SEVILHA Uma cidade com cheiro de pomar A cidade que o poeta João Cabral de Melo Neto considerava sua casa é ideal para ser percorrida a pé, com atenção aos seus detalhes centenários TEXTO Ricardo Viel FOTOS Téo Pitella
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Viagem
Quem não viu Sevilha não viu maravilha, diz um ditado popular andaluz. João Cabral de Melo Neto não só a viu, como por ela se apaixonou. O poeta pernambucano morou na capital da Andaluzia em duas oportunidades – nos anos 1950 e 1960 – e dedicou o livro Sevilha andando, além de outros muitos poemas, à cidade e sua gente. Chegou a dizer que, se não tivesse nascido no Recife, queria ter nascido em Sevilha. “A paisagem espanhola, o homem espanhol, a literatura espanhola, todas as manifestações culturais da Espanha me abalam profundamente”, afirmou o poeta, que também viveu em Madri e Barcelona. Mas foi na cidade do Sul da Espanha onde ele se encontrou. Ali fez morada, e a levou consigo até o final da vida (“Tenho Sevilha em minha casa (...) É Sevilha em mim, minha sala/ Sevilha e tudo o que ela afia”). Mas o que foi que encantou tanto um homem tão viajado, que durante
décadas trabalhou como diplomata e conheceu os quatro cantos do mundo? Na tentativa de responder essa pergunta viajei a Sevilha, com a ideia de percorrer os lugares por onde passou o escritor, falecido em 1999. Descobri não apenas que é fácil se maravilhar com a cidade, como é possível criar uma para si, como fez Cabral. Para isso é imprescindível andar, muito. Andar para se perder e assim encontrar (-se). O grande poeta sevilhano Antonio Machado (1875 – 1939) dizia que o caminho se faz ao andar (“caminante no hay camino/ se hace el camino al andar”). Pois andar sem mapa, guiado pelo extinto, pelos sons e pela intuição, é uma boa maneira de percorrer Sevilha, de construir caminhos para no futuro tê-los como recordação (“Diversas coisas se alinham na memória/ numa prateleira com o rótulo: Sevilha”, escreveu o poeta pernambucano).
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Em Sevilha, é preciso estar com os sentidos em riste, dizia Cabral (“Sentidos que nem se sabia/ antes de andá-la, que existiam”). Quem seguir o conselho perceberá que a cidade tem um cheiro próprio. As laranjeiras, que dão enormes e amargos frutos, estão espalhadas por toda a cidade, e a perfumam. Perfume que instigou João Cabral a apelidar Sevilha de “a cidade cítrica”. Na terra andaluza é fundamental andar com porte de toureiro, cabeça alta para descobrir os detalhes das construções centenárias, da arquitetura
mourisca, fruto dos muitos séculos em que os árabes dominaram a região. As sacadas coloridas decoram as ruas estreitas, feitas à medida do sevilhano, como poetizou Cabral. E a imponente Giralda, a torre do campanário da gigantesca catedral, serve de bússola para o viajante, porque pode ser vista e admirada de qualquer lugar. Sevilha tem vários sons. O som de água das fontes árabes que decoram as dezenas de praças e pátios. Do trote dos cavalos que puxam as charretes turísticas. O som dos guitarristas
flamencos tocando sua arte por algumas moedas. Vi, às três da tarde, um cantador exibir-se a palo seco (sem guitarra). Ia de um lado ao outro da calçada, caminhando, batendo palma e cantando, dignamente, seu lamento. Expunha-se. E quem é de Sevilha diz que, se bem procurado, encontra-se, perdido em uma da estreitas ruas, o silêncio.
PÁTIOS, JARDINS, BECOS
Sevilha está cortada por um rio, o Guadalquivir. A cidade mais antiga e interessante está num raio que
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contempla três pontes. Com um compasso mental, o visitante traça o meio círculo com a ponta seca na ponte San Telmo, e extremos na Isabel II e na De Los Remedios. Dentro da área criada está a Sevilha a ser explorada. O próximo passo é andar, tendo sempre como referência o rio, mas sem preocupar-se muito com rota. Perder-se até chegar à impressionante Plaza de España, construída para a Exposição Iberoamericana de 1929; para encontrar o palácio Real de Alcázar, uma construção com mais de mil anos de história,
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Viagem perfeitamente conservada, e cujos jardins e muralhas são uma preciosidade. E, logo ao lado, descobrir o Arquivo das Índias, edifício levantado no século 16 e que hoje guarda os principais documentos referentes à conquista espanhola da América. Navegar pelas ruas estreitas (“a cidade mais bem cortada/ que veste o homem sob medida”) para sair em plazoletas, pátios, jardins e becos. Lugares cheios de histórias, mistérios e lendas (como as de Don Juan, nascida em uma dessas ruelas). Vagar até deparar-se com a praça de touros da Maestranza, onde Manolete (“o toureiro mais deserto/ mais agudo /mais
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visceral e desperto”) teve tardes memoráveis. Nos arredores estão os bares onde os aficionados (os fãs das touradas) passam horas discutindo sobre o assunto. Cabral, em sua época sevilhana, era um deles. E chegar à Plaza de la Encarnación, que sofreu uma remodelação na década passada e ganhou uma imponente construção apelidada de Parasol (guardasol) – de lá do alto há uma vista privilegiada. No fim de tarde, entre as pessoas que se exercitam ou os que simplesmente relaxam na beira do Guadalquivir, vale a pena sentar-se e deixar o tempo passar; e assistir à cidade mudar de cor. E de noite, na outra beira do rio,
na rua Betis, conhecer as discotecas e os lugares de flamenco. A noite sevilhana é tão famosa quanto suas laranjeiras.
