Revista Maritaca - 6ª Edição

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03.2021

Ano 5 - 6ª edição

Revista laboratório do curso de Jornalismo da UFRRJ

RELI GIO SIDA DE

Nossos repórteres foram às ruas aprender sobre as crenças que nos unem e dividem ao mesmo tempo.

UMBANDA PAGÃ FEMININO AXÉ

CURATECNOLOGIAEXPERIÊNCIA

Fé ESPIRITISMO WICCA

CARIDADE

ESPERANÇA

EVANGÉLICO

ORIXÁS CINEMA LGBT+CRISTÃO NATUREZA

RESPEITO

ECONOMIA DEUSA

POLÍTICA CRENÇA

AMOR


Expediente Revista-laboratório produzida por estudantes de segundo período do curso de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Projeto interdisciplinar de Técnicas de Reportagem, Introdução à Fotografia e Mídia Impressa produzida pela turma 2019.1. Professoras responsáveis: Ana Lucia Vaz, Cecília Figueiredo e Sandra Garcia. Edição: Ana Lucia Vaz MTb/RJ 18058 Projeto gráfico e programação visual: Pedro Henrique da Silva Vaz do Cabo Copidesque e revisão: Lucas de Andrade Santos, Mariana Rodrigues Freitas e Thallys Matheus da S. Pereira

Editorial

Religiosidade foi o tema proposto para a 6ª edição da Maritaca. Difícil de definir, delicado de tratar, religiosidade é assunto sensível para quem tem e para quem não tem religião. No Brasil, a religião se tornou problema político, e a política um campo minado pela intolerância que divide terreiros, igrejas, amigos e famílias. Nossos estudantes de Jornalismo amam desafios. No processo, eles se arrependem, xingam, desesperam: “não vai dar, professora!” No final, entregam belíssimos resultados. Esta revista é uma parte destes resultados. Os debates em sala de aula, as descobertas compartilhadas, as transformações pessoais que vivemos são impossíveis de transmitir na sua plenitude. O desafio tinha um propósito: explorar as possibilidades de um jornalismo que contribua para a construção de pontes entre grupos e sujeitos que não se enxergam e não se escutam. Nossos repórteres em formação se entregaram à tarefa de conhecer o desconhecido. Pode parecer óbvio, mas não é. Abrir olhos, ouvidos, mente e coração para outras experiências humanas não é tarefa simples. Cada reportagem que oferecemos aqui foi fruto de muito trabalho e intensas emoções. O resultado encanta pela diversidade e sensibilidade. “Professora, o difícil é quando a gente dá de cara com o nosso preconceito”, desabafou um estudante. Porque fazer reportagem de verdade é cruzar barreiras e se transformar. Esperamos que as matérias publicadas aqui sirvam para compartilhar um pouco da experiência transformadora que foi para nós produzi-las.

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Religiões pagãs seguem os ciclos naturais da vida Economia solidária: quando o ganha pão e a fé se encontram Jesus vai ao cinema: A indústria cinematográfica cristã Cura pela fé. Mas fé no quê? Umbanda: religião inclusiva liderada por mulheres Caridade kardercista pelo olhar evangélico Os conflitos entre política e religião no contexto brasileiro

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30 Fé fora do armário Cristianismo LGBT+ ganha adeptos e disputa espaço


22 Fé online: o lugar da tecnologia nos rituais sagrados

04 Wicca: o culto à natureza e ao princípio criador feminino

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E se Deus fosse mulher?

Wicca: a conexão natural através da deusa Por Anny Fernandes, Fernanda Lizzi, Mayara Dias, Suellen Martins e Victória Santana

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‘Chamado da Deusa’ é visto como um despertar para os seguidores da Wicca, que vislumbram na natureza os sinais que fundamentam sua fé. Para esta religião, a reencarnação é concreta e explica como uma pessoa está destinada a ser bruxa. Afinal, uma vez bruxa, sempre bruxa. Por isso, “você nunca vai ver um Wicca, um pagão, um bruxo tentar converter outras pessoas. A gente não acredita nessa conversão”, explica o bruxo natural Caio Dério (24), estudante de Relações Internacionais da UERJ.

Mito da criação

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Os praticantes da Wicca creem na reencarnação e que todas as ações humanas voltam ainda mais intensas a quem as praticou. Além disso, os wiccanos não acreditam no conceito de mal. “Nos perguntam se fazemos magia negra. Para nós, magia é magia. Uma vela branca pode tanto salvar quanto matar alguém’’, explica Og Sperle, líder da União Wicca Brasil. Baseada no princípio feminino da criação e nos ciclos da natureza, a Wicca é uma religião neopagã e politeísta. Porém, seu culto é dualista, destinado à Deusa Mãe e ao Deus Pai (Cernunnos). De acordo com a mitologia, a Deusa sentia-se sozinha e deu à luz Cernunnos, e posteriormente eles deram origem ao universo. Trata-se de um Deus que nasce, morre e renasce, tal como a vida, as estações do ano e as plantas.


Você nunca vai ver um wicca, um pagão, ou um bruxo tentando converter outras pessoas Foto: Anny Fernandes

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Og esclarece que a Wicca exige um conhecimento variado, ou seja, um bruxo precisa ter amplo conhecimento sobre história, geografia, política, astronomia e ecologia. A religião é a continuação de uma tradição de mistérios antiga, influenciada por crenças pré-cristãs praticadas na Europa. A principal influência foi o antigo povo celta que viveu na Inglaterra, na Irlanda e no País de Gales, os quais acreditavam na contínua relação com a natureza como única forma de alcançar as divindades. A Wicca veio a público em 1951 através do antropólogo e ocultista inglês Gerald Brousseau Gardner. Ao unir os conhecimentos de história, antropologia, folclore e magia, o estudioso começou o processo para o ressurgimento da religião. Buscou enfatizar os valores positivos sobre o conhecimento da natureza, visto que, na Idade Média, a Igreja Católica deturpou o real significado da crença pagã e a propagou como um culto demoníaco. Como uma forma de conquistar o protagonismo, a Igreja Católica instaurou os “Tribunais da Inquisição’’, que tinham o objetivo de acabar com a heresia e julgar todos que eram considerados uma ameaça às doutrinas da instituição. Era a batalha da Igreja Católica contra o paganismo. Com o cristianismo, a Igreja passou a chamar de “pagão” a todos que não haviam sido batizados, que viviam no campo, que prestavam cultos à natureza e homenagens a deuses. Essa perseguição acabou no início do século XIX, mas parte dos pagãos já havia se perdido. Hoje, no Brasil e no mundo, poucas pessoas conhecem a Wicca e o caráter matriarcal dessa religião. Surge, então, um questionamento: afinal, se o Deus Pai e a Deusa Mãe são vistos como um equilíbrio perfeito, por que há uma maior exaltação da parte feminina?

Foto: Anny Fernandes


Meio Ambiente

O sagrado feminino

Foto: Fernanda Lizzi

Para compreender isso, primeiro precisamos entender que o espaço do feminino na Wicca se deve, sobretudo, à sua descendência do paganismo. A suma sacerdotisa, Jussara Gabriel (62), do coven - nome dado a grupos de bruxos e bruxas que se reúnem para celebrar rituais - Dança das Estrelas, explicou que a crença da Wicca foi iniciada a partir de estudos arqueológicos sobre as civilizações agrícolas do período neolítico que eram centradas em divindades da fertilidade. Jussara afirma que, a partir da metade do século XX, há uma influência dos movimentos feministas para a difusão da religião. A fundação da Wicca, feita por Gardner, coincide com o momento em que os direitos das mulheres começaram a ser mais debatidos. Por exemplo, com a criação da pílula anticoncepcional, em 1960, e da criação da minissaia, por Mary Quant, na mesma década. A Wicca não é considerada uma religião que tenta “combater” o culto ao patriarcalismo. Para os wiccanos, o masculino do Deus Pai é indispensável e os direciona para o “Dom do Deus”, que é representado por coragem, força, lógica e virilidade. Apesar disso, a fé wiccana defende que, mesmo que tais dons sejam muito importantes, não são autossuficientes. Caso sejam seguidos sem o equilíbrio do feminino, podem trazer alguns efeitos negativos como o individualismo e a arrogância. O “Dom da Deusa”, diferente daquele trazido pelo Deus Pai, remete à fertilidade, amabilidade, intuição, sensibilidade, etc. Possuir esses dons concede ao wiccano uma maior conexão com os outros seres e organismos que os cercam. Por conta dessas características atribuídas à Deusa, muitos covens sustentam a ideologia da mulher como ser predominante em seus rituais e cultos. “A egrégora

daqui, da tradição Athena Pronaia, é grega. Antigamente, ela era cretense, só com mulheres. Aí eu falei: não, tem que ter um equilíbrio, mas a mulher aqui é preponderante”, explica a suma sacerdotisa Alana Morgana (66), do coven Lua de Louros, que recentemente começou a permitir homens em seus cultos. Os wiccanos vislumbram no feminino uma ligação intrínseca com a natureza. Essa afinidade revela porque a figura da deusa é predominante em muitos covens, visto que a natureza é uma parte essencial do culto da Wicca. A fé no sagrado feminino encontra sua origem na relação cíclica que é atribuída, tanto para as mulheres, como para a natureza na analogia das fases da menstruação e da lua.

