REVISTA DA AMARN | ANO XI Nยบ 14 | DEZEMBRO 2016
Justiรงa e esperanรงa
Magistrados do RN contam suas histรณrias em livro do CNJ As redes sociais e os alertas necessรกrios
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CONSELHO EXECUTIVO
EDITORIAL
Parabéns aos juízes brasileiros! O ano de 2016 poderia ficar marcado na história do Judiciário brasileiro como o da esperança e renovação de um país menos corrupto. Nunca tivemos tantas notícias de corrupção e, o destaque, com tantas punições aos seus infratores. Graças, em parte, a atuação de juízes e juízas. Como bem disse a jornalista Lillian Witte Fibe, em artigo publicado em seu blog em novembro passado, “só com o fortalecimento do Poder Judiciário é que as contas públicas vão parar de sangrar”. Em matéria de capa, a Ritos traz uma reportagem especial sobre a importância da justiça como aliada no combate à corrupção. Importante aliada para que possamos ter nossa esperança renovada de que a impunidade um dia deixará de existir. Através da colaboração dos juízes Raimundo Carlyle, Guilherme Pinto e José Armando Pontes, fizemos um relato de casos comuns envolvendo corrupção no Rio Grande do Norte e os resultados, do trabalho da justiça, para a sociedade. Nesta edição, você vai ver ainda os textos os juízes Marcus Vinícius Pereira Júnior e Paulo Maia, das juízas Hadja Rayanne de Alencar e Virgínia Rêgo e do desembargador Saraiva Sobrinho no livro “A justiça além dos autos” da ministra Nancy Andrigui, contando casos ocorridos no judiciário potiguar. Além de artigos sobre as redes sociais; sua importância e perigos; temos ainda uma reportagem mostrando o trabalho da juíza Welma Medeiros, de Mossoró, que atua também como
Juiz Cleofas Coelho de Araújo Júnior presidente Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Vice-presidente institucional Juíza Érika de Paiva Duarte Tinoco Vice-presidente administrativo Juiz Odinei Wilson Draeger Vice-presidente financeiro Juíza Karyne Chagas de Mendonça Brandão Vice-presidente de Comunicação Juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior Vice-presidente cultural Juiz Jorge Carlos Meira Silva Vice-presidente Social Juiz Gustavo Henrique Silveira Silva Vice-presidente dos esportes Juíza Maria Soledade de Araújo Fernandes Vice-presidente dos aposentados Juiz Breno Valério Fausto de Medeiros Vice-presidente da região Oeste Juíza Marina Melo Martins coordenadora da Região Seridó
contos sobre algumas reminiscências de um juiz de Direito e o
Juiz Agenor Fernandes da Rocha Filho Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Juiz Felipe Luiz Machado Barros Juiz João Afonso de Morais Pordeus Juíza Leila Nunes de Sá Pereira Juiz Luiz Alberto Dantas Filho Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues Juiz Marcelo Pinto Varella Juiz Raimundo Carlyle de Oliveira Costa Editora executiva Adalgisa Emídia DRT/RN 784 PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Terceirize Editora - (84) 3211.5075 terceirize@terceirize.com
ARTIGO As redes sociais e os perigos
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arte
Da leveza à serenidade. A arte da juíza Welma Menezes
FOTOS Elpídio Júnior GRÁFICA Unigráfica
AMARN
uso do nome de Deus em juízo.
Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte Condomínio Empresarial Torre Miguel Seabra Fagundes
A AMARN agradece a colaboração de todos os magistrados e magistradas para a realização de mais uma edição da
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LIVRO
Relato de histórias e casos de justiça
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CONTO Deus seja louvado! Conto do juiz Paulo Sérgio da silva Lima
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ARTIGO A justiça como aliada no combate à corrupção
R. Paulo B. de Góes, 1840 Salas 1002, 1003 e 1004 Candelária - Natal/RN CEP: 59064-460 Telefones: (84) 3206.0942 3206.9132 | 3234.7770
revista Ritos, a de número 14, e deseja a todos um 2017 de muitas felicidades.
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DO RIO GRANDE DO NORTE
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CONSELHO FISCAL
cantora lírica. A Ritos traz ainda, artigos sobre o Judiciário e a segurança;
SUMÁRIO
CNPJ: 08.533.481/0001-02
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HUMANOS E VIRTUAIS Uma crônica do futuro Raimundo Carlyle
Juiz de Direito em Natal/RN, Mestre em Direito (UFCE), MBA em Poder Judiciário (FGV) e autor dos livros Temas de Direito, Desafios ao Direito no Século XXI e A reinvenção do Judiciário. Conselheiro da AMARN
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Não se decepcione se encontrar seus “amigos do Face” no shopping e eles não o reconhecerem. Não se decepcione se os seus “somos amigos do Insta” não lhe dirigirem a palavra no encontro casual no bar. Não se decepcione se verificar no app de controle de followers que muitos dos seus seguidores nunca curtiram uma postagem sua” 6 | RITOS
Vivemos dias terríveis! A mente evoluída não é mais necessária. O cérebro instruído perde para O Culto do Amador. Como disse Bauman, e depois o falecido Eco, as redes sociais vitimaram a boa instrução, o intelecto superior, a filosofia profunda, a sociologia política racional, a Ética... Somos todos “recicláveis” no vaso raso das redes sociais. Argumentos solidificados por milênios de reflexão são destroçados por meio palmo de erudição fundada na novela das 8 da Globo! O refúgio nos livros não conforta mais, os debates sobre temas áridos encontram poucos ecos sofisticados, o abismo entre as 600 páginas de um livro e os 140 caracteres de um tweet tornou-se irrelevante. Hermann Hesse, Aldous Huxley, Ray Bradbury, Arthur C. Clarke… quem são (?), perguntam os estudantes de hoje. De Sigmund Freud só conhecem a expressão “Freud explica!” Kiekegaard parece nome de virose. O caos é o anátema que todos aspiram e expiram nas redes sensoriais perfunctórias. O empobrecimento mental, intelectual, também traz com ele a pobreza material e a ausência de liderança. Chafurdar na privacidade alheia é o hit permanente. Por vezes, desejamos estar errados por não
perceber que esse é o destino dos humanos! As máquinas comandarão no futuro. Os humanos serão desnecessários. É a SkyNet que comandará as letais hordas de aço contra os corpos humanos em fuga. O atual cotidiano humano é uma linha tracejada do futuro para o passado, deslizando pelo presente, com pontos pinçados ao acaso, para constituir um vislumbre pouco alentador do espécime sapiens. Não se trata de pessimismo ou escapismo, e sim de fatos preocupantes que fogem à órbita do que seria humanamente racional. O vazio existencial que tanto se comenta e enche os consultórios dos psicólogos de jovens imaturos e dos coaches de adultos igualmente imaturos não consegue ser preenchido pela existência fácil nas redes sociais. As redes são, sem sombra de dúvidas, geniais ferramentas de comunicação, interatividade criativa coletiva e globalização de notícias, possibilitando a instantaneidade dos fatos da vida cotidiana. Contudo, não conseguem suprir os anseios contidos no âmago da alma, nos mais íntimos recantos indecifráveis do ser, aquilo que chamamos de “o sentido da vida”. Descobrimos cada vez mais cedo que nossas vidas virtuais são intensas, ricas e convulsionadas, mas o mesmo impulso não chega ao cotidiano real, àquela existência física que exige esforços contínuos. Uma letargia parece dominar o corpo físico, prendendo-o às funções mais básicas: comer, dormir, fazer sexo… Pensamos, planejamos, prometemos nos exercitar, executar tarefas, fazer coisas, viajar… Mas as horas passam, o ciclo do dia a dia se repete, não saímos do lugar. Enfim, desenhamos mil ideias, mas ao passarmos o crivo analítico sobre elas, nada resta, nenhuma brota.
Não conseguimos sequer arrumar alguns documentos nas gavetas, ler um livro inteiro no Kindle… As redes nos atraem para dentro de suas teias móveis. Estamos presos na grande teia virtual com muitas aranhas tecendo os fios. Começamos a ler algo com entusiasmo e, de repente, percebemos que já sabemos algo sobre aquilo, já testamos àquela tese, experimentamos àquela prática, ou comparamos uma nova teoria com velhas teses, passando a achar tudo maçante, um “blá, blá, blá” inconsistente. Desistimos. Os assuntos do cotidiano real são transplantados para a vida virtual. Corrupção, desmandos públicos, falta de gestão pública decente e eficiente, educação, segurança e saúde públicas de qualidade. Há crises política e econômica em todos os lugares do mundo. A falência ética aflige a todos. A vida é trocada por um celular roubado. Corpos sarados desfilam nos vídeos postados na grande rede virtual. Outros postam preces, enigmas, filosofias, imagens delicadas, críticas aos políticos, humor negro. Estamos diante de uma sociedade inventada nos jornais, com crises reais e imaginárias que enchem os bolsos de alguns new tycoons. Quando pensamos no global, o cenário é frustrante. É difícil pensar com algum entusiasmo sobre um futuro que, com o atual presente, não promete nada muito promissor. Talvez focar apenas no dia de hoje seja uma estratégia de contenção da desesperança, apesar de ser difícil viver sem metas para o futuro. Na verdade, não seria como se não existissem metas, mas sim algo como estar focado apenas no agora, em sobreviver a atual “onda” de desânimo e frustração. A impressão é que nos roubaram o futuro. A estratégia correta
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talvez seja mesmo: viver cada dia e esperar passar. Precisamos de uma grande paixão pela própria vida para nos sentirmos vivos! A motivação só funciona com desafios. Somos reativos por natureza. Por outro lado, o desejo incessante do ter, traduzido no sistema do consumismo e da acumulação que predomina no nosso mundo, e acarreta toda sorte de desordens sociais, impinge-nos também uma desordem natural na vida. Vivemos em uma sociedade fast food. Tudo tem pressa. E todos com um McSorriso no rosto. O amor tem que ser intenso e rápido. A paixão demora um átimo. A fila deve andar, porque todos somos descartáveis e descartados. Todos seremos processados pelo estilo de vida apocalíptico. As amizades duram um comentário contrário ao nosso pensamento ou um like na foto postada. Somos todos de um partido sem ideologia. Queremos opinar sobre tudo e sobre todos. Ditar as regras sociais. Moralizar e desmoralizar o outro. Até o amor divino só acolhe quem aceita um Salvador. Estamos loucos? Somos como Dom Quixote lutando contra moinhos de vento? Somos Hobbes, uns lobos de nós mesmos? A violência é apenas um reflexo do nosso interior? O consumismo tomou conta do nosso cérebro? Vivemos para trabalhar e consumir? Não temos escolhas? Somos um produto em uma enorme prateleira do supermercado? Temos prazo de validade? Somente 1% da população mundial detém mais dinheiro que os outros 99%. Apenas 62 pessoas detêm mais riqueza que a metade da população do planeta Terra. É o sistema escolhido pela humanidade há 10 mil anos! Nunca produzimos tantos alimentos como hoje. Como é possível morrer
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de fome? A nossa miséria é meramente social? A economia vai bem, desde que as discrepâncias entre ricos e pobres existam? A vaidade tomou conta da nossa alma? Invadiu a fachada das nossas casas? Financiou aquele carro que não podemos pagar? A viagem parcelada em 24 vezes? Ainda somos humanos? Ou apenas produtos de uma loja em liquidação? Quanto ainda valemos? Qual o preço da minha dignidade? A educação é para todos? O que é educação? São mais perguntas do que poderíamos responder em um milênio. Uns têm demais e outros de menos, simples assim. Queremos ir à Marte. Queremos descobrir outros planetas. Desenvolver novas tecnologias, mas somos incapazes de distribuir o que já temos. Queremos paz, mas somos guerra. Olhamos o pobre como um problema do outro. Um problema de Estado. Cada dia que passa usamos mais rótulos para segregar uma sociedade que sempre foi segregada. O cenário é assustador. São centenas de crimes no café da manhã. O jornal sangra. É um genocídio diário. Mas, por hora, bastaria que fossemos humanos. Em um mundo evanescente como o nosso, valem as fagulhas e se desprezam as fogueiras. Ninguém tem o controle de nada... Para manter um pouco de sanidade, um filósofo do cotidiano disse: “Eu estou me encasulando cada vez mais para sofrer menos com a falta de realidade da nossa realidade”. Já se disse que apenas a velhice, a doença e a morte nivelam os humanos. Portanto, não se decepcione se seus “amigos dos grupos” do Whatsapp não comentarem suas mensagens mais inteligentes, criativas e
divertidas. Não se decepcione se os seus “seguidos” não se tornarem seus “seguidores” nas redes sociais. Não se decepcione se seus “amigos virtuais” deixarem de segui-lo sem explicações no Twitter, Facebook, Instagram, Linkedin, Pinterest, Snapchat... Não se decepcione se o app grátis que forneceu seus 10 mil seguidores “verdadeiros” no Insta passar a ser pago na renovação anual. Não se decepcione se encontrar seus “amigos do Face” no shopping e eles não o reconhecerem. Não se decepcione se os seus “somos amigos do Insta” não lhe dirigirem a palavra no encontro casual no bar. Não se decepcione se verificar no app de controle de followers que muitos dos seus seguidores nunca curtiram uma postagem sua. Não se decepcione se as “estatísticas” do Twitter
apontarem que não houve nenhum engajamento ao seu tweet mais perfeito. Não se decepcione se encontrar seus amigos/amigas das redes sociais, que são “malhados, ou sarados, ou bombados, ou saudáveis, ou veganos”, ou tudo isso junto, em um boteco bebendo cerveja e comendo caranguejo. Não se decepcione se “convidar” algum amigo/ amiga das redes sociais para um café e a resposta for o silêncio. Não se decepcione se alguns dos seus “amigos do Snap” não permitirem chats nas suas postagens. Não se decepcione se alguns dos seus “melhores amigos” virtuais sumirem de repente das redes sociais. Não se decepcione com nada disso. Afinal, somos apenas humanos e, inescapavelmente, virtuais!
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A SÍNDROME DE JAKILL E HYDE Por uma utilização ética das mídias sociais
Hadja Rayanne Holanda de Alencar
Juiza de Direito em Natal/RN, ex-presidente da AMARN
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O agir do outro lado de um teclado parece retirar, ou pelo menos, diminuir sensivelmente, a nossa capacidade de alteridade”
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Venho acompanhando com imensa preocupação o clima de beligerância e hostilidade que tomou conta das redes sociais. Declarações sarcásticas, jocosas e pretensamente inteligentes rapidamente evoluem para comentários ofensivos, degradantes e ultrajantes. Recentemente li um post, desses bem incendiários e invasivos, postado por um amigo e colega de profissão. Fiquei boquiaberta. No trato pessoal é uma das pessoas mais gentis e educadas que conheço. Como se os teclados tivessem o condão de transformar gentis Dr Jekill, em monstruosos Mr. Hyde, do romance de Robert Stevenson. Outro amigo postou inocentemente uma viagem paradisíaca com a família. Seguiram-se comentários e posts estarrecedores e agressivos. A internet (que somos todos nós) já arruinou vidas e carreiras, levou a condenações judiciais, estragou amizades e relações, para não falar dos casos graves de cyberbullyng, que pode levar seus objetos (porque perdem a condição de seres humanos) a depressão e até ao suicídio. Essa atuação aparentemente inocente de postar, curtir, e lançar comentários parece ser feita alheia a uma circunstância crucial: os comentários são direcionados a uma pessoa real e as consequências são
também muito reais e ampliadas pelo volume de pessoas que tomam conhecimento da questão, sem falar na perenidade do fato, que se eterniza no tempo. O agir do outro lado de um teclado parece retirar, ou pelo menos, diminuir sensivelmente, a nossa capacidade de alteridade. De reconhecer o outro como um ser assemelhado a nós mesmos: com qualidades e defeitos. E, sobretudo, com capacidade de sentir cada palavra e farpa postada. Dentro de um contexto rápido e um exame superficial, as pessoas parecem ganhar uma feição bidimensional. São anjos ou demônios, julgadas por aquele fato específico, por milhares de pessoas, em sentenças de não mais que 140 caracteres. Esse contexto nos chama a um agir ético no uso da internet: de maneira civilizatória e não predatória. Atenção e cuidado com o que curte e posta. Se os riscos já são grandes para qualquer cidadão, imagine para nós magistrados, pessoas públicas, julgados muito mais duramente pela socie-
dade, em face da profissão que exercemos. Algumas reflexões antes de postar são válidas e sempre atuais. Acredite. Elas vão livrar você de muita dor de cabeça. Antes e postar pense se você quer ser lembrado eternamente por esta declaração. Se ela é engrandecedora, ou, pelo menos, não lhe trará problemas futuros, se for usada de forma descontextualizada. Porque postou não tem jeito. É pra sempre. Muito cuidado também com a segurança. Me impressiona como muitos postam livremente detalhes sobre suas vidas e de seus familiares. Onde estão, o que fazem, onde os filhos estudam. Lembrem que essas informações podem favorecer ações criminosas. Por fim a regra de ouro. Você faria o comentário olho no olho da pessoa a quem ele se dirige? Ou o faria em um auditório com 150 pessoas? Se a resposta for sim, vá em frente. Se for não, não poste: o comentário ou não é adequado ou educado e certamente é indigno de ser compartilhado.
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Varas Cíveis Não Especializadas da Capital colapso iminente
José Conrado Filho
Juiz titular da 1ª Vara Cível da Capital, ex-presidente da AMARN
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O acompanhamento da produtividade dos juízes também é de indubitável relevância, pois, só assim se descobre e corrige pontos fracos do sistema ou fortalece e amplia pontos fortes e boas práticas descortinadas”
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Que a Justiça anda lenta não é novidade, como também não são desconhecidas as razões dessa realidade. É conclusão do Conselho Nacional de Justiça que o primeiro grau de jurisdição se apresenta como o segmento mais sobrecarregado do Judiciário brasileiro, como também o que presta serviços de qualidade acentuadamente inferior à desejada. Por que isso ocorre se o próprio Conselho Nacional de Justiça estabeleceu sistemas anuais de metas? Como se justifica essa falta se o magistrado de primeiro grau, mesmo adoecendo, enfrentando estresse, padecendo de insônias, encarando depressões, ansiedades, sacrificando finais de semanas e feriados, em nome de um reconhecido aumento de produtividade individual, não consegue ofertar a resposta rápida e eficaz reclamada pela sociedade? Com certeza, o que ocasiona essa realidade transpõe o empenho pessoal de cada juiz. E mais. O CNJ exalta em suas estatísticas que é no primeiro grau onde se concentra noventa por cento (90%) dos processos em tramitação. Outros documentos do mesmo Conselho também apontam que a força de trabalho disponibilizada a essa instância é, proporcionalmente, inferior a encontrada no segundo grau.
