma outra modernidade, há quem diga pós-modernidade… Num mundo em movimento onde as deslocações são a realidade de todos mas onde nem todos se movem com a mesma facilidade nem como desejariam, o exílio tornou-se uma forma de socialização em que desterritorialização e reterritorialização se alternam no espaço-tempo das mobilidades. Como dar então conta desta nova realidade num contexto contemporâneo paradoxal onde se sobrepõem a proliferação dos diferentes regimes de mobilidades, ligadas à globalização, e o reforço dos controlos migratórios? Como compreender o mundo que há-de vir enquanto os cadáveres dos que são considerados “indesejáveis” se acumulam nas nossas fronteiras, todavia abertas às circulações?
Mehdi Alioua, sociólogo, professor de Ciências Politicas na Universidade Internacional de Rabat e ativista antirracista.
2!
Entrevista com BRETT BAILEY por CRISTINA PERES Trabalhar com refugiados para lhes permitir que falem por si Para as peças Exhibit 3 e Sanctuary escolheu uma forma de apresentação que procura aproximar o público da representação? Tentei encontrar uma maneira de permitir que houvesse alguma interação e acho que acabei por não conseguir. Queria pôr simplesmente duas pessoas juntas no mesmo lugar, o que não cria obrigatoriamente espaço para compromisso, para interação, e corre-se o risco de que se torne um exercício de objetificação. O que eu quis foi criar uma situação em que o público se deslocasse um a um ao longo de um labirinto onde se encontra uma série de quadros vivos com os quais o público está cara a cara com pessoas que podem ser ou não refugiados, mas que estão a representar refugiados. A situação é individual. Um a um, os intervenientes não falam com o público, mas olham diretamente para cada um. O público é suposto ser confrontado pelo olhar do outro. Os quadros vivos não são todos interpretados por refugiados e a situação evoca a ameaça sentida pela direita com a chegada à Europa de refugiados. Como transforma refugiados em performers? E porque uns são refugiados e outros não? Trabalho com refugiados porque eles incorporam a história, são a história. É uma forma de dar a estas pessoas uma plataforma onde podem trabalhar com o que têm de mais próximo consigo mesmos. É uma maneira de os trazer das margens para um lugar onde podem trabalhar com as suas próprias histórias. Neste tipo de performances, não é obrigatório trabalhar com performers treinados porque não é uma situação que exija grandes técnicas. Para mim, é muito importante trabalhar com pessoas que passaram por muitas provações para chegarem 21
à União Europeia. Viajamos com oito performers e em cada cidade entram mais pessoas. É uma forma de fazermos produções específicas de cada país. A nível artístico atrai-me muito trabalhar com “materiais reais” neste sentido. Quer dar outro exemplo? Sim, trabalhei há uns anos numa produção da Medeia em que usava sangue. Poderia ter usado tinta, mas quis mesmo usar sangue real porque há qualquer coisa de muito poderoso na utilização de material real. Era sangue de vaca e foi horrível porque tínhamos de fazer 4" quilómetros dia sim, dia não, para ir buscá-lo a um matadouro em Joanesburgo. Não conseguíamos evitar que coagulasse. Migrações e refugiados estão politicamente na ordem do dia e moldam a opinião pública. A fronteira pode ser uma separação radical entre duas realidades como o é a que separa a África do Sul do Zimbabwe. Porque escolheu trabalhar em países europeus para a criação de Sanctuary? Só duas das minhas instalações tratam de africanos em direção à Europa, o resto delas trata de pessoas do Médio Oriente a irem para a Europa. Sanctuary é uma instalação sobre o estado de limbo em que as pessoas acabam por se encontrar quando procuram um lugar seguro. Criámos um labirinto extenso que o público terá de percorrer e ao longo do qual estão montadas as cenas. Esse labirinto veio da minha experiência da zona de vigilância da fronteira, algumas das que visitei, em particular a da Eslovénia, tinha rolos largos de arame farpado no topo da vedação. Este labirinto tem perto de 3"" metros e é feito de vedações altas. É aí que o público vai andar. Para responder à pergunta, trata-se de viver o labirinto como um espaço de limbo, o espaço em si, não como um percurso, um caminho. Numa entrevista recente ao Financial Times dizia “Queria explorar a subida da xenofobia na Europa, a secularização, 22