O amor à ecologia, ao sagrado feminino, e à terra


O divino está na natureza

Foto: Anny Fernandes

De acordo com Jonatas Alcântara (27), sacerdote da tradição Athena Pronaia, a lua é o símbolo máximo da Deusa. Observa-se que seu período de rotação em torno da Terra dura, em média, 28 dias, assim como o ciclo menstrual da mulher. Para os povos neolíticos, que desenvolveram a agricultura, a menstruação era considerada sagrada e estava ligada à fertilidade da terra. Por isso, era costume das mulheres depositarem seu sangue, ou sua “lua”, na terra para fertilizá-la. Com a ascensão do patriarcado e do catolicismo durante a Idade Média, as culturas femininas foram condenadas e julgadas como bruxaria, de forma pejorativa. Em contrapartida, o neopaganismo, mais especificamente a Wicca, resgata tradições antigas e exalta novamente a mulher e o sagrado feminino. “A gente acredita que a Deusa está em tudo. Então, a natureza é parte dela, é o corpo dela. A gente pisa em Gaia, a Terra. A Terra é a Deusa”, explica Jonatas. É nesse espaço, também, que os deuses se manifestam através de elementos naturais, como o sol, a lua, os rios e os ventos. Por esse motivo, a relação dos wiccanos com o meio ambiente é diferente. Muitos wiccanos são ecologistas, ativistas ambientais e veganos, embora isso não seja uma regra. Diante do cenário atual de destruição ambiental, Jussara diz estar inconformada e chama a atenção: “A gente tem que alterar essa situação de alguma maneira, porque a gente não tem mais nada a não ser a natureza. Estamos tão apáticos. E eu não falo só daqueles que são pagãos, eu falo do povo brasileiro inteiro”, diz. Jonatas também defende que essa é uma questão política: “Querendo ou não, ser wiccano e

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não ter posição política é uma contradição. Porque wicca é ativismo, não tem como não ser”. Para ele, “se o wiccano fecha os olhos para o cenário político atual ou então apoia candidatos que pouco se importam com a Amazônia, com todo o sistema de preservação e com nossos irmãos índios, ele não é wiccano de verdade”.

O processo de iniciação

A cerimônia de iniciação começa quando as pessoas recebem o chamado da Deusa Mãe. Por ser uma religião com muitos mistérios, que só podem ser desvendados pela vivência prática, os seguidores iniciantes geralmente buscam um coven. A partir desse contato inicial, o interessado começa a ser introduzido na religião por um sacerdote ou sacerdotisa. O processo de iniciação é fundamentado em um estudo, que acontece durante 13 luas, em aproximadamente um ano e um dia. Após esse período, há um jogo que revela se o futuro do iniciante está definido de acordo com as suas ações. Caso esteja, o empenhado começa de fato a participar dos rituais do coven, que são mais secretos e mágicos. Mas e se você quiser realizar o processo sozinho? A própria religião não revela facilmente seus mistérios. Tal prática consiste em estabelecer uma relação entre você e os deuses, por isso deve ser feito em um ambiente silencioso, de preferência próximo à natureza, e sem qualquer influência externa. Recomenda-se que seja em período de lua cheia, próxima de seu aniversário, em um dia que você tenha acesso a ambientes naturais. O local onde será realizado o ritual precisa ser preparado, limpo e é indicado que se emane pensamentos e energias boas. O contato direto da pessoa com o natural é aconselhado. Todo esse preparo é essencial para que haja liberdade e total familiaridade com os deuses e suas representações, com a finalidade de concluir um ciclo de iniciação correto e genuíno.


Meio Ambiente Foto: Jasmine Medonça

O Tempo do Paganismo Os ciclos da vida e da natureza

Por: Jasmine Mendonça, Poliana Ferreira e Karollayne Dias

Quando escrevo, eu transfiro a minha memória ao suporte material

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paganismo, como religiosidade, tem crescido no Brasil e no mundo. Apenas nos Estados Unidos, 1,5 milhão de pessoas se identificam como wiccanos ou pagãos, de acordo com o instituto de pesquisas Pew. A natureza é muito importante na cultura pagã. Além de ditar o ritmo, é ela quem une tantas religiões e conjuntos de crenças sob um mesmo guarda-chuva. Para a Wicca, por exemplo, a natureza se representa pela Deusa. Já na Asatru, o foco está em elementos como rios, plantas e pedras habitados por espíritos ancestrais. Para José Cardoso Ferrão Neto, professor do curso de jornalismo na UFRRJ e pesquisador de religião e mídia, uma das principais diferenças entre o cristianismo e religiões como as pagãs é a relação com o tempo. As chamadas “religiões do livro”, como o judaísmo, cristianismo e islamismo,

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Foto: Jasmine Medonça

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promovem um ritmo linear na vida de quem as segue. Pelo fato de a maioria das religiões pagãs não possuir um livrobase, elas se guiam pelas mudanças da natureza. São religiões cíclicas, que carregam marcas da oralidade. “Quando eu escrevo, eu transfiro a minha memória ao suporte material. Eu passo a criar uma narrativa linear, que tem começo, meio e fim. Nas sociedades oralizadas e nas práticas culturais mais orais, a gente tem um tempo cíclico”, explica Ferrão Neto. “É também um tempo aberto à contingência do presente. Pierre Lévy, filósofo da comunicação, diz que as sociedades orais estão ‘calcadas na relação do tempo cíclico e do devir’. Cíclico porque o que passou pode voltar, mas como? Toda vez que aquele ritual é Iago Ferraz, praticante do paganismo nórdico realizado e você traz toda a história da comunidade novamente”. exemplo, é o dia de Ostera, deusa da Por seguirem os ciclos da natureza, primavera na cultura indo-europeia. Essas muitas dessas religiões desenvolveram coincidências explicam como as próprias um cronograma próprio. A roda do ano’ religiões modernas se formaram e como ou calendário bruxo, marca desde rituais as diferentes tradições influenciam umas de solstícios, equinócios das estações e às outras no decorrer da história. Algumas Sabbats - reunião onde se celebra a vida foram adaptadas ao cânone cristão, através de danças e cantos em honra às como as festividades de Ostera, e outras deidades - até dias dedicados a deuses continuam vivas nos dias de hoje pelo específicos ou ancestrais. A maioria folclore local ou cultura popular, como o dessas datas comemorativas ocorre, nos Halloween, que, para o paganismo celta, é mesmos dias de festejos do ocidente e o festival de Samhain. da cultura judaico-cristã. A Páscoa, por


Meio Ambiente

Paganismo à brasileira

Foto: Jasmine Medonça

Uma das dificuldades de seguir uma religião pagã de origem europeia sendo brasileiro é justamente sua sazonalidade. Muitas datas sagradas são relacionadas às mudanças de estações do ano, que, no hemisfério sul, são opostas às do hemisfério norte. Com isso, algumas religiões propõem um calendário invertido, outras deixam essa questão livre para seus praticantes. Interpretar a ‘roda do ano’ se torna uma questão de visão pessoal para os pagãos. O mais importante, como em toda religião, é se conectar com a data. ‘’Por exemplo, Samhain é um festival que fala de ancestralidade, de um período mais escuro, envolve morte e lembra seus ancestrais. No Hemisfério Norte está associado ao período em que o inverno isso não chegou ainda, mas já está próximo, em outubro. Esse festival deu origem ao dia das bruxas”, explica Iago Ferraz, praticante do paganismo nórdico. Muitos pagãos, no Hemisfério Sul, preferem manter o ritual em outubro, embora aqui se anuncie o verão. Eles procuram outra forma de fazer sentido: “Aqui o inverno não está próximo, mas a gente está num país tropical. Então, aqui há o calor que traz doença, que aumenta a chance das pessoas morrerem e que também faz com que eu pense nos meus ancestrais’’, conta o jovem. Mas como no Brasil, um país amplamente cristão, as pessoas se encontraram e se identificaram com essas religiões? Alguns, como Rachel Almeida, já passaram por diversas religiões. Criada no catolicismo, ela passou por diferentes vertentes e experiências dentro do paganismo até se encontrar no helenismo, conhecido como a religião da Grécia Antiga.

“Eu não conseguia me encaixar em nenhum deles totalmente. Eu sou batizada, fiz primeira comunhão, mas eu sempre achei os dogmas da Igreja Católica engessados demais”. A partir dos 12 anos, Rachel começou a conhecer coisas mais interessantes para ela. “Eu fui a alguns templos budistas, na organização das virgens de Isís, mestres da luz, fui passando e recolhendo, na verdade, um pouquinho de cada um”, completa. Já Iago Ferraz conta que não houve um momento de sua vida em que “mudou para o paganismo”. Sua mãe sempre esteve ligada às questões espirituais esotéricas e às energias da natureza. Quando ficou mais velho e se perguntou qual era a sua religião, a vertente nórdica foi a resposta natural. As filosofias, tradições e ideais de comportamento vindas do politeísmo do norte da Europa se encaixaram em sua vida. Embora prefira as celebrações em grupo, Iago explica que isso não é necessário. “Como eu tenho amigos e familiares no mesmo caminho que eu, quando a gente tem oportunidade, a gente celebra junto. Mas não tem aquela regularidade ou obrigatoriedade”.

Os pagãos entendem que, como parte da natureza, todos estamos em um constante ciclo de mudanças

Seguir o paganismo significa ver o lado sagrado do tempo natural e como ele altera nossa vida. Os pagãos entendem que, como parte da natureza, todos estamos em um constante ciclo de mudanças. Para a antropologia, isso é resultado de uma cultura de oralidade da religião. Para os pagãos, isso é sua espiritualidade. Então, seja por seguir a ‘roda do ano’ ou por buscar aconselhamento nos espíritos ancestrais à margem de um rio, o ciclo da natureza é o epicentro do paganismo.