Desse modo, é certo afirmar que o próprio CNJ não só enxergou a exata resposta para o problema como igualmente já deflagrou mecanismos para sua solução. Eis o motivo da Resolução nº 194, editada por aquele Conselho em 26 de maio de 2014, onde expressamente expõe o propósito de equalizar recursos entre a 1ª e 2ª Instância, favorecendo medidas efetivas que possam afastar as causas do mau funcionamento propalado. Como sinal do que está ruim ainda pode piorar, eis que surge o novo Código de Processo Civil, publicado em 17 de março de 2015, para vigorar a partir de 18 de março de 2016. Não é que se trate de lei absurda ou merecedora de reparos, porém, nova norma que reclama, para sua fiel adoção, inadiáveis modificações na estrutura da justiça local, até agora não deflagradas como deveria. Cientes de todos esses fatores e por serem zelosos no cumprimento de suas obrigações, em bloco, juízes cíveis da capital, em outubro de 2014, oficiaram ao então Presidente do TJRN e, sem resposta da cúpula de nossa Justiça local até junho de 2015, novas insistências favoreceram abertura de diálogo com o atual Presidente da Corte. Em que pese o otimismo inicial, ainda perdura a incerteza do porvir. Na verdade, pela sugestividade de grandes dificuldades práticas, o novo Código de Processo Civil tem causado momentos de angústia para todos os juízes cíveis, mormente quando o volume processual se apresenta crescente, como crescente se mostra o número de novas atribuições, ainda que persistente uma força de trabalho defasada em quantidade e, porque não dizer, em qualidade, haja vista a não ocorrência de investimento ou preparação efetiva para uma nova realidade que se avizinha. A Justiça não pode se permitir estar desaparelhada, contraída ou mesmo defasada em
relação às exigências legais e sociais. A nova lei exige profundas mudanças na estrutura e atuação do Judiciário, inclusive, com impacto substancial no próprio Regimento Interno da Corte, sem esquecimento da desafiadora mudança do modus operandi de magistrados e servidores que diretamente lidarão com a tramitação dos feitos. Isso é situação que não pode esperar bom tempo, mesmo porque, algumas medidas ainda reclamarão trafegar pelo Legislativo local. Em não sendo desejo que as Varas Cíveis da capital entrem em verdadeiro colapso, o remanejamento de força de trabalho é medida inadiável, ainda que seja para respeitar o número mínimo de onze (11) servidores por Secretaria de Juízo, consoante faz marcar o artigo 183, inciso I, da Lei Complementar estadual nº 165/99. O novo Código traz em seu artigo 334 a obrigatoriedade da audiência de conciliação ou mediação, entregando o ato ao mediador ou conciliador, onde houver. Logicamente, a ressalva do “onde houver” se justifica para não atender a todas unidades da Justiça, mas, acertadamente, aquelas de maior fluxo processual, a exemplo das Varas Cíveis não Especializadas da Capital. Com efeito, se viesse o legislador exigir do magistrado com grande acervo processual o ônus de presidir todas as obrigatórias audiências de conciliação ou mediação tratada pelo artigo já referido, seria falsear o exercício severo das demais atribuições vinculadas, a exemplo de: despachar, decidir, sentenciar, atender advogados e partes, fazer instruções processuais, administrar pessoal, fiscalizar e priorizar os julgamentos de ações coletivas ou de improbidade administrativa. A tudo ainda pode ser acrescentado o exercício sobre-humano de orientar e treinar servidores e estagiários da Vara (eis que falta investimentos
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ARTIGO dessa ordem), acudir cobranças da Corregedoria, Ouvidoria e relatoria de alguns recursos e, outras vezes, do próprio CNJ, a exemplo dos chamados processos “com mais de 100 dias”, mesmo na presença do minguado corpo operacional que graceja no âmbito do primeiro grau. Tudo como se desconhecida fosse a realidade plasmada em cada Juízo. A propósito, adotando a Primeira Vara Cível da Capital como exemplo, se tem que dos onze servidores legalmente previstos, sua contabilidade atual resume-se a cinco, dos quais uma é a assistente do juiz e outra a chefe de secretaria, portanto, deslocando apenas para três servidores a responsabilidade de responder por manejo e cumprimento de atos de um acervo de quase quatro mil processos. Isso é algo anormal, haja vista que, não corrigir as falhas é o mesmo que cometer novos erros. Se o sistema anual de metas impostas pelo CNJ se mostrou impróprio ou até pouco racional diante do que expressamente identificaram os “considerandos” da Resolução nº 194/2014 desse Conselho, não pode a administração do Judiciário local deixar de empreender esforços para uma gestão mais habilidosa. Nessa esteira, ainda que administrar seja eleger prioridades, é essencial que a atual administração do Judiciário Potiguar tenha em foco a descoberta de sua missão principal e, com isso, venha planejar ações e organizar atividades, controlar recursos (financeiro, de tempo, material e humano) e os bem distribuir, não apenas na hora certa, mas perante os setores, departamentos e pessoas corretas, única via de obtenção de prodigiosos resultados. A tímida comunicação interna hoje existente na Justiça potiguar já reclama melhorias, eis que importante meio de divulgação de bons resultados, como assim, móvel fortalecedor da interligação e controle de desempenho dos setores de colaboração.
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ARTIGO Nenhum sistema de gestão sobrevive sem uma análise ampla da missão a ser desenvolvida. Veja-se como exemplo o Provimento nº 139, de 17 de dezembro de 2015, da Corregedoria Geral local, onde estabelece no § 2º, do seu artigo 1º, que “o prazo de duração de cada correição será de até 05 (cinco) dias úteis”. Observe-se que, em até cinco dias, espera a Corregedoria que o magistrado proceda atos correicionais em “todos os feitos em trâmite na comarca/vara” (inciso I, do artigo 3º, do mesmo Provimento). Respeitado aquele quinquídio e considerado seu uso no âmbito de uma Vara Cível da Capital, onde o acervo em tramitação orbita na ordem de quatro mil (4.000) processos, resta imposto ao magistrado de primeiro grau a temível missão de correicionar 100 feitos por hora (considerado 8 horas/dia) ou 1,6 causas por minuto. Adotados os mesmos parâmetros para uma vara de cinco mil (5000) processos, dado o caráter personalíssimo dessa atividade crucial, emerge a hercúlea tarefa de uma única pessoa correicionar mais de dois feitos por minuto. Na verdade, cuida de missão impossível ou ato falho de gestão formatado sem considerar a amplitude da incumbência a ser desenvolvida, lançando o magistrado no encargo de analisar e corrigir falhas ou faltas, cometidas por si ou servidores, derivadas da própria ausência de estrutura do sistema que insiste em manter a desproporcionalidade entre o número de ações em curso e o contingente de servidores disponíveis. Outro fato marcante e que não poderia ser esquecido, é o aspecto de que todos gozam de pelo menos um mês de férias. Logo, para uma Secretaria com seis servidores, seria apenas de seis meses a previsão de quadro funcional completo, entretanto, respeitando-se os dois meses de férias do juiz, chega-se a insatisfatória conclusão que, dos doze meses
tratados, apenas quatro desses meses receberam a garantia de uma atividade plena. Sem esforço, há de se concluir que pendências sempre existirão, e em grande número, tornando os cinco dias insuficientes para os fins destinados, principalmente por ser inimaginável a prática de correição ordinária para fins meramente formais. Considerando que os atos legais devem ser regidos pelo prazo convencional e não pela exceção das prorrogações, resta patente que a marca dos cinco dias úteis acima tratados, ou deriva da ausência de uma análise ampla da missão a ser desenvolvida pela Corregedoria Geral ou traduz a inglória falta de comunicação entre setores, o que jamais poderia ocorrer em situação desse jaez. Em feliz colocação, BEMFICA1 (1983:8), sobre o Poder Judiciário, adverte: Sua máquina permanece emperrada e há um clima anárquico, mormente nos grandes fóruns, notadamente pela sobrecarga de serviços. E, ficando o juiz sem condições para exercer, com eficiência, sua função administrativa e correicional, campeia a corrupção dos cartórios [...]. Ainda que atos de corrupção seja hodiernamente desconhecidos, a ocorrência de eventos anárquicos não pode ser negada. O princípio da autoridade, com maior ou menor frequência, pelos servidores, é ignorado. Providências profundas e profícuas, sobretudo com redistribuição de servidores, devem rapidamente ganhar adoção, sob pena da situação se tornar irremediável. A eficiência das Varas Cíveis da Capital, acresça-se, não ocorrerá a partir de um ou outro projeto isolado, porém, da especializa-
ção do pessoal de serviço, padronização de formulários e rotinas, sem esquecimento de uma otimização continuada. O acompanhamento da produtividade dos juízes também é de indubitável relevância, pois, só assim se descobre e corrige pontos fracos do sistema ou fortalece e amplia pontos fortes e boas práticas descortinadas. Eis a única fórmula de detecção da taxa de congestionamento de cada Vara para, em tempo hábil, superá-las. Já andou bem a atual presidência do TJRN ao reduzir em R$ 91,6 milhões2 a despesa com pessoal no ano de 2015, entretanto, ainda é aguardada a reversão de parte desse valor para socorro das necessidades da primeira instância, isso em mero respeito a Resolução nº 194/2014-CNJ que especificamente instituiu a política de atenção prioritária ao primeiro grau de jurisdição. Desse modo, equalizar recursos entre a 1ª e 2ª instância não representa apenas um direito do cidadão, mas também um dever da cúpula do Judiciário local, pois, do contrário, diante das imposições do novo Código de Processo Civil e mudanças de paradigmas que invariavelmente ocorrerão, o colapso do sistema será inevitável. Como última referência, convém relembrar as palavras do ministro Ricardo Lewandowski ao destacar que é dever do Judiciário, em todos os segmentos, “zelar pelas condições de saúde e qualidade de vida no trabalho de magistrados e servidores”. E é isso que se espera do gestor maior, seja para garantir melhores serviços aos cidadãos, seja para prestigiar a dignidade de magistrados e servidores potiguares.
1 BEMFICA, Francisco Vani. O Juiz. O promotor. O Advogado. Seus poderes e deveres. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983, p.8. 2 http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/9883-tjrn-reduz-despesa-com-pessoal-em-r-91-milhoesem-2015 (site visitado em 14/02/2016, pelas 02:08h).
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Livro
Livro
Hadja Rayanne Holanda de Alencar Juíza
Ser Juiz: De glamour e pernas
Magistrados potiguares e as histórias dos autos O livro “A justiça Além dos Autos” foi lançado em agosto deste ano pela ministra Nancy Andrighi no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A publicação, organizada pela ministra em homenagem à magistratura brasileira, reúne, em 504 páginas, 173 casos peculiares vivenciados por magistrados de todo o país no exercício de sua atividade. “São situações vivenciadas nos meandros de cada instituição, que refletem as esferas individuais, os fatos corriqueiros, e até repetitivos, das facetas e dos rincões brasileiros. São casos próprios do relacionamento social, os quais merecem ser divulgados e
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ponderados, numa demonstração de que as emoções jamais cederão lugar às máquinas e às técnicas da modernidade”, afirma a ministra no prefácio. As histórias relatadas no livro mostram casos ocorridos em várias comarcas e fóruns de cidades brasileiras. Cinco magistrados do Rio Grande do Norte ilustram as páginas do “A justiça Além dos Autos”. O desembargador Saraiva Sobrinho, os juízes Paulo Luciano Maia e Marcus Vinícius Pereira Júnior e as juízas Hadja Rayanne de Alencar e Virgínia Rêgo. Confira as histórias vivenciadas no judiciário potiguar.
Dia desses fiquei lembrando da minha trajetória na magistratura. Ainda novinha, recém-concursada, assumi a comarca de Governador Dix-Sept Rosado na região oeste do Estado. A família, que queria toda estar presente para a assinatura do tal livro de posse, seguiu pela estrada de terra de Mossoró até o Fórum. Assinado o livro, feliz da vida, me deparo com minha mãe chorando. Pergunto o que aconteceu e ela me diz que pensou que ser juiz era uma profissão com muito glamour, mas aquele lugar de trabalho era horrível, a cidade sem estrutura e a segurança do local muito ruim. A sala de audiências ficava na cozinha de uma casa velha, onde eu podia enxergar pela porta sempre aberta (dada a falta de ar-condicionado), bodes e ovelhas trafegando pela cidade. Disse então a ela que nada daquilo importava para mim. Que justamente ali, cidade de tão poucos recursos, minha presença era mais importante e eu seria mais útil. Entendo perfeitamente a preocupação materna. Eu, criada com todo conforto e desvelo (à base de banana-maçã, como diz um amigo querido), iria agora enfrentar situações adversas de trabalho. Um trabalho desempenhado em um ambiente sem glamour (como referiu minha mãe), mas com o atrativo ímpar de ser essencial. De lá para cá já se vão 16 anos de muitos acertos e erros. De outras cidades e Fóruns em que atuei, pessoas que condenei e absolvi, casais que uni e separei, direitos que garanti ou deneguei. Políticos
que diplomei, outros cujos direitos políticos cassei. E assim vivi e vivo essa profissão cujo glamour ímpar reside não no salário (que é bom), ou na estabilidade (que é ótima), mas na certeza inarredável da contribuição que pode dar à sociedade. Ah esse ser juiz…. Tomo o verbo ser pois outros verbos não lhe servem de adjetivo. Nem o ter o status de juiz, que no fim das contas nada significa e nem o estar juiz, pois este pouco contribui para a toga. Não! O ser é realmente o único verbo capaz de adjetivar essa profissão de tantas alegrias, dificuldades, desencantos e realizações. Essas lembranças e reminiscências do meu passado e presente de magistrada, me tomam sempre que me deparo com o paradoxo completo que vive hoje o juiz brasileiro: nunca foi tão necessário e nunca foi tão atacado. Sem dúvida é difícil conviver com tal situação. Vejo muito desânimo e colegas desencorajados. Cansados não só da labuta diária nos Fóruns, das cobranças sem fim da profissão, mas principalmente da generalização negativa que nos achata e nos denigre. Me encontro com um colega que, triste, me diz que para ele a profissão acabou. Que o juiz era respeitado e que as pessoas acreditavam no seu papel e hoje elas o vêm com desconfiança. Que a mídia nos trata como marginais, que o CNJ nos pressiona o tempo inteiro. Que está tão cheio de tudo que nem quer ouvir as novidades do que está acontecendo no Tribunal. E fala. E diz e repete e vai embora ainda mais triste.
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Me bate também um desânimo. As palavras do colega me atingem. Por mais que busque me manter tranquila, noites insones me trazem a preocupação com uma profissão de importância fundamental para essa nossa democracia tropical. Se duvidam da importância dela, basta que consultem os números de processos que hoje tramitam no Brasil. É triste assistir a essa magistratura, agigantada pelo papel que lhe cabe, muitas vezes diminuída, cansada, abatida e cabisbaixa. Temo que esse período de dor (e não há aprendizado sem dor, como nos lembra Aristóteles) seja necessário. Necessário para trazer mudanças, alterações alvissareiras e avanços. Mas temo também que o prolongamento dele nos congele e nos paralise, tolhendo esses mesmos avanços. Com essas preocupações em mente saio de casa e vou para minha tarefa semanal: fazer a feira. Nos corredores do supermercado me aborda uma senho-
ra. Sem reconhecê-la a cumprimento meio sem jeito e ela bem despojadamente me pergunta se não me lembro dela. Constrangida reconheço que não. Ela ri e me mostra a perna direita cheia de cicatrizes e me diz: “Olha doutora, eu sou a Socorro e essa perna é sua”. Minha? Como assim? “É sua. Foi a senhora quem determinou que o plano me operasse e aí o médico salvou minha perna”. Me dá um abraço e sai feliz da vida, me deixando sem jeito, no meio de latas de atum, ervilha e congêneres. Demoro um pouco a processar o ocorrido e a prosseguir na feira com os olhos meio molhados…. E sorrindo. Sentimento bom! Porque a profissão é difícil, o momento é de crise, mas puxa! Bom mesmo é encontrar as Socorros e suas pernas funcionando. Isso sim é glamour! Quer saber? Eita profissão porreta! E vou me embora: eu, minha profissão sem glamour e minhas três pernas.
Marcus Vinícius Pereira Júnior Juiz
“Com muita felicidade fui um dos autores da obra organizada pela Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), A Justiça Além dos Autos, contando as histórias Enfadado e Preguiçoso e Conciliador Preparado, vividas por mim nas comarcas de Parelhas e Macau, respectivamente, nos anos de 2009 e 2004, ressaltando que saindo dessa ideia dos formalismos típicos das salas dos Tribunais, o obra ajuda ao leitor a compreender a difícil, mas gratificante tarefa de “dar a cada um o que é seu”. A obra mostra, através das histórias de diversos magistrados do Brasil, que ocupar o cargo de magistrado é, antes de tudo, vocação. Não apenas vocação para escrever no papel quem tem razão em uma sentença, mas principalmente vocação para ouvir, vocação para tomar café com bolo no mercado escutando as estórias que o povo conta, vocação para passar do horário de expediente preocupado no cumprimento de sua decisão, vocação em proferir julgados realmente efetivos, vocação para chorar, sorrir e brincar com o povo nas horas certas, vocação para mobilizar a sociedade em causas coletivas, vocação para viver e ter a certeza de que tudo vale a pena, quando se busca, através dos meios legais cabíveis, a promoção de justiça”.
