A ESCOLA DO SÉCULO XXI
reflexões e implicações para as práticas docentes
Natal/RN 2014
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CARMEN BRUNELLI DE MOURA MARIANO DE AZEVEDO JUNIOR (Org.)
Marcus Peixoto PRESIDENTE
Profª. Sâmela Soraya Gomes de Oliveira REITORA Profª. Sandra Amaral de Araújo PRÓ-REITORA ACADÊMICA
Profª. Valéria Credidio DIRETORA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES Isabel Cristine M. de Carvalho Adriana Evangelista EDITORA UNIVERSIDADE POTIGUAR – EdUnP Pedro Henrique Silva Grizotti REVISÃO LINGUÍSTICA
A ESCOLA DO SÉCULO XXI
Terceirize Editora PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
reflexões e implicações para as práticas docentes
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Moura, Carmem Brunelli de. A escola do século XXI : reflexões e implicações para as práticas docentes / Carmem Brunelli de Moura, Mariano de Azevedo Junior. – Natal: Edunp, 2014. 117p. ISBN: 978-85-8257-012-8 1. Educação. 2 Educação – práticas docentes. I. Título.
RN/UnP/BCSF
CDU 37
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Universidade associada à
Natal/RN 2014
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................... 7 1 A constituição de subjetividades docentes: entre governos, expertises e discursos de verdade ......................................................................... 11 Carmen Brunelli de Moura Marluce Pereira da Silva 2 Os games no ensino de História: problematizando a história com a ajuda dos jogos eletrônicos ............................................................. 31 Mariano de Azevedo Junior 3 Ensino de Português: concepções de linguagem, de língua e de gramática no livro didático do Ensino Médio profissionalizante ................... 55 Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva 4 A Educação de Jovens e Adultos e os saberes sobre aprendizagem de professores ........................................................................................... 71 Tereza Cristina Leandro de Faria 5 Ensino de História e vida prática: o uso de produções cinematográficas no desenvolvimento de conhecimento histórico ........................ 89 Robson William Potier Leda Virgínia Belarmino Campelo Potier 6 Literatura no ensino médio: (des)encontros .................................. 107 Maria da Conceição C. de M. G. Matos Flores
APRESENTAÇÃO A presente obra, A ESCOLA DO SÉCULO XXI: reflexões e implicações para as práticas docentes, é uma coletânea de artigos com os resultados de pesquisas desenvolvidas pelos docentes da Escola de Educação da Universidade Potiguar (UnP). Sobre a prática da investigação, Clarice Nunes1 (1996) assinala que a pesquisa se constrói sobre o tripé fontes, interpretações e narração. Segundo a autora, quando o pesquisador define um corpus de análise, deslancha um movimento de constituição de fontes, de escolha de guia teóricos, de táticas e estratégias interpretativas. Aportes teóricos e interpretações vêm à baila por meio das análises dos pesquisadores e suas práticas complexas, múltiplas e diferenciadas, que constroem o mundo como representação, como afirma Roger Chartier2 (1990). Aproprio-me do conceito de representação a partir da ótica de Chartier (1990), que compreende as classificações e as exclusões que compõem as configurações sociais e conceituais singulares de um tempo ou de um espaço. Essas representações têm sua gênese nas práticas sociais, políticas e discursivas que se materializam nos trabalhos desta obra, que integra aspectos de uma visão contemporânea de escola com a formação do professor em um cenário de necessidades e perspectivas educacionais que se pautam em outros balizamentos, que vão além dos que existem atualmente. É isso que vamos encontrar no texto de Carmen Brunelli de Moura e Marluce Pereira da Silva, sob o título A constituição de subjetividades docentes: entre governos, expertises e discursos de verdade, quando investem em uma história da governamentalidade, 1 NUNES, Clarice. Uma leitura das práticas educacionais à luz da nova história cultura. In: Educação em questão, v. 06, n. 02. Natal: EDUFRN, 1996. 2 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
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que se revela em uma perspectiva central para a descrição e compreensão dos processos de desenvolvimento profissional do professor e que precisa ser repensada, principalmente, em práticas sugeridas pela mídia educativa na atualidade. Mas, qual seria a escola do século XXI? Qual seria a sua configuração? Configuração compreendida, segundo a reflexão de sociólogo alemão Nobert Elias3, como uma construção social global em constantes transformações, na qual estão inseridas as pessoas, suas ações e os elos de interdependências. O conceito de configuração, assinalado por Elias (1970), demonstra que ela se constrói por meio de teias de interdependências entre os sujeitos numa determinada sociedade. Desse modo, uma configuração é uma formação social de dimensões mutáveis, como, por exemplo, um jogo de carteado, uma sala de aula, uma cidade ou até mesmo um país, nos quais os sujeitos estão relacionados entre si e em processo de interdependência. Na configuração de uma sala de aula e seus processos educativos, desde outrora, o regime de educação doméstica consistia na orientação de um professor, denominado mestre-escola, ou de um padre ou capelão. Os mestres-escolas eram contratados para educar os filhos de outras famílias durante três a quatro meses por ano. Para tal função, não se exigia concursos ou títulos, apenas saber ler, escrever e conhecer as quatro operações com desembaraço. Porém, essas práticas foram superadas e, na atualidade, as ações do professor precisam ser repensadas no sentido de promover novas aprendizagens, como demonstra o trabalho Ensino de português: concepções de linguagem, de língua e de gramática no livro didático do Ensino Médio profissionalizante, de Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva. A autora aborda a prática e a relevância do uso da gramática e do ensino do português na contemporaneidade e seus desafios para a escola do futuro.
É com esse incentivo à aprendizagem e em meio à configuração da Pós-modernidade, cujas propostas pedagógicas são relevantes para o processo educativo, que Mariano de Azevedo Junior, em seu texto Os games no ensino de História: problematizando a história com a ajuda dos jogos eletrônicos, traz uma nova perspectiva de educar e compreender a realidade por meio das aulas de História e do uso da tecnologia, através dos vídeos-games, que passam a se configurar como ferramenta pedagógica. Outro texto que vem acrescentar a esta perspectiva é o artigo Ensino de História e vida prática: o uso de produções cinematográficas no desenvolvimento de conhecimento histórico, de Robson William Potier e Leda Virgínia Belarmino Campelo Potier, que problematiza o cinema no cenário escolar. Conhecer a História por meio dos games e do cinema é despertar no educando novos entendimentos e saberes que o impulsionam para a autonomia, com estratégias que garantem novas habilidades e competências. Na perspectiva da educação de jovens e adultos, encontramos no trabalho de Tereza Cristina Leandro de Faria, intitulado A Educação de Jovens e Adultos e os saberes sobre aprendizagem de professores, a aplicação e aferição dos saberes no processo de ensino-aprendizagem. Por fim, encerrando esta obra, temos a literatura como encontro de representação para entender uma realidade, no texto Literatura no ensino médio: (des)encontros, de Conceição Flores, que destaca a relevância de compreender um mundo e uma dada realidade por meio da literatura, uma vez que os textos literários são fontes ricas e mananciais de representações e configuração sociais, históricas e educativas. Nesse contexto, podemos apreender a pesquisa como um processo, uma atividade para entendermos o mundo e transformá-lo. Aplicá-la na sociedade é torná-la ativa, concreta. A busca das fontes é o primeiro passo para lapidar ou construir uma nova realidade. Segundo Duby4,
3 ELIAS, Nobert. Introdução à Sociologia. Tradução de Maria Luíza Ribeiro Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1970.