a militarização, as fronteiras”. Como se pensa a si enquanto autor relativamente a estes temas? Penso em mim como alguém que trabalha com estes materiais há muito tempo e está muito envolvido com eles. A primeira vez que trabalhei com xenofobia e refugiados foi em 2""6, quando fiz uma versão da Medeia. Na África do Sul, temos centenas de milhares, senão milhões, de refugiados do Zimbabwe e esse trabalho continha em si um sentido de solidariedade com eles. Era condensado na transcendência da condição representada pela mulher Medeia, esse arquétipo de Medeia. A seguir fiz uma peça baseada em Orfeu, o mito que traz a beleza da música, mas que é desfeito em pedaços pelo grupo de mulheres que pratica um ritual. Nessa peça, pensei no refugiado congolês que acabou morto num ataque xenófobo na África do Sul. Como curador de uma feira de arte em Cape Town, em 2""9, escolhi como temas a xenofobia, imigração e identidade. São temas que me interessam muito, a minha peça seguinte será sobre o episódio da Bíblia que conta a história de Sansão. É sobre as franjas da sociedade que, ao entrarem nela, acabam vítimas de xenofobia e como respondem elas a isso. O que lhe dão de particular os textos e personagens clássicos para trabalhar estes temas? Dão-me disciplina. Nestas histórias antigas de Sansão, Medeia, Orfeu e MacBeth — sobre o qual fiz uma versão da ópera —, gosto do facto de serem uma espécie de objetos caídos do topo da montanha ao longo dos milénios. Quando chegam até nós, uns três mil anos depois, vêm muito suavizados e ritualizados. Largando estas histórias no contexto dos assuntos que me interessam em cada produção, elas cristalizam as situações e eu uso-as como princípio de organização. África tem muitas situações de refugiados e é óbvio que o valor da vida parece “diferente” consoante a geografia em que se 23
encontram. Como se fala em arte destas pessoas que estão fora do radar dos discursos mainstream? É difícil. Como se fala deles sem falar por eles, como se consegue não ser agente deles ao representá-los… Tem havido tanta informação abusiva, tantas pessoas que têm sido utilizadas para dar credibilidade a ideologias e agendas que depois se viram contra eles… É muito difícil. Como é que se escreve um texto para ser dito por uma pessoa que tem a sua cultura? O que pomos nós nesse texto que poderá falar por ela? Uma das razões porque gosto de trabalhar com refugiadas ou migrantes é permitir-lhes falar por si. Em Sanctuary, escolhi trabalhar só com o olhar, a peça não tem texto falado. Isto permite que a presença do performer fale por si e que, com o treino, eles possam sentir-se fortes e seguros com a sua presença em cena. Ou seja, que consigam olhar para o público a partir de uma posição forte, estruturante. Os olhos exprimem a mente e todos temos este poder de partilhar a humanidade através do olhar. Olhamos menos hoje em dia, estamos mais distraídos? Não sei se é de agora. Há muitos países africanos em que as pessoas não nos olham nos olhos por questões de hierarquia social. Em muitas sociedades africanas, há mulheres proibidas de ter contacto pelo olhar com os homens porque estão numa posição social inferior. Não é de hoje a tendência para esconder o olhar do dos outros. Isso mudou na África do Sul desde o fim do apartheid em 1994? Acho que mudou muito nalgumas partes do país. Mudou nas cidades, onde muitos negros têm agora mais autoestima ainda que não tenham nem as oportunidades nem o poder económico que lhes foi prometido… Já não são cidadãos de segunda como antes, mas acho que a mudança não aconteceu em comunidades mais pequenas das áreas rurais onde as hierarquias continuam na mesma. 24
O regime de apartheid foi uma criação sul-africana que é hoje em dia usada para designar situações políticas como a da Palestina e Israel. Acha que há uma diferença entre os refugiados na Europa e em África? Há uma resposta diferente à mesma situação nas duas áreas? A resposta aos imigrantes e aos refugiados é diferente. Na África do Sul, a maioria dos refugiados são económicos, enquanto na República Democrática do Congo, em particular, se foge da guerra. Na África do Sul, a xenofobia é um fenómeno das classes trabalhadoras e menos aquilo que eu entendo que é a xenofobia na Europa, que exprime um medo de dissolução da cultura europeia, um medo do Islão, vontade de manter as fronteiras seguras. Na África do Sul, a maioria dos refugiados são negros que acabam nos townships ¹ e guetos negros onde os recursos são muito escassos. O estrangeiro é visto como concorrência no acesso a esses recursos escassos. A xenofobia na África do Sul é uma questão de classe. Cristina Peres é jornalista do semanário Expresso.