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Enfadado e Preguiçoso Após ser promovido para a Comarca de Parelhas, no Seridó do Rio Grande do Norte, de 2.ª entrância, no ano de 2009, fiz minha mudança para a residência oficial, localizada em um primeiro andar, no próprio fórum. Após organizar tudo, fui jantar uma sopa de maxixe, em um local próximo do fórum, no “trailer” de Gilvan. Ao chegar ao local, fui abordado por um cidadão apelidado de Loso que, ao perceber a minha saída do fórum, disse o seguinte: – Caba véi, ocê trabaia no Floru? Eu respondi afirmativamente, e ele emendou a pergunta – ressaltando que transcreverei sem utilizar fielmente o linguajar do cidadão, para facilitar a compreensão. – Eu cometi uns erros aí e tô devendo umas horinhas de serviço no fórum, mas o problema é que eu nunca trabalhei para ninguém, nem para pai eu trabalhava! E de graça, não trabalho mesmo. Para falar a verdade, ontem tive um pesadelo em que eu passava o dia trabalhando em uma cerâmica! Resultado, acordei hoje todo enfadado só de pensar, imagine se eu tiver que trabalhar mesmo! Por isso, queria saber o que vai acontecer, se eu não trabalhar. Vi que o tal Loso estava com um papel na mão e pedi para ver. Era a sentença, em que constava uma condenação de seis anos de pena privativa de liberdade, a ser cumprida em regime semiaberto. Foi substituída por prestação de serviços à comunidade (PSC) e limitação de fim de semana. Assim, respondi o seguinte: – Amigo, você tem duas opções: prestar os serviços à comunidade, ou seja, trabalhar as horas que você mesmo disse que está devendo, ou cumprir a pena em regime semiaberto, ou seja, dormindo no presídio, todos os dias, com saídas durante o dia. Expliquei também o que seria a limitação de fim de semana e notei um ar de riso no semblante de Loso. Não entendi o porquê, afinal, eu tinha apenas explicado como seria o cumprimento da pena privativa de liberdade e de prestação de serviços à comunidade. Poucos dias depois, agendei a audiência admonitória, para iniciar o cumprimento da pena, e chegou
o grande dia. Loso, todo arrumado, chegou para a audiência e foi logo dizendo, ao notar que eu era o Juiz: – Mas, homi, tu que é o Juiz? Vou logo perguntando: aquela explicação que, se eu não trabalhar, vou dormir na cadeia, sem precisar trabalhar, é verdade mesmo? Eu respondi afirmativamente, explicando novamente como poderia ser o cumprimento da pena, momento no qual, após os esclarecimentos feitos pelo Promotor de Justiça, Loso disse o seguinte: – Então, não tem nem o que eu escolher! Quero dormir todos os dias na cadeia! Encerrada a audiência, digitei a ata, e todos assinamos. Depois de assinar, o tal Loso, feliz da vida, agradeceu toda a atenção e disse que nunca pensou em uma coisa ruim, que foi o cometimento do crime, trazer tanta coisa boa. Eu, sem entender o porquê de uma pessoa estar tão feliz de iniciar o cumprimento de uma pena, dormindo no presídio, perguntei: – Loso, estou curioso com tanta felicidade. Por qual motivo você está tão feliz em iniciar o cumprimento de uma pena, dormindo na cadeia, em um local onde ninguém gosta de dormir, de cumprir suas penas e, muitas vezes, até fogem? Após ouvir a pergunta, Loso, ainda sorrindo muito, facilmente respondeu: – Doutor, como eu já lhe disse, fiquei enfadado só em sonhar que estava trabalhando! E agora, recebo esse presente de Deus... morávamos, em casa, apenas eu, pai e mãe. Os dois morreram faz uns anos, e eu fiquei sozinho em casa. E agora, que vou ter onde dormir todos os dias, alugo a casa, recebo o dinheiro e vou me virando. E o melhor: não trabalho de graça para ninguém, moro de graça na cadeia e ainda recebo uns trocados do dinheiro do aluguel! Tem melhor, doutor? – disse Loso às gargalhadas. Esse é o sistema penal brasileiro falido, no qual o enfadado e preguiçoso é que tem vez, onde cumprir pena é a solução do problema do vagabundo e o cumprimento da lei. Fazer o quê? Rir do enfadado e preguiçoso, que, pelo menos, foi sincero.
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Conciliador Preparado Logo após completar vinte e cinco anos, recentemente empossado no cargo de magistrado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, fui designado para a Comarca de Macau, onde comecei a tentar pacificar os conflitos de forma mais prática possível. Assim, em audiência de conciliação, instrução e julgamento, realizada na referida comarca, estava em análise, naquele momento, a situação de uma senhora que comprou um liquidificador que não funcionava há vários dias. No início da audiência, sem vestir paletó e gravata, mas apenas com camisa de mangas curtas, questionei se as partes queriam um café, um suco, uma água, tendo os advogados da fabricante do produto, que eram de Recife (PE), aceitado um suco, da mesma forma que o advogado da fornecedora, que era de São Paulo (SP). Imaginem: um defeito em um liquidificador deslocar advogados de cidades tão distantes, para participar de uma audiência! Após a aceitação de todos, inclusive de minha parte, fui providenciar o suco, mas, obtive a resposta de que o liquidificador do fórum estava quebrado, momento no qual comecei a tentativa de acordo, partindo do constrangimento que passei, ao oferecer suco para as partes na audiência, sem a possibilidade de atender aos pedidos em razão do defeito no liquidificador que faria nosso suco. Todos riram, e a audiência terminou em um belo acordo, gerando, para a parte autora, a felicidade pela resolução do problema e, para os advogados, o lamento por não terem tomado o suco, em um dia tão quente! Ao terminar a audiência, enquanto eu digitava o termo de audiência e fazia a sentença homologatória do acordo, um advogado falou para o outro, em tom baixo: – Essa Justiça do Rio Grande do Norte está bem desenvolvida, um fórum bem estruturado, salas amplas e um conciliador preparado, que soube conduzir a audiência de forma magistral, até suco ofereceu, para mostrar o que representa um liquidificador quebrado!
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– Pois é, voltarei para o meu Estado, com uma excelente imagem da Justiça do RN, pois, se os conciliadores são preparados assim, imagine os magistrados – respondeu, em voz baixa, o outro advogado. Concluído o termo de audiência, imprimi, assinei onde estava Juiz de Direito e entreguei para todos assinarem. Ao perceberem que eu era o magistrado, foi um constrangimento só, pediram desculpas por estarem se referindo a mim como o conciliador, mas eu logo disse que me sentia orgulhoso de ser o conciliador preparado, que, mesmo sem o suco, conseguiu mediar um momento tão especial, possibilitando, assim, que a pacificação fosse conseguida!
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– Essa Justiça do Rio Grande do Norte está bem desenvolvida, um fórum bem estruturado, salas amplas e um conciliador preparado, que soube conduzir a audiência de forma magistral, até suco ofereceu, para mostrar o que representa um liquidificador quebrado!”
Paulo Luciano Maia Marques Juiz
A liberdade escorrida por fios de cobre Estava eu em uma audiência na Vara Criminal de São Gonçalo do Amarante/RN, município pertencente à área metropolitana da capital do Estado do Rio Grande do Norte, por volta do ano de 2005, quando me deparei com o caso de um cidadão preso pelo crime de furto há mais de trinta dias na cadeia local. De cara, assustei-me com a figura magríssima e pálida do preso provisório que sentou à mesa mofino e acabrunhado, quase sem forças para sequer suspirar. Começo o interrogatório e ele me esclarece que, de fato, participou de um crime de furto de fios telefônicos, em companhia de outros infratores, mas que sua participação tinha se restringido a acender o fogo sob o tacho onde os fios de cobre foram derretidos. Explico: o furto de fios telefônicos é feito para extração do cobre do interior de tais fios, cobre este que é derretido e vendido pelos autores de delito. Pois bem, no caso deste sorumbático réu aqui narrado, a quantia de cobre furtada não alcançava sequer a quantia de dez reais, para dividir com os demais comparsas da empreitada criminosa. Reconhecidas essas circunstâncias, que só vieram aos autos após este dito interrogatório, concedi a liberdade provisória de imediato ao réu, muito embora já sabendo que iria julgar improcedente a denúncia ao final, pois ainda não havia a figura da absolvição sumária no Direito Processual Penal àquela época e a denúncia já havia sido recebida.
Proferida a decisão concessiva da liberdade provisória ao réu em audiência e determinada a expedição do alvará de soltura, o cidadão me olhou como quem o salvava da cruz e as lágrimas escorreram pelos olhos. Guardei aquela memória como o mais importante motivo que me fez e faz ser Juiz e escrevi o poema que segue abaixo: A LIBERDADE Hoje eu vi a liberdade Nos olhos de um homem. Hoje eu vi a liberdade, Escorrendo, deslizando Pela face de um homem [chorava. Não sei se aquelas lágrimas Eram doídas lembranças do cárcere Ou se eram a alegria extravasada Tal qual a do pássaro que deixa livre a gaiola. Hoje eu vi o homem (ser humano) Que nem era criminoso, nem inocente, Era gente. E gente sofre, chora e erra, Ah, como erra! E assim, entre erros e acertos, Sofrimento e alegria, Perde e reconquista A liberdade.
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O mococídio Certo dia estava eu em mais um dia de trabalho na Comarca de Jucurutu, interior do Estado do Rio Grande do Norte, nos idos de 2008, quando me deparei com uma audiência instrutória do crime de disparo de arma de fogo em lugar habitado (art. 15 da Lei n. 10.826/03). Logo ao iniciar a audiência, fui ouvir a pessoa que residia na casa onde, em tese, o tiro fora disparado. Tratava-se de uma senhorinha sofrida, daquelas que os anos e o sol racharam a pele por completo e, logo nas suas primeiras manifestações, percebi que não seria fácil para mim, um ignorante “da cidade”, compreender seu palavreado, razão pela qual chamei logo o Oficial de Justiça local para ser meu intérprete. A narrativa do crime começou assim: “- Doutor, foi muito triste esse dia. Eu tava no muro lá de casa quando ouvi o estampido”. Não entendi, a pobre senhora estava fazendo o que dependurada em cima do “muro” da residência dela? Pedi ajuda ao meirinho que me esclareceu: “Muro, doutor, é o quintal, os fundos da casa”. Ah tá, vamos pra frente. Segue o depoimento: “- Aí, doutor, saí correndo pelo oitão e quando cheguei na frente de casa, já vi esses dois rapazes que estão aqui, um com um bisaco e o outro com uma espingarda de soca”. Olhei pro Oficial de Justiça e ele já foi logo traduzindo: “- Oitão, doutor é a lateral da casa e bisaco é um saco que o sertanejo usa pra guardar a caça”. Percebi que sem o meirinho, era impossível essa audiência prosseguir, tenham certeza! Mas, o final era o que me guardava a grande surpresa, e assim anunciou a depoente: “- Doutor, quando dei fé, percebi que meu mocozinho não tava dentro de casa e o bisaco desse cabra safado tava cheio, tenho certeza que foi ele doutor que matou meu mocó!”. E, com lágrimas nos olhos, ela concluiu: “- Chorei demais doutor, eu amava aquele mocó, até roupinha pra ele eu fazia, dava de comer, era minha companhia”. Tive que encerrar a audiência e extinguir o processo, porque verifiquei que não se tratava do crime
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de disparo de arma de fogo em lugar habitado, o qual não restou comprovado, mas de um legítimo “mococídio”, fato atípico, mas não sem antes o meirinho mais uma vez me explicar que mocó é um roedor parecido com um preá, que habita a região pedregosa da caatinga. Foi uma verdadeira aula essa audiência da qual, com certeza, saí muito mais sábio!
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Tive que encerrar a audiência e extinguir o processo, porque verifiquei que não se tratava do crime de disparo de arma de fogo em lugar habitado, o qual não restou comprovado, mas de um legítimo “mococídio”, fato atípico, mas não sem antes o meirinho mais uma vez me explicar que mocó é um roedor parecido com um preá, que habita a região pedregosa da caatinga.”
Saraiva Sobrinho Desembargador
Enterro Reverso Autoridade de Juiz ninguém questiona. Ainda mais, quando tem fama de brabo! Porém, maior que o poder constituído, é o jogo de cintura entre as autoridades. A fama de “mau” foi adquirida num dos primeiros atos que presidiu na comarca: um bandido famoso, vulgo Jararaca, fora sumariamente condenado à prisão, e a assustada audiência assistiu ao Juiz recém-chegado elevar a voz e perfilar Jararaca, este, pela primeira vez, enfrentado olho no olho! Hoje, o magistrado confessa que não sabia da fama de Jararaca, mas tirou proveito da nova reputação usando-a em favor da ordem e da legalidade, naquela terra sertaneja, onde política, força e astúcia tentavam superar a justiça. Por onde passava, as pessoas tiravam o chapéu: “Foi ele, o Juiz que condenou Jararaca. O homem é forte”, diziam, entre admirados e respeitosos. Quem te viu, quem te vê! Agora, Desembargador, o magistrado é discípulo da mansidão e da paz, prega o amor e a gratidão. Um pacifista, mas, naquela ocasião, no começo da carreira, nos arroubos da juventude, mantinha o cenho cerrado e confrontava sem medo, batendo na mesa, para anunciar a palavra final, na sua designação de Juiz criminalista, assustando qualquer malfeitor. Nos anos oitenta, numa cidadezinha de clima quente, fronteiriça com o Estado do Ceará, gente braba e política de coronéis. No acervo que herdara – nada pequeno, como foi acontecer –, saltava aos olhos do nosso Juiz uma grande quantidade de “Ações de Pedido de Registro de Óbito Fora do Prazo”. Alguma práxis de cultura local ou indício de falcatrua? Iniciou, assim, uma pesquisa informal: abordou o assunto com pessoas mais velhas
para confirmar a tese de “usos e costumes”, mas, dali, nada extraiu! Perguntou ao médico, na ocasião de uma consulta, mas o doutor estranhou o fato. Visitou o tabelião, e este informou que atendia aos casos em que era procurado, mas desconhecia se algum morto fora enterrado sem atestado. Pensou em ouvir o Prefeito, mas convocar não podia nem devia. Convidá-lo a vir ao fórum, ou ir ele próprio até a Prefeitura? Por certo, especular-se-ia sobre a causa da visita. Ninguém ia dizer que fora cortesia. Nesse caso, também não iria mexer com a autoridade máxima do Executivo local. Enquanto pensava isso, surgiu-lhe uma ideia: mataria dois coelhos de uma só cajadada! (Se bem que o verbo “matar” era o que mais queria evitar agora) Intimaria o coveiro. Sim, o coveiro não deixava de ser uma autoridade no assunto e, por certo, sabia das coisas a respeito, já que era parte do funesto “processo”. Avisado da convocação, o coveiro assustou-se, por não fazer ideia da causa. Botou a melhor roupa em face da entrevista com o Juiz, tragou uma lapada de cachaça e rumou para o compromisso. Cruzou a cidade sob olhares. Toda a “rua” queria saber qual o crime cometido por seu Chico Coveiro. No bar da esquina, seu Chico tomou mais “uma”, arrumou a camisa entreaberta no peito e, decidido, entrou no fórum. Iria “enfrentar” o algoz de Jararaca! O magistrado recebeu-o notando a estranheza e até o temor pelo inesperado encontro. Jamais o coveiro pensaria em estar frente a frente com o Juiz, senão por um crime cometido, e isso não acontecera. No primeiro cumprimento, o Juiz tomou uma dose virtual de aguardente, através do bafo exala-
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Livro do – não fosse a seriedade da situação, pediria um tira-gosto! Pensou em repreender seu convidado e alertá-lo (ou até dar voz de prisão) pelo desrespeito da camisa aberta no peito e por bafo de cana, numa audiência com o Juiz. Controlou-se em nome da estratégia de conquistar aquela “autoridade”. Ademais, considerou que o consumo de álcool deve ser prática comum a quem enfrenta profissão tão inglória quanto a de receber defuntos para a última morada, além disso, devia estar procurando coragem. Quebrou o gelo, jogando conversa fora durante a recepção. Antes do assunto principal, uma última abordagem, fundamental para a conquista do aliado à causa, elevando-o à categoria de “autoridade” e – com licença do trocadilho – “enterrando” a timidez. Perguntando de chofre: – O senhor sabe quem é a maior autoridade dessa cidade, seu Chico? O coveiro inquietou-se, coçou a cabeça, lembrou do julgamento de Jararaca e, para não errar, resolveu lisonjear o magistrado com uma resposta apropriada: – A maiotoridade é o Sinhô, o Juiz da cidade, qui sabe das coisa, sabe das lei e pode mandá prendê”! – disse sondando, mais que afirmando. O Juiz devolveu, na bucha, a adulação replicando professoral: – Errado, seu Chico! A maior autoridade aqui é o senhor! – Eu, dotô? Mas pruquê? – questionou meio assustado e discordante. – Seu Chico, é verdade que eu posso mandar prender, mas outra ordem pode mandar soltar, ou o preso pode fugir, não é mesmo? Já o senhor prende as pessoas debaixo de sete palmos e, do seu decreto, seu Chico, ninguém foge! Ambos sorriram, e seu Chico Coveiro ficou mais à vontade. O Juiz passou, então, a questionar os procedimentos para a indesejada cerimônia de enterro, percebendo existir grande informalidade, pois o coveiro entedia não existir prova maior do que um corpo inerte: – Chegano morto, dotô, não tem outra coisa a fazê, sinão interrá!
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Livro Si vier morto, dentro do caxão, eu faço a minha parte e cubro de terra rapidinho. – Seu Chico, eu lhe perdoo pelo que já foi feito, até porque o senhor não deve ter sido orientado, mas vou lhe dizer AGORA (deu ênfase) que não se pode enterrar NINGUÉM (enfatizou novamente) sem os documentos do cartório. Primeiro, o médico atesta que “o cabra” morreu; depois, a família vai ao cartório e faz o registro de óbito, recebendo a respectiva certidão. Essa certidão permite transferir as posses do defunto para os herdeiros, possibilita a viúva pedir pensão ao INSS e também é o documento que autoriza enterrar o morto; entendeu? Sem certidão, sem enterro. Seu Chico Coveiro ficou tão inerte quanto seus defuntos, atento à explicação que parecia ser novidade, e, por isso, o desculpava – ainda que não se possa alegar o desconhecimento da lei, para não cumpri-la. Juiz continuou: – Por conta dessa estória de enterrar gente sem a certidão do cartório, eu tenho uma enxurrada de ações pedindo registro de óbito fora do prazo. Muitas delas devem ser falcatruas, tentativas de roubo mesmo, seu Chico, e eu não tenho como provar se o sujeito morreu de verdade, entende? Complementou, em tom de ameaça, apesar do diálogo amigável: – Seu Chico, agora que o senhor já sabe que não deve enterrar sem Certidão de Óbito do Cartório, eu preciso lhe dizer que o senhor não pode mais fazer isso, sob pena de eu mandar prendê-lo. – Vige, dotô, eu lhe agaranto que num sabia disso e prometo também que num interro mais ninguém sem os decumentos quer sinhô falô. Ao se despedir, o Juiz sabia que restavam as “Ações de Pedido de Registro de Óbito Fora do Prazo” para analisar, mas esperava, ao menos, que não haveria mais enterros irregulares. Agora, era fiscalizar se a promessa seria honrada. Para isso, teria que aguardar o próximo funeral. Correram alguns dias desde o encontro das “autoridades”, até que, de sua sala, o Juiz ouviu o sino da Matriz repicar, num tanger diferente e compassado: uma badalada solitária, depois de um intervalo, duas outras badaladas conjugadas. Sua secretária confirmou: “Alguém morreu na cidade, daí o badalar fúnebre”. Chegara a hora de verificar o resultado. Não demorou, para a infausta
comitiva passar em frente ao fórum. Em marcha lenta, os parentes mais chegados carregando o caixão ou bem próximo dele, alguns fazendo questão de pousar as mãos sobre o ataúde. A viúva e os filhos chorando. No final do cortejo, os menos chegados, estes, mais dispersos, até sorrindo e fofocando da vida alheia, acompanhando o féretro apenas por obrigação social ou para bebericar a cachaça de despedida. O Juiz assistiu, de pé, ao cortejo, voltando depois ao seu gabinete. No dia seguinte, faria diligências, para saber se fora obedecido. Para sua surpresa, não precisou esperar o outro dia, pois a chefe de secretaria veio bater à sua porta, chamando-o, para testemunhar a mais inusitada das cenas: o enterro estava voltando! Pela primeira vez na cidade, com enorme curiosidade popular, um funeral fazia o caminho inverso. O clima de constrição observado na ida, transformara-se em alvoroço, uma indignação; um murmúrio geral. O Juiz divisou, à frente da procissão, acelerado e muito sério, convicto de sua obrigação, a autoridade de seu Chico Coveiro, que presidia o féretro até a porta do cartório e apontou à família o caminho que deveria ser percorrido antes da última morada. Da porta do fórum, o Juiz não ouvia o que era dito, mas adivinhava, pelas gesticulações interlocutórias, que doravante não haveria mais enterro sem documentos. O tabelião veio à rua saber o que ocorria e, por
fi m, o caixão foi depositado na calçada e a família entrou no cartório para as providências da circunstância. Antes de voltar aos seus despachos, o magistrado comentou com seu staff: – Caso resolvido! Aquele estranho “enterro reverso” cumpriu outra missão: a de propagar as “novas” normas funerárias e as determinações legais em voga, de tal sorte, que a família do próximo finado saberia que tinha um papelório a ser tratado, antes de rumar para o cemitério. A moral com que seu Chico Coveiro conduziu o enterro para trás e apontou o cartório como imperativo para a realização das exéquias, por ordem do temido “dotô Juiz”, tornou-o mais respeitado na cidade. Não trabalhava somente com a pá, jogando terra sobre defunto. Sentia que mudara, para sempre, o ritual funerário na cidade! Isso, numa parceria honrosa com o “Poder Judiciário”. Ai de quem desobedecesse! Para surpresa geral, depois desse evento, inúmeras petições de DESISTÊNCIA de Ações de Pedido de Registro de Óbito Fora do Prazo foram protocolizadas. Dizem que a alma daquele defunto começou a vagar pela cidade, aparecendo para alguns madrugadores beberrões. Nunca ficou confirmado se verdade ou invencionice da embriaguez, mas o certo é que nunca mais houve um enterro sem a respectiva certidão, exigida pela autoridade do seu Chico Coveiro, respaldado pelo temido e respeitado Juiz.