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Foto: Diogo Gomes

O patrimônio da fé Coletividade e solidariedade como bem maior Por Ana Beatriz Machado, Diogo Gomes, Juliana Alves e Lucas de Andrade

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ealizado em 2010, o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou alterações no panorama religioso nacional. Católicos e evangélicos somavam à época 86,8% da população - 64,6% e 22,2%, respectivamente -, com destaque para o crescimento dos evangélicos, sobretudo os neopentecostais, que apresentaram uma subida vertiginosa. Tamanha representação explica o sucesso do mercado religioso no país. Mesmo ao longo de uma década de altos e baixos na economia, o segmento se fortaleceu e abriu possibilidades para milhões de pessoas empreenderem em resposta a falta de oportunidades de emprego formal. Com apoio de entidades internacionais, movimento semelhante ocorre entre religiões menos populares e historicamente perseguidas. Onde sobreviver requer garra e incentivo, como na Baixada Fluminense, todos, independentemente de fé, dão as mãos

para impulsionar quem mais precisa de ajuda. “Quem vem ao fórum, tem que vir com o objetivo de crescer profissionalmente, mas tem que ter retorno para a base, que somos nós. Tem que haver um crescimento mútuo: o pessoal e o coletivo”. Doraci Trajano, coordenadora executiva do Fórum Municipal de Economia Solidária de Nova Iguaçu, compartilha sua visão ideal do funcionamento do projeto que, prestes a completar 15 anos, ainda enfrenta obstáculos que impedem o seu crescimento. Fundado após reivindicação de um grupo de mães da Diocese de Nova Iguaçu, o fórum conta com a ajuda de Dom Luciano — então arcebispo do município e atual bispo emérito. Toda primeira segunda-feira do mês realiza-se, na Catedral de Santo Antônio, plenária onde são discutidos assuntos como: arrecadação das taxas dos inscritos para a autogestão e votação de produtos a serem comercializados. Apesar do apoio de uma entidade católica como a Diocese, o fórum foi formado desde o início por pessoas que professam as mais diferentes religiões. Atualmente, são quarenta e duas mulheres e três homens inscritos no projeto. As atividades externas do fórum acontecem todas as quartas e sextas-feiras, às 8h, na Praça Rui Barbosa. Recentemente, o município se associou ao governo do Estado do Rio de Janeiro e trouxe à região central o Programa Segurança Presente,


Mercado permanentemente na mesma praça. O posto de segurança instalado ocupa muito espaço da praça, o que restringiu o espaço de funcionamento do fórum. Em um ambiente limitado, os empreendedores expõem seus trabalhos, com preços que variam de 5 a 140 reais, mas hoje veem com otimismo indicações de novos projetos para a consolidação do movimento no município. Há dois anos, foi descoberto um projeto de lei municipal, em Nova Iguaçu, voltado ao movimento de economia solidária, engavetado por dez anos. A lei foi aprovada no dia 12 de maio de 2018. “Ela garante o espaço de comercialização; um centro de referência para o município; a criação do conselho municipal de economia solidária, pelo qual se busca o PPA (Plano Plurianual), a LOA (Lei Orçamentária Anual) e a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) municipais para o movimento, para buscar parcerias. A lei favorece tanto o município quanto o movimento”, diz Doraci. Se o movimento enfraquece, nem todos os artesãos podem garantir que estarão presentes no dia seguinte. Isso porque, todos os dias, além de ser preciso montar e desmontar as barracas, os fornecedores das estruturas de ferro cobram uma taxa no valor de 15 reais. Edna Maria, 54, não pôde garantir a sua presença devido à baixa procura: “As meninas já haviam comentado que viriam amanhã, mas eu não tenho a certeza porque, se vou me virar para

pagar o dia de hoje, eu não tenho o dinheiro de amanhã. Como posso fazer?”. De 2012 a 2014, houve uma desarticulação geral de apoio e presença política no fórum: “Alguns de nós fomos procurar ajuda em municípios vizinhos porque não havia o que fazer e fomos acolhidos”, revela Doraci. Desde então, um movimento de intercâmbio ocorre entre fóruns municipais do estado. Em todos os dias de exposição da feira, empreendedores de outras localidades são convidados a expor seus produtos na Praça Rui Barbosa, junto aos demais integrantes. Conceição, 65, filiada ao fórum municipal de economia solidária de Nilópolis, esteve presente no dia em que visitamos as atividades da feira: “Acho importante porque tem a chance de trocarmos conhecimento, informações, expomos nossos produtos a um público diferente”, diz. Teresinha Marília, 74, vê sua participação ativa no fórum como uma terapia: “Para quem já enfrentou um câncer como eu, estar aqui sempre foi um prazer! Ficar em casa e fazer o quê? Aqui eu vejo as pessoas, trabalho com o que gosto”. De fé católica, trabalhou durante toda a sua vida em prol da Pastoral da Criança — organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Foto: Diogo Gomes Oração do “Pai Nosso” no início da Plenária do Fórum Municipal de Nova Iguaçu.

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Foto: Ana Beatriz Machado Objetos confeccionados pelo Fórum de Economia Solidária.

Nações Unidas apoia projeto do Candomblé

Fundada por Mãe Meninazinha de Oxum, em 1968, e localizada em São João de Meriti, a casa de Candomblé Ilê Omolu Oxum se destaca por sua tradição religiosa e preocupação com sua Bolsas confeccionadas pelo Ateliê da Obinrin comunidade, tendo rece- Odara, referentes aos projetos “Respeite a bido recentemente o apoio Minha Fé” e “Mulheres do Axé”, da casa Ilê institucional do Programa Omolu Oxum. das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). “A casa resgatou mais de 100 adolescentes em situação de risco social. Jovens de 14 a 18 anos ficavam dentro do terreiro, de 10h às 19h, saíam para escola à noite e lá aprendiam uma profissão”, conta Nilce Naíra, sobrinha de Mãe Meninazinha e organizadora dos projetos sociais que ela mesma prefere chamar de “pontos de cultura”.

Foto: Ana Beatriz Machado

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De acordo com Nilce, o projeto durou dois anos. Chamava-se Comunidade Solidária, projeto do governo Fernando Henrique Cardoso, acompanhado por sua esposa, dona Ruth Cardoso. Alguns dos projetos desenvolvidos pela casa são voltados ao público feminino, como o Ateliê Obinrin Odara e o projeto Mulheres contra a Violência, devido à alta procura de mulheres em situação de vulnerabilidade. “Vários motivos levam uma pessoa a procurar o terreiro, inclusive a violência doméstica. A mulher, antes de procurar assistência jurídica e a delegacia, procura o terreiro. Qual a função do terreiro? Acolher, ouvir, encaminhar e muitas vezes orientar. Porque, por exemplo, se eu recebo uma mulher que apanhou do marido, eu tenho que saber como agir com ela. Por isso, busquei parceria com a Delegacia Especializada no Apoio à Mulher (DEAM), não faço nada sem que a delegada esteja”, explica Nilce. A casa, no entanto, lida com preconceito e intolerância, como afirma Nilce: “Eles são preconceituosos. Eles falam, mas sabem que a casa vai acolher, vai servir. O evangélico, por


Mercado Foto: Ana Beatriz Machado

exemplo, ele não entra no terreiro. Eu já tive vários casos de mulheres que fizeram o curso e disseram: ‘Eu posso levar isso lá para minha vizinha?’ Eu digo: ‘Pode, por quê?’ E respondem: ‘Porque ela é evangélica, ela não entra.’ Eu explico: “Mas ela pode entrar aqui, vai ser muito bem recebida, não vai participar de atividade religiosa nenhuma. A casa oferece o curso para que ela gere renda”.

Qual a função do terreiro? Acolher, ouvir, encaminhar e, muitas vezes, orientar Para contar a trajetória de resistência da casa, Nilce Naíra fez um livro que mostra a importância do combate à violência e como o terreiro foi preparado para oferecer projetos sociais: “Eu peguei dez mulheres que geram renda com coisas que aprenderam dentro do terreiro, da importância de você estar dentro do terreiro. Tem histórias maravilhosas, inclusive, a minha história também foi registrada aqui. Mulheres que aprenderam coisas dentro do terreiro e geram renda com aquilo que aprenderam. Essa senhora tem 76 anos de idade, costura até hoje muitas peças. Muitas, aqui, foi ela quem fez. Eu quis mostrar para as pessoas que são intolerantes que nós não queremos, realmente, ser desrespeitados; nós precisamos de respeito”.

Nilce Naíra, organizadora dos projetos da casa Ilê Omulu Oxum.

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Salvação pela prosperidade Uma das doutrinas centrais do Bispo Edir Macedo — e de toda a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) — é a Teologia da Prosperidade. Em tempos de crise financeira, este engajamento da igreja se torna fundamental para manter o olhar da fé. Clínio Amaral é professor associado do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Explica este movimento com base em uma narrativa do imediatismo do movimento neopentecostal: “A salvação acontece no ‘aqui e agora’. Essa pegada do sucesso financeiro é, muitas vezes, entendida como forma de realização nessa vida. Ou seja, a partir do momento que eu tenho essa relação com o Espírito Santo e posso ser salvo, eu empenho a prosperidade em todos os campos da minha vida”. A Igreja Universal realiza semanalmente o encontro da Nação dos 318, nome que faz menção ao número de homens que lutaram ao lado de Abraão, venceram e deixaram seus

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Para o pastor, o que impede o sucesso dos fiéis é a influência espiritual das entidades demoníacas

nomes na história do livro sagrado. Tratase, principalmente, de um culto de libertação espiritual para alcançar o sucesso financeiro. Para o pastor, o que impede o sucesso financeiro dos fiéis é a influência espiritual de entidades demoníacas. Após beber o suco de uva servido pelos obreiros — trabalhadores voluntários da Universal — o fiel passa por orações e pregações do pastor, que busca sempre afirmar a importância da prosperidade financeira. “É o cálice de sangue, é o sangue da revogação! Fala!” — dirige-se aos fiéis — “Diabo, eu não te aceito! Amarração, eu não te aceito. Diabo maldito, eu não te aceito. Espírito imundo, você vai sair! Isso é guerra, a guerra começou. É guerra contra a miséria. Fala: Você vai sair! Eu não te aceito!”.