4 DUBY, Georges. A história continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
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[...] as fontes são como um material brutal. É dele que se extrai o essencial [...], pois convém perfeitamente para designar a massa inerte, o enorme amontoado de palavras escritas e mal extraídas das pedreiras, onde os historiadores se abastecem, selecionando, recortando, ajustando, para construir em seguida o edifício cujo projeto eles conceberam provisoriamente. (DUBY, 1993, p.21).
Caminhar em direção às fontes, com o desejo de reconstituir e entender o processo educativo é pensar a escola e as práticas educativas e desvendar novos caminhos para educação no século XXI.
Dr. Manoel Pereira da Rocha Neto Coordenador de pesquisa das Escolas de Comunicação e Artes e Escola de Educação da Universidade Potiguar (UnP), da rede Laureate International Universities.
1 A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES DOCENTES: entre governos, expertises e discursos de verdade
Carmen Brunelli de Moura5 Marluce Pereira da Silva6
1 INTRODUÇÃO Tempos felizes estes, em que os jovens são sábios e cultos o bastante para se guiarem a si mesmos. Friedrich Nietzsche
Ao trazer as palavras de Nietzsche para este trabalho7, coloco em questão o modo como os discursos de verdade são produzidos nas práticas de desenvolvimento profissional para a “condução da conduta” (FOUCAULT, 2008, p. 197) do professor8 em direção ao governo de si. Do tempo de uma política de multiplicadores, cuja ênfase recaía sobre treinamentos, reciclagens e atualizações constantes dos professores em forma de cursos rápidos e descontextualizados na década de 70, é possível evidenciar, nos anos 80, uma sociedade dos discursos, na qual se multiplicam as instituições de condução da conduta 5
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Professora e Coordenadora do Curso de Letras da Universidade Potiguar (UnP), Natal/ Brasil, da rede Laureate International Universities . Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: carmen.brunelli@unp.br 6 Professora do Curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Doutora em Linguística e Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). E-mail: marlucepereira@unp.br 7 Este trabalho faz parte das reflexões empreendidas, durante o doutorado, acerca de uma discursividade que evidencia uma teoria da pessoalidade, desenvolvida pela Revista Nova Escola para governar a conduta do professor em direção ao século XXI e que se fez presente entre os anos de 2000 e 2005. 8 Reconheço a atualidade e a relevância dos trabalhos em Estudos do Gênero, embora não contemple essas questões neste trabalho. Por isso, não faço distinção entre a forma professor e professora e utilizo a expressão “professor” de forma genérica.
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do professor, que começa a ser sujeito de sua formação e a interagir com uma rede de experts. Essa rede amplia-se no momento em que a hegemonia do Estado passa a ser discutida e sua preservação não evidencia mais efeitos de segurança, união, garantia, certezas, uma vez que a exclusividade de algumas instâncias reguladoras não existe mais e, em seu lugar, é possível vislumbrar uma coleção interminável de possibilidades, propiciada pela liquidez da contemporaneidade. No entanto, nem tudo é tão simples, pois a década de 80 é contraditória, uma vez que essa ideia de professor reflexivo convive com a desvalorização de sua profissão e com cursos de formação aligeirados, falta de articulação entre as instâncias que gerenciam a educação, descontinuidade de programas de formação, falta de incentivos e inexistência de um tempo para a realização de práticas de desenvolvimento profissional (GARCIA, 1995). Eis que chega, então, a década de 90, e com ela os discursos que evidenciam a melhoria da qualidade da educação nas políticas educacionais brasileiras. Para que isso ocorresse de forma satisfatória, era necessário programar uma política de valorização do magistério, que deveria passar, essencialmente, pela efetivação de novos jogos de verdade (FOUCAULT, 2004b), pois a “qualidade da educação depende, em primeiro lugar, da qualidade do professor” (DEMO, 2002, p.72), uma vez que o professor deveria se constituir na chave para abrir as portas do século XXI. Desse modo, se há uma governamentalização do Estado, é preciso que haja uma desgovernamentalização. É nesse sentido que se evidencia “um novo conjunto de noções sobre a arte de governar” (GORDON, 1991, p. 6) os sujeitos, e o Estado, em busca dessa qualidade, passa a dividir seu espaço com várias instituições que enunciam investimentos e “promessas” em programas voltados para a formação permanente do professorado. É nessa época que a Revista Nova Escola, compreendida como um espaço público de educação (NÓVOA, 2002), como uma pedagogia pública (GIROUX, 2003), ou ainda como uma prática discursiva que passa a ganhar maior visibilidade na mídia educativa, pois 14
propõe ressignificações no modo do professor se conduzir profissional e pessoalmente, já que até então, não havia nenhuma leitura especializada para professores9, conforme afirma a professora Regina Silda Leite Araújo. Nesse espaço da mídia educativa se produzem e são veiculados enunciados de fontes diversas, que passam a funcionar como uma forma de governo que guia, molda a ação e a conduta dos professores com “promessas”, que se tornam, a cada edição, mais sedutoras, aliciadoras e sutis, tanto na vida pessoal quanto profissional dos docentes. É a arte de governar, proposta pelo neoliberalismo, que se faz presente na mídia educativa quando esta ratifica o discurso do Estado acerca da formação de novas combinações que assegurem a transformação do professor em um sujeito “livre” e responsável por suas ações, atitudes, comportamentos. Nesse espaço público de governo também está vinculada uma formação que ultrapassa uma teoria da profissionalidade (NÓVOA, 2007), voltada para um conjunto de saberes compartimentalizados e organizados por meio de disciplinas cujas estratégias seriam o governo do outro, e se privilegia uma teoria da pessoalidade (NÓVOA, 2007). Nesta, as verdades com as quais o professor é equipado não têm como objetivo a apreensão de saberes profissionais, mas a tarefa de transformá-lo, de modificar seu modo de ser consigo mesmo. Enquanto na primeira a preocupação é com o produto; na segunda, é com o processo, com a construção de modos de ser sujeito a partir de práticas de si (FOUCAULT, 2004b), que se constituem no que denomino de práticas de desenvolvimento profissional autônomo. A partir dessa constatação e da naturalização dessa arte de governar os professores, deslocada das práticas oficiais originadas no Estado para uma governamentalidade autônoma promovida pela revista Nova Escola, que levanto algumas questões: o que são e o que certificam essas práticas neoliberais propostas nos discursos da Revista Nova Escola? Que efeitos de sentido são instaurados por essas 9 NE, jan. /fev.2001, n.139, p. 29.