Marido Fedegoso A missão de um Juiz, quando à frente de uma comarca do interior, assume miríades de papéis. Ora atua como padre, ora prefeito, ora tabelião ou, ainda, psicólogo, assistente social, conselheiro, entre outras tantas. Dentre as atividades do Juiz, protagonista de nossa história, a de promover casamentos em cerimônias coletivas era a que mais o atraia, talvez, pela religiosidade, forte em sua formação, ou pela crença no amor, como forma de promoção dos valores humanos e na família, como célula da sociedade. Também lhe coube, muitas vezes, a missão de salvar uniões, para além do mister oficial. Foi assim, naquele caso quando dirigia o Foro da Comarca. A
cidade onde ocorreram os fatos, ora narrados, acha-se encravada na região típica do sertão nordestino. Um microcosmo com vida própria, ainda que limitado pela pobreza econômica e cultural. Em sua maioria, uma gente simples de costumes pouco lapidados. Os homens, de baixa estatura e franzinos, incondicionalmente com as camisas fechadas apenas a partir do terceiro botão, deixando, à mostra, o peito somente desenvolvido à força de puxar enxada na roça. Parecia que se davam o prazer daquela demonstração machista, como numa rinha humana, em que desnudar o peito pudesse desafiar o rival e até – por que não? – conquistar as mulheres. Foi um desses tí-
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Livro picos matutos que o Juiz vislumbrou na sala de espera do fórum, naquela manhã ensolarada de verão brabo, que esturrica a terra e parece acender as paredes do casario, ao refletir a luz do Sol. Olhou de soslaio e já ia direto para seu gabinete, mergulhar nos estudos de “Deus sabe quantos” processos, quando o tal sujeito, entre tímido e decidido, levantou-se e foi até ele, perguntando: – O sinhô é o Doutô Juiz, num é? – Sim, posso ajudar? – respondeu o magistrado. Já, por aí, começara a envolver-se ao perguntar se podia ajudar – postura realmente sincera, vinda do magistrado em questão. – Eu pricisu de tê um particulá com vossência, será pussívi? O Juiz fez sinal, para que o cidadão lhe acompanhasse até o gabinete, e lhe apontou um assento, enquanto abancava seus papéis e pertences. Notava-se, pela postura acanhada, que havia algo perturbando o visitante. Sondou, mais uma vez, aquilatando o que teria a tratar e sentou-se disposto a ouvir, em parte motivado pela curiosidade. – Pois não! O que se passa? – Dotuô, eu tenho que assuntar um assunto, meio chato de falá, mas o sinhô tem que me ajudá, ou num sei o que vou fazê! Empertigou-se na cadeira, antevendo alguma situação de difícil conciliação, talvez, uma rixa antiga prestes a se converter em homicídio. – Sou todo ouvidos – reforçou – , pode falar, para que eu entenda a situação. – Dotuô, é sobre minha mulé! Ela num quer mais coisar cumigo. Já tem argum tempo qui eu percuro pur ela, mas a tinhosa manda eu mi aquietá e se isconde, vai prus canto, e nada, Doutô! Sabe cuma é, né? Nada! Já penso inté que tem arguma coisa istranha nisso, dotuô ,e num respondo pur mim se discubro argum marfeito dela. Opa! Já se via a situação difícil em que fora colocado. Tudo indicava que o problema desaguaria em crime passional, com prejuízo para todos. Antevendo tal quadro, cabia-lhe agir preventivamente. Tal missão, nenhum currículo acadêmico relata, apregoa ou avisa. Tem que ser fora da lide! Foi o Juiz, às pressas, buscar de inspiração Divina.
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Livro Uma coisa que não percebera de imediato, mas que, aos poucos, predominou fortemente, foi o odor nada agradável que aquele homem exalava. O suor azedado pelo calor típico da região impregnava o ar a ponto de torná-lo irrespirável. Nesse particular, funcionou também um importante componente investigatório: a intuição. O magistrado pensou que não seria nada agradável uma aproximação além da que mantinham, durante aquela entrevista. Imagine, então, “coisar” com o tal sujeito! Assim, partiu para o papel de conselheiro e psicólogo, procurando falar numa linguagem próxima do seu interlocutor, antecipando algumas recomendações básicas de higiene corporal e arquitetando seu plano de ajuntamento dos dois, caso seu discernimento – quiçá – estivesse certo. – Vou convocar sua mulher, para vir até aqui conversar comigo – informou o Juiz. Procure ficar tranquilo, enquanto busco conhecer os motivos dela. Havemos de achar uma saída – prometeu. Mas, vou precisar da sua ajuda para vencermos, juntos, esta situação, até porque tenho certeza de que não está acontecendo nada do que o senhor imagina – disse o Juiz já fundamentado em sua capacidade premonitória. – O senhor vai fazer a sua parte: enquanto eu converso com ela, organize as coisas para criar um clima, entende? Sabe como é mulher, não é? Gostam de perfume, de um cheirinho. Sei que homem é diferente, mas, com certeza, se o senhor tomar um banho prá ficar cheiroso, ela vai entender o recado... Se não tiver sabonete, até um pedaço de sabão serve. Pode ser ali mesmo no rio, se o senhor se banhar, ao chegar em casa ela vai notar a diferença... Pegue um perfume ou desodorante. Na falta, use limão para tirar o “cheirinho” de baixo do braço, mas cuidado: não esfregue diretamente, porque pode assar o sovaco: esprema o suco e vá passando, com um algodão ou um paninho. Faça isso que, por aqui, eu converso com ela e faço a minha parte. O homem matutou um pouco e acatou a ideia: – É mesmo, né Doutô? Mulhé gosta dessas coisa, né? Despediram-se, e ele ficou observando a figura se mover, já na rua, chicoteado pelo Sol que, naquela hora ardia vingativo. Não encontrou na jurisprudência, sondando os escaninhos da memória, os fundamentos da obrigação de “coisar”. Até porque, observando a figura que se
retirava, ficou pensando consigo mesmo, que a mulher teria sua razão para a negativa. Passou ao chefe de secretaria o endereço que havia colhido do “reclamante”, para que sua consorte (com sorte?) fosse convidada a vir até o fórum, para uma conversar. No dia seguinte, foi anunciada a presença da mulher, que o magistrado fez adentrar a sala, de imediato. Meio desconfiada, cabisbaixa, de estatura apoucada, tal qual o marido, mas limpinha, bem cuidada, apesar de não portar adereços ou mesmo maquiagem. Gente simples. Juiz começou, como se diz nos interiores, “comendo papa pelas beiradas” – coisa típica de mineirinho. Perguntou sobre a vida, sua origem, os filhos, a família e, por fim, sobre o marido. A mulher foi, aos poucos, respondendo e se adaptando ao ambiente e à situação. Chegou, então, a hora da abordagem, e o magistrado foi direto ao assunto. – Conheci seu marido ontem! Ele veio aqui me visitar, e fiquei preocupado com a situação de vocês. Ele me informou... assim... quero dizer... bem, ele está bem chateado porque, segundo me disse, a senhora não quer mais “coisar” com ele... a senhora entende, não é? O que está havendo? – Ah! Seu Juiz, eu devia imaginar que ele ia falar sobre isso. Não tenho nada contra ele nem está acontecendo nada de errado. O caso é que ele nunca gostou muito de tomar banho, é verdade, mas agora está demais... Ele parou de todo... O homem está fedendo de não se aguentar, o senhor pode até não ter notado, mas, quando o cabra começa a suar, não tem cristão no mundo que aguente. Bingo! Em um depoimento rápido e eficaz, toda a verdade revelada. Assiste razão à pobre mulher que, agora, passa da condição de interrogada para a de suplicante – concluiu o magistrado em sua verve jurídica. – Já que o senhor tomou conta do caso, Doutô, me ajude e veja se dá um jeito nesse homem, senão não tem acordo. Se entrara na briga, iria até o fim e tentaria salvar aquela união... Ainda que nem tão unida assim! Para complementar a articulação de seu plano, tinha agora que predispor a mulher a um encontro com o marido, agora limpinho. Anunciou a promessa que o
marido fizera, de tomar um banho. Lembrou que ela teria de fazer também a sua parte, até para demonstrar aprovação. Começou recomendando à mulher que desse ao marido alguns “sinais”. Sugeriu que ela, ao sair do Tribunal, fosse até a farmácia do Didi, do outro lado da rua, e comprasse um sabonete para lhe dar de presente. Aconselhou que matasse uma galinha para um jantar especial. Tudo à guisa de um clima romântico. A mulher concordou, mesmo duvidando da transformação do marido, mas comprometeu-se a fazer sua parte e retirou-se. O magistrado acompanhou-a com os olhos até vê-la dirigir-se à farmácia do Didi. Voltou aos seus afazeres normais, aos tantos processos merecendo análise, além daquele caso que, ao final, imaginou que estaria solucionado. Ficou, no entanto, curioso para saber o verdadeiro desfecho, saber se o plano teria dado certo, apesar de ter como certo que, passados quinze dias, sem que as partes retornassem, significava que a situação fora resolvida. A resposta definitiva veio depois de algum tempo, quando lá estava o Juiz, novamente, em uma cerimônia de casamento coletivo. Dirigia-se aos casais, inspirado nas palavras de recomendações, de amor, de respeito, de fidelidade e de compromisso familiar, doravante assumidos pelos nubentes. Observava os casais, pousando os olhos em cada um, para dirigir-se diretamente a eles... De repente, lá entre os convidados, seu olhar encontrou um rosto conhecido: era ele, o marido fedegoso, que se esticou, para sobressair da multidão, e acenou todo satisfeito, tentando demonstrar intimidade de quem conhecia o magistrado. No meio da cerimônia, não havia condições de falar, mas o sorriso estampando os dentes de tanto contentamento bastaria, para comunicar o feliz desfecho. Se não bastasse, veio o sinal de positivo, com o polegar para o alto, num gesto de agradecimento, complementando a certeza do sucesso: – Deu certo, viu? O magistrado meneou a cabeça, sem interromper a exortação aos demais, porém a cerimônia ganhou, para ele, outro significado. Era a resposta que queria. Tinha sim dado certo! Segue o ritual, com todos felizes: o Juiz, pela intervenção extrajudicial, naquela família; eles, “coisando” satisfeitos e (quem sabe?)
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Virgínia Marques Bezerra Juíza
Os correligionários do plano espiritual e terreno Na distante Comarca de Parelhas, de 2ª entrância, no Fórum Municipal “Valentim Nóbrega”, situado na Praça Arnaldo Bezerra, nº 94, Centro, Estado do Rio Grande do Norte, distando 245,4 km da Capital, fronteira com o Estado da Paraíba, encravada entre pedras, com uma vereda como acesso, nos idos de 1994 a 1997, fui Juíza de Direito daquela localidade, Vara única com jurisdição eleitoral. Ali residi três anos e tive meu domicílio pessoal e profissional. Das recordações curiosas, uma em particular, tem característica, a meu ver, de uma realidade de conto regional, demonstrando a diversidade cultural brasileira. No exercício da judicatura eleitoral, quando fui realizar a revisão eleitoral, como atribuição própria da função judicante e dada a proximidade das Eleições Municipais, constatei um expressivo número de eleitores que haviam ido a óbito, no entanto constavam do cadastro de eleitores aptos a votar. Decidi então, promover o cancelamento das inscrições eleitorais, como dever profissional e como convinha a um Juiz zelar pela regularidade das eleições. O que eu não contava e não esperava foi a reação em parte da população, embora tivesse conhecimento que a Comarca de Parelhas era considerada difícil, com histórico de eleições muito disputadas, e havia dado dois Senadores ao Brasil, os quais lá residiam em suas fazendas após aposentados. No ano eleitoral havia uma mudança no panorama
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da cidade. No telhado de cada casa havia uma bandeirinha que sinalizava de qual partido o morador era adepto, resquícios do tempo dos extintos Partidos MDB e ARENA, mas que lá a paixão persistia, transmudada apenas em novos partidos, mas que obedeciam às antigas cores, o verde e o vermelho. A Paróquia de São Sebastião também não ficava ilesa a essa divisão, nos bancos da Igreja local, cada correligionário sentava nos bancos do seu partido, ou seja, havia os bancos para os seguidores do MDB, chamados de “bacurau” e para os seguidores da ARENA, denominados pela alcunha de “arara”. As calçadas das casas também deixavam de ser espaço público, ninguém de um partido pisava na calçada do morador da casa do partido contrário. Os comícios tinham que ser monitorados por mim, na qualidade de Juíza Eleitoral, para que as passeatas não se encontrassem, senão ao final da semana surgia uma série de Boletins de Ocorrência derivados de lesões leves, mas sujeitos aos procedimentos da Lei dos Juizados Especiais. À época, a Lei dos Juizados não era tão conhecida nesse rincão do país, então quando do processamento dos procedimentos, ao fazer a proposta de transação penal, propondo cesta básica ou quantia em pecúnia, que naqueles tempos eram destinados à própria vítima, diferente de hoje em dia, surgiu um comentário jocoso na cidade: “É a lei da Juíza, um murro (soco) vale R$ 100,00 (cem reais)”.
O fato é que quando estava colocando os carimbos de cancelamento nas relações de eleitores, recebi a visita de um vereador indignado com a providência adotada e em andamento. O referido vereador questionou os motivos e eu expliquei que isso era uma situação normal, prevista em lei e necessária, pois o não cancelamento interferiria no resultado da eleição, pois outras pessoas poderiam comparecer em substituição ao votante e o voto ser computado em prol de determinado candidato gerando um resultado não compatível com a realidade. Pensei que esse esclarecimento fosse o bastante para dirimir a controvérsia, mas me surpreendi mais uma vez. Soube que estavam organizando uma passeata para invadir o Fórum e evitar que essa providência fosse levada adiante pelo Magistrado, que no caso era eu. Da porta do Fórum pude avistar uma movimentação ao longe, vindo em direção ao Fórum, com uma enorme faixa. Tinha apenas um policial fazendo a segurança do nosso ambiente de trabalho. Então telefonei para a Comarca de Caicó e pedi reforço policial. O reforço chegou em tempo hábil e de repente a rotina daquela localidade foi mudada com uma linha de homens armados defronte ao Fórum, para impedir que a multidão adentrasse e invadisse o Cartório Eleitoral. A multidão parou defronte ao Fórum, respeitou o policiamento eleitoral e foram embora pacificamente. No entanto, a resistência prosseguiu sob outra modalidade. Dentro do Fórum houve uma articulação que realizou inscrições eleitorais de adeptos de um partido em detrimento de outros pretensos votantes, de outros partidos, sob a alegação de falta de material, que àquele tempo era mediante preenchimento de um formulário. Ao final de três (03) meses, fui procurada pelo candidato a Prefeito, quando os formulários chegariam. A pergunta me pegou de surpresa, pois regularmente eu assinava o deferimento de inscrições eleitorais. Imediatamente, desconfiei do artifício e viajei a Natal, Capital do Estado, onde na sede do Egrégio Tribunal Regional Eleitoral, comuniquei o fato ao Corregedor Eleitoral, o qual decidiu pela instauração de uma Sindi-
cância, presidida pessoalmente pelo Corregedor Desembargador Desdedith Maia, onde foram ouvidos todos os funcionários que integravam o Cartório Eleitoral. Descoberta a autoria, foi afastada a servidora responsável pela artimanha e mediante um esforço sobre humano, trabalhando em regime três (03) turnos, convocamos todos os interessados em se habilitarem como eleitores, para suprir o lapso temporal em que foram impedidos de se cadastrarem livremente e assim restabelecer a democracia do processo eleitoral. A tomada de decisão gerou um clima de tensão, fiquei sob escolta policial, em virtude da contrariedade de interesses. Quando pensei que tudo estava solucionado, no dia da eleição fui surpreendida com outra conduta ardilosa. Os locais de votação foram entregues pelos responsáveis legais, sem a devida limpeza, as escolas com as lâmpadas retiradas, entre outras coisas. Prevendo que a votação se estenderia além das 17:30 horas, seria necessária iluminação, prevendo que no Nordeste anoitece mais cedo, contratei um eletricista, comprei lâmpadas e junto aos funcionários do Fórum, limpamos as salas, colocamos lâmpadas, tudo concomitantemente com a função de Juiz Eleitoral. Na ocasião não dava para separar o Juiz do operário, delegar as tarefas não era suficiente, pois foi necessário usar meu automóvel particular, tendo em vista que até os carros oficiais que normalmente são disponibilizados para as eleições pelos órgãos locais, estavam sem gasolina e com pneus furados. O fato foi noticiado na mídia impressa e falada (jornais de circulação estadual e rádio regional), na época, e as sessões a respeito no Egrégio Tribunal Regional Eleitoral foram acaloradas. Consegui, com muito esforço, realizar uma eleição com dignidade, lisura e transparência. Diplomei os eleitos e hoje guardo na memória que realizei a Eleição Municipal de 1996 no Município de Parelhas, com democracia, sendo fiel ao meu compromisso profissional e honrando as minhas instituições, os Egrégios Tribunais de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte e Regional Eleitoral-RN.