A culpa do capitalismo

“Os projetos de empreendedorismo social e economia solidária incluem aquelas frações mais vulneráveis, mas não conseguem se constituir como uma plataforma generalizante da inclusão da sociedade como um todo”, comenta Leon Suhett, professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), campus Nova Iguaçu. “As práticas em seu conjunto não são conectadas. Elas são somadas, mas não estão conectadas”, completa. No entanto, pondera que não se pode “chegar numa comunidade onde o Estado inexiste, onde uma figura que tem um conhecimento, no seu tempo de lazer se mobiliza dentro da comunidade para formar atividades culturais que ajudem aquele conjunto de pessoas, e dizer essas coisas, se aquilo mudou efetivamente a vida de muitos”. Essa mesma ausência do Estado ocasiona uma expansão da religiosidade em regiões periféricas. Segundo o professor, “sobretudo por uma falta de amparo, de um cinturão social que proteja todas essas pessoas em situação de vulnerabilidade, a igreja surge. Se aos cidadãos negam acesso à cultura, lazer, qualquer mínimo entretenimento, a religião pode se permeabilizar com maior facilidade”.


O crescimento da indústria cinematográfica cristã

Por Jullyana Barreto, Nícholas Vila Nova, Samuel Guedes e Yasmim Khaltreen

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expansão do cinema cristão é um fenômeno recente no Brasil. Cada vez mais produtoras religiosas, principalmente protestantes, disputam o mercado cinematográfico. As religiões são grandes promotoras de cultura e, muitas vezes, determinam os hábitos culturais de seus seguidores. Produtoras como a 360WayUp, Record Filmes e Nissi Filmes encontraram no audiovisual um meio para propagar a religião e a palavra de Deus além das paredes da igreja. Um dos precursores desse nicho é Ygor Siqueira, de 38 anos, criador da 360WayUp. Fundada em 2015, a produtora já coleciona mais de 20 filmes e pretende lançar o próximo ainda neste ano, com o título “Mais que Vencedores”. Referência no mercado audiovisual, Siqueira foi homenageado pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro em 2018, com uma condecoração ao “relevante serviço prestado à causa pública carioca”. O cineasta conta que, ao criar a empresa, pretendia alavancar o cinema cristão do país. Para isso, precisou estabelecer um elo de confiança entre os fiéis e os filmes, “intensificar

Foto: Jullyana Barreto

Jesus vai ao cinema

Mercado

a visão cristã dentro do mercado audiovisual”. A 360WayUp passou, então, a produzir longas “para pessoas que gostam de assistir filmes com princípios cristãos, sobre superação, perdão ou amor”, diz Siqueira. “É com esse público que a gente quer falar inicialmente, mas a ideia é ter projetos que falem com todas as pessoas.”

Cinema para quem gosta de assistir filmes com princípios cristãos

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Foto: Jullyana Barreto

O ator Igreja interpretando o papel do Estado

Foto: Jullyana Barreto

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A Declaração dos Direitos Humanos prevê a garantia dos Direitos Culturais, assim como a Constituição Federal estabelece que o Estado deve assegurar o pleno acesso às fontes da cultura nacional. A carta define, também, que o Estado deve apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. No entanto, a extinção do Ministério da Cultura, em janeiro deste ano, demonstra a falta de apoio do Governo Federal ao setor. Nesse cenário, diferentes instituições, entre elas a igreja, cumprem um papel fundamental na valorização da cultura brasileira. O primeiro evento do Cine Church foi organizado em parceria com o Ministério Apascentar de Nova Iguaçu e alcançou cerca de 600 pessoas. “A exibição de filmes nas igrejas contribui tanto para o crescimento do cinema cristão, quanto para a vida dos fiéis. Eles encontram no audiovisual uma forma de refletir sobre suas vidas”, analisa Siqueira,do 360 WayUp. Recentemente, o Governo Federal cortou 43% dos investimentos para a produção audiovisual. Brenda Rangel, representante da produtora de filmes cristãos Nissi Filmes, afirma

que o corte não afetou sua produção porque nunca chegou a receber apoio do governo. “Poucos filmes cristãos recebem financiamento. Eu só lembro de um que fez sucesso, que foi O Auto da Compadecida.” O sucesso de dois filmes torna evidente a expansão desse mercado: ‘Nada a Perder’ e ‘Os Dez Mandamentos — O Filme’. De acordo com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), esses são, respectivamente, o sexto e o sétimo filmes que mais atraíram espectadores aos cinemas do país. O primeiro narra a trajetória do bispo evangélico Edir Macedo. Já “Os Dez Mandamentos” é uma adaptação da telenovela de mesmo nome, que fez sucesso na RecordTV. Duas produções da Paris Filmes com a Record Filmes assistidas por 11 milhões de pessoas.


A fé cura. A fé cura?

Uma investigação sobre crenças que curam

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Por Bárbara Clara, Beatriz Cunha, Fábia Souza, Isabelle de Oliveira e Paula Leone ergulhar vendado de uma altura imensurável, sem equipamentos de segurança ou redes de proteção. Lá embaixo? O total e completo desconhecido, mas ainda assim, você pula com a certeza de que uma força invisível o fará chegar ao fim são e salvo. Talvez, essa seja uma das definições mais representativas do que é ter fé. Quando a medicina não vê solução e a esperança na cura se mantém, não importa quão negativo o cenário se apresente, seria isso, fé? Mas em quê? Ou em quem? Deus, Jeová, Orixás, Buda, divindades da natureza ou simplesmente em si próprio? “Eu tive um câncer no intestino, eram 17 linfomas malignos. Fiz uma cirurgia, e eu já tinha tudo encaminhado para radioterapia e quimioterapia. Uma semana antes, uma mulher desconhecida bateu na minha porta, ela era de outra cidade e disse que Deus estava mostrando o meu endereço para ela. Orou e disse que eu havia sido curada. Na semana de ir para a cidade onde seria o tratamento, fiz mais exames e neles não constou mais nada. A fé me curou”, conta Cinthia Sabatelly, espírita, 22 anos. A cura através da fé é explicada de diferentes formas. Enquanto dentro do espiritismo a subjetividade e a ciência se conectam para a recuperação de um doente, o protestantismo considera a cura ligada diretamente à fé em um Deus. Segundo a Missionária Joice Gomes, 38 anos, “tomar uma água consagrada ou levar a foto de alguém para ser orada não é o ponto, a questão é a fé depositada nesses atos”. Além disso, essas igrejas pregam a recuperação também através do que chamam de “movimento pelo Espírito Santo”, onde esse ser celestial usa as pessoas como instrumento de cura. “Somos instrumentos na mão dele e é só por ele que pessoas podem ser curadas”, finaliza.

Foto: Fábia Souza

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Foto: Fábia Souza

Para o teólogo e pastor Giancarlo Duque, 42 anos, a fé é “um dom de Deus, dada de uma maneira geral a todos e desenvolvida através da prática nas escrituras de cada religião, prática essa que pode ser conquistada também através da natureza, onde a criação se revela como extensão da graça divina”. Ter uma religião pode ter auxiliado no tratamento da depressão de Brenda, 19 anos. “Fui curada da depressão. Foi um período muito, muito ruim e muito difícil da minha vida, em que eu não tinha disposição para nada. Foi tudo um breu, minha vida era escura. Tinha incontáveis feridas abertas. Passado um bom tempo, eu fui apresentada a Jesus e em dado momento essa fé e entendimento me curou. Eu passei a querer viver porque o criador do universo também me criou. O processo não foi rápido, alguns sintomas se manifestam até hoje, mas com frequência e intensidade muito menores. E quando acontece eu sempre sei a quem recorrer”. Eduarda Andrade conta que sua avó teve o útero curado e teve três filhas “Uma delas é a minha mãe, ela foi diagnosticada com útero infantil, porém naquela época não

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existia tratamento com hormônios igual tem hoje, ela orou todos os dias até que engravidou. Na primeira gravidez ela sofreu um aborto espontâneo, depois ela teve mais três filhas”, uma delas mãe de Eduarda. Capelão no Hospital de Itaguaí e pastor luterano, Gilberto Krick nos conta um episódio de sua vida em que, por conta de uma doença degenerativa nos olhos, estava ficando cego, “meus olhos estavam morrendo”. Após diversos tratamentos com os melhores especialistas do Rio de Janeiro, não tinha mais expectativas. “Teve um momento em que eu estava com 18 graus de miopia, já tinha me conformado em ficar cego”. Sua última tentativa era um oftalmologista de Campinas, muito bem conceituado. Ao mesmo tempo, conta que entregou sua vida nas mãos de Deus, “não é buscar na religião ou igreja, sou eu e Deus. Eu me coloquei diante dele, porque ele que me deu os olhos e poderia tirá-los mas, que eu tinha a vontade de ficar bom, ficar curado e que eu confiava nele”. Chegando em Campinas, o médico não encontrou mais nada em seus exames. “Deus me curou daqui até Campinas”, conclui o pastor.


Saúde

A farinha que cura

O placebo é um comprimido feito de farinha, usado em experiências para testar a eficácia de medicamentos. Um grupo de pacientes recebe o medicamento e outro recebe placebo. Esses testes, nos quais nem médico nem paciente sabem quem recebe o remédio real ou o placebo, são considerados a forma mais eficiente de descobrir a verdadeira capacidade de cura de um novo medicamento. De acordo com o artigo “Remédio imaginário”, publicado na edição 100 da revista Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pesquisadores têm por certo que em torno de um terço dos pacientes experimentam melhora apenas com o placebo. O chamado “efeito placebo” vem levantando debates sobre o quão eficaz seria a força daquele que realmente acredita que foi curado. De acordo com o cardiologista Alex Noronha de Amorim, o que está sendo testado é a eficácia do remédio, não do placebo. Então, como explicar a melhora dos pacientes? “Auto sugestão: O fato dele acreditar que está tomando remédio faz com que ele melhore, mas não quer dizer que haja uma cura. Os trabalhos têm tempo limitado, não se estendem indefinidamente até dizer que cura e habitualmente esses estudos são feitos com patologias crônicas, então não dá para falar em cura”, avalia o médico. Já para Cecília Dias, terapeuta holística há 29 anos, trata-se de mais uma nomenclatura para fé. “O que eles chamam de efeito placebo, é assim: você toma um remédio e acredita piamente que aquilo vai funcionar. Então, quando você acredita em alguma coisa, o que acontece? Você muda sua vibração, aquela vibração — poxa, nada dá certo. Você se nutre de energia e aí dá certo. Então, o que eles chamam de efeito placebo, eu chamo de fé”. A terapeuta vai além e conecta fé e cura com as vibrações do corpo do indivíduo. “Fé, eu acredito que seja a elevação do estado vibracional, uma certeza que a pessoa não sabe de onde vem, mas sabe que tem. Então, fé pra mim é isso, e a medida que você eleva esse padrão de frequência, outras frequências de mesmo teor vêm até você’. A terapeuta também utiliza cristais como forma de cura “Cristal é vibração. Digamos que um fígado tenha que vibrar a 234 heartz. Existe um cristal determinado que tem uma vibração de 234 heartz. Se o fígado está com uma vibração baixa, eu pego aquele cristal, com aquela vibração, e coloco em cima, para auxiliar o fígado a relembrar, digamos assim, sua frequência. Vai dar certo? Não sei. Eu estou ofertando uma possibilidade”.