1
Na África do Sul, o termo township designa áreas urbanas geralmente segregadas social e economicamente, normalmente construídas na periferia das cidades, as quais, do fim do séc. XIX até ao fim do regime político do Apartheid, estavam reservadas a não brancos, ou seja, a Indianos, Africano, entre outros. 25
A propósito do espectáculo Provisional Figures Great Yarmouth de Marco Martins GONÇALO M. TAVARES Entrei num escritório, onde nos deram uma palestra: tudo certinho, mostraram-nos um hotel todo bonitinho com as tupperwares todas certinhas dentro do frigorífico. Pediram-nos para ver as nossas mãos, os nossos dentes e fizeram-nos exames de sangue. Passados três dias telefonaram-nos e passados dois dias estava a chegar a Great Yarmouth. Éramos um grupo de 35, fomos distribuídos por pensões. A mim calhou-me a Blight House, que tinha 23 quartos. Havia hotéis onde ficavam quatro no mesmo quarto. Uns trabalhavam de noite, outros de dia, era muito confuso porque por vezes acordávamo-nos uns aos outros. Às quatro da manhã acordava para ir para a fábrica. Estava um tradutor à nossa espera que nos levou a um sítio onde nos deram um capacete, as botas e uma touca. Equipámo-nos num corredor comprido que tinha uma porta com cortinas de plástico, onde havia um cheiro intenso a merda e a sangue. Quando abri as cortinas vi perus pendurados por todo o lado, a deitar sangue. Aquele cheiro pestilento a azedo entranhado nos nossos corpos. Vi homens grandes a chorar, não queriam estar ali. Com o tempo fui-me habituando e acabei por ficar oito anos. Maria do Carmo, 49 anos, habitante de Great Yarmouth, intérprete de Provisional Figures Great Yarmouth
Europa (I) E sabes como gostam do acto de medir. Do acto de olhar para uma coisa, tocar nela ao de leve e dizer um número, registar um número. É isto medir. Sabes como gostam de medir. No limite é olhar para uma coisa e registar um número que classifica essa coisa, que a identifica. Um olhar que identifica. No limite é isto. No limite olham e identificam. Não necessitam 26
sequer de tocar na coisa. Tocar numa coisa é secundário, é um pormenor, é um acrescento. O Olhar é o importante. Tu podes medir olhando, sem tocar. Olhar é mais importante que tocar. São duas acções. E uma é melhor que a outra. É isto. É simples. E deves medir tudo, sabes como isso é importante. Porque medir é identificar com exactidão. E a exactidão é indispensável. Tudo o que é exacto é verdadeiro, tudo o que não é exacto é falso. Deves medir a moral de um acto de forma tão exacta como medes uma mesa. De cada medida tem que resultar um número. Se medes com exactidão a mesa onde almoças com os teus companheiros também te é exigido que meças com exactidão as acções dos teus companheiros. Com a exactidão de centímetros, de milímetros. Medir com exactidão as acções dos outros e as palavras dos outros. Mas não só os actos e o discurso. É fácil medir o que se vê ou o que se ouve. Porque o que se vê e o que se ouve fica registado. Europa (II) Cada um quando entra tem direito a quatro metros quadrados. Quatro metros quadrados parece pouco, mas não é. Em quatro metros quadrados podes deitar-te no centro e rebolar duas vezes para cada lado. Rebolar duas vezes para cada lado é suficiente. Podes fornicar em pé. E se fornicares deitado, rebolar duas vezes para cada lado é suficiente. E quando bates na parede sentes que tens de virar para o outro lado. Habituas-te. É fácil. E para os pesadelos não é necessário tanto. Ninguém rebola mais que duas vezes para cada lado num pesadelo. E se rebolar mais bate na parede e acorda. O que é poderoso e não exacto deve ser afastado de todo o lado, ou seja eliminado. O que é não exacto, mas fraco, pode ser apenas excluído. Matar, destruir, eliminar, implicam maior gasto de energia que excluir. 27