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A esperança é sempre a última a morrer A justiça e seu importante papel no combate à corrupção Por Adalgisa Emídia “Estamos em um governo de leis ou de homens? A lei se aplica para todos ou não? Perdemos a dignidade, temos dificuldade de encarar a nós mesmos no espelho ou a comunidade internacional num cenário de corrupção sistêmica”, Sérgio Moro. “A corrupção dos governantes quase sempre começa com a corrupção dos seus princípios”, Montesquieu “A vaidade é um princípio de corrupção”, Machado de Assis “A corrupção prejudica a capacidade das nações de prosperar e de crescer”, Celso de Mello
Justiça Poderíamos relatar várias frases sobre o tema corrupção. Praticamente, todos os dias, há notícias na imprensa sobre desvios de dinheiro público, desonestidade, roubos. A corrupção vem do latim corruptus, que significa quebrado em pedaços. O verbo corromper significa “tornar pútrido”. A palavra pode ser definida como utilização do poder ou autoridade para conseguir obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse, de um integrante da família ou amigo. A corrupção é sistêmica e pode afetar toda uma sociedade. Faltam leitos em hospitais públicos, estradas estão esburacadas, muitas escolas estão em decadência não só no ensino como também na infraestrutura. Os casos mais comuns envolvem licitações e contratos públicos de qualquer espécie. Porém, também é corrupção o cidadão oferecer ou prometer a um funcionário público uma “gorjeta” para agilizar um processo de aposentadoria no órgão competente ou para assegurar um lugar na fila no setor responsável pelas matrículas escolares ou quando o funcionário público solicita ou recebe tais promessas ou pagamentos.
A AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – lançou neste ano a campanha #somostodosjuizes com o objetivo de mobilizar a sociedade para a questão dos pequenos atos que podem levar à corrupção e que cada um deve fazer a sua parte no combate a esses delitos. A justiça pode e deve ser vista como uma importante aliada no combate à corrupção e graças operações como a Lava-Jato e muitas outras, há um pouco de esperança em todos aqueles que lutam e buscam a dignidade da pessoa humana. “Ao Judiciário compete processar e julgar os ilícitos administrativos, cíveis e criminais pertinentes à corrupção. Assim, o Judiciário é o Poder responsável por dirigir a apuração de tais ilícitos e julgá-los conforme as leis. Especificamente sobre os crimes de corrupção, ativa e passiva, previstos nos artigos 333 e 317 do Código Penal, respectivamente, impõe-se uma mudança cultural para não se deixar de punir os pequenos ilícitos, as pequenas corrupções cotidianas, como “molhar” a mão do fiscal de trânsito, por exemplo, que muitas vezes acarretam a sensação de impunidade no seio da sociedade”, afirma o juiz Raimundo Carlyle.
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O Judiciário potiguar de modo crescente vem sendo instado a se pronunciar sobre questões envolvendo peculato, corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes e dispensas indevidas de licitações.” juiz José Armando Pontes
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Justiça Posição Petrolão, mensalão, propinas e mais propinas que foram destaques na mídia, graças também à atuação da justiça. Os efeitos da corrupção são devastadores ao desenvolvimento social, político e econômico e podem impedir a igualdade de oportunidades, a destinação dos recursos públicos oriundos de impostos nas áreas mais carentes da população e melhorias na saúde, educação, transportes e segurança. Segundo dados divulgados pela Organização Transparência Internacional, no começo de 2016, o Brasil ocupa o 76º colocado em ranking sobre a percepção de corrupção no mundo. Numa pesquisa realizada em 2014, o Brasil estava em 69º lugar. Não cabe analisar as causas dessa decadência, mas sim as consequências para todos nós brasileiros. Um país desacreditado. Mas, por outro lado, com uma esperança renovada na busca por justiça contra as práticas corruptas. A denominada “operação Lava Jato” é o caso mais emblemático da nova realidade que permeia o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, porém ainda falta um longo caminho até o final de todas as suas fases. No Rio Grande do Norte, podem ser citadas, exemplificativamente, as operações “Ouro Negro”, “Candeeiro”, “Sinal Fechado”, “Impacto”, em que se buscou apurar crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Os processos em que se apuram casos de corrupção sofreram acréscimo vertiginoso nos últimos anos a partir de novos mecanismos e instrumentos de investigação que passaram a ser manuseados pela polícia judiciária e pelo Ministério Público, além da célere divulgação dos fatos na mídia. Os efeitos da corrupção são devastadores ao desenvolvimento social, político e econômico de qualquer país porque impedem a livre concorrência, a igualdade de oportunidades, a destinação dos recursos públicos oriundos de impostos nas áreas mais carentes da população”, afirma o juiz Raimundo Carlyle. Juízes no Brasil inteiro se deparam, quase todos os dias, com casos de peculato, improbidade administrativa, desvio de dinheiro público. No Rio Grande do Norte, operações como a “Assepsia”, “Pecado Capital”, “Ouro Negro”, “Candeeiro”,
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A Justiça tem uma posição de centralidade no combate à corrupção, ainda que de atuação silenciosa” Juiz Guilherme Pinto
“Sinal Fechado”, “Impacto”, são alguns dos exemplos da apuração de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. ”A melhor contribuição que o Judiciário pode dar à sociedade no combate a corrupção é tratar de maneira eficiente e célere as ações que digam respeito ao tema, dando prioridade, em todas as instâncias, à instrução e ao julgamento não apenas das questões envolvendo a corrupção, mas de todas as questões que guardem relação com a macrocriminalidade”, esclarece o juiz José Armando Pontes. A transparência e divulgação das notícias envolvendo crimes de corrupção têm sido um diferencial para despertar à população para atos dessa natureza. Há uma mudança de comportamento em não se aceitar tais delitos como práticas comuns e aceitáveis em uma sociedade. A justiça, em muitos casos, talvez seja a última esperança contra a impunidade. “A Justiça tem uma posição de centralidade no combate à corrupção, ainda que de atuação silenciosa. Apesar de não ser encarregada das investigações e manter uma posição de neutralidade, tem a função e a responsabilidade de dar a palavra final nas questões mais delicadas e decisivas envolvendo a punição dos corruptos, desde a decretação das prisões e determinação de outras medidas cautelares, como as buscas e apreensões, interceptações, conduções coercitivas, quebras de sigilos bancários e fiscais, até a decisão final sobre a condenação ou não daqueles a quem são imputadas as práticas criminosas, inclusive aplicando as penas cabíveis”, revela o juiz Guilherme Pinto, da 6ª Vara Criminal de Natal.
Justiça Ex-governador do RN Em todo o Brasil, vemos, nos últimos anos, notícias de prisões de políticos, empresários e servidores públicos que tenham cometido algum tipo de corrupção. Muitos já foram condenados e estão pagando seus crimes nas cadeias. No Rio Grande do Norte, há um ex-governador do Estado, Fernando Freire, preso desde julho de 2015. Freire foi condenado a mais de seis anos de prisão por envolvimento no esquema fraudulento que ficou conhecido como ‘Máfia dos Gafanhotos’. Com a condenação, o ex-governador está preso no Comando Geral da Polícia Militar do RN, em Natal. Além dessa condenação, existem muitos outros envolvendo gestores do Rio Grande do Norte. Como consequência, além das penas, há outros resultados para toda a sociedade. “O resultado é duplo: primeiramente, é uma resposta da Justiça à histórica sensação de impunidade quando se trata de delitos desta natureza, com a punição daqueles criminosos que se apoderam do patrimônio público; depois, a atuação da Justiça implica, na maioria das vezes, em recuperação de bens e valores que haviam sido tomados da administração pública”, disse o juiz Guilherme Pinto. Mesmo para quem não acompanha diariamente as notícias e casos sobre corrupção no Brasil e no mundo; não há como não perceber o crescente julgamento e condenação de crimes envolvendo corrupção. Precisamos falar e denunciar cada vez mais, essa é a sensação de todos em busca de justiça. “Neste ano tivemos, dentre muitos julgamentos de delitos desta natureza, a chamada Operação Candeeiro que foi, até o momento, o maior desvio de valores públicos já registrado no Estado, superando inclusive, em valores, o escândalo dos Precatórios. Apesar da operação ter gerado um processo enorme e complexo, foi julgado em prazo de pouco mais de 7 meses, com condenação dos culpados e recuperação de grande quantidade de bens adquiridos com o produto do crime”, disse o juiz Guilherme Pinto. Os escândalos envolvendo desvios de dinheiro público têm se tornado mais comum nos últimos anos, no Brasil, graças a atuações de agentes públicos como
policiais, procuradores e juízes. A esperança, de muitos brasileiros, está justamente aí. Em artigo escrito em novembro, a jornalista Lillian Witte Fibe, disse que os juízes estão fazendo a parte deles, agindo e punindo de acordo com as leis. “Só com o fortalecimento do Poder Judiciário é que as contas públicas vão parar de sangrar. Só assim, o rombo nos déficits federal, estaduais e municipais vai parar de aumentar em proporções geométricas. Sorte do Brasil que tem juízes como Marcelo Bretas e Sérgio Moro, que hoje, em colaboração inédita e estritamente dentro da lei, atuaram juntos pra prender o ex-governador da dança do guardanapo em Paris. O juiz Glaucenir Silva de Oliveira, da justiça eleitoral de Campos, também não pode deixar de ser mencionado. Foi ele quem mandou prender ontem o ex-governador Anthony Garotinho”, disse a jornalista.
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Os efeitos da corrupção são devastadores ao desenvolvimento social, político e econômico de qualquer país porque impedem a livre concorrência, a igualdade de oportunidades, a destinação dos recursos públicos oriundos de impostos nas áreas mais carentes da população” Juiz Raimundo Carlyle
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A SEGURANÇA INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO E O FORTALECIMENTO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL Patrício Jorge Lobo Vieira
Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Norte, Ex-Membro Titular da Comissão de Segurança Institucional do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e Ex-Diretor de Segurança da Associação dos Magistrados do RN
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Poder-se-ia discutir, outrossim, o direito essencial do magistrado à segurança como um dever imposto ao próprio Poder Judiciário"
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Ao Poder Judiciário incumbe a missão de interpretação e aplicação dos preceitos constitucionais e das leis, realizando o seu autogoverno, protegendo direitos fundamentais e garantindo o Estado Democrático de Direito. Na condição de Membros de um dos Poderes da República, encontram-se inseridos os magistrados, agentes públicos imbuídos do mister de dirimir conflitos, decidindo causas envolvendo grandes grupos econômicos, organizações criminosas, corrupção, tráfico de drogas, delicados litígios de família, improbidades administrativas, pretensões direcionadas contra o próprio Estado, entre outros, o que faz emergir uma função peculiar em virtude do risco inerente às suas atividades. O magistrado, como profissional que vivencia situações diárias de conflitos humanos e em face de instituições públicas e privadas, decide, em regra, sozinho, através de julgamentos públicos, ficando exposto e vulnerável a várias situações de risco, exigindo-se uma atuação firme do próprio Poder Judiciário, sob pena de possível comprometimento à credibilidade da Justiça e do próprio sistema judicial, diante da possível fragilidade
alusiva ao aparato de segurança em prol dos magistrados. Para que o juiz garanta a efetivação de direitos fundamentais dos cidadãos, quando provocado o exercício da jurisdição, ele próprio, como agente do Estado, deve ter uma estrutura e uma política de segurança voltada para a sua proteção. Face à problemática descrita acima, de indagar até que ponto se afetaria a própria prestação jurisdicional com a independência ameaçada, mas exigida e necessária para a referida atividade. Poder-se-ia discutir, outrossim, o direito essencial do magistrado à segurança como um dever imposto ao próprio Poder Judiciário, principalmente porque, para o normal exercício da atividade jurisdicional, quando em situação de risco, uma política de segurança necessária à contribuição para o próprio fortalecimento da independência do magistrado no exercício da atividade jurisdicional. Emerge desses questionamentos uma hipótese básica, a saber: O serviço de segurança dirigido aos magistrados permite o normal desenvolver das suas atividades? As palavras medo e ameaça geram alteração no consciente do magistrado, afetando as suas decisões? A temática envolvendo a segurança dos
magistrados afigura-se de extrema relevância no atual contexto em que se encontra o Brasil. Dados apresentados pela Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB revelam que 538 (quinhentos e trinta e oito) juízes abandonaram a carreira em 20121. Em Questionário Pesquisa de Satisfação de Magistrados, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, apontou-se que a soma de juízes que consideram as condições de segurança ruins e péssimas é de impressionantes 77,5% (setenta e sete vírgula cinco por cento)2. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, 150 (cento e cinquenta) juízes no Brasil vivem sob ameaça de morte. Casos paradigmáticos, a exemplo do assassinato da juíza de Direito Patrícia Acioly, do Juiz Alexandre Martins, no Espírito Santo, de invasões em fóruns e atentados contra magistrados, a exemplo da recentíssima agressão à Juíza em São Paulo3, não se olvidando dos diversos casos de agressões verbais a magistrados até do Supremo Tribunal Federal45, colaboram para a necessidade de medidas efetivas pelo Estado-Poder Judiciário, como responsabilidade vinculada à atuação indispensável de uma política de segurança institucional no sistema judiciário.
1 Disponível em: <http://niajajuris.org.br/index.php/noticias/512-mecanismos-de-protecao-amb-lanca-manifesto-pela-seguranca-de-juizes>. Acesso em 15.06.2015. 2 Disponível em: <http://www.amab.com.br/noticias/detalhe/noticia/ameacados-mais-de-200-juizes-recebem-protecao-especial-no-pais/?cHash=711f5f870ae4de7300545900561c0ea5>. Acesso em 15.06.2015. 3 Disponível em: <http://jota.uol.com.br/presidentes-stf-e-tj-sp-condenam-atentado-contra-juiza-em-sao-paulo>. Acesso em 25.04.2016. 4 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/agencia-cnj-de-noticias/artigos/82049-agressoes-a-juizes-intolerancia-primaria>. Acesso em 26.04.2016. 5 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/mais-duas-associacoes-de-juizes-condenam-ameacas-contra-ministro-do-stf> Acesso em 26.04.2016.
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ARTIGO Várias manifestações da magistratura, reportagens em jornais e na televisão revelam o atual quadro de ameaças6 e risco ao trabalho dos magistrados789, inclusive com relatos no sentido de que a cada três dias, um juiz é ameaçado no Brasil10. O panorama de ameaças e mortes de magistrados traz à baila a necessidade de dotar o sistema judiciário de modernos recursos tecnológicos e de conhecimentos técnicos, também na alçada de inteligência e segurança de dignitários, capazes de oferecer a segurança, minimizando riscos, de modo que os magistrados se sintam seguros e tranquilos para desempenharem suas atividades. Referido quadro faz emergir a necessidade de discussão da segurança institucional e a influência na atividade judicial. Convém destacar princípio de avanços, diante da implementação de Comissões de Segurança Institucional nos Tribunais, iniciando-se procedimentos com identificação de casos específicos alusivos a ameaça a magistrados no exercício da função, instigando-se o desenvolvimento de estudos, debates e buscas de idéias em relação à necessidade de efetivação de uma política institucional de segurança no Estado. Alguns Estados da federação também se encontram em evolução no respeitante à segurança institucional.
ARTIGO Certo é que se precisa agir, implementar-se uma política de segurança como pauta prioritária nos Tribunais. Indiscutível que a prestação jurisdicional pode ser afetada, quando ausente uma política de segurança como medida de Estado. A concretização de tais incrementos contribuirá, seguramente, para o fortalecimento da atividade jurisdicional, como forma de redução dos riscos à vida e à família do magistrado. O Poder Judiciário, na sua estrutura e finalidade, volvido à sagrada independência funcional e administrativa, direcionado à garantia de direitos das pessoas humanas, necessita, para real atendimento à sua missão constitucional, também, agir efetiva e eficazmente com a adoção de política de segurança voltada para o seu corpo de magistrados, para que se possa, com o suporte necessário, melhor desenvolver o seu trabalho, fincado nos valores supremos da Constituição, buscando garantir a efetivação dos direitos dos cidadãos consagrados na Carta Política. Vida, saúde e segurança também são direitos fundamentais dos agentes estatais. Além da exposição dos magistrados - na condição de cidadãos – à violência que assola o País, evidencia-se o duplo risco, decorrente do exercício da atividade judicante.
6 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/sob-ameaca-mais-de-200-juizes-recebem-protecao-policial-no-pais-15350291>. Acesso em 16.06.2015. 8 Disponível em: <http://www.amab.com.br/noticias/detalhe/noticia/juizes-ameacados-primeira-reportagem-da-band-mostra-rotina-de-magistrados-em-risco/?cHash=f35961d68d78ab10466b6ea960ffc1bd>. Acesso em 16.06.2015. 8 Disponível em: <http://www.amase.com.br/leitura/2192/4/amb-propoe-parceria-com-cnj-pela-seguranca-de-juizes>. Acesso em 16.06.2015. 9 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/03/1756078-brasil-tem-mais-de-200-juizes-sob-protecao-apos-ameacas-de-morte.shtml> Acesso em 26.04.2016. 10 Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-03-31/a-cada-tres-dias-um-juiz-sofre-ameacas-no-brasil.html>. Acesso em 16.06.2015.