A RUA DO POETA
João Cabral escolheu uma rua para ser sua. A Calle Sierpes, que segue pela parte antiga da cidade – toda ela fechada para os carros –, era onde o poeta, em suas palavras, navegava. De uma ponta a outra são 500 metros, serpenteando (por isso o nome da rua) a zona antiga. O bar La Campana, fundado em 1885, segue na esquina. Lá João Cabral tomava sua caña (um chope), ou café, e cruzava até o outro extremo, onde estacionava para uma nova rodada. Los Corales, o ponto final da rota cabralina, já não existe como tal. Nesse bar, vestido com seu impecável terno branco de linho, o poeta participava das tertúlias com toureiros. Falava-se dos touros e das sevilhanas. Foi ali que conheceu Juan Belmonte,
Dita nis se re voluptus vero omni vid quasit est, tempore mporem re elia net ut ut quodi doluptatio. Rum verciet voluptium ist, um dos maiores matadores de touros da história, a quem dedicou um poema (“Por amor de moça mocinha/ que o recusara e às suas quintas/ mostrou que enfim era era o mais forte/ suicidou-se, mandou na morte (...) convocou-a, mas quando quis”). Entre os dois extremos da Sierpes está o Círculo de Labradores, um clube da elite sevilhana, frequentado por fazendeiros e, por tradição, pelos cônsules. Ali o poeta se sentava para ler o jornal e ver o movimento. O porteiro, que há 37 anos trabalha no lugar, conta
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que muita coisa mudou desde a época do cônsul Cabral de Melo Neto. Já não é mais obrigatório o uso de gravata no clube, já quase ninguém usa chapéu e os pequenos comércios da rua, onde se vendia e compravam sacas e animais, deram lugar às lojas de grife. Mas o gentio continua a passar pela rua, e as belas mozas seguem chamando a atenção dos señoritos. Como João Cabral, o visitante pode escolher uma calle e navegar por ela, descobri-la, conquistá-la. Estacionar num bar para tomar uma caña de pé no balcão e comer uma tapa (petisco). Para saber onde aportar, a dica é simples: evite os lugares com muitos turistas, os garçons na calçada que convidam a entrar, e aposte nos locais pequenos, meio escondidos, que estejam cheios de espanhóis – quanto mais alta for a conversa, melhor. Assim cheguei ao Las Columnas, um típico bar de tapas espanhol, com ótima
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Viagem tortilla de camarón e onde o mesero, depois de atender, escreve com giz no balcão o valor da conta. Seguindo o barulho e guiado pela sorte, acabei no Casa Matias, um bar de flamenco nada turístico, onde quem canta são amadores amantes da música. Entre capas e roupas de toureiros, imagens religiosas, um violão assinado por Paco de Lucía e uma cabeça de touro presa na parede, sevilhanos de todas as idades se espremem para beber, dançar e cantar. No final de sua vida, João Cabral perdeu a visão e a vontade de viver. Mesmo assim guardava na memória as imagens da cidade “mais encantadora da Espanha” e dizia que, mesmo cego, era capaz de percorrê-la, tão vivas eram suas lembranças. Sevilha foi sua casa, seu barco e seu porto. A “cidade feminina”, aconchego de mulher, marcou tanto o poeta que o levou a deixar gravado em verso seu desejo de que o mundo fosse “sevilhizado”, de que a terra se tornasse uma enorme Sevilha. Quem visita a cidade consegue entendêlo.
UMA SEVILHA PARA POUCOS Há a Semana Santa, e há as Feiras de Abril, mas é possível que o mais típico de Sevilha seja algo bem menos turístico: os corrales de vecinos. São construções populares onde viviam milhares de famílias e que tinham como principal característica o fato de terem uma enorme fonte e um poço coletivo no centro. Ao redor deles se construíam as casas, iguais, para que todas as portas e janelas dessem para o pátio central. Esse tipo de moradia teve início no século 16 e, nas últimas décadas, com a modernização da cidade, foi desaparecendo. João Cabral dedicou um poema aos corrales, e nele descreve a convivência entre os músicos decadentes, os assistentes de toureiros aposentados (e cheios de cicatrizes), as comadres fofoqueiras e os meninos que sonham em ser matador. Conta dos bate-bocas e brigas, que depois terminam em abraços, da religiosidade dos moradores, e do cotidiano. Dos poucos corrales que restaram, alguns foram recuperados pela prefeitura
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após serem declarados bem de interesse cultural. Hoje quem vive em um coletivo desses já não é necessariamente a camada mais baixa da população e nem famílias numerosas. São artistas, estudantes estrangeiros e jovens descolados que buscam esse tipo de moradia pequena, mas agradável. A obrigatória proximidade faz com que todos se conheçam e cria um ambiente pouco comum nos dias atuais, propício a festas e à amizade. E no verão, quando é impossível dormir de tanto calor, o pátio comum, com suas enormes fontes e árvores, é lugar de refresco e conversas. Embora não sejam “visitáveis” por turistas, existe a opção de se hospedar em um corral. Custam o preço de um hotel simples e são mais charmosos. Há anúncios na internet para estância de curta temporada. A pedagoga Paloma Cano, 35, é de Granada e mora em Sevilha desde 2009. Há pouco mais de um ano se mudou ao Corral del Conde, um dos mais míticos da cidade. Não pretende sair tão logo. “Cada vez que eu abro o portão e me deparo com o pátio, agradeço e digo para mim mesma: bem-vinda à república independente da sua casa. Aqui é impossível não ser feliz”, diz, com um sorriso no rosto.