“Nós todos somos frequência”, explica a terapeuta. “Cada um dos nossos órgãos vibra determinada frequência, sentimentos são frequências só que são, digamos assim, vibrações benéficas ou antagônicas. Benéficas, se forem bons sentimentos, e antagônicas, se forem ruins. Os sentimentos de baixa vibração, cada um deles interfere especificamente num órgão”. A cada momento, sentimentos diferentes passam por nós. Enquanto você lê essa matéria, você está vivenciando um sentimento que pode fazer com que seja emitida uma vibração, seja positiva ou negativa. E são exatamente essas vibrações que, segundo a terapeuta, nos curam ou adoecem. “Não são as minhas terapias, é a mudança de vibração. É qualquer terapia.” Segundo a terapeuta, se você disser para qualquer pessoa: Dobra seu joelho, reza dez ave Marias que você vai sair daqui curado. Se a pessoa acreditar nisso, ela vai elevar a frequência dela. Não foi a ave Maria que fez o trabalho, foi a pessoa que mudou por dentro.”

O que eles chamam de efeito placebo, eu chamo de fé Embora não aposte em uma cura através do que chama de “auto sugestão”, Amorim defende uma medicina integrativa, com melhores resultados nos tratamentos a partir da comunhão entre cuidado físico e mental. “É possível até você estar bem da mente com uma saúde física mais ou menos, mas é difícil estar com uma saúde física boa, com uma saúde mental ruim”. Para o cardiologista, pode haver “um processo de auto envenenamento”. “O corpo, então, fabrica substâncias em excesso ou faltam substância importantes do corpo, disfunções hormonais que acabam minando a saúde física’’ finaliza o doutor Alex Amorim.

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Em nome da fé, do online e da conexão

Telões​por toda parte. Celulares nas mãos. Holofotes. Um palco central. A tecnologia nos rituais religiosos. Por Brian Medeiros, Gabriele Freitas, Izabelle Nogueira, Luiz Eugênio de Castro e Pedro Henrique Cabo

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parelhos de som de última geração. Lotação máxima. O público aguarda a atração principal: o pastor. “É como se fosse um Rock in Rio da vida. Você se sente em um show, com televisões por todo canto”. Foi assim que o jovem Bruno Costa Torres, 19 anos, descreveu a Igreja Batista Lagoinha, localizada em Charitas, na cidade de Niterói. A Igreja vem atraindo mais pessoas interessadas, não só na própria fé, como em algo mais “dinâmico”. Mas essa conexão com o moderno se faz de maneira realmente eficiente para todas as religiões? Até onde vai a interação da espiritualidade com os avanços tecnológicos? Com mais de 200 mil seguidores no Twitter, a conta da Igreja Lagoinha atualiza seus fiéis sobre eventos religiosos, além de compartilhar diretamente artigos de seu próprio site. No Instagram, não só divulga essas matérias, como também relatos de fé, apresentações musicais, fotos e até mesmo o número de sua agência bancária para que as pessoas possam “fazer a sua parte”. Com essa forte interação tecnológica, a Igreja acaba por atrair jovens curiosos e aumentar seu engajamento. “Antes de começar o culto, eles exibem alguns avisos, falando para publicar stories, marcar a igreja… tudo relacionado às redes sociais”, conta Bruno. Ele descobriu a instituição a partir de um post de seu amigo.

Para o professor de sociologia, André Ricardo de Souza, coordenador do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), “A modernização das igrejas é um processo natural. São avanços na sociedade como um todo, na relação entre as pessoas e também nos templos, cultos ou na comunicação entre os adeptos.”

Em uma sociedade imersa na cultura digital e carregada de informações, uma igreja no estilo ‘’Lagoinha’’ pode funcionar. E não estamos falando apenas da religião evangélica. A católica Hana Moraes, 19 anos, ressaltou a importância dos aplicativos de liturgia para acompanhar as leituras da missa, tendo em vista a falta de papéis físicos. Também destacou o uso das lives como uma maneira de aproximar mais fiéis: “Acho que transmissões ao vivo são muito úteis para ajudar quem não pode ir e gostaria de estar participando, gostaria de estar ali presente”. Entretanto, deixou claro que a presença física se faz insubstituível: “As pessoas não podem simplesmente cair no conformismo. Acreditamos que a hóstia é Jesus e nosso alimento espiritual, então, a partir do momento em que você não se faz presente fisicamente, você deixa de receber isso… o celular não substitui, ele complementa.”.


Foto: Brian Medeiros

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Foto: Brian Medeiros

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A própria igreja quer lançar gente pra influenciar gente


Tecnologia

Modo Off

Diversas comunidades espiritualistas utilizam ferramentas digitais para o aprofundamento de estudos da religião, como vídeos no YouTube, podcasts e eBooks. Durante os rituais, porém, existem vertentes que optam por estar desconectadas do virtual. Pedro Paulo, 19 anos, seguidor da Umbanda há 5 anos, contou que nos ritos ocorridos em seu barracão é proibida a utilização de acessórios como celulares e materiais metálicos. Segundo ele, esses objetos “atrapalham energeticamente o desenvolvimento do médium’’, na medida em que ele precisa de um “corpo leve’’ para receber suas entidades. “Se você carrega algo com energia pesada como o aço, ouro, prata, isso pode atrapalhar na hora da incorporação” Porém, Pedro deixou claro que essa restrição tecnológica só se faz necessária até que a incorporação seja, de fato, efetuada. “Depois que a entidade chega, a gira e a energia se estabilizam, você pode fazer vídeo, tirar foto, mas depende do barracão. Uma vez incorporadas, algumas entidades inclusive questionam sobre as novidades do mundo moderno. Como são de outra geração, são curiosas e querem entender como funcionam”.

Modo On

Ao final da entrevista, o umbandista nos contou uma história que considera bastante incomum: “O meu avô de santo recebeu sua entidade, chamada Tranca-Rua e estava dando consulta ao meu pai de santo. De repente, minha

avó de santo ligou por chamada de vídeo. Eu atendi e tentei avisar que eles estavam ocupados, mas na hora em que estávamos conversando, seu Tranca-Rua perguntou com quem eu falava em uma tela tão pequena. Curioso, interrompeu a consulta e começou a interagir com ela, por vídeo. Foi muito engraçado”. Lana Claudia, também umbandista, professora e pesquisadora de ciência e religião, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, se considera “conservadora’’ com relação a esse tipo de experiência. “Uma consulta com uma entidade online eu não faria. Eu acho que tem certas coisas, por tradição mesmo, que não devem acontecer”. A professora pode ser contrária ao uso das tecnologias no espaço religioso. Mas quando se trata de buscar novos conhecimentos, Lana utiliza a internet como fonte de saber: “A Umbanda, hoje, tem cursos práticos que são à distância, tudo online. Eu, por exemplo, fiz um curso de teologia dessa maneira”.

Yin e yang da fé

Religiões se adaptam ao modo de vida cotidiano dos seus seguidores e esse comportamento não é recente. A Igreja Católica, por exemplo, no século XVII, criou um organismo de divulgação da fé chamado Propaganda Fidei, exatamente para difundi-la através dos meios disponíveis da época: livros, bibliotecas, viagens marítimas, música, teatro etc. O protestantismo também revolucionou, no passado, quando começou a publicar bíblias na língua vernácula - própria de um país ou nação.

Foto: Brian Medeiros

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Foto: Luiz Eugênio de Castro

Hoje, essa divulgação se dá, em grande parte, de forma online, a exemplo da Pascom (Pastoral da Comunicação), uma rede católica com o objetivo de unir seus seguidores. Também existem sites de relacionamentos evangélicos, como o Amor em Cristo, uma espécie de “Tinder Gospel’’. “O ponto fundamental é o equilíbrio. A ferramenta tecnológica, quando utilizada, pode te beneficiar ou não”, apontou Lana Cláudia. “A Umbanda trabalha com forças da natureza, ou seja, eu tenho que estar na natureza. Eu não posso simplesmente assistir a um vídeo de uma cachoeira e fazer um trabalho para Oxum — orixá considerada a rainha da água doce — me baseando nele. É sobre energia, sobre estar no local físico sentindo as forças naturais”, argumentou a pesquisadora.

A pluralidade das experiências

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A “eficiência” da tecnologia funciona de forma muito pessoal e sensitiva. A católica Hana, por exemplo, não recebeu de forma positiva mudanças consideradas promissoras dentro de sua religião. Cada um de nós, como seres

humanos, possui uma bagagem cultural e esse olhar único de cada indivíduo afeta diretamente na fé. Essa pluralidade se fez presente não só nas visões expressas pelas fontes, como também na interpretação de quem escreveu essa matéria. O contraste de ideias entre os integrantes só permitiu um consenso: a impossibilidade de delimitar a relação entre religiosidade e tecnologia.