Europa (III) Os objectos têm números. Os teus objectos pessoais têm números. Procura bem. Revira o objecto, analisa os seus cantos; em algum lado existe um número. Pode ter uma dimensão mínima, podes só conseguir vê-lo à lupa ou ao microscópio, mas existe um número. Todos os objectos têm um número. Todas as coisas têm um número. A roupa, os Livros, os móveis, cada parede. Até tu tens um número. Devias fazer a ti próprio, ao teu corpo, o que fazes a um objecto: virá-lo por completo e procurar o número. Todos têm um número. Não é visível aos olhos. São necessárias técnicas e são necessários instrumentos. Mas nem sempre as mesmas técnicas ou os mesmos instrumentos. Cada pessoa tem um número, mas pode tê-lo em milhentos sítios diferentes. Não há uma lógica, um sítio exacto. Foram eles que te inscreveram um número no corpo. E tudo o que fazem é aleatório, já sabes. Podem escrever-te o número na pele — e só o consegues ver com um microscópio; mas também podem ter escrito o número debaixo do cabelo — e só o verás quando eles decidirem rapar-te a cabeça. O teu número pode estar escrito num orgão. Na pele dos pulmões. Ou mesmo numa célula. Ou podes ter o número no interior dos testículos. Ou no interior da uretra. Ou podes ter o número escondido, mas mais exterior. Não se sabe onde, mas tens um número. Não se sabe como o poderás descobrir — podes descobri-lo por métodos aplicados com esse objectivo ou podes descobri-lo por acaso, por acidente, ou ainda porque alguém to descobre. Mas tens um número. Todos têm um número. Por vezes alguém a quem amputam um braço descobre o seu número escrito na carne que agora é exterior. Europa (IV) Tens de obedecer ao Estado de Registo. Eu digo-te como é. Toca uma sirene. Não é bem um som evidente. É um som homogéneo e constante que dói nos ouvidos. 28
Todos o reconhecem. Não há aqui nenhum som como esse. É o som do Estado de Registo. Nos Estados de Registo eles são rigorosos em relação à propriedade privada. Consideram que um erro aqui é algo de muito grave. Um erro aqui não provoca Exclusão. Se falhares neste momento; se não te apoderares da tua parte de espaço individual, eles mexem-te no corpo. Eles abrem-te o corpo. Não ficam só cá fora. Não te batem. Entram dentro do teu corpo e fazem-te mal. Nesses minutos de espera o teu espaço privado será como o teu corpo. Se alguém entrar nele serás capaz de matar. Estás a defender a tua vida nesse momento. Não estás a defender os teus metros quadrados. Estás a defender a tua vida. E podes esperar muito até eles chegarem. Eles não são apressados. Podem surgir passado um minuto ou podem demorar horas. Por vezes demoram dias. Há Estados de Registo que podem demorar dias. Depende de pessoa para pessoa. Nunca se sabe. O que sabes é que tens de esperar no teu espaço até eles chegarem e fazerem o registo. No Estado de Registo eles registam tudo. Quando chegam ao teu compartimento registam em primeiro lugar se estás vivo ou morto. Podes ter morrido no teu compartimento. Se morreste é mais rápido. Há uma série de dados que eles não preenchem. Levam-te. Se estás vivo dás mais trabalho. Por vezes parece que eles se aborrecem quando te encontram vivo. Em vez de perderem um minuto contigo perdem mais. Se estás vivo medem-te, pesam-te. Analisam-te os dentes. Retiram-te sangue. Pedem-te que mijes para um frasco. Querem fezes tuas — esperam por elas o tempo necessário. Querem esperma, saliva. Recolhem tudo. Esperam o tempo que for necessário. É um registo dizem, não é uma visita. Querem registar tudo. Eles só conseguem registar se não existir circulação. Por isso é que eles te obrigam a dirigires-te para o teu espaço 29
e a parares. Não é só esperares na tua propriedade, é não te moveres até eles chegarem. Escolhe a posição definitiva de espera, a pensar que eles podem demorar uma hora, mas também podem demorar dias. Não te esqueças disso. O registo é muito importante. É um mapa. Eles têm o mapa do espaço e têm o mapa das propriedades individuais referentes aos metros quadrados e aos objetos. Em cada Estado de Registo actualizam o mapa. Por vezes é mesmo nos Estados de Registo que aleatoriamente tiram um objeto a alguém e entregam a outro. Mas também pode acontecer que eles façam isto num outro dia, num dia de não registo. Chegam com um pequeno