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“promessas” e o que há de sedutor em seu discurso, que passa a constituir as subjetividades do professorado leitor da Revista? Como os exercícios propostos pela Revista aos professores produzem efeitos que refletem os valores neoliberais? Ou seja, que exercícios, técnicas, procedimentos são propostos pela mídia educativa para fixar, manter ou transformar as subjetividades dos professores? Para tentar descrever tais questionamentos, objetivo analisar como a Revista Nova Escola constitui as subjetividades de professores para o século XXI. Tomo os discursos da Revista Nova Escola, periódico mensal da Fundação Victor Civita, publicada desde 1986, cujo compromisso é o de equipar o professor do ensino fundamental para o trabalho em sala de aula. Para isso, a Revista apresenta relatos “reais” de práticas pedagógicas vividas por professores também “reais”; experiências; indicação de livros; discussão de novas metodologias, apresentação de autoridades e suas teorias. Essas problematizações serão tratadas a partir da perspectiva interpretativista discursiva, de trabalhos acerca da pesquisa educacional (ROSE, 1996, 1998; MARSHALL, 1994; GARCIA, 1995), e da governamentalidade, principalmente das tecnologias do eu (FOUCAULT, 1995, 2003, 2004a, 2004b), que são úteis para a compreensão dos espaços alternativos em que se instituem outras formas de governo dos sujeitos na contemporaneidade. Para tentar dar conta dessas questões, trabalho com uma amostra representativa colhida de um artigo e cartas de duas edições da Revista do ano de 2004. Optei por esta descrição por compreender que apresentasse bem claro um discurso com aspectos sedutores do neoliberalismo, direcionados para o professor e para as prometidas transformações. 2 GOVERNAMENTALIDADE E NEOLIBERALISMO
A governamentalidade tem se tornado, nos últimos anos, um conceito-chave do trabalho de Michel Foucault, uma vez que essa noção passa a ser caracterizada como o “elo perdido” (LEMKE, 16
2002) entre os projetos de “genealogia do Estado moderno”, desenvolvidos por Foucault em suas palestras de 1978 e 1979, e de “genealogia do sujeito”, na década de 80, ambos no Collège de France. O conceito se tornou uma orientação para analisar as relações entre as tecnologias de dominação e as tecnologias do eu, além de oferecer outra leitura em relação às pesquisas educacionais, principalmente sobre os aspectos sedutores propiciados pelas “promessas” neoliberais que orientam para a emancipação, liberdade, autonomia do professor. Foucault se utiliza do conceito de governamentalidade como um guia para analisar as tecnologias do eu, que são oferecidas ao sujeito em nome de uma ética, ou seja, em nome de um governo de si mesmo que, necessariamente, passa pela relação com o outro de uma maneira não autoritária; e as tecnologias de dominação, que objetivam o sujeito, determinando sua conduta e submetendo-o a certas coerções. A governamentalidade abrange uma estreita ligação entre formas de poder e processos de subjetivação. Foucault (2008) assegura que este conceito é importante para a compreensão da “governamentalização do Estado” e o quanto a racionalidade neoliberal é uma representação apropriada da sociedade ao produzir novas formas de conhecimento e inventar outras noções que contribuam para o governo de novos domínios. Em outras palavras, há uma redefinição do que é da competência do Estado e do que não é, ou seja, do que é público e do que é privado, embora já não haja uma distinção tão nítida entre essas instâncias. A governamentalidade neoliberal mostra que o “recuo do Estado” não passa de um prolongamento do seu governo e novos atores entram em cena com novas tecnologias, que implicarão em uma maior responsabilidade dos sujeitos e em uma produção de novas subjetividades. É nessa perspectiva da governamentalidade que Foucault passou, então, a estudar esse conceito nos discursos que eram elaborados desde a Antiguidade chegando à contemporaneidade, a fim de tornar possível perceber que os sujeitos estão sempre em um processo 17
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de constituição ética por meio de tecnologias do eu. Assim, Foucault se distancia das práticas coercitivas e se aproxima das práticas de formação do sujeito ou, como ele mesmo diz em um ensaio:
[...] se agora me interesso de fato pela maneira com a qual o sujeito se constitui de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas práticas são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos e impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social. (FOUCAULT, 2004b, p. 276).