Eu não posso assistir a um vídeo de cachoeira e fazer trabalho para Oxum


Gênero e Sexualidade

“E a nenhum viraremos as costas”

Mais de 80% dos terreiros de Umbanda eram chefiados por mulheres em 2017, segundo o Presidente da União dos Cultos Afro Brasileiros, João Luiz. Por Debora Santos e Mariana Rodrigues

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Foto: Débora Santos

ma senhora elegante, que devia beirar seus sessenta anos, esbanjava cordões, brincos e pulseiras, um cabelo loiro bem cuidado e um comportamento contido. Era uma mulher refinada. Com o início dos cânticos, em um piscar de olhos, ela começou a levantar a saia com os braços e colocá-la entre as pernas. Agia, agora, como os sambistas que aparecem nos filmes que retratam o Brasil dos anos 1920. Ria de modo despojado, gingando pelo espaço e interagindo com as entidades. Exibia uma certa intimidade com a Pombagira que estava incorporada na mãe de santo do terreiro. Era como se elas estivessem em um jogo de sedução, numa postura descontraída. A pomba gira da mãe de santo chamou a atenção das pessoas para falar que o malandro que estava ali havia sido seu amante quando eram encarnados. O malandro saiu do congá e quando voltou estava vestido com

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calça branca, blusa listrada vermelha e branco e um chapéu-panamá branco. O cabelo loiro agora estava preso. O malandro e a Pombagira passaram um bom tempo dançando juntos. Ali, constatamos que as entidades não se importam com aparência, sexo, ou coisas externas que, para nós, validam julgamentos.

Ouça a voz do preto velho e do caboclo

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A Umbanda é uma clara representação religiosa da miscigenação brasileira. Oriunda do encontro de várias matrizes religiosas, ela é uma religião cristã que cultua seres elementais da natureza — os Orixás – e realiza assistência espiritual guiada pelas entidades — espíritos de certa faixa de vibração astral. A crença em Jesus Cristo — sincretizado como Oxalá –, que veio da tradição católica; a comunicação direta com espíritos, pautada na doutrina de Allan Kardec; e o culto aos Orixás, cujas histórias vêm do Candomblé, são exemplos da presença ativa de diversas bases religiosas.

Foto: Mariana Rodrigues

Os Malandros foram pessoas que, em vida, enfrentaram as adversidades sempre com um sorriso no rosto, mantendo sua fé e o bom humor. São espíritos que foram marginalizados pela sociedade, mas que lidaram com isso da melhor maneira que podiam.

Os Orixás são as energias presentes na natureza e regem seus “filhos de santo” no cumprimento de missões e carmas na Terra. Além do culto aos Orixás, a Umbanda trabalha com as entidades que são espíritos vindos do plano astral para guiar e proteger as pessoas encarnadas. Eles estão em evolução e trabalham para ajudar os encarnados a evoluírem também. O avanço espiritual dá-se gradativamente e, assim, os espíritos reencarnam, para que possam corrigir as falhas de suas vidas passadas. Esses erros que precisam ser reparados são chamados de carma.

Por ser uma religião que não dá relevância a gêneros, a divisão de tarefas é feita sem distinção entre homens e mulheres. Os cargos são ocupados por ordem de merecimento. É diferente da Igreja Católica, por exemplo, onde o padre não pode ser mulher. “Não pode haver distinção. Esses postos, comandos e responsabilidades vão sendo assumidos por quem tem mais capacidade. Tanto na diretriz material, quanto na espiritual”, afirma Aristóteles da Fonsceca, dirigente da Fraternidade Umbandista André Luiz. Para ele, essa divisão significa um preconceito contra a evolução das próprias pessoas.


Gênero e Sexualidade

Somos todos pontos de luz

Foto: Débora Santos

A participação ativa de mulheres em cargos de chefia nos terreiros de Umbanda permite observar como essas associações se organizam. De acordo com o censo demográfico do IBGE, em 2010, o Brasil tinha, aproximadamente, 407.332 umbandistas espalhados por seu território. Dentre os adeptos, a presença de mulheres estava em maior número. No artigo Mulheres de Axé, Paula Moita, mestranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, informa que mais de 80% dos terreiros de Umbanda eram chefiados por mulheres em 2017. A informação foi passada à pesquisadora pelo presidente da União dos Cultos Afro Brasileiros, João Luiz. Ainda segundo Paula Moita, na década de 70, a embaixadora de Umbanda da Confederação Espírita do Brasil era uma mulher, a Yalorixá Arlete Moita.

“As entidades não escolhem seus aparelhos de trabalho com base em características físicas. Por isso, a mesma entidade pode vibrar tanto num homem, quanto numa mulher.”

“O espírito não tem sexo. Ele pode vir em um corpo masculino, mas ainda não está imbuído naquele conhecimento. Ele é como uma criança que, com o tempo, vai evoluindo, vai se norteando naquilo que ele realmente é”, disse Aristóteles da Fonseca. Dentre os princípios da religião, está a concepção de que todos, independentemente de gênero, têm direito aos mesmos conhecimentos para que alcancem os mesmos patamares. Caroline Moreira, umbandista há sete anos e youtuber, ressalta que “o papel da mulher é tão importante quanto o do homem na religião, porque, para a espiritualidade, somos pontos de luz, sem gênero”. Especialistas em amor e relacionamentos, as Pombagiras são espíritos de mulheres que, fugindo do padrão machista da sociedade, levavam uma vida independente. É uma entidade que carrega histórias de sofrimento, evolui no plano astral e, mais tarde, volta para ajudar os encarnados. Mesmo sendo mais aberta com relação a questões de gênero, alguns médiuns homens apresentam dificuldade em incorporar entidades femininas. Para Caroline, o machismo trazido de fora, assim como qualquer outro tipo de preconceito, afeta a ação da mediunidade. “Não estamos livres do preconceito enraizado na sociedade. Muitos homens têm dificuldade em incorporar uma Pombagira, por exemplo, porque ela vem com trejeitos femininos, e o machismo que existe lá no fundo de cada um deles bloqueia essa manifestação”. Ela também afirma que é comum as próprias entidades explicarem que não há problemas na incorporação de espíritos do sexo oposto, já que todos são energias e têm algo a acrescentar. A inclusão sempre fez parte da realidade umbandista. Ao trazer a Umbanda do plano espiritual para o plano terrestre, o Caboclo das Sete Encruzilhadas disse: “Independente daquilo que haja sido em vida, todos serão ouvidos. Nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos àqueles que souberem menos. A nenhum viraremos as costas, nem diremos não, pois esta é a vontade do Pai”.

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Fé fora do armário

Igreja Cristã Contemporânea de Campo Grande surge como alternativa para pessoas lGBT+ evangélicas

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Por: Isabella Barros e Thallys Braga

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Foto: Isabella Barros

frente do prédio estava deserta. Alguns pedestres passavam pela calçada, mas ninguém se aproximava da porta iluminada. Caminhei até a entrada e avistei, no final de um lance de escadas, a placa com mensagem de boasvindas. Subi os vinte e cinco degraus e me vi diante de uma porta estampada com desenhos de nuvens. Não tinha mais dúvidas, as portas do céu só poderiam me levar a uma igreja. Do lado de dentro, por entre os vidros transparentes, um senhor pequeno, de óculos arredondados, percebeu o meu receio e abriu a porta. O som, antes abafado, se expandiu. Me acomodei em uma fileira distante do altar, numa tentativa ingênua de não chamar atenção. Uma senhora se aproximou, segurou forte minhas mãos e, seguindo seu exemplo, fechei os olhos. As primeiras lágrimas escorreram. Era difícil acreditar no que estava acontecendo: uma mulher transexual orava por mim, enquanto um pastor abertamente gay pregava para um grupo de fiéis composto por todas as letras da sigla LGBTQ+. Foi a primeira vez que visitei a Igreja Cristã Contemporânea (ICC) de Campo Grande. Há 10 anos, a instituição se propõe a “levar o amor de Deus a todos” no bairro, sem distinguir os fiéis. Ela tem cerca de 150 membros distribuídos em sete unidades só no Rio de Janeiro.


Gênero e Sexualidade Foto: Isabella Barros

O culto é comandado pelo pastor Antônio Otávio, de 39 anos. Ele começou cedo na prática cristã: aos 17, alcançou o maior cargo da Igreja Universal do Reino de Deus, em Surubim, cidade do agreste de Pernambuco, onde nasceu. Lá, aprendeu que a bíblia condenava a homossexualidade, uma ideia que permaneceu por muito tempo em seu imaginário. Quando visitou o Rio de Janeiro pela primeira vez, um amigo falou sobre a Contemporânea, mas Otávio achava impossível que a palavra sagrada pudesse ser usada em uma “igreja gay”. Ao tomar coragem e visitar o primeiro endereço da Contemporânea, na Lapa, se identificou com o homem que o recepcionou. A empatia e a amizade o motivaram a voltar até se tornar fiel, meses depois. A Lapa foi o primeiro endereço da Contemporânea. Fundada em 2006, por Marcos Gladstone, o grupo era adepto da teologia inclusiva — linhagem do cristianismo que propaga o amor de Deus a todas as pessoas, independente de orientações sexuais e identidades de gênero. Gladstone conheceu o modelo na Metropolitan Comunity Churches, grupo evangélico norte-americano com filial no Rio. No entanto, ele não concordava com algumas regras da igreja, como tolerar relações sexuais entre pessoas que não são casadas. Gladstone decidiu elaborar suas próprias regras e criou a Contemporânea.