documento, como sempre, e mostram-to. Europa (V) São eles que te dão o dinheiro, claro. São eles que o têm. São eles que te dão o dinheiro e que to tiram. Costumam fazê-lo no momento do registo. Além dos teus metros quadrados de propriedade e dos objectos, eles verificam quanto dinheiro ainda possuis, comparando com o anterior registo. Quando pedirem mostras todo o dinheiro. Não adianta esconder uma única moeda. Eles acabarão por a descobrir. Comparam o registo actual com todas as tuas circulações de dinheiro: o que compraste, quanto foi, o que vendeste. Registam todas as actividades comerciais de cada um. Depois é só fazer contas de somar. Não digas que só tens cinco notas se tens seis. Eles confirmarão tudo, e mentir sobre a quantidade de dinheiro que se tem não é um erro qualquer. É uma traição grave. Não podes errar os números e só podes falar uma vez. Tu já sabes isso. É uma das leis principais. Quando falas é só uma vez. Tudo o que dizes é registado, é escrito. Deves demorar o tempo que quiseres antes de falar, mas quando 3!
falares diz só o certo, o verdadeiro, sem qualquer erro. Não podes corrigir o que disseste. Essas palavras são a tua tentativa de verdade: se forem um erro ou uma mentira eles atuarão. E com números esta exactidão da linguagem toma outra importância. Tu não podes voltar atrás ou reformular palavras ou números. Se disseres um número é esse número que fica registado, não poderás dizer mais nenhum. Se te perguntarem o dinheiro que tens, concentra-te em absoluto e diz o número apenas quando tiveres a certeza que só vais dizer esse número e mais nenhum. Se falhares o número da quantidade de dinheiro que tens, mesmo que a seguir o corrijas, já cometeste traição. Concentra-te. Europa (VI) O que fazem com frequência são Inquéritos. Só querem a Verdade, e por isso fazem inquéritos. Querem confirmar se tu sabes a verdade. E um inquérito serve para confirmar se tu sabes a verdade. Testam o teu conhecimento. Fazem como sempre. O procedimento é idêntico ao do Exame Médico. Em qualquer sítio que estejas eles aproximam-se de ti, sem qualquer aviso, e dizem apenas isto: Inquérito. Se te encontrares sentado tens de te levantar de imediato. Respondes sempre em pé aos inquéritos. Os Inquéritos são também em espaços comuns. No inquérito fazem-te perguntas num tom de voz baixo, e tu és obrigado a responder alto. Todas as pessoas que ali se encontram, ou que por ali passam, ouvem parte ou a totalidade das tuas respostas. O inquérito é exaustivo. Perguntam-te o que fizeste, por que o fizeste. Todos os momentos são questionáveis. Ninguém pode esconder nada: pensamentos, actos, tudo é inquirido e, portanto, tudo é exposto publicamente. Uns podem ouvir, outros não, mas és obrigado a revelares-te, inteiramente, a todos. 31
Europa (VII) O conhecimento produzido relaciona-se com as técnicas e com as especializações de trabalho. Relatórios sobre os gestos, sobre os modos mais eficazes de resolver um problema. Essa produção de Conhecimento é permanente e em grande quantidade, vários volumes por dia. Os relatórios, em pouco tempo, são analisados e colocados num livro-relatório. Há livros-relatório com desenhos dos gestos da mão, modos de segurar, resultados de cada variante de gesto; números, estatísticas. O conhecimento produzido vem da análise do trabalho, mas não só. Existem inúmeras tabelas fixadas pelas paredes. Tabelas das hierarquias semanais, tabelas com os números resultantes dos exames médicos, tabelas com actualizações da normalização de alguns gestos ou de algumas frases, e ninguém passa por uma destas tabelas afixadas na parede sem a consultar. É que, por vezes, no meio de algumas informações irrelevantes, aparecem informações fundamentais. E quem não as lê pode vir a cometer erros graves, por mero descuido. Por isso ninguém arrisca. Em frente a cada tabela afixada ao longo do seu percurso, cada pessoa pára, consulta com cuidado os valores, confirma se existiu alguma alteração, e só depois, mais tranquilo porque mais informado, prossegue o seu caminho.