É nesse sentido que Foucault (2004b) percebe que em todas as sociedades, junto às tecnologias de poder, que “[...] determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação” (FOUCAULT, 1990, p. 48), estão as tecnologias do eu, que “[...] permitem aos indivíduos efetuarem, por conta própria e com a ajuda de outros, certo número de operações sobre os seus corpos e suas almas, pensamento, conduta, seu modo de ser” (FOUCAULT, 1990, p. 48). Governar, então, consiste na sutil relação entre tecnologias de coerção e tecnologias do eu, o que Foucault deixa claro quando diz que a governamentalidade além de implicar a relação com o outro, implica, também, uma relação consigo mesmo. Essa relação ética do sujeito compreende o “[...] conjunto de práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter em relação aos outros” (FOUCAULT, 2004b, p. 286). Isso só é possível porque o poder é analisado sob o ponto de vista da governamentalidade e não da instituição política. Não há mais um sujeito que tinha direitos e agora não os tem mais. Ao contrário, o poder, dentro da ideia de governo, permite fazer “valer a liberdade do sujeito” com outros sujeitos e consigo mesmo, ao estabelecer uma relação ética. Em outras palavras, os jogos de verdade da Revista Nova Escola, com 18
suas estratégias de poder-saber, produzem modos de subjetivação para a constituição das subjetividades do professor para o século XXI. Por isso, os artefatos midiáticos, principalmente as revistas educativas, com suas verdades e seus experts, se constituem em “matrizes de transformação” das subjetividades dos sujeitos que se lançam nesses jogos e passam a jogá-los a fim de obter as melhores vantagens para si e um menor controle das instituições. Essa ampliação dos jogos de verdade para além dos limites do Estado revela que a condução da conduta dos professores vem sendo reafirmada por outras “promessas”, que parecem ser mais convidativas, mais tênues, mais aliciadoras. A mídia propõe um encontro do professor com o outro com a intenção de produzir uma prova transformadora de si mesmo e não simplesmente “uma apropriação simplificadora do outro com o fim da comunicação” (ORTEGA, 2000, p. 124). Isso conduz a um trabalho ético que implica a relação intersubjetiva sem prescindir de códigos de comportamento e regras de conduta. Esse é o trabalho realizado pelas “promessas” neoliberais propostas pela revista Nova Escola, que se mantém no mercado de periódicos educacionais desde 1986 e cuja linguagem se torna cada vez mais próxima do professorado, reafirmando discursos e fornecendo um equipamento de proposições que tem valor de prescrição sem se configurar em dominação. A Revista propõe aos professores uma variedade de exercícios que permite transformações em seus corpos, condutas, comportamentos e implica na produção de “autonomia” e “liberdade”, expressões mais adequadas para descrever os efeitos de sentido propiciados pelas práticas que governam a sua conduta no contexto neoliberal. Em vista disso, em tempos de neoliberalismo, os discursos das políticas públicas, voltadas para o processo de desenvolvimento profissional, trazem em seu interior uma maximização da liberdade dos sujeitos e deixam de lado “uma cultura de dependência”, cujo efeito é considerado nocivo. A mentalidade do neoliberalismo rompe com o assistencialismo e com as oposições entre público e privado, Estado e sociedade 19
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civil. Agora, o Estado não se sobrecarrega com uma multiplicidade de ações, pois estas são executadas por meio de uma profusão de alianças entre várias instituições, que assumem projetos para governar a economia, a vida social e a conduta individual. São alianças que representam uma rede discursiva que se difunde por toda a sociedade e expressa um programa de racionalidade política estruturado sob um objetivo mais ou menos comum: governar a conduta do professor, tendo por base discursos que ampliem a relação do professor consigo mesmo e com o outro, ou seja, que desenvolvam autonomia no processo de constituição da subjetividade do professor. Nesse governo dos sujeitos, o poder não impõe restrições, coerções, mas cria espaços nos quais é possível tornar-se um sujeito capaz de assumir uma espécie de liberdade regulamentada e autônoma, que não se contrapõe ao poder, mas é um conceito-chave para seu exercício. O sujeito no contexto neoliberal é aquele que empresaria sua própria vida pessoal e profissional ao administrar a transformação de sua conduta, comportamento, pensamento, por meio das “promessas” que lhe são oferecidas por expertises, que se proliferam vertiginosamente nestes tempos líquidos. A mídia se constitui em uma destas expertises que fornece modelos de subjetividades e discursos, que passam a administrar o eu contemporâneo. Como diz Foucault : O poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto ‘livres’ - entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamentos podem acontecer. (FOUCAULT, 1995, p. 244).
Não há, então, uma confrontação entre liberdade e poder, mas um jogo que abre espaço para a diversificação, para uma expertise, cuja autoridade é “atribuída a determinados experts que podem fazer julgamentos baseados em suas verdades e poderes” (ROSE; MILLER, 1990, p. 2), além de fornecerem mecanismos versáteis e atraentes e a pro20
messa de que todos conseguirão os resultados desejados. Nesse jogo de relações entre poder e liberdade se produzem os modos de subjetivação contemporâneos. É nesse sentido que autores como Mitchell Dean (1999) e Nikolas Rose (1998a, 1998b, 1999a) tomam a liberdade e a autonomia como centrais nas relações de poder que subjazem as práticas neoliberais. A liberdade é, portanto, vista como historicamente variável e começo e fim das práticas discursivas governamentais. Assim, as subjetividades contemporâneas são governadas por uma expertise da subjetividade (ROSE, 1998b, 1999a), que entra em aliança com as autoridades do Estado ao traduzir suas preocupações sobre política, economia, lei, ordem, saúde, e com os próprios sujeitos quando a expertise traduz as preocupações pessoais, profissionais, de saúde, de lazer dos mesmos em uma linguagem que invoca discursos de verdade. Os experts nos processos de subjetivação se oferecem para ensinar ao sujeito técnicas pelas quais ele possa conduzir sua conduta da melhor forma, e a linguagem funciona como uma verdade desinteressada e reguladora das subjetividades. Por isso, na governamentalidade neoliberal todos se acham no direito de aconselhar e de se inserir em uma rede de legitimidade de discursos, que pretendem transformar a subjetividade do professor em outra mais rentável para o Estado. A mídia educativa é uma expertise que parece cumprir essa tarefa de forma satisfatória, uma vez que reafirma as “promessas” neoliberais e passa a administrar os professores ao autodomínio, a um modo de governo de si por meio de práticas de liberdade. Assim, a “ordem do discurso” desse tipo de mídia não só é disciplinar, normalizar, interditar, mas também intensificar a relação que os sujeitos têm consigo mesmo, de propor transformações em suas subjetividades. Mas, como se dá essa relação na mídia educativa? 3 A GOVERNAMENTALIDADE EM NOVA ESCOLA
Este breve exercício analítico a respeito das implicações das “promessas” neoliberais na constituição das subjetividades do pro21