As regras do outro lado da porta

No YouTube, o fundador da ICC dá conselhos para os seguidores. Em alguns vídeos, afirma que “relações sexuais sem compromisso” e “relacionamentos sem perspectiva de futuro” podem afastar os fiéis da plenitude. O pastor Otávio, da filial de Campo Grande, explica que a única diferença entre a ICC e as igrejas tradicionais é o entendimento de que a bíblia não condena ninguém pela diversidade sexual e de gênero. Fora isso, é semelhante às outras, com forte discurso de busca da salvação. Durante o culto, o pastor alertou os fiéis para terem “cuidado com o que andam vendo na internet e fazendo quando estão sozinhos”. Os novos membros chegam com diversas dúvidas sobre o funcionamento da igreja. Otávio diz que eles buscam na bíblia respostas para temas como aceitação e sexualidade. Para auxiliar os fiéis, a igreja criou o Instituto de Desenvolvimento Espiritual, um curso que ajuda a esclarecer as dúvidas. Mas o pastor não deixa de falar sobre esses temas no altar. Numa noite de novembro, o templo se encheu com gritos de “aleluia”, “gloria a Deus” e até um inusitado “ai, que tudo!” quando Otávio disse: “Se antes te disseram que você não poderia exercer um cargo na igreja, agora você tem um lugar que te aceita como você é!”.

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Nas gavetas, preconceito e repressão

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Esse modelo de acolhimento, que mais parece um paraíso gay-friendly, ainda é exceção no Brasil. No Rio, além da Igreja Cristã Contemporânea, apenas a Igreja da Comunidade Metropolitana, a Comunidade Cristã Nova Esperança e a Cidade de Refúgio aderem à teologia inclusiva. Dentro da maioria das igrejas evangélicas do país, homossexuais e transexuais são excluídos e tratados como vítimas de possessão ou de doenças psíquicas. Em alguns casos, enfrentam as traumatizantes “terapias de reversão”. Campo Grande é o bairro mais populoso do Brasil, de acordo com o Censo 2010, mas não há dados sobre violência contra pessoas LGBT+. Para tentar entender como o preconceito se manifesta nas igrejas da região, a reportagem criou a pesquisa “Religiosidade e comunidade LGBT+”. O formulário com perguntas ficou no ar durante uma semana e recebeu mais de cinquenta respostas. Uma das oito perguntas permitia que, caso o colaborador tivesse sofrido intimidação dentro de algum espaço religioso, a descrevesse. Apenas uma resposta dizia respeito à uma família católica que tentou converter uma menina assexual em freira. Todos os demais casos estavam relacionados a igrejas evangélicas. Um dos entrevistados lembrou das “piadinhas e fofocas” relacionadas à sua sexualidade. Outro contou que foi “repreendido por trejeitos e proibido de usar roupas muito coloridas”, além de ter ouvido “pregações sobre a sodomia que pareciam direcionadas”. Mas a maioria dos relatos veio de pessoas bissexuais, lésbicas e gays que foram encaminhadas pela família a igrejas evangélicas para obterem cura. “Sofri por um ano achando que Deus me odiava e que eu estava errada, mas alguma hora ele iria me curar. Todos os dias, uma líder me mandava mensagem para ter certeza que eu não havia tido uma recaída. Foi assim até eu sair da igreja e nunca mais voltar. Essa rejeição por quem eu sou só melhorou depois que fiz terapia”.

Eu aprendi a vida toda que a bíblia condenava a

homoafetividade

As marcas da violência também estão na história de Marcos, um homem transexual que frequenta a Igreja Cristã Contemporânea. Em 27 de outubro de 2019, presenciei Marcos subir ao altar com seu novo registro civil em mãos. Ele acabara de conquistar seu nome social masculino e comemorou junto com a igreja o “dia em que nasceu de novo”. Criado em uma Igreja Adventista do Sétimo Dia, Marcos se viu num impasse quando, aos 15 anos, ainda sem ter se descoberto transexual, percebeu que sentia atração por mulheres. Nesse período, Marcos conta: “vivia procurando o demônio que morava em mim”. Foi assim que se sentiu até que Ursula, com quem é casado hoje, entrou na sua história. Os dois se conheceram e se apaixonaram dentro da Igreja Adventista, mas o amor que cultivaram aumentou junto com o conflito que sentiam por causa da sua sexualidade. Sem outra opção, o casal se afastou. Depois de recusar diversos convites de amigos, decidiram visitar a Contemporânea. “eu vi pessoas com uma vida espiritual muito mais estruturada que a minha, fiquei assustada”, conta Ursula. Além de descobrirem que podiam praticar a fé sem abdicar do amor, Marcos descobriu ser transexual. Um homem e uma mulher trans, fiéis da igreja, o ajudaram a compreender a própria identidade de gênero.


As forças que mantêm as portas abertas

Foto: Thallys Braga

Gênero e Sexualidade

Marcos escolheu seu nome porque significa guerreiro, adjetivo que tomou para si depois de enfrentar as lutas travadas contra o preconceito. Conheci uma história semelhante à sua no centro da capital carioca, a duas horas e meia de viagem da Contemporânea. A psicóloga Cris Serra coordena a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ e milita para que pessoas como Marcos possam conciliar a fé com suas identidades. Em agosto deste ano, lançou o livro “Viemos Para Comungar: os Grupos de Católicos LGBT+ Brasileiros e Suas Estratégias de Permanência na Igreja”. Além dos evangélicos, membros da comunidade católica também se articulam a favor da diversidade sexual. “Há pessoas que foram criadas e têm família dentro de igrejas luteranas, católicas, e que começaram a se unir para buscar uma inclusão e cidadania das pessoas LGBT+”. A diferença entre o protestantismo e o catolicismo é que no segundo eles não criam igrejas, mas movimentos dentro das paróquias e catedrais. Tem quem apoie e incentive, mas também quem acredite que eles representam a encarnação da chamada “ideologia de gênero”. Esse discurso conservador, que é usado para disseminar a homotransfobia (preconceito contra homossexuais e transexuais) tem sido “o maior desafio para os movimentos pela diversidade”, disse Cris. Sobre como as igrejas evangélicas inclusivas e os grupos católicos pela diversidade colaboram para essa luta, Cris levou um tempo até elaborar a resposta: “Só por existir, nós quebramos a ideia de que a igreja é uma coisa só, homogênea, que representa algumas pessoas e outras não. A igreja é todo mundo, é a comunidade. É a pessoa que, mesmo a sociedade tentando tornar invisível, insiste em existir e praticar a fé”. As palavras de Serra descrevem as pessoas simpáticas e acolhedoras da Igreja Contemporânea de Campo Grande. Suas histórias têm marcas do fundamentalismo, mas seus olhares carregam esperança e

ansiedade pelo amanhã. Sentado em seu escritório, numa pequena sala ao fundo do templo, o pastor Otávio me contou seus planos para o futuro: levar o evangelho inclusivo para Pernambuco e ajudar outros jovens LGBT+ a praticarem sua fé.

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Duas mãos à obra

Repórteres evangélicos participam de ação social espírita

Por: Luiz Lanzieri, Igor Arruda e Sebasthian Judah

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aridade é doar-se de corpo e alma em prol do bem alheio. De acordo com os ensinamentos bíblicos de amor e na busca por evolução espiritual, os membros do Legada (Lar Espírita Guia Aprendizes do Amor) atuam, em forma de caridade, ajudando a comunidade ao seu redor. Segundo Francisco Lima, 64 anos — engenheiro civil que já prestou serviços estruturais para a casa —, o espiritismo é uma religião cristã como todas as outras, que trabalha com a caridade de acordo com os ensinamentos de Jesus sobre o amor ao próximo. “Somos todos espíritos com uma missão na terra. O espiritismo também fala de salvação, mas a gente só se aproxima de Jesus e dos seus ensinamentos por meio da caridade”. Conhecer o trabalho social do espiritismo kardecista foi um desafio para um cristão de denominação evangélica. Entre as atividades realizadas na casa está o acolhimento: receber as crianças de famílias carentes no espaço do Legada, oferecer café da manhã completo e atividades recreativas tendo por base “O Evangelho segundo o espiritismo”. Os voluntários também levam e buscam no endereço as crianças e suas famílias. Além disso, o trabalho tem o objetivo evangelístico de convidar as pessoas, através da ação social, a frequentar o lar espírita. E, por meio disso, alcançar elevação espiritual. É possível perceber que, segundo a crença do kardecismo, com a ação social, o espírita está alcançando um grau a mais de espiritualidade. Isso se reverte em bem-estar tanto para quem doa quanto para quem recebe a ajuda. Os centros espíritas não desempenham apenas o papel de local de reunião e orientação

religiosa. De fato, eles enxergam problemas e alcançam pessoas que são negligenciadas pelo Estado. Ao visitar o Legada, pudemos observar a fraternidade entre os seus membros e desses com os que chegam ali. O espaço está passando por reformas para atender melhor seus frequentadores, especialmente as crianças. A intenção da casa é oferecer aulas de música, sessões de fonoaudiologia, acompanhamento psicológico e salas de recreação por idade. É preciso manter as portas abertas, mas o trabalho precisa crescer. “Tudo voltado para as crianças e adolescentes membros. Então aqueles que participarem terão todo o apoio necessário aqui”, explica o presidente da Casa, que não quis que seu nome fosse divulgado. Ele complementa dizendo que o Legada tem uma atenção especial com as crianças deficientes, o que compreendi como uma ação social totalmente diferente e solidária. “Só que as salas ainda precisam de voluntários para ensinar”, acrescenta. Faz lembrar uma passagem bíblica: “Na verdade, a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”. O espiritismo é frequentemente confundido com outras religiões, principalmente com a umbanda e o candomblé. Por falta de informação, o espírita acaba por sofrer preconceito semelhante. A partir disso, a sua comunidade é muito fechada para contato exterior, como, por exemplo, esse trabalho de reportagem. Esse fato contribuiu para a resistência por parte de muitos personagens aqui citados, principalmente do então presidente do Legada, em não concordar com a nossa proposta de gravação da entrevista. Essa desconfiança com a mídia dá-se, segundo o próprio, pelo trauma causado em um episódio ocorrido com Chico Xavier, em 1944, envolvendo dois repórteres que, na época, teriam o enganado.