Europa (VIII)
As pessoas identificavam-se por números. Conhecer o número do outro revelava intimidade. O importante é a eficácia global de trabalho. O somatório das eficácias individuais. Nos cursos de normalização costumam repetir: é muito difícil viver em grupo. E dizem: o que fazemos é unificar as vontades individuais numa única vontade. Não é fácil unificar as pessoas. Gonçalo M. Tavares é escritor. O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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Argumentos Democráticos JOANA SÁ I
Amos Oz, conta num dos seus textos do livro Contra o Fanatismo ¹ uma conversa entre o escritor Sami Michael e um motorista. O motorista defendia que a única solução para os judeus viverem em paz seria matar todos os árabes. Sami Michael, judeu israelita, ardente defensor da solução dos dois Estados, não lhe pede para parar o táxi, nem para sair. Não deita as mãos a cabeça, chamando-lhe louco assassino. Não o lembra do Holocausto e de como outros, antes dele, já tinham sugerido “soluções finais”. Michael não responde às emoções do taxista com mais emoções, não parece odiar o ódio do outro. Pergunta-lhe: E como é que nós faríamos isso? Em termos práticos, pragmáticos, específicos? Quem seria responsável pelo extermínio? A quem caberia a tarefa? Para levar a cabo tal tarefa seria, de facto, necessário um grande poder de decisão e de organização. E ensinamos desde cedo às nossas crianças aquilo que aprendemos, de Platão a Descartes: as melhores decisões são tomadas de cabeça fria, que é como quem diz, deixando as emoções de lado.
II
Já desconfiávamos que, por vezes, as nossas decisões devessem ser temperadas com alguma emoção, de preferência limitada aos sentimentos nobres, como a compaixão ou o amor. Só recentemente começámos a aceitar que não só a) a nossa racionalidade é limitada; como b) isso é uma coisa boa. António Damásio dá vários exemplos da importância das emoções chamadas primárias ², muito para além do homem que perdeu 1 Amos Oz, Contra o Fanatismo, Edições asa, 2""8. Evocação de memória. 2 António Damásio, O Erro de Descartes , Publicações Europa-América, 1994 33
a capacidade de sentir medo e não se desvia de uma serpente. E o medo é uma emoção muito poderosa. Estudos recentes relacionam o medo (ou a zona do cérebro que o controla) com decisões a vários níveis, incluindo em política ³. Diferentes pessoas têm medos diferentes e é possível que estes nos levem a votar de forma distinta, sem que o admitamos ou sequer o “saibamos”. E se há medos diferentes, será que os conseguimos identificar e combater a todos com números, com razão? O medo que eu possa ter do outro, do desconhecido, desaparece quando vejo relatórios com otimistas indicadores económicos? O medo da insuficiência e do desemprego desaparecem quando fico a conhecer as vantagens da diversidade social e do cosmopolitismo cultural?