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fessor pela Nova Escola permite considerar que ela “[...] ‘quer’ modificar alguma coisa em alguém, o que supõe, por sua vez, alguma concepção do que é esse ‘alguém’ que deve ser modificado, [...] alguma noção de subjetivação e de sujeito: ‘quem nós queremos que eles e elas se tornem?” (SILVA, 2001, p. 3). Esse alguém é o sujeito do neoliberalismo, um “empresário de si mesmo”, que é levado a administrar sua formação pessoal e profissional por meio de promessas que lhe garantam o sucesso. Nesse mundo neoliberal é preciso ser competente, determinado, flexível, cooperativo, competitivo, ativo, aventureiro, enfim, não há espaço para fraquezas nesse sujeito. Essa é a proposta para o século XXI em relação ao professor e Nova Escola sugere uma série de tecnologias que passam a equipar os professores a observarem-se, avaliarem-se, julgarem-se, governarem a si mesmos, a constituírem-se como sujeitos de uma determinada experiência. Mas, como a revista propõe na materialidade discursiva essas “promessas” ao professor? Que efeitos são produzidos por essa discursividade e como afetam as subjetividades do professor? Quais são as práticas que passam a servir de guia para uma maior autonomia e liberdade do professor em sua vida pessoal e profissional? Estas são algumas das questões para a compreensão dos processos de subjetivação do professor que apontam para a emergência de discursos neoliberais, que se encontra materializada no artigo “Monografia sem segredo”, publicado na revista Nova Escola, edição 171, de abril de 2004, assinado pelo expert Paulo Araujo, veiculado nas páginas 28 e 29 e no qual descrevo as promessas neoliberais e as transformações propostas ao professor. Além disso, lanço um olhar para as cartas publicadas na edição 172, de maio do mesmo ano, nas páginas 12 e 13. 3.1 AS PROMESSAS NEOLIBERAIS
O artigo de Paulo Araujo inicia apontando a relação conflituosa entre o texto monográfico e aquele que se propõe a produzi-lo 22
em vista das exigências das práticas acadêmicas ou profissionais. No texto, é possível encontrar um manual com os “primeiros passos”10 para que o professor, em seu processo de desenvolvimento profissional, possa produzir esse material acadêmico. Esse manual é orientado por Paulo Rogério Scarano, professor de Metodologia do Trabalho Científico da Universidade Mackenzie, de São Paulo, e Maria Chrsitina Zentgraf, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ambos se constituem em experts, cuja função é manter e promover subjetividades autônomas e responsáveis, mediada por uma exemplaridade que se torna a parte mais relevante nos discursos dos experts. Isso se confirma na apresentação que Paulo Araújo faz acerca desses dois experts e escreve que os “dois especialistas apontam os cuidados que você [professor] deve ter ao elaborar um trabalho de conclusão de curso de qualidade”. Seus discursos são avalizados não apenas por seus nomes, mas, principalmente, pelo pertencimento a duas conceituadas instituições, localizadas em cidades representativas de produção de conhecimento – São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse artigo, é possível observar a certificação de uma promessa cujo efeito de sentido aponta para a invenção de uma discursividade que aumenta a autonomia do professor quando apontam que é preciso apresentar ao orientador alguns temas de pesquisa, mas “nunca peça a ele essas indicações”. Para isso, “participe de debates, simpósios, seminários e outros eventos [pois] eles vão ampliar seus conhecimentos”. Esse é o percurso inicial proposto pela discursividade dos experts em direção à autonomia do professor, que aponta vários motivos para a equipagem desse saber. Entre eles está a adoção de “outra postura, procurando causas e relações entre fatos e mostrando assim sua capacidade de pesquisar cientificamente”. Apreender a produção do texto monográfico permite sua formação com maior propriedade 10 As expressões entre aspas e sem referência correspondem ao artigo e cartas retiradas da edição, abril de 2004, da Revista Nova Escola.
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em “cursos superiores, de especialização ou de capacitação” e como uma “forma de registrar e documentar suas experiências pedagógicas”. Para isso, é preciso que o professor se deixe inserir nesta governamentalidade, pois esses “primeiros passos” se inscrevem em uma formação discursiva que evidencia efeitos que atravessam regimes de verdade e implicam outra maneira de se conduzir, de se governar. Para conseguir a liberdade, o professor precisa calcular e reduzir os riscos a uma condição mínima, a fim de não cair em armadilhas e perigos propiciados por uma opacidade da sociedade e uma incerteza do futuro. Por isso, as transformações exigidas em relação à postura do professor tendem a ser alcançadas à medida que há uma maior liberdade de escolha, ou seja, o poder tende a se disfarçar em um livre-arbítrio e a obediência a certos padrões passa a ser realizada a partir de “promessas” tentadoras e aliciadoras. Assim, no ideário neoliberal, os sujeitos não são governados pelo Estado ou qualquer outro dispositivo por meio de um controle direto. Suas subjetividades são constituídas por meio de um encorajamento e aconselhamento para que sejam “livres” para realizar suas próprias escolhas, tomar suas decisões, decidir qual o melhor caminho a tomar em sua formação. E isso a revista Nova Escola faz com mestria, uma vez que há a transmissão de verdades cuja função é “dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidade, sabedorias” (FOUCAULT, 2004a, p. 493). Uma dessas verdades se traduz em uma “promessa de liberdade”, por exemplo, marcada pelas formas verbais como “escolha”, “participe”, “registre”, “defina”, “leia”, entre outras, que, embora tragam os efeitos de sentido de autoridade, de imposição, de prescrição, deixam transparecer sentidos de “autonomia”, de domínio de si, de um “eu empreendedor”, uma vez que direciona o fazer para o outro, neste caso, o professor. Isso se dá em vista de um discurso neoliberal ratificado pela revista, que não pode ser vista como um panoptismo nem como uma arte liberal de governar baseada em técnicas disciplinares e em procedimentos de controle, de coerção e de opressão. Ao contrário, a revista está atrelada às atividades de uma expertise, cujo papel não é o “con24