Foto: Igor Arruda

Caridade é doar-se de corpo e alma em prol do bem alheio

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Foto: Igor Arruda

A peregrinação

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Observar e experimentar uma iniciativa solidária dentro de um campo religioso tão diferente do que estamos acostumados foi um desafio. Permissão concedida, resta pegar a câmera e aproveitar. Mas a participação, ajudando no trabalho, é fundamental para nos aprofundarmos na experiência. Ciente que eu também estava querendo contribuir com a obra, o responsável do dia, César, trata de explicar como é o trabalho: a peregrinação é parte de uma iniciativa do Legada que ajuda famílias carentes, principalmente com crianças deficientes e idosos, levando a codificação espírita para breves reuniões e também doando pão e leite. A distribuição é contada, por isso, as famílias alcançadas são cadastradas em um registro interno da direção do lar. “A gente ajuda, mas tem que ser até a pessoa ter condições para se levantar e voltar a caminhar de novo na vida”, reforça César. Os voluntários são empenhados em chamar a atenção das pessoas para “algo maior”, ou seja, para convencê-los a buscar a religião por seu próprio interesse. Além da entrega de pães e leite, há sempre uma reunião para meditar sobre “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Nosso engajamento na ação começa ao visitar uma senhora de meia idade e um jovem. Registro

o momento em fotos, mas opto por não entrevistar. Mesmo através de gestos simples, é muito gratificante ajudar alguém. A ação social inclui se envolver com a história de cada um. É o caso de Vera, que mostra o valor dessa ajuda oferecida na prática. “Sou muito grata pelo amor e carinho que o Legada tem, principalmente pelas minhas crianças (dois netos). Quer dizer, tem 10 anos que me ajudam, né? Todos os domingos sou fiel lá”, diz Vera, avó de Maurício, adolescente portador de necessidades especiais. Para ela, a ajuda é muito importante. “Ah! No início eu estava no chão. Tinha perdido minha nora, mãe do Maurício, então eu estava no chão quando fui para lá (lar espírita). Hoje eu tô lá em cima graças a Deus”.

Sem caridade não há solução Existe um ciclo que precisa ser fechado para que haja evolução espiritual. A religião espírita nos revela que existe uma recompensa em valorizar a vida do outro, e que será entregue a cada um que se dedicar a isso.


Assistência Social “A caridade não tem um significado distinto entre as religiões. É a mesma para espíritas, católicos e protestantes. Significa se doar em prol do outro, fazer ao próximo aquilo que gostaria que fizessem a você”, explica Marcus Vinicius Pacheco Augusto, 62 anos, médium do Centro Espírita Casa de Miguel, em Bangu. É este, segundo ele, o caminho da evolução. “Porque existe um dito que é assim: ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, não é? Quando você está num grau de evolução bem grande, você não pensa assim. Muitas vezes você sacrifica o que é seu em prol do outro […]” No sentido mais amplo da palavra, a caridade, como uma ação social, vai muito além de oferecer um alimento a quem precisa. Afinal, existem pessoas que sentem fome e sede na alma. Pessoas que estão precisando de um ouvido amigo, um abraço apertado, um lugar para se sentir acolhido. A peregrinação e as outras iniciativas do lar não são obrigação para ninguém. Quando um membro da casa vê alguém precisando e se coloca no lugar da pessoa, faz o que pode ser feito. E, por experiência própria, a conclusão em que chegamos é que a pessoa que dá é recompensada com algo muito maior que pão e leite. A alegria pessoal, íntima e profunda por saber que está desenvolvendo sua humanidade ao fazer o bem. Encerramos a peregrinação, que durou

pouco mais de duas horas, satisfeitos, lembrando as palavras de Jesus: “mais bem-aventurada coisa é dar do que receber”.

Observar uma iniciativa solidária dentro de um campo religioso tão diferente do que estamos acostumados foi um desafio Foto: Igor Arruda

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Foto: Vivian Bonaço

Entre o evangelho e a constituição

Os conflitos entre Bancada evangélica política e religião no Descriminalização do aborto, regulamencontexto brasileiro tação da união civil homoafetiva e pesquisas com

A

Por: Matheus Machado, Stephanie Vitorino e Vivian Bonaço

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relação entre religião e política torna-se conflituosa quando a política segmenta a religião ou vice-versa.. Forma-se “um híbrido problemático para o nosso tempo”, afirma o líder evangélico Lucas Castor, da Capelania da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Essa combinação resulta numa espécie de ‘política religiosa’. O partidarismo é o principal ponto de atuação problemático da bancada evangélica, que, para o capelão, resume todas as outras ações da frente parlamentar. “Eu posso ser um cristão na política, mas não posso usar isso como bandeira. Quando alguém se beneficia de uma imagem, coloca muito em risco seu conteúdo”, diz.

células-tronco são alguns dos temas emblemáticos sobre os quais os membros da bancada atuam de forma coordenada, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Fundada em 2003, a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, ou simplesmente ‘bancada evangélica’, é composta por políticos que se autodeclaram evangélicos e são membros de partidos políticos distintos. Os primeiros parlamentares evangélicos foram eleitos em 1986, quando pastores da Assembleia de Deus se mobilizaram em função dos boatos de que a Igreja Católica pretendia aprovar na Constituinte - promulgada em 1988 - um projeto que tornava o catolicismo a religião oficial e única do país. Apesar de sua existência, uma significativa parcela dos que exercem a fé evangélica não


Política se considera representada pela bancada. Segundo Lucas Castor, a bancada atua a favor apenas do grupo evangélico, o que, para ele, vai contra a mensagem de Jesus Cristo. “Isso nunca foi o intuito de Jesus nos evangelhos, nunca foi o intuito da palavra de Deus trazer o cunho político para a vida daquele que crê. Vivemos num tempo de uma fé politizada”, enfatiza o pastor. Uma pesquisa realizada por professores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apontou que 76% dos participantes da 25ª Marcha para Jesus, realizada em 2017, não se identificavam com as lideranças da bancada evangélica e com suas propostas, como as reformas trabalhista e previdenciária aprovadas naquele ano. Para o estudante de Engenharia Florestal, Emerson de Oliveira, “a bancada evangélica se responsabiliza por analisar o conteúdo que será transmitido para o povo”. Desse modo, um dos papéis da bancada evangélica seria o controle do que deve ser passado para os fiéis. Emerson atua como colaborador em projetos sociais da Igreja Evangélica Voz que Clama no Deserto, localizada na Vila Kennedy. Um deles é o Salvai Alguns Arrebatando-os do Fogo (Saaf), que trabalha com crianças de baixa renda da comunidade, oferecendo reforço escolar e atividades que estimulam a interação e a expressão em manifestações culturais. Emerson defende uma censura à arte para proteger a próxima geração: “Por que não usar a religião para isso? Eu acredito no bem, então, a minha política vai ser o bem”.

Protestantismo e eleições

O número de protestantes no Brasil cresceu 61% em 10 anos, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2010. Esse índice representa para a bancada da bíblia potenciais eleitores. A bancada evangélica no Congresso é a terceira maior em número de parlamentares. 195 deputados eleitos no ano de 2018 - em exercício ou licenciados - são signatários da Frente na Câmara; no Senado, o número chega a 8. O sociólogo Glaycon Couto afirma que “as pautas da bancada evangélica atrapalham o progresso do Brasil em diversos sentidos”. Seu avanço é antiético com a política, “por causa da laicidade do Estado e fere a Constituição”. Ele propõe que, apesar dessa relação ser indissociável, uma forma de tornar essa conexão justa é trazer outras crenças ao meio político. “Imagino que a melhor forma da religião ser inserida na política é através da democratização do espaço, com acesso para a Umbanda, para o Candomblé e diversas outras religiões. Não apenas a católica e evangélica como majoritárias”.

Para Couto, ter uma bancada identificada como religiosa no Parlamento, com grande poder de decisão em assuntos de interesse comum, reflete na perda de conquistas dos movimentos sociais como o travamento de discussões a respeito da descriminalização do aborto. Couto, cristão protestante, apoia movimentos evangélicos que defendem a legalização da prática, hoje tolerada apenas em casos de estupro, de risco à vida da mãe ou por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, a bancada evangélica quer tornar crime hediondo “o aborto provocado pela gestante, ou por terceiros, com o seu consentimento”, segundo o Projeto de Lei 4.703, do ano de 1998.

O conservadorismo como tática política

O cientista político Darlan Montenegro, especialista em democracia e partidos de esquerda, afirma que a tradição do pensamento católico e evangélico que, há anos, demonstra conservadorismo em relação a alguns padrões de comportamento, passa por transformações desde a década de 1960. “Mudanças foram introduzidas por várias razões, e algumas têm a ver com a massificação de padrões que vêm de fora do Brasil. Por outro lado, há também a introdução de movimentos sociais conscientes como os LGBTQI e feministas”, completa. Políticas que reconhecem padrões de comportamento sexual tidos como “não tradicionais” foram criadas durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), afirma o cientista político. No entanto, durante os mandatos dos petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, houve ações políticas mais concretas em defesa dos direitos das mulheres e outras pautas de minorias. Para ele, a representação fascista de Bolsonaro tem afinidade com o discurso conservador no plano moral, mas isso não necessariamente caminha junto com esse público. Já os governos petistas mantinham uma boa relação com parte da ala progressista da Igreja Católica, segundo o pesquisador. Montenegro reitera que a partir do desgosto da população com o Partido dos Trabalhadores (PT), houve uma convergência entre os costumes, concretizados na forma de atuação do governo Bolsonaro, e a moral sexual, utilizada sistematicamente para mobilizar o público. Resulta-se, assim, o discurso fascista que combina conservadorismo familiar e autoritarismo político.

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03.2021 | Ano 5 - 6ª Edição


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