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Urgem medidas das administrações das Cortes de Justiça, das Associações de Magistrados, do Conselho Nacional de Justiça, no sentido de direcionarem esforços objetivando dotar o serviço judiciário de uma política de segurança efetiva. A responsabilidade estatal decorrente de omissão no referido agir afigura-se evidente. O Estado tem o poder-dever de agir, garantindo aos seus agentes estrutura de segurança razoável, sob pena de permitir, com a sua omissão, aumento de risco à vida àqueles imbuídos da missão de resgatar a dignidade e justiça dos concidadãos. Precisa-se solidificar a cultura institucional de segurança no próprio Poder Judiciário, envolvendo dirigentes, magistrados e servidores. O magistrado também se encontra, repise-se, inserido na condição de sujeito de direitos e destinatário do dever estatal de segurança. Os artigos 5.º e 144 da Constituição Federal consagram direitos e garantias, que, à luz da normativa constitucional, possuem eficácia plena e vinculante a todos os órgãos estatais. A autonomia e independência judiciais, de igual sorte, encontram-se estampadas na Constituição Federal, nos seus artigos 93 e seguintes, emergindo-se o próprio autogoverno como um dos lineamentos vinculados ao Poder Judiciário. Para o exercício das garantias institucionais do Poder Judiciário, segurança institucional é matéria prioritária. A aplicabilidade efetiva das Resoluções
n.º 104/2010 e 176/201311 do Conselho Nacional de Justiça - dispondo sobre medidas administrativas para a segurança no âmbito do Poder Judiciário e instituindo o Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário -, apresenta-se como importante instrumento para início da política de segurança institucional no Judiciário. Será que a previsão de medidas de segurança aos prédios e juízes, estampada na Lei federal n.º 12.694/2012, está sendo observada? O Poder Judiciário, notadamente os Tribunais de Justiça12, estão com projetos de criação de cargos de agentes de segurança, já que os Governos Estaduais estão solicitando devolução dos policiais militares cedidos? E os detectores de metais, existem em todos os fóruns e comarcas do interior? E os controles de acesso, estão sendo implementados para segurança e proteção de partes, testemunhas, advogados, juízes, representantes do ministério público, defensores e servidores? Há intercâmbio entre as Comissões de Segurança dos Tribunais, entre si e entre os órgãos da segurança pública? Como se encontram os encontros entre as Comissões de Segurança, estão sendo capitaneadas por um órgão central articulador? O Conselho Nacional de Justiça está cobrando ações efetivas dos Tribunais em prol da segurança institucional? Os juízos colegiados estão sendo úteis no concernente a maior despersonalização do julgador? Há estudos em andamento acerca da temática? A Lei federal n.º 12.694/12 precisa de alterações para aprimoramento? Os órgãos de segurança
11 Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/25055-resolucao-n-176-de-10-de-junho-de-2013 >. Acesso em 12.06.2015. 12 Segundo a AMAB, 83% dos casos envolvendo ameaças a magistrados encontra-se na Justiça Comum. Disponível em: <http://www.amab.com.br/noticias/detalhe/noticia/ameacados-mais-de-200-juizes-recebem-protecao-especial-no-pai s/?cHash=711f5f870ae4de7300545900561c0ea5>.
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ARTIGO estão analisando a possibilidade de propositura de alterações? Certo é que os criminosos já perceberam a falta de estrutura de segurança nos fóruns e em relação aos magistrados. Nunca houve tanto encaminhamento de magistrados para cursos de tiro. Mas, indaga-se, seria obrigação do magistrado “correr atrás” de meios para a sua própria segurança, ou seria obrigação do Estado? Será que aguardaremos alguma tragédia para alterar o panorama, já que, aparentamente, ações efetivas apenas são implementadas após um assassinato ou uma agressão a magistrado? A Resolução nº 40/32 de 1985 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, ao sufragar os Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura, no item 2 do Anexo, estatuiu que “Os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos factos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam directas ou indirectas, de qualquer sector ou por qualquer motivo”13. Mesmo sabedor das dificuldades orçamentárias, cortes e contingenciamento de verbas pelo Poder Executivo, o Poder Judiciário, capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça e pelas Administrações de Tribunais e associações de magistrados, deve chamar para si a responsabilidade, na condição de Estado, e agir, mesmo objetivando concretizar o básico na área de segurança, sob pena de omissão, principiando com a priorização na aplicação do orçamento, com destinação de verbas em
ARTIGO rubricas específicas para segurança orgânica dos prédios do Poder Judiciário. À luz da presente exposição, constata-se que há possibilidade de se responsabilizar gestores pela omissão atinente à ausência de uma política de segurança institucional para os magistrados. Constata-se, outrossim, a necessidade de maior atenção das entidades envolvidas com a temática, a exemplo de direções de Tribunais, associações, instituições policiais e Conselho Nacional de Justiça, inclusive com atuação conjunta no plano administrativo e, até mesmo, legislativo, com elaboração de ante-projetos de lei volvidos à alteração de penalidades quando se envolver ameaça, lesão corporal ou homicídio tentado/ consumado em face de magistrados, objetivando-se evitar banalização e impunidade, diante das penas mínimas e máximas que permitem transação penal e sursis processual, evitando-se situações delicadas, quando a ameaça ou lesão a magistrado decorrente da atividade funcional acaba na incidência dos juizados especiais, diante das penas diminutas previstas no Código Penal, quando a vítima é autoridade judiciária, constrangendo-a, gerando sensação de impunidade e estimulando mais ações lesivas aos magistrados. Imperiosas alterações legislativas, mas sobretudo mudanças de mentalidade no meio judiciário e de gestão estratégica na seara da segurança institucional, com ações efetivas e unidade da magistratura em relação a tão delicado tema. Como bem delineou Dalmo de Abreu Dallari, emérito jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ao redigir artigo publicado no sítio
eletrônico do Conselho Nacional de Justiça, sob o título “Agressões a Juízes: Intolerância Primária”, in verbis: “Essas violências contra os magistrados, incompatíveis com os princípios constitucionais e, especialmente, com a proclamação do Brasil como sociedade livre e democrática, são agressões aos direitos fundamentais da pessoa humana, proclamados em documentos internacionais, inclusive tratados a que o Brasil aderiu. A par disso, contribuem, inevitavelmente, para o desprestígio do Brasil e para a imagem da sociedade brasileira como desenvolvida, democrática e justa. É necessário, portanto, que todos os que desejam a preservação da boa imagem brasileira e, mais do que isso, aqueles que são dotados de consciência cívica e
aspiram por uma convivência democrática e justa condenem com veemência as agressões aos magistrados e apóiem a punição dos agressores, para que o Brasil seja, efetivamente, um Estado Democrático de Direito, como proclama a nossa Constituição”. O objetivo deste escrito é o de trazer à baila a problemática atualmente existente, no respeitante à segurança institucional no Poder Judiciário, instigando magistrados do País a se unirem em torno de um projeto nacional de segurança, de maneira que sejam diminuídos os riscos inerentes à atividade jurisdicional, evitando-se tragédias e atentados ao próprio Estado Democrático de Direito. O caminho é longo, mas a esperança nos impulsiona à ação.
13 Disponível em: < http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-21.html>. Acesso em 08.06.2015.
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ocê já imaginou V como seria a VIDA sem a INTERNET? CARLOS KELSEN SILVA DOS SANTOS
Advogado, Professor Universitário e Mestrando em Administração (carloskelsen@ltsadvogados.com.br)
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Na minha profissão de advogado, percebo atualmente uma completa dependência da internet”
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Em razão da proximidade de uma curta viagem profissional, iniciei o dia um pouco mais cedo, tendo despertado às 5h10min e, de imediato, seguido para a academia. Vencida a primeira hora do dia e cumprida a meta de exercício, às 8h já estava acompanhando meu filho no inglês e, no intervalo de 1h de espera, iniciei os primeiros contatos via whatsApp, e-mail e telefone, tudo isso em busca das providências previamente programadas para o dia. De repente, ao chegar a escritório, veio a surpresa que motivou a escolha do título: você já imaginou como seria a VIDA sem a INTERNET? Na minha profissão de advogado, percebo atualmente uma completa dependência da internet. Afinal, são pelo menos 100 (cem) e-mails diários, necessidade de acesso aos sistemas de acompanhamento de processos, leia-se e-saj, PROJUDI, PJe do 1° e 2° grau na Justiça Estadual, PJe e CRETA da Justiça Federal e PJe do Conselho Nacional de Justiça. Além disso, para o acompanhamento processual interno, temos o SIJAF e a rede interna, cujos acessos também dependem de internet. Pois bem. Ao ligar o computador para dar início à produção, eis a surpresa de perceber uma certa lentidão nos seus atos, que foi seguida da falta de acesso à internet.
Confesso que após sentir o estresse inicial, principalmente por perceber que estava literalmente de mãos atadas, parei um pouco para relembrar como era a vida quando não possuíamos a internet. Inclusive, logo cheguei a interrogar: será que era mais tranquila? O Diário da Justiça era em papel e todo estagiário que se preze iniciava o dia com a leitura completa em busca dos nomes dos clientes e advogados que integravam o escritório. Aqueles mais interessados não dispensavam a leitura das sentenças que lá eram publicadas. Era a melhor forma de se manter atualizado com a jurisprudência. A visita ao Fórum, que ocorria quase que diariamente, tinha como finalidade buscar informações a respeito do andamento dos processos, que eram descritos em fichas de papel que continham a sua localização, além de possibilitar a realização das cargas. O ajuizamento das ações era feito através de uma visita ao cartório distribuidor, seguida do questionamento a respeito de qual seria a Vara que estava na vez, possibilitando assim a escolha do Juiz para a sua causa. As pesquisas eram feitas através da leitura das revistas dos tribunais e das famosas LEX, revista que trazia a jurisprudência mais atualizada do país. Todo escritório de renome tinha obrigatoriamente que possuir uma imensa biblioteca. As petições eram elaboradas com uso de máquinas de datilografia, as quais foram sucedidas pelas máquinas elétricas que, ao trazerem a possibilidade de retificação do texto, revolucionaram o mercado. A impressão que tenho é que, naquela época, éramos forçados a fazer uma coisa de cada vez; errávamos menos ao datilografarmos um texto, na tentativa de evitar refazê-lo; falávamos mais calmamente ao telefone fixo e ainda deixávamos recados; recebíamos menos parabéns no nosso aniversário, pois somente os amigos próximos se recordavam; decorá-
vamos os telefones dos amigos e familiares; as leituras eram mais assíduas; conhecer as principais notícias por intermédio um jornal diário era obrigação; escrever uma carta e se dirigir ao Correio para selá-la e remetê-la era o máximo; enfim, a nossa vida era mais lenta. Atualmente, alguns detalhes sempre me chamam atenção. Fazemos pelo menos 3 (três) coisas ao mesmo tempo, erramos mais ao redigir, o telefone fixo praticamente passou a ser exceção; recebemos centenas de parabéns no nosso aniversário, porém poucos através de uma ligação telefônica ou até mesmo o contato pessoal; não decoramos mais o telefone de ninguém; lemos menos e as empresas responsáveis pela edição de jornais impressos estão fechando; receber uma carta é exceção, salvo de cobrança. As boas conversas estão sendo substituídas pela troca de mensagens e imagens; não curtir ou não comentar a foto de um amigo virtual poderá ser sinônimo de desatenção e/ou falta de consideração; nossos filhos têm que possuir horário de uso de telefones ou tablets limitado; não anotamos mais recados, simplesmente passamos um whatsApp; a utilização de uma linguagem dita “cibernética” tem afastado completamente o bom português; enfim, vivemos uma nova era. Não posso dizer que sou contra tudo isso ou até mesmo que nada tenho feito para acompanhar a dita evolução. Na verdade, na medida do possível estou tentando ser considerado atualizado. Porém, uma coisa é certa, embora não tivéssemos as facilidades que uma pesquisa no Google pode proporcionar, tínhamos uma vida menos acelerada e, por consequência, menos estressante. Para atarmos as mãos e perdemos um dia de trabalho tinha que ocorrer uma doença grave ou a falta de energia, nunca a queda do sinal da internet. Eis uma pequena reflexão sobre a vida moderna, o que nos remete a imaginar como seria a VIDA sem a INTERNET.
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HUMANISMO E ÉTICA NO EXERCÍCIO DA MAGISTRATURA
Érika Souza Corrêa Oliveira
Juíza Substituta da Comarca de São Miguel
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É indispensável o olhar atento às lides que, embora não necessariamente novas, estão ligadas à dignidade da pessoa humana e que tratam de minorias ou de vulnerabilidades”
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Conhecimento doutrinário. Estudo da legislação e da Constituição. Leitura da jurisprudência. Noção sobre filosofia. Ciência do conteúdo, estrutura e práticas da gestão de pessoas e de processos. Atendimento às metas do CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Estas são algumas habilidades incentivadas (e esperadas) nos magistrados. Através do pensamento reflexivo, indaga-se: para que servem essas capacidades? A resposta está no Direito e na função jurisdicional, que possuem interseção - senão a própria base -, no humanismo e na ética. Considerando que o Direito é o conjunto de regras e princípios que regula a vida em sociedade e que a jurisdição tem por um dos seus escopos a pacificação social, adquirir conhecimento focado no humanismo e na ética é reviver a finalidade intrínseca da magistratura, vocacionada a resolução de questões relativas às pessoas. A função jurisdicional envolve primordialmente a matéria humana, seus problemas, limites e interesses, em razão da qual presta-se a tutela judicial cabível ao caso posto à apreciação. É importante reconhecer a essência humana do Direito e das funções a ele correlatas. A causa e o destino da fixação de normas, morais e jurídicas, é o ser humano. Consequentemente, a compreensão das capacidades buscadas no magistrado - e acima elencadas -, objetiva a adoção do modelo sujeito-sujeito na atividade jurisdicional, superando a coisificação do indivíduo, o que: i) humaniza as relações interpessoais e interinstitucionais; ii) provoca o reconhecimento do outro; e iii) concretiza a ética da alteridade. A vivência da humanização está na consciência de que o Poder Judiciário, assim como as normas, é voltado ao indivíduo. O Judiciário não tem um fim em si mesmo. Tal evidência está nos processos, instrumentos viabilizadores de solução de contendas reais. Por isso, o atendimento ao jurisdicionado deve ser com educação e cortesia, explicando-lhe o significado dos atos processuais e permitindo-lhe influir no julgamento, em obediência ao contraditório efetivo, propagado no novo Código de Processo Civil.
É indispensável o olhar atento às lides que, embora não necessariamente novas, estão ligadas à dignidade da pessoa humana e que tratam de minorias ou de vulnerabilidades (injúria racial, criança e adolescente, idoso, violência doméstica, etc.). Deve-se reconhecer o machismo e a discriminação existentes na sociedade para, indo além, não se contaminar por esta cultura arraigada, que prejudica a imparcialidade. Logo, as políticas de proteção à mulher contra a violência doméstica e as políticas raciais não podem ser olvidadas pelo Judiciário, porque tem por fim incutir nos agredidos a ideia de pertencimento à comunidade e de valorização, fazendo-o se perceber sujeito de direitos. Para isso é preciso realizar depoimentos especiais, em que se minimiza a revitimização da criança ou adolescente, vítimas ou testemunhas de violência, usando uma metodologia diferenciada de escuta judicial, executada por equipe multidisciplinar, que contribui para a fidedignidade do depoimento e evita novos danos. Ou não desprezar a adoção à brasileira, quando estabelecidos vínculos afetivos entre os envolvidos, ainda que ao arrepio do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, mas com laços firmados em consonância com a doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança. A percepção humanista deve estar contida na análise das demandas e na própria estrutura do Judiciário. Na estrutura interna, a ética e o humanismo se aplica na gestão de pessoas, na relação com o servidor. Em havendo conflito, o magistrado deve contextualizar os fatos, separar as pessoas dos problemas, ouvir as partes, despolarizar a tensão e, por derradeiro, reconhecer e validar os sentimentos. Vislumbra-se o papel de liderança do magistrado, com um olhar humanista e ético, através do empoderamento de sua equipe e do exercício da escuta ativa. E esta mesma escuta ativa está presente na conciliação e na mediação. Assim, a gestão de pessoas e a mediação e a conciliação convergem, já que disseminam a percepção pelo magistrado do seu interlocutor. É certo que a mediação não é método consensual de solução diretamente exercido pelo juiz, mas suas técnicas podem ser usadas na prática
diária e nas audiências. De outro lado, o pragmatismo pode nortear as decisões, conciliado com o humanismo. O pragmatismo verifica as consequências práticas dos conceitos e noções elaborados e, caso não se identifique diferença, a disputa de definições é inútil. Para Charles Sanders Pierce, um dos líderes da filosofia, o significado de qualquer conceito é a soma de todas as suas consequências possíveis. Neste passo, o pragmatismo também é objeto de reflexão do magistrado, concernente as consequências concretas de sua decisão, a serem extraídas do empirismo. Nisto consiste o impacto econômico e social das decisões judiciais, que influencia diretamente a vida do indivíduo. E a vida do indivíduo está documentada em cartórios, mediante o registro de nascimento, casamento, óbito, aquisição e transmissão de patrimônio, que contam com a fiscalização do Judiciário. Aí mais uma vertente da atuação do magistrado. Esta fiscalização não é um preenchimento de listas e formulários. A fiscalização dos cartórios envolve o reconhecimento de situações pessoais do indivíduo, devendo haver um sentido ético nesta atividade. Conclui-se que, ao magistrado, não é suficiente saber as normas, atender metas do Conselho Nacional de Justiça, ser célere nas decisões, estudar e julgar em sintonia com as súmulas vinculantes e precedentes judiciais, porque “as leis não bastam. Os lírios não nascem das leis” (Carlos Drummond de Andrade). O juiz está inserido na sociedade e é nela que suas decisões repercutem. Deve ser sensível a comunidade, não apenas de modo filosófico, todavia, e principalmente, de maneira prática, através da escuta ativa do jurisdicionado na audiência ou do servidor; da superação da regra para buscar nos princípios soluções dos chamados hard cases; do esforço sincero em tentar soluções consensuais que não encerrem somente o processo, mas dissolva ou amenize diferenças; da criação de mecanismos que estimule a mulher vítima de violência doméstica, e que se retrata da representação, a frequentar junto com o parceiro um acompanhamento psicológico; e de tantas outras formas concretas de humanizar a jurisdição.