trole social”, mas a administração dos diversos aspectos da conduta dos professores por meio de “técnicas de educação, persuasão, gestão, incitamento, motivação e encorajamento” (ROSE; MILLER, 1992, p. 3). Em outras palavras, nesse jogo neoliberal nada é mais imposto e as autoridades não ordenam como antes. Elas agora aliciam, seduzem, se tornam agradáveis, amigas e confidentes, por isso, investem em um discurso que promete um processo de subjetivação distinto daquele anterior à apreensão desses discursos e que se materializa em expressões como “leia livros, revistas, jornais”, “recorra também à internet, às monografias” para que o professor não “escolher um tema já tratado à exaustão”. Esses cuidados vão se configurar em um discurso de exemplaridade, pois os experts “sabem das coisas”, assim como sabem a melhor maneira dos outros sujeitos chegarem ao seu domínio. A arte de governo proposta pela revista tem suas próprias regras, objetivos, fins que propiciam colocar em prática a lógica da governamentalidade neoliberal. É nesse jogo e em seus efeitos de sentido que a Nova Escola, juntamente com os experts que são convidados a falar sobre determinados assuntos, ensina não apenas como produzir uma “monografia sem segredo”, mas também como realizá-la “com bastante segurança”. Mais que uma “preocupação” com a produção do material acadêmico, essa prática discursiva impõe, como um livro de autoajuda, os “dez passos” para a felicidade. E, para essa felicidade estar completa, o professor deve não apenas “cuidar” de seu texto, mas também de sua saúde. Para isso, a revista investe no corpo e na saúde do professor com a “promessa do corpo saudável”. É no entrelaçamento entre o governo dos outros e o governo de si, tão próprio da governamentalidade neoliberal, que o sujeito é guiado por um discurso do corpo perfeito e da venda da saúde incluindo, além da parte física, o lado psicológico e mental. Essa “promessa” é materializada na sequência discursiva: “é bom estar preparado”. Preparado para quê? Ao produzir esta “atividade com bastante segurança”, o professor chegará à conclusão de seu trabalho “sem ficar estressado”. 25
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É a revista se “preocupando” com o corpo do professor e transformando sua conduta em direção à tão sonhada autonomia. Cuidar de si mesmo na contemporaneidade implica “ajustar-se ao exterior, oferecer-se, com um conjunto de verdades que, ao serem aprendidas, memorizadas e progressivamente postas em prática, constroem um sujeito com um certo modo de ser e uma certa maneira de agir” (MARSHALL, 1995, p.28). O professor apreende que no jogo das verdades o estresse é a causa de muitos problemas no corpo e, para o século XXI, é preciso manter uma postura saudável e que ele “mantenha-se tranquilo”. Nesse trabalho da revista, é possível entrever o lugar dos discursos nos processos de constituição dos modos de subjetivação do professor, ou seja, que os discursos não são simplesmente frases, atos de fala, partes de texto, nem podem ser concebidos como descritores da realidade; eles constituem o mundo e os sujeitos que nele se inserem. 3.2 AS TRANSFORMAÇÕES SUBJETIVAS
Rose e Miller (1992, p. 1) afirmam que o “poder não é tanto uma questão de impor restrições aos cidadãos, como de ‘tornar’ os cidadãos capazes de assumir uma espécie de liberdade regulamentada”, e é nesse sentido que, na seção Cartas da revista Nova Escola, os professores-leitores passam a experimentar e demonstrar como as “promessas” neoliberais se fazem presentes em suas vidas. Isso pode ser observado na sequência discursiva da carta enviada por Rubens Silva, de Sete Lagoas, cidade de Minas Gerais, à revista em maio de 2004: Quando concluí o mestrado no final do ano passado, estranhei não passar pelo mesmo drama que observei em muitos de meus colegas. Eles passavam noites em claro para elaborar a dissertação. Como não vivi nada disso, eu me perguntava se o modo como eu fazia estava certo, agora percebi que não me cansei porque agi como recomenda a reportagem. 26
Nesse conjunto de enunciados, o discurso das promessas de transformação do professor proposto pelo artigo “Monografia sem segredo” se faz presente e constrói a imagem de um professor proposta pelas verdades dos experts e exigida pelo contexto neoliberal, ou seja, uma imagem de alguém ativo, autônomo, com espírito empresarial. É o deslocamento de uma atitude passiva e dependente do Estado para uma mais responsável e encorajada a otimizar a melhoria da qualidade do trabalho do professor, exigida para o século XXI. O estranhamento de Rubens demonstra o distanciamento de seus colegas, pois “todos” passam “pelo mesmo drama” e por “noites em claro”. No entanto, como o Estado não se constitui mais em um porto seguro, nesse quadro de sujeitos autônomos que vai sendo formulado pelo neoliberalismo, Rubens passa a refletir sobre sua conduta e a de seus colegas durante o mestrado. Para sua felicidade e satisfação, ele percebe o quanto fez diferente e o quanto isso motivou sua transformação. Isso se confirma com a leitura do artigo e do discurso dos experts em trabalhos acadêmicos, que lhe mostram o quanto o caminho tomado para a constituição de uma subjetividade deve ser colocado em prática nesse início de século, com exercícios que podem ser utilizados nos momentos difíceis da vida. Além da promessa de liberdade e autonomia, o discurso de Rubens reafirma a “promessa do corpo saudável”, pois ao seguir todos os conselhos da expertise em relação ao trabalho, ele passa a tomar suas “próprias” decisões e a controlar sua saúde. Ao afirmar que o que “fazia estava certo”, Rubens percebia que seu corpo mostrava indícios de que tudo caminhava a contento, ou melhor, que tudo caminhava conforme o discurso neoliberal, uma vez que ele afirma: “percebi que não me cansei”. O motivo de não ter se descuidado de sua saúde e, portanto, não ter se estressado, devia-se ao fato de ter agido “como recomenda a reportagem”. Rubens se reconhece nesse jogo de verdade, que se constitui em um conjunto de regras que produzem determinadas verdades. Todo esse conhecimento sobre si remete ao governo de si, que vai implicar no governo com os outros. 27
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Rubens segue os conselhos da revista e de seus experts e aprende a dirigir sua vida e a cuidar de seu corpo. Adilene Oliveira é outra leitora da revista, na edição 172, de maio do mesmo ano, que confirma o quanto a exemplaridade é necessária para a direção das suas ações e condutas. A professora, em uma carta enviada à revista, diz que “As pessoas que sempre estão se atualizando necessitam desse tipo de informação dada pela revista”. Adilene parece se inscrever em um discurso de autonomia e liberdade ao afirmar a necessidade da informação dada pela revista àqueles que “sempre estão se atualizando”. A expressão “necessitam” implica um efeito de diálogo e revela a relação da professora com o outro, com o mestre. Sua posição de discípulo ao discurso de verdade proposto pela revista aponta para a impossibilidade do sujeito ser independente sem uma relação com o outro, sem os exemplos dados pelo outro, pois o “trabalho pode ficar vago”. Para Adilene, apenas com o saber não há transformação. É imperativo que haja certo domínio e, para isso, é preciso que o sujeito transforme o conhecimento adquirido, as verdades oferecidas pelos experts, em realidade, em práticas. Uma dessas práticas é o Prêmio Victor Civita, concurso no qual, de acordo com a professora, o saber adquirido irá facilitar sua entrada, e quem sabe até mesmo a obtenção do primeiro lugar. 4 CONCLUSÃO
Em meio a essas promessas neoliberais e processos de subjetivação, algumas ideias se tornam ponto central desta problematização e parecem relevantes para a descrição dos processos de desenvolvimento profissional, produzidos pelos discursos alternativos que passam a ocupar espaço na contemporaneidade junto com o discurso oficial. Foi possível perceber que os professores se encontram em meio a uma proliferação de discursos de experts que, embora partam de lugares heterogêneos, são transformados em uma aparente homogeneidade pela revista, que corrobora com um efeito de sentido único, 28