III
Um país prepara-se para receber refugiados e pergunta: que condições deveremos oferecer a quem chega? Os cidadãos têm diferentes opiniões, medos, dúvidas. Esta diversidade nem sempre está espelhada nos representantes políticos que, por vezes, até a temem. Os cidadãos percebem que esta é uma decisão complicada e demitem-se de a tomar ou escolhem lados a preto e branco, discutem alto ou não discutem de todo. Responde o taxista: A tarefa caberia a todos os judeus. Pergunta Michael: sim, mas quantos árabes calharia a cada um? E iríamos porta a porta? Ao senhor calharia um prédio. Bateria à porta e se lá vivesse uma família árabe, teria de os matar a todos. Depois, seguiria para a porta seguinte. Agora imagine que depois de matar todas as famílias que lhe tinham calhado ouve um barulho dentro de uma casa. Era um bebé que estava a dormir num dos quartos. Volta atrás e mata o bebé? O taxista fica em silêncio durante algum tempo e depois responde: O senhor é um homem muito cruel. 3
Douglas R Oxley, et al. Political attitudes vary with physiological traits Science 321 (2""8). 34
IV
A razão pura, na sua versão pragmática, elevada (reduzida?) a emoção básica: a crueldade. A decisão do taxista estava tomada, baseada na sua experiência, nos seus medos, nas suas razões. Ao ser confrontado com os pormenores do seu plano, é forçado a repensá-lo, não por uma via racional, mas emocional. Interessa notar que nem todos somos sensíveis aos mesmos argumentos ou ao mesmo tipo de argumentos. Um outro taxista poderia ter respondido sem hesitar. Amos Oz percebe que nunca existirá uma forma única de combater o proselitismo, ou de fazer política, porque não somos todos iguais; e no mesmo livro defende que um dos maiores antídotos contra o fanatismo é a imaginação. Quando Michael obriga o motorista a imaginar aquilo que diz, força-o a participar verdadeiramente no processo de decisão. Porque talvez não seja possível tomar estas decisões, perceber o que lhes está subjacente, ao volante de um carro, ou na bolha criada pelas redes sociais. É necessário sermos forçados a imaginá-las, quase que a vivê-las, e em conjunto. Por isso, nós, como sociedade, precisamos de imaginar novas formas de reequilibrar a balança entre palavras e atos, entre comentário e ação. Precisamos de reinventar a democracia para que os cidadãos tenham tempo para ouvirem a sua própria voz, a voz de vários “Michaels”, de forma refletida e informada. Precisamos que todos sejam políticos e de criar fóruns onde o possam ser ⁴. E não conseguimos imaginar uma melhor ocasião. Joana Gonçalves-Sá é uma das organizadoras da plataforma Fórum dos Cidadãos. É líder de Grupo/Investigadora Principal no Instituto Gulbenkian da Ciência e Professora Convidada no Instituto Superior Técnico.
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http://www.forumdoscidadaos.pt/ 35
19 junho a 4 julho TEATRO, PERFORMANCE-INSTALAÇÃO, DEBATE E PENSAMENTO ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ ╓─── ║ ║ ║ ║ ║ ║ ║ ╙Æ
BRETT BAILEY/THIRD WORLD BUNFIGHT Sanctuary ● performance-instalação ★ Estúdio da Tóbis ter 19 a dom 24 jun CLAIRE RODIER, IOLANDA ÉVORA, MEHDI ALIOUA Migrações, mobilidades e fronteiras ● debate e pensamento
FÓRUM MIGRAÇÕES
Em parceria com a Associação Fórum dos Cidadãos, criámos o Fórum Migrações, composto por 50 lisboetas escolhidos aleatoriamente, e que, ao longo deste ciclo, debaterão e deliberarão sobre melhores condições de integração de migrantes e refugiados em Portugal.
21 jun MEHDI ALIOUA Masterclass Migrant’scène Rabat, uma plataforma artística e um trampolim de ideias ● masterclass 22 jun MARCO MARTINS Provisional Figures Great Yarmouth ● teatro 28 a 3" jun e 1 a 4 jul (exceto 2 jul) ╓─── MARCO MARTINS E EQUIPA DA RAUM ║ ║ Conversa sobre residência ║ ║ artística online ║ ║ ● debate e pensamento ║ ╙ Æ 3 jul
Apresentação no âmbito da rede Create to Connect com o apoio do Programa Cultura da União Europeia
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O Maria Matos Teatro Municipal vai mudar. Encontrem-nos em dois novos espaços de Lisboa. A partir de setembro 2!18, o Teatro Maria Matos será arrendado a agentes culturais privados e passará a apresentar um programa de teatro para o grande público — comédia, drama ou teatro musical.
saiba mais em
www.teatromariamatos.pt