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ALGUMAS REMINISCÊNCIAS DE UM JUIZ DE DIREITO (Qualquer semelhança com instituições, fatos, pessoas vivas e mortas trata-se de mera coincidência)
FRANCISCO DE ASSIS BRASIL QUEIRÓZ E SILVA
Juiz da 1ª Vara Criminal da Zona Norte de Natal
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Vossa Excelência, infelizmente, não possui nenhuma vocação para o exercício do direito, sendo inclusive um jejuno da ciência jurídica. Aconselho-o a desistir da mesma e procurar exercer a sua verdadeira aptidão”
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Pronto. Assim o insigne desembargador Dagoberto Médici que se arvorava como pertencente à árvore genealógica da maquiavélica rainha de França Catarina de Médici que viveu de 1519 a 1589, pontificava cruel e arrogante para o bacharel Édipo Silva, aspirante a juiz de direito, que ganhara dele o tratamento de excelência sem estar presente em nenhum ato solene que exigisse um tratamento tão cerimonioso, eliminando qualquer possibilidade para o mesmo continuar no certame porquanto sentenciara que ele não possuía vocação para o labor jurídico. Mas a interpretação da sentença deste ilustre julgador seria mesmo extensiva, ou seja, Édipo não teria mesmo nenhuma vocação não somente para a magistratura mas também para as demais atividades jurídicas tais como promotor de justiça, procurador do estado, delegado, meirinho ou até mesmo porteiro dos auditórios? Édipo olvidou de lhe perguntar se a sua profecia deveria ter uma hermenêutica restritiva ou ampliativa. Este desembargador que era um católico fanático costumeiramente se vangloriava aos seus pares durante os intervalos das sessões do plenário do impoluto areópago de ferver em suas veias o sangue azul e justiceiro de sua longínqua ancestral Catarina de Médici que pas-
sou para a história como genocida por ter autorizado o massacre da noite de São Bartolomeu acontecido nas noites de 23 e 24 de agosto de 1572 quando sete mil protestantes foram mortos. Na realidade, ele simplesmente aplaudia os grandes genocídios do mundo desde o da Turquia, em 1915, contra os armênios, passando pelo massacre dos judeus e ciganos na Segunda Guerra Mundial pelos nazistas, como também pelo do Camboja em 1970, sem desprezar, obviamente, o do Carandiru em São Paulo em 1992. Na mesa do seu gabinete no interior do tribunal prevalecia o busto do ditador soviético Josef Stalin com a célebre frase que o imortalizou como um dos maiores assassinos da humanidade que a Natureza em um infeliz momento permitiu existir: a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística. Era o segundo certame para ingresso na magistratura do Estado a que Édipo se submetera, o primeiro depois de casado. Ficou no malfadado exame psicotécnico. O que fazer depois que soube do resultado? Poderia recorrer como fizera da vez passada, mas seria em vão qualquer recurso. Sua esposa era conterrânea de um magistrado colega e amigo do desembargador Dagoberto Médici que era o presidente da comissão do concurso. Surgiu uma ideia: poderia falar com o referido desembargador através daquele colega do mesmo que era conterrâneo de sua esposa. Que infantil ideia, somente poderia advir de um jejuno não da ciência do direito como lhe houvera pontificado o sábio e altivo magistrado mas da processualística do concurso até porque o seu resultado já houvera sido homologado pela comissão do certame. E realmente aconteceu o encontro na sala dos passos perdidos do Tribunal de Justiça antes da sessão vespertina do plenário. O desembargador Dagoberto Médici recebeu fria e formalmente a Édipo e à sua esposa. Depois que alguém lhe trouxe o resultado do exame
psicotécnico, o mesmo, olhando para o casal com a cabeça propositadamente elevada, por cima dos ombros e com o nariz empinado como se fosse um deus sendo importunado por míseros mortais, vaticinou a inaptidão do inconveniente candidato para a atividade forense. Édipo continuaria sendo um simples bacharel em direito exercendo seu trabalho em uma função pública do Estado como assessor jurídico, mas certamente orgulhoso e feliz por ter recebido do cerimonioso e soberbo desembargador, em uma conversação informal e rápida com a sua pessoa, o tratamento de excelentíssimo, ou seja, “muitíssimo bom”, mesmo sem ser, naquele tempo e naquele lugar, nenhuma alta autoridade da província. Poderia haver melhor prêmio de consolação do que este? - Obviamente que não. Quando debutou em concurso da magistratura estadual, o então jovem e ingênuo Édipo Silva fora reprovado na prova de elaboração de sentença tendo conseguido passar na primeira prova que consistia em três perguntas e uma dissertação com a nota mínima de 5,00. Então, ele estava na espera da realização desta referida prova prática, em um recinto dentro do Tribunal de Justiça, quando escutou um dos examinadores comentar com os seus pares o seguinte: “Há um candidato que utilizava sempre o verbo “evangelizar” para dizer “preceituar”; este candidato só pode ser o pastor Miranda”. Este ministro da igreja Assembleia de Deus, comunista convicto, que pregava para o seu rebanho de ovelhas evangélicas os ensinamentos bíblicos de Nosso Senhor Jesus Cristo, exortava na porta dos sindicatos de operários a luta armada de classes preconizada por Karl Marx e ordenava a mutilação física e a morte dos infiéis que não comungassem de sua fé religiosa, tal qual praticava Che Guevara contra seus inimigos, tratava-se de um candidato que realmente fora aprovado no concurso. Todavia, faleceu repentinamente no exercício
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ARTIGO da judicatura quando assistia pela televisão ao Presidente da República promulgar a lei que concedia anistia a todos os subversivos, torturadores e terroristas que tiveram sido condenados pela ditadura militar estabelecida no Brasil com o golpe de 1964. Mas, na verdade, quem utilizara o mencionado verbo evangelizar substituindo a palavra preceituar que impressionara aquele examinador ao ponto de comentá-lo com os demais antes do início da prova prática, não fora aquele ministro religioso tão ensandecidamente versátil, mas fora, nada mais nada menos, do que o próprio candidato Édipo Silva. No terceiro concurso a que se submeteu, na prova prática aconteceu algo inusitado. O sorteio foi de direito comercial e o ponto foi sobre títulos de crédito: cheques. O caso redigido pelo juiz Daniel Costa que atuava em uma vara criminal e que há bastante tempo deixara de estudar aquela província do saber jurídico, parecia uma carta enigmática publicada em algum almanaque que Édipo costumava ler, quando escolar, em sua segunda infância: mal redigido, obscuro e elaborado intencionalmente com o único objetivo de confundir e até de reprovar os candidatos. Passada uma hora da prova, nenhum candidato houvera começado a redigir a sentença. Foi um Deus nos acuda! Então o concurso perdeu a natureza de ser um exame para seleção de candidatos à judicatura do Estado, cujo critério deveria ser o mérito dos mesmos demonstrado na prova através dos seus conhecimentos da ciência do direito, para se metamorfosear em um verdadeiro e esdrúxulo pronto-socorro jurídico de atendimento aos aspirantes à magistratura estadual. Os candidatos que logicamente não possuíam a mínima perícia em artes divinatórias buscavam debalde redigir a sentença adequada à espécie pelos diversos métodos de adivinhação disponí-
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ARTIGO veis no momento, tais como pelos reflexos dos enormes espelhos do ambiente, pelos números de suas inscrições no concurso ou até mesmo pelas linhas das palmas de suas mãos já que pelos meios ortodoxos do raciocínio jurídico era impossível fazê-lo. Os examinadores que conversavam alegremente de repente perceberam que se todos não passassem, uns três ou quatro no máximo passariam. Então, eles foram procurar individualmente seus afilhados. A prova prática de sentença deixou de ser individual e passou a ser realizada pelos candidatos ajudados pelos seus respectivos padrinhos. Cada examinador travestiu-se de socorrista. Como vai Édipo, tudo bem? - Perguntou-lhe cochichando ao seu ouvido o professor Arnaldo Oliveira, um dos examinadores da banca, representante da OAB no certame, quando Édipo estava debruçado no caderno de prova, tentando redigir aquela malfadada sentença. Mais ou menos - sussurrou Édipo que não percebeu a intenção do seu interlocutor em desejar socorrê-lo naquele momento de angústia. – “More or less!?.”- Disse-lhe o professor Arnaldo, assim mesmo no idioma inglês, em uma mistura de admiração com dúvida, desistindo mesmo de qualquer ajuda para aquele candidato autossuficiente. A candidata que estava sentada à frente de Édipo era uma bela e jovem bacharela em direito que simplesmente trabalhava como secretária de um dos examinadores. De repente, a sentença que a candidata não conseguia redigir, transformou-se em um ditado de escola primária, ou seja, em um exercício consistente em escrever o que era dito pelo professor. O examinador ditou toda a sentença que a candidata apenas escreveu. Obviamente esta candidata foi aprovada nesta prova e nas seguintes, oral e de títulos, sendo nomeada juíza de direito do Estado.
Seguiu carreira e deixou de ser desembargadora porque um vetusto mais ainda ardente ministro de algum tribunal superior quando em um congresso realizado nesta paróquia, se apaixonou perdidamente por ela que abandonou o lar conjugal, migrando com ele para a capital da República onde tornou-se sua cúmplice tanto em seus eruditos votos nas sessões do impoluto areópago, quanto em acrobacias sexuais acontecidas em sua tórrida alcova. A bem da verdade, o astro que guiava esta juíza somente poderia ser de primeira magnitude, provavelmente a estrela Sírius da constelação do Cão Maior, a mais luminosa do céu noturno. Inobstante não ter aceitado a ajuda implícita que aquele examinador lhe ofereceu, a banca examinadora atribuiu a nota 5,6 à prova prática do candidato Édipo Silva. Mas o destino maquinava silenciosamente contra ele. Na prova oral a que se submeteu, quando puxou uma bolinha do globo da sorte caiu mais uma vez direito comercial e na segunda vez caiu o ponto títulos de crédito: cheque. Ele quase nada dissertou sobre o ponto sorteado, mal balbuciou algumas respostas às pouquíssimas perguntas que lhe fizeram os examinadores e estes notoriamente com compaixão do candidato desistiram de lhe fazer mais perguntas, atribuindo-lhe uma nota cinco, até porque havia um acordo entre os componentes da banca examinadora para não atribuir na prova oral nota inferior a cinco a nenhum dos candidatos. Bastava o candidato comparecer à sessão da prova, sortear a matéria e o ponto, cumprimentar a banca e já teria conseguido automaticamente uma nota mínima de aprovação na referida avaliação que era cinco. O resultado final foi sarcasticamente cruel para Édipo: somadas as notas individuais das provas, subjetiva, prática, oral e de títulos, ele obteve média final 5,8 (cinco vírgula oito), sendo reprovado no concurso da magistratu-
ra por dois décimos, pois a nota final mínima de aprovação era 6,00 (seis). Definitivamente estava escrito nas estrelas que Édipo Silva não seria magistrado ainda ao entardecer de sua juventude, mas tão somente mais tarde, quando despontassem no horizonte de sua vida os primeiros albores da maturidade. “A psicologia é uma ciência exata, tais como o são as matemáticas.” Assim sentenciou, dogmaticamente, da tribuna sagrada do seu notável saber jurídico e reputação ilibada, um dos magistrados da banca examinadora do quarto concurso para a magistratura a que Édipo Silva houvera se submetido em sua vida. O ínclito julgador queria justificar a reprovação específica de alguns candidatos que houveram sido reprovados no exame psicotécnico do certame e que tiveram o atrevimento de recorrer para a comissão do concurso destas suas respectivas reprovações. Ele era um ancião de cabelos alvacentos, mas radical e preconceituo, cuja primeira impressão que causava a quem o visse pela primeira vez era a de ser um daqueles cardeais primazes da igreja católica apostólica romana, arautos de Deus, da família e da moral, que após a morte do papa reúnem-se às portas fechadas em um conclave no Vaticano para escolha do novo Sumo Pontífice. Terminado o certame, com a lista final dos candidatos aprovados por ordem de classificação com suas respectivas notas homologada em definitivo pela comissão, este magistrado antes de enviá-la para publicação pelo Diário Oficial do Estado, argumentando que como presidente da referida comissão seria onipotente, riscou da referida lista os nomes de quatro ou cinco candidatos que conseguiram ser aprovados, mas que, segundo ele, simplesmente não serviam para a judicatura. Alegou que um primeiro porque não era nativo do Estado mas forasteiro, um segundo porque, nos eventos sociais a que comparecia não costumava tomar uísque mas apreciava
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ARTIGO uma vodca e um terceiro porque não torcia para vasco da gama do Rio de Janeiro mas para seu eterno rival o flamengo. Mais uma vez, o teimoso e perseverante Édipo Silva se inscreveria em um concurso público para a magistratura do Estado. Desta vez seria o quarto e, felizmente, o último concurso de juiz a que iria se submeter em sua vida pois, até que enfim, seria aprovado em décimo terceiro lugar no final do referido certame, concretizando seu antigo sonho de ser magistrado. “Esta eleição saiu empatada e como sou o candidato mais honesto eu sou o vencedor da eleição. Há poucos dias eu fui rebaixado na cédula eleitoral, agora fui roubado na apuração.” Assim asseverou ao juiz Édipo Silva o Sr. Mário do Canto candidato que houvera sido derrotado nas eleições de Serrana, termo da comarca de São Francisco de Assis para onde aquele magistrado houvera sido promovido em março daquele ano, tendo presidido a realização de suas eleições no mês de novembro do mesmo ano. Tratava-se da segunda comarca na carreira profissional do referido juiz. Na verdade, a eleição não saíra empatada, mas o candidato Jonas de Souto adversário de Mario do Canto, a houvera ganho por apenas um voto. Nesta época ainda não havia as urnas eletrônicas que hoje existem e as eleições eram realizadas em cédulas de papel que durante a apuração eram contadas manualmente pelos apuradores uma por uma. Na sede da comarca havia o poder de um coronel cuja família era originária dos tempos do cangaço: o então deputado federal Luciano Ambrósio Vigadal, ateu convicto e blasfemo da igreja católica que o excomungara por heresia, conhecido por padecer de uma terrível depressão, de agir ocultamente nas caladas da noite e, sobretudo, de ser seletivamente vingativo. Classificava os inimigos em três categorias: medíocres, atrevidos e figadais.
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ARTIGO Para os medíocres, o castigo atingia o seu patrimônio, ordenando aos seus capangas que roubassem as casas, o gado, veículos, etc. dos mesmos. Para os atrevidos, a sua vindita consistia em surrá-los utilizando um cipó de boi feito do pênis do boi morto e curtido, muito usado pelos coronéis do nordeste; para os figadais, a morte. Mas o seu principal inimigo era o jornalista Teles Lemos, uma espécie de casanova tupiniquim que conquistava as mulheres alheias desbravando intimidades femininas nunca dantes conhecidas por nenhum outro caravaneiro do amor. A sua esposa Mararúbia Vigadal que era uma ninfomaníaca enrustida porquanto socialmente se apresentava como uma madame recatada e pudica, o traía com o mencionado periodista, quer seja nos alpendres de sua fazenda, quer seja na suíte de sua mansão na capital, quer seja na alcova de sua residência oficial de deputado federal em Brasília. Teles Lemos apreciava degustar sexualmente de amores clandestinos, inclusive se relacionava com Nefertite que era concubina de Dom Metralha, um poderoso bispo católico de uma diocese do sertão nordestino, a qual com este prelado tivera filhos resultantes do coito danado. Sua Reverendíssima pertencente à facção criminosa da Igreja de Roma, seria ligado às organizações cabalísticas da Santa Sé, dentre estas a Opus Dei conhecida como o exército do papa ou a máfia santa, bastante criticada pelos profanos por ser ultraconservadora, totalitária e conspiradora. Tratava-se a rigor de uma organização católica internacional fundada em 1928 em Madrid, na Espanha, pelo monsenhor Josemaria Escrivá de Balaguer que, inclusive, atualmente, participa da comunhão dos santos no reino dos céus pois foi canonizado em 2002 pelo papa João Paulo II. Certo dia, Teles Lemos apareceu misteriosamente morto.
Quando a polícia instaurou o inquérito para apurar este crime o deputado que já houvera terminado o seu mandato, alegou que era inocente, pois jamais matara sequer uma mosca quanto mais um ser humano, estando sofrendo perseguição política e pessoal dos inimigos da democracia por ser um paladino das garantias constitucionais que ajudara a insculpir como constituinte da Carta Magna de 1988, historicamente conhecida como a carta cidadã. Quando o delegado argumentou que haveria um motivo lógico para matá-lo pois a sua esposa o traia sexualmente com a pessoa do ofendido, Luciano Ambrósio afirmou que isto nunca aconteceu pois sua esposa sempre lhe fora fiel. Arrematou que o jornalista Teles Lemos, sedutor inveterado da mulher do próximo, houvera sido vítima de uma conspiração executada por determinação do Opus Dei, pois o mesmo fornicava com a amásia de um mafioso bispo pertencente a esta organização. Acontece que os fins desta instituição eram proporcionar aos seus membros, leigos e eclesiásticos, meios de agir seguindo os ensinamentos do evangelho na vida familiar, social, profissional e política. Em outras palavras, os seus associados se dedicavam a procurar a perfeição cristã dentro do seu estado de vida e no exercício de sua profissão. Mas além destes objetivos bastante elevados, havia os propósitos bem prosaicos porém não menos importantes, não escritos oficialmente nos estatutos da instituição, mas insculpidos nos fígados dos seus sócios numerários e supranumerários, que eram os de matar o próximo de todo seu coração e com toda sua inteligência, desde que este próximo viesse a ofender a pessoa, o patrimônio ou a honra de algum dos seus sócios. A máfia santa costumava utilizar qualquer meio letal desde a execução por arma de fogo em casos de interesse maior da instituição até a um envenenamento através de uma taça de arsênico em
casos envolvendo interesses particulares de algum dos associados. Em verdade, Teles Lemos fora assassinado por ordem expressa de Luciano Vigadal que contratara um boticário especializado em fabricar venenos de várias frutas tais como morango, groselha cereja etc., cujo sabor ficava a critério do cliente encomendante. Mesmo tendo sido o mandante deste homicídio, não foi preso em momento nenhum, negou a sua autoria intelectual perante a autoridade policial e, inobstante ter sido denunciado pelo Ministério Público, não virou réu porque simplesmente a Justiça não recebeu a denúncia, absolvendo-o sumariamente. O delegado e o promotor foram de uma intrepidez admirável pois enquanto aquele indiciou Luciano Ambrósio esse o denunciou, mas faltou a devida coragem ao juiz que sucedeu a Édipo Silva na comarca, o qual rejeitou a denúncia argumentando que havia ausência de qualquer elemento indiciário da autoria do homicídio por parte do denunciado, posto que era evidente que Luciano Ambrósio não tinha matado o jornalista. Este juiz, pau mandado do deputado e comparsa de suas safadezas, com quem sempre viajava para gastar o dinheiro público que o parlamentar subtraía dos cofres do Estado no mundialmente conhecido Cassino Estoril no Portugal, era pusilânime e apóstata da fé cristã. Em sua sentença que mais parecia um libelo-crime acusatório contra a igreja católica, argumentou que a versão do homicídio do jornalista pelo Opus Dei procedia, já que ao longo da história a igreja católica diretamente ou através de sua organização principal o Opus Dei era useira e vezeira em executar cristãos e pagãos, bispos e profanos, santos e gentios que contrariassem os interesses de poderosos do Vaticano, que apostatassem de sua fé católica ou para simplesmente resolver traições passionais envolvendo esotéricos com mundanos.