ou seja, o do professor autônomo e independente. É o discurso da mídia que certifica promessas que apontam determinados caminhos para a transformação do professor. Essas promessas guiam o comportamento do professor de forma sedutora, pois os discursos de verdade da revista estão voltados para a construção de uma base mais sólida de conhecimento, exigida para o novo milênio. Os efeitos de sentido dessas promessas podem ou não continuar a contribuir para as mudanças nas subjetividades dos professores. Mas, é notório nas cartas um discurso de emancipação aliado a um jogo de liberdade e flexibilidade, características exigidas pelo neoliberalismo aos professores. São as subjetividades sendo marcadas por promessas que agem no sentido de conduzir e modificar a conduta do professor. Nesse contexto de condução, a mídia educativa propõe certas tecnologias aos professores a partir de um jogo sedutor de verdades, tornando quase impossível ao professor recusar-se a entrar em tal jogo. É com sua entrada nesse jogo, aliada a tecnologias que operam transformações em sua conduta, corpo e alma, que o professor percebe que a ação de jogar implica a obtenção de mais vantagens na vida pessoal e profissional. Essas técnicas se constituem em práticas de liberdade que “promovem novas formas de subjetividade”. São as “promessas” neoliberais que procuram tornar o professor um sujeito livre e autônomo para que este possa atender melhor as suas exigências. São as autoridades convocadas pela Nova Escola promovendo tecnologias para que o professor seja autossuficiente e se garanta contra todos os males da existência. Os jogos de verdade da revista estão ancorados na intenção de que governar a conduta do professor não é forçá-lo a nada, mas levá-lo a tomar suas “próprias” decisões. Esta é a forma de governar encontrada pela revista, ou como diz Foucault (2008, p.4), é a “maneira pensada de governar o melhor possível e também, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a melhor maneira possível de governar”. Em outras palavras, esta é a arte de governo da revista com suas regras, 29
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objetivos, fins que propiciam colocar em prática a lógica da governamentalidade neoliberal. Essa rede alternativa, que vem se desenvolvendo desde os anos 90, reforça o pensamento neoliberal de que o governo da conduta dos sujeitos vai ao encontro de um discurso de “emancipação” dos professores, propiciado pela introdução maior e mais acentuada de um jogo de verdades, articulado por experts inseridos em diferentes formações discursivas. O que a problematização da relação do jogo discursivo entre a Revista e as práticas neoliberais revela, ou, ao menos, descreve, é a produção de “promessas” de “liberdade”, “autonomia”, “autocontrole”, que seduzem e transformam os professores em elementos significativos para o Estado, assim como demonstra a construção de jogos de verdade que vão constituir o professor em um movimento emancipatório. REFERÊNCIAS
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2 OS GAMES NO ENSINO DE HISTÓRIA: problematizando a história escolar com a ajuda dos jogos eletrônicos
Mariano de Azevedo Júnior 11
1 INTRODUÇÃO Já é lugar-comum nas atuais discussões sobre o ensino de História que seus objetivos não consistem mais na transmissão imediata de informações ou de conteúdo, assumindo em um novo conjunto de metas o desafio de estimular uma aprendizagem baseada em problematizações. Diante desse quadro, isto é, da mudança paradigmática da História escolar, algumas perguntas podem ser feitas com o objetivo de obter esclarecimentos sobre os procedimentos a serem adotados pelos docentes: quem são os alunos que chegam às salas de aula hoje em dia? Qual o volume de informações que eles têm sobre determinados assuntos? Como se deve trabalhar o conteúdo dos currículos através de métodos considerados inovadores? Quais os canais comunicativos dos quais os estudantes são usuários e que podem estar informando-os sobre possíveis temas históricos? Acredito que todos os leitores deste texto, sujeitos da sociedade midiática ou da informação, concordariam em apontar prontamente alguns desses canais sem receio de estarem errando ou exagerando: a televisão; a rede mundial de computadores; as mídias e as redes sociais; os dispositivos móveis de comunicação; o cinema; os videogames. Estes últimos, inclusive, considerados fenômenos da cultura digital, já ultrapassaram, a nível mundial, o consumo do cinema e da música, enquanto em alguns países já superaram até mesmo a televisão. 11 Professor e coordenador do curso de História da Universidade Potiguar (UnP) da rede Laureate International Universities. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail:marianoazevedo@unp.br.
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E essa é somente uma das razões pelas quais desenvolvemos este trabalho, focado em investigar seriamente os videogames como meios comunicativos poderosos no contexto da sociedade das mídias. Preocupamo-nos, especialmente, com o “conteúdo histórico” que muitos jogos eletrônicos veiculam maciçamente e acabam informando os usuários (jogadores) acerca de determinados assuntos, tornando-se, na nossa visão, potenciais de aprendizagem quando utilizados de forma problematizada nas aulas de história. Na verdade, compreendemos os videogames como peças componentes das chamadas NTICs (Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação) e nos preocupamos em analisar os seus efeitos no desenvolvimento de novas demandas cognitivas, já existentes especialmente no público jovem da sociedade da informação. Mas, antes de sugerirmos algumas reflexões sobre os jogos eletrônicos, entendidos como fontes para as aulas de História, devemos nos preocupar em discutir de forma mais ampla o papel das novas tecnologias na educação, buscando com isso justificar este estudo. Para o historiador Marcos Silva (2007), a preocupação com as NTICs é algo urgente para os docentes, pois os desafios impostos para a educação nos nossos dias exigem alta capacidade de reinventar o ensino praticado no ambiente escolar. Em primeiro lugar é preciso compreender as identidades dos alunos enquanto sujeitos ativos dessa própria sociedade midiática, para somente depois tentar trabalhar formas de construir algum tipo de aprendizado. Analisando uma produção financiada pelo governo norte-americano, intitulada Using Technology to Support Education Reform (Usando Tecnologia para apoiar a Reforma na Educação), Silva discute as novas metas da educação, que cada vez mais deve concentrar esforços para enfatizar uma aprendizagem colaborativa com grupos gradativamente mais heterogêneos e para construir uma identidade estudantil baseada em métodos dinâmicos de ensino que tenham como eixo principal de ação a interação instrumentalizada. (SILVA, 2007) Para o autor, as NTICs são ferramentas potentes para o ensino 34
voltado para as atuais gerações, que ganharam o nome, entre os teóricos norte-americanos das mídias, de geração net. Segundo teóricos como Steven Johnson (2005), [...] a mídia e a tecnologia, especialmente a TV e os videogames, criaram um ambiente de maiores demandas cognitivas, mais profundidade, mais participação que propiciaram os ganhos das últimas gerações em algumas formas de inteligência. (JOHNSON, 2005, p. 127).