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ARTIGO Arrematou o julgador em sua decisão para fortalecer o seu entendimento que até alguns papas da Santa Sé foram assassinados oficial ou supostamente em circunstâncias diversas que variavam de martírio como o papa Estevão I em 257, sufocado por um travesseiro tal qual o papa João X em 928 e por espancamento por um marido ciumento como ocorreu com o papa João XII em 964. O juiz não olvidou de mencionar que depois de um longo período de abstenção, o último homicídio acontecido nos escaninhos da igreja católica deu-se quando o papa João Paulo I foi supostamente morto por envenenamento na trigésima noite do seu brevíssimo pontificado em 28 de setembro de 1978 por cardeais predadores quando se preparava para dormir em seus aposentos do Palácio Apostólico na cidade do Vaticano. Concluindo alegou que Teles Lemos teria sido assassinado por ordem do bispo numerário do Opus Dei, D. Metralha que, de uma maneira insaciável, era sempre corneado pela vítima que não deixava de ser um infeliz pecador do vício da luxúria. Ex positis, absolvia sumariamente Luciano Ambrósio Vigadal, uma reserva cívica e moral da República, com fulcro na prova pericial acostada aos autos. O laudo necroscópico entranhado ao caderno inquisitorial do processo penal assinado por dois médicos-peritos do instituto de criminalística do Estado presidido à época por um apaniguado do “coronel” Luciano Vigadal atestou que o óbito de Teles Lemos ocorreu em razão dele ser, além de viciosamente luxurioso, pecaminosamente guloso: morreu depois que devorou duas enormes melancias envenenadas que lhe teriam sido presenteadas por Sua Reverendíssima. Mas, espere aí, no sorteio que houve no gabinete do juiz, eu não era o primeiro da chapa? como é que agora eu sou o segundo? – Assim indignou-se o candidato Mario do Canto
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ARTIGO quando visualizou pela primeira vez as cédulas eleitorais que iriam valer nas eleições municipais da cidade de Serrana. Realmente no sorteio das cédulas eleitorais realizado alguns dias atrás no gabinete do juiz Édipo Silva, Mario do Canto era o primeiro enquanto Jonas de Souto era o segundo. Quando as mesmas retornaram da gráfica, veio o inverso. O candidato se dirigiu até o TRE para enredar ao seu presidente que estaria havendo um conluio do juiz com os seus adversários políticos para que ele perdesse as eleições em Serrana, pois as cédulas eleitorais vieram da gráfica com o seu nome rebaixado. O presidente do TRE telefonou para o juiz, ficando sabendo que este já providenciara a devida correção das mesmas. Então, este desembargador lhe fez apenas uma advertência informal e verbal dizendo-lhe, serena e solenemente, pelo telefone, que em alguma próxima eleição cuidasse em se tornar mais desvelado no exercício dos deveres que a toga lhe impunha, sob pena de suportar a instauração de um eventual procedimento disciplinar para apurar ocasional negligência de Vossa Excelência. Como Sua Excelência o então presidente do TRE soubera bem manusear esta metonímia do sinal pela coisa significada quando disse toga em vez de magistratura no momento em que puxara sutilmente as orelhas do juiz Édipo Silva! Decerto ele evocara a imorredoura figura de retórica utilizada pelo notável orador Marcus Tullius Cícero, de Roma antiga, que elevando a eloquência latina ao seu apogeu, pontificara certa vez que as armas cedessem à toga. Terminada a apuração, Jonas de Souto ganhou a eleição somente por um voto de diferença. O candidato Mário do Canto através de um notável advogado, o Dr. Arnaldo de Oliveira, aquele mesmo que, antanho, cochichara ao pé do ouvido do então aspirante
Édipo Silva durante a realização da prova prática do terceiro concurso da magistratura a que o mesmo se submetera, oferecendo-lhe implicitamente algum eventual socorro jurídico, postulou uma recontagem da apuração das eleições ao juiz Édipo Silva que lhe negou a súplica, tendo o mesmo recorrido ao TRE que confirmou, à unanimidade, o resultado maximamente apertado das eleições. O voto de algum desconhecido e único eleitor dera a vitória ao candidato Jonas de Souto para a prefeitura de Serrana. Prego batido e ponta virada, como evangeliza o ditado popular. Chegou o tempo em que o juiz Édipo Silva poderia, se assim o desejasse, trocar a sua toga já bem surrada pelo uso contínuo em audiências e sessões por um pijama leve e perfumado para usá-lo em seu justo repouso de guerreiro. Mas o que fazer? Será que ele faria esta permuta? - Decididamente Édipo não o fez até porque o pijama não lhe coube nas medidas e o seu alfaiate que lhe podia ajustar o
talhe houvera se aposentado. O pijama que ele experimentou ficara folgado demais em seu corpo acostumado a ser abrigado por uma toga apertada de horas utilmente bem ocupadas. Entre ficar com o pijama ou com a toga, ele preferiu continuar vestindo esta. Tal qual o faziam os antigos romanos Édipo Silva já vestira a toga viril feita de lã branca quando atingiu, há bastante tempo, a maioridade; já trajara a toga cândida de um branco imaculado quando se fez candidato à magistratura do Estado; a bordada de púrpura quando se tornou juiz; nunca a de trábia toda púrpura porque esta somente a vestiam os imperadores e os deuses. Continuou trajando uma toga simples, sem luxo, sem pompa, sem sofisticação, porque, como disse o poeta pernambucano Manoel Bandeira no último verso do seu poema Belo Belo, o juiz Édipo Silva quer a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
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CONTO
CONTO
DEUS SEJA LOUVADO!
Paulo Sérgio da Silva Lima
Juiz de Direito 2ª Vara Cível da Comarca de Natal
“
Deus é indizível. Jurisdição vem do latim jurisdictio, que significa “dizer o direito”. Ora, se Deus é indizível Absolutamente impossível fazer a dicção jurídica do que é inefável” 52 | RITOS
Causou-me espécie notícia veiculada na imprensa, na qual a Procuradoria Regional do Direito do Cidadão, em São Paulo, intentou Ação Civil Pública no intuito de retirar das cédulas monetárias a expressão “Deus seja louvado”, sob o argumento de que “a manutenção da expressão ‘Deus seja louvado’ [...] configura uma predileção pelas religiões adoradoras de Deus como divindade suprema, fato que, sem dúvida, impede a coexistência em condições igualitárias de todas as religiões cultuadas em solo brasileiro”.1 Não é o primeiro caso em que se procura vergastar o nome de Deus em juízo (Ora, ora! o nome de Deus em juízo...!). Nesse mundo de comunicação e informação globalizada, lê-se que um Senador do Estado de Nebraska, EUA, chamado Ernie Chambers declarou que recebeu ameaças terroristas de Deus e que Ele permite, no planeta, esse tipo de coisa que “leva morte, destruição e terror a milhões de habitantes na Terra”.2 Já outro, romeno, chamado Mircea Pavel, de 41 anos, que foi condenado a 21 anos de prisão por assassinato, decidiu processar Deus, pois quando foi batizado, ele disse que Deus prometeu protegê-lo do diabo. Como o assassinato foi algo, de acordo com ele, planejado pelo diabo, Deus não cumpriu a sua promessa.3 1 http://www.conjur.com.br/2012-nov-12/procurador-excluir-expressao-deus-seja-louvado-cedulas-real
A vida realmente imita a arte. Numa produção australiana, foi lançado um filme denominado “The Man Who Sued God4” (título em português: “Um homem contra Deus”), no qual Steve Myers é um homem de meia idade que resolveu afastar-se da sociedade e do seu casamento. Vive no barco pescando caranguejos. Um dia, um relâmpago atinge e afunda o barco de pesca. A poderosa companhia de seguros recusa-se a pagar o pactuado, alegando que se tratou de um ato de Deus. Completamente fora de si, só resta a Steve uma solução, qual seja, acionar em juízo o terceiro causador do dano. E o que faz? Processa Deus! Não por outra razão o filme é catalogado no gênero comédia. Sem adentrar no âmbito da discussão sobre o desnorteamento dessas pessoas que querem litigar contra Aquele que não tem adjetivos, nem pode ser coagido ou constrangido, nem muito menos julgado, sugeriria a
parte dispositiva da sentença que bem se enquadraria para afastar tais teratologias: “Deus é indizível Jurisdição vem do latim jurisdictio, que significa “dizer o direito” Ora, se Deus é indizível Absolutamente impossível fazer a dicção jurídica do que é inefável. Diante do exposto, julgo improcedente o pedido diante de sua manifesta impossibilidade jurídica” No caso do pedido da Procuradoria, faz-se-ia mister a citação de Deus como litisconsorte passivo necessário, de modo que o processo teria que ficar suspenso, aguardando a Sua citação por meio de um destemido OJB (Oficial de Justiça Bomba). Ave Bono Sensu!
2 http://www.nbcnews.com/id/20827350/ns/us_news-weird_ news/t/nebraska-state-senator-sues-god/#.V_LfdSErIdU 3 http://www.lpc.org.br/israelense-vai-ao-tribunal-contra-deus/
4 Vejam que a expressão “Sued” é “Deus” ao contrário, o que demonstra - sem que os autores australianos soubessem, já que se trata de um termo em português - a distorção feita da concepção de Deus.
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ARTIGO
Arquivo pessoal/Divulgação
ARTIGO
Wagner Luiz Ferreira da Silva Junior
Arquivo pessoal/Divulgação
Advogado especialista em Gestão Empresarial e Liderança e Gerente Jurídico da Companhia Energética do Rio Grande do Norte - COSERN (Grupo Neoenergia)
José Rossiter Araújo Braulino
Advogado especialista em Direito Tributário e Sócio do Escritório Rossiter Rocha & Capistrano Advogados
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OS PRECEDENTES E A CULTURA DO LITÍGIO O novo CPC destinou atenção especial aos precedentes, como forma de prestigiar o alinhamento conceitual dos temas na esteira da segurança jurídica. O contexto judicial brasileiro, de outro lado, é prodigioso no lançamento de teses jurídicas, muitas vezes calcadas num precedente esparso, a partir do qual passa-se a vender uma determinada “demanda judicial”, notadamente aquelas de viés consumerista ou tributário. Nos últimos dez anos, por exemplo, muitas foram as teses jurídicas que geraram milhares de ações nos tribunais, como o ICMS sobre Demanda Contratada de Energia, o PIS e a COFINS nas faturas de serviços de telecomunicações e no serviço de distribuição de energia, a exclusão de componentes tarifários nas tarifas reguladas, e, mais recentemente, a exclusão da TUSD e TUST (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição e Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão) na base de cálculo do ICMS nas faturas de energia elétrica. Na maioria das vezes, as ações são avolumadas e encorajadas pelas decisões liminares, o que desperta a necessidade de uma reflexão frente ao sistema de precedentes do novo CPC. Os exemplos anteriores foram definidos nos Tribunais Superiores, mas somente alguns anos depois, normalmente meia década, os processos judiciais em trâmite se estabilizaram quanto à tese alinhada pelas Cortes maiores. Foram, porém, pelo menos cinco anos de desalento e insegurança jurídica, quando, muitas vezes, apenas razões processuais sustentavam decisões já superadas, noutros feitos, pelos Tribunais. A tese da vez é o ICMS sobre a TUSD/TUST, que, embora ainda não decidido pelos Tribunais Superiores, tem sido vendida aos quatro cantos com base em precedente do STJ em caso significativamente diverso (AgRg no REsp 1.135.984/MG, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
08/02/2011, DJe de 04/03/2011). Sim, porque o STJ se posicionou sobre a exclusão da TUSD e TUST em um litígio que envolvia consumidor do mercado livre e não um consumidor do mercado cativo, em relação aos quais tem sido vendida a tese. Ora, o mercado livre de energia tornou-se uma opção para consumidores específicos que buscavam vantagens financeiras diante de suas despesas com energia elétrica, fora do mercado regular de energia ou do chamado mercado cativo. Neste ambiente de contratação, o consumidor adquire a energia de comercializadores ou geradores em condições livremente pactuadas pelas partes e, de forma autônoma, também, contrata individualmente com companhias transmissoras e distribuidoras exclusivamente o acesso e uso, respectivamente, das redes de transmissão e distribuição, para fazer chegar a energia gerada às suas instalações. Já no mercado cativo, o distribuidor é o fornecedor compulsório de energia ao qual a unidade consumidora está conectada (residenciais, industriais, comerciais e rurais), com tarifa regulada pela Aneel e isonômica para uma mesma classe de consumidores. O valor da tarifa da energia consumida, além de incluir os custos com a geração, também remunera a transmissão e distribuição, por meio das denominadas taxas de uso de transmissão e de distribuição do sistema (TUST e TUSD). Note-se, portanto, que são duas relações jurídicas completamente distintas e incomparáveis. Numa, a distribuidora é quem carrega toda cadeia de produção para oferecer ao consumidor final o serviço de distribuição (consumidor cativo). Já na outra, são firmados contrato de compra de energia, contrato de uso do sistema de distribuição e contrato de uso do sistema de transmissão, pelo menos, para que o consumidor receba o serviço de distribuição (mercado livre).
O STJ debruçou-se sobre o mercado livre, onde há interconexões e etapas faseadas. Não é o caso do consumidor cativo, que nutre uma única relação jurídica com a distribuidora. O objetivo aqui não é explorar o ponto e chegar a uma conclusão sobre a tese jurídica. Trata-se, ao invés, de sinalizar que, com a força dos precedentes, necessário é que os Tribunais bem delimitem as teses, inclusive, no sentido de excluir interpretações errôneas, como a presente, a exemplo, aliás, do que faz o STF em julgamentos de controle de constitucionalidade quando afasta determinada interpretação de comandos normativos constitucionais. Esse exercício de aprofundamento precisa ser realizado na primeira oportunidade, de forma a não permitir a projeção de liminares que gerem efeitos imediatos, e, depois, quando de uma melhor e mais aprofundada análise, venham a ser revogadas, oportunidade em que o passivo está constituído e não pode mais ser saldado. Sobre esse tema, o da TUSD/TUST para os consumidores cativos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte saiu na vanguarda no enfrentamento do tema nacionalmente, e, aprofundando a questão, já ofereceu lucidez a toda cadeia jurídica de que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Longo debate ainda será dedicado ao tema, mas as reflexões que doravante serão geradas, já oferecerão uma solução muito mais segura e justa para os envolvidos. Dessarte, operadores do direito e julgadores hão de ser ainda mais exigentes na construção e consolidação de teses jurídicas, inclusive valendo-se da força do precedente preconizada pelo novo CPC, tudo com o objetivo final de assegurar a segurança jurídica, evitando que demandas se estabeleçam e abarrotem o Judiciário pela simples falta de clareza na utilização do precedente vindicado.
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Arte
Arte
Célio Duarte
Da leveza à serenidade A juíza Welma Menezes e a arte do ballet clássico à música erudita SOU ASSIM, DE PAS DE VALSE A GRAND JETÉ SOU ASSIM SERENA COMO UM CISNE BRANCO SEGUINDO AO RITMO DO PIANO SOLANDO COMO UMA SOPRANO EM PAS DE VALSE NUMA COREOGRAFIA NO TABLADO DA VIDA EM BUSCA DO EQUILÍBRIO NUM CENÁRIO MÁGICO E INTERPRETATIVO QUE SE FAZ NECESSÁRIO AO SEGURAR A BARRA QUANDO A SAPATILHA APERTA E O TULE SE DESFAZ SOU ASSIM DO EXTREMO DE UM DEMI PLIÉ AO SOM DE CHOPIN AO GRAND BATMANT AO SOM DE TCHAIKOWSKI DE UM POUCO DE GISELLE NA SONATA DE MOZART AO QUEBRA-NOZES QUANDO PRECISO FOR SOU ASSIM MESMO EM DRAMA PRÓPRIO DE UM ADÁGIO SIGO NA PERFORMANCE DE UM DEVELOPPÉ REVISTO-ME DE UM CORSELÉ E COMO UMA BAILARINA NA PONTA DOS PÉS ME FAÇO CRESCER SOU ASSIM AINDA QUE NO CAMINHO FAÇA UM PAS DE BOURRIÉ DRIBLO A VIDA EM ARABESQUE ATTITUDE E GRAND JETÉ
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Com a poesia escrita pela juíza Welma Menezes, há um desnude do ser de uma bailarina na infância e adolescência até se tornar uma magistrada no Rio Grande do Norte. Ela mesma explica a tônica da poesia. “Como tive experiência no ballet clássico desde a infância até a adolescência, minha inspiração nos passos do ballet, com a vida atual, da serenidade ao stress, e todas a dificuldades que temos que enfrentar com fé e atitude. Assim, alguns passos traduzem a calma, serenidade como, pas de valse, demi-plié, developpe, como também a música sonata de Mozart, o Cisne Branco, o cantar de um soprano, ao extremo do cotidiano como no caso, drama próprio de um adágio, a sapatilha quando aperta, o grand battemant ao som de Tchaikovski, e as atitudes para enfrentar os dramas da vida, quando digo, “ao segurar a barra”, comparando com a barra onde os
bailarinos se apoiam, a busca do equilíbrio, o cenário mágico e interpretativo, o “quebra-nozes” quando preciso for revestir-se de uma corselet, que é se tornar mais forte e levantar na ponta dos pés e crescer. E, no final, menciono que ainda que tropece no caminho, quando digo “faça um pas de bourré”, driblo a vida em arabesque, attitude e grand jeté, que são passos do ballet que exigem força, rapidez e elevação”. A juíza Welma Menezes estudou ballet clássico no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, em Fortaleza. Ao passar na faculdade de Direito na UNIFOR, deixou a dança para se dedicar aos concursos públicos. Antes, em 1992, descobriu os encantos da música clássica ao participar do coral da Escola Técnica federal do Ceará, onde cantava desde o popular a músicas sacra e erudita sob a regência do maestro Poty Fontenelle.
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ARTE Desde então, fez parte de outros corais, com o Coral Espírita Prece em Canto, regência de Myra Granjeiro, em Fortaleza, e o da UNIFOR durante o curso de Direito sob a regência de Dalva Estela, regente esta que foi homenageada em Mossoró com o nome do Conservatório de Música da UERN. Welma Menezes pode se dizer que é um talento nato para a música erudita. Ela nunca fez curso de aperfeiçoamento, aprendeu a técnica através dos corais, sem ler partitura, com o timbre de voz considerado Soprano, que segundo definição é a naipe ( o nome que se dá a um grupo de instrumentos musicais ou vozes idênticas dentro de um coro ou orquestra) feminina mais aguda e com maior alcance vocal todos os tipos de vozes. Hoje ela faz parte do coral da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de Mossoró, cujo presidente é Wellington Barreto e a vice-presidente é Taniamá Barreto. “A idealização inicial para eu solar o Hino Nacional na primeira Sessão Magna da Academia foi da Confreira Joana Darc Fernandes Coelho, e que eu fundei e concretizei a história
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ARTIGO do Coral com aquela formação e estilo antes já mencionado no email anterior. O Grupo Incanto já se apresentou ainda nas solenidades e eventos da AFLAM - Academia Feminina de Letras e Artes Mossoroense”, afirma. Aliando a função de magistrada com a de Soprano, Welma Menezes prova que a arte pode ser um importante instrumento de equilíbrio do corpo e da alma, junto ao ritmo estressante de julgamentos, processos, leis, audiências; geralmente num ambiente frio e formal que é o jurídico. “A importância da música na função de magistrada vem para complementar o meu dia-a-dia e ter momentos de descontração e relaxamento, pois o canto me faz muito bem, sinto-me como se estivesse em outra esfera, é como flutuar. E o nível do canto a que me proponho, o erudito, lírico e sacro é condizente com o nível da magistratura”, disse. A última apresentação ocorreu na Sessão Magna da ACJUS, no dia 25 de novembro na OAB de Mossoró. E, como ela disse no início na poesia, a vida segue assim. Entre a leveza, a arte, a música e os processos.
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