Essas novas “formas de inteligência”, ou novas demandas cognitivas, foram identificadas na construção de novos sensores de aprendizagem desenvolvidos nos membros da mencionada geração net. Na reflexão com os teóricos das mídias, Silva ainda identifica que essas novas subjetividades apontam para aperfeiçoamentos no raciocínio lógico e abstrato, na leitura dinâmica dos espaços e na facilidade de compreensão de formas complexas de linguagem por parte dos jovens. Isso porque o universo cotidiano no qual estão inseridos exige deles, enquanto usuários das novas tecnologias e leitores apurados das mídias digitais, uma alta capacidade de resolução de problemas (SILVA, 2007). Podemos ainda ressaltar que esses novos padrões de inteligência são resultados de uma sociedade gerida no contexto da revolução causada pelas telecomunicações, como ressaltou o teórico francês Pierre Lévy (1999). Para o autor, essa revolução da informação e da comunicação gerou novas formas de trocas de saberes, aproximações culturais e interação entre as pessoas, criando inclusive novos espaços de atuação dos indivíduos (LÉVY, 1999, p. 16-17). Sem dúvidas, o espaço que hoje se destaca dessa realidade é o que chamamos de “espaço virtual”, que ao contrário do que sugere alguns resistentes mais conservadores, não é fictício no sentido de não compor parte da realidade humana, mas o revés disso: é o mais novo tipo de espaço reservado às experiências das pessoas que vivem na sociedade da informação. 35
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Ainda seguindo as reflexões de Pierre Lévy (idem), podemos identificar o mais acabado tipo de espaço virtual criado onde as pessoas interagem o tempo inteiro e das mais variadas formas: são os ciberespaços. O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (LEVY, 1999, p. 17).
O conjunto desses ciberespaços definidos por Lévy, desde que sejam entendidos como peças componentes da realidade da sociedade da informação, forma um universo capaz de caracterizar a maneira como as pessoas vivem e se relacionam umas com as outras e com as instituições. É este universo que ganhou o nome de cibercultura. E muito embora o teórico francês não tenha se ocupado em falar particularmente dos videogames, podemos identificar o universo criado pelos jogos eletrônicos como ciberespaços por simularem realidades nas quais os jogadores irão interagir com os cenários e com outros usuários, significando dessa forma as realidades experimentadas. A maior parte dos usuários desses ambientes virtuais certamente está lotando as escolas, o que impõe a nós professores a tarefa de compreender esse novo perfil dos estudantes e de reinventar nossas posturas pedagógicas. Aplicando essa reflexão no ensino de História, se torna interessante perceber que as novas tecnologias utilizadas como ferramentas de aprendizagem ainda podem contribuir para o cumprimento da difícil tarefa do “saber pensar historicamente”, qual seja, a de problematizar o passado a partir de elementos significados no presente. Diante disso, muitos profissionais da área podem se perguntar em que medida o uso de recursos didáticos ou métodos de ensino devam 36
utilizar componentes das NTICs para substituir os recursos ou métodos convencionais, baseados na transposição didática ou na transmissão de conteúdos específicos das disciplinas. Para responder a essas inquietações, devemos nos valer das novas propostas do ensino, especialmente aquelas que apontam para a instrumentalização das aulas e para a interação entre o professor e os alunos no espaço coletivo da sala de aula. Particularmente, os professores devem se perguntar qual é o seu papel na educação básica hoje em dia. O que deve ensinar o professor aos seus alunos? Ciente do rumo das atuais discussões sobre o ensino de História, Luis Fernando Cerri (2011) promoveu uma relevante discussão sobre o que conhecemos pelo nome de “consciência histórica”. O autor buscou encaminhar definições e esclarecimentos sobre o que é essa consciência da qual comumente os professores e os historiadores se valem para autorizar os seus discursos de detentores de um tipo de conhecimento específico e estabelecido dentro de padrões de reflexão. Alargando os limites do seu próprio campo de visão, Cerri retira a consciência histórica do monopólio da própria História enquanto ciência e a recoloca no fluxo do movimento social. Para o autor, essa consciência deve ser entendida como um fenômeno social inerente ao existir humano no tempo. Suas concepções vêm das reflexões realizadas na leitura de autores como Jorn Rüsen e Agnes Heller, para quem a consciência histórica deve ser entendida “como uma característica constante dos grupos humanos, por maiores que sejam suas diferenças culturais” (CERRI, 2011, p. 28). Ainda de acordo com o autor, o pensamento de Heller se estrutura da seguinte forma: [...] a consciência histórica é inerente ao estar no mundo (desde a percepção da historicidade de si mesmo, que se enraíza na ideia de que alguém estava aqui e não está mais, e de que eu estou aqui, mas não estarei mais um dia) e é composta de diversos estágios, que indicam a inserção da consciência em diferentes contextos da trajetória da humanidade. (HELLER apud CERRI, 2011, p. 28). 37
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Em outras palavras, Heller e Rüsen entendem que a existência humana requer em si a necessidade cotidiana de pensar historicamente, o que resulta na constituição de um fenômeno tipicamente humano. Cerri ainda esclarece que existem diferentes formas de pensar a História, sendo a acadêmica aquela que é especializada e formalizada em uma linguagem técnica e científica, acordada nos padrões das universidades. Desse modo, essa consciência histórica não é propriedade dos historiadores, mas um fenômeno pertencente à própria experiência dos homens enquanto atores dos espaços sociais. Para Jorn Rüsen, trabalhar essa consciência é fruto de uma operação mental que pode ser dada na experiência prática da vida humana: [...] a consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não – ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens. A consciência histórica enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática. Essa historicidade consiste no fato de que os homens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo, têm metas que vão além do que é o caso. (RÜSEN apud CERRI, 2011, p. 29).
Dada essa discussão mais filosófica, podemos constatar que o aluno não precisa do professor para poder entrar em contato com o sentido histórico no qual sua vida existe, pois sua própria experiência cotidiana produzirá, consciente ou inconscientemente, efeitos ou sentidos de historicidade a partir da percepção fundamental do “jogo” das temporalidades, isto é, da consciência de que o presente está, de alguma maneira, relacionado ao passado e pode estar ligado ao futuro. Entretanto, não queremos e nem podemos diminuir a importância do professor de História na sala de aula, muito pelo contrário, pois o seu papel se torna mais complexo quando ele próprio se coloca na condição de coordenar o fluxo das informações históricas 38
absorvidas pelos alunos a partir de vários canais de comunicação ou de transmissão de conteúdos que são consumidos por eles. Em outras palavras, o docente deve assumir a tarefa de conduzir com clareza e segurança as reflexões dos alunos até um determinado “ponto de chegada” que ele próprio estabeleceu e considerou relevante para os resultados de uma ou de várias aulas. Em suma, o professor não deve se preocupar em edificar na cabeça dos estudantes algo chamado “consciência histórica”, mas organizar o sentido dessa consciência com competência teórica e principalmente metodológica na condução das aulas. É com essa compreensão das práticas educacionais sintonizadas com o universo das novas tecnologias e do ensino de história baseado mais em problematizações (como a questão da consciência histórica) do que na mera transmissão de conteúdos, que nos preocupamos em analisar a aplicação dos jogos eletrônicos como recursos e mesmo como fontes históricas trabalhadas nas aulas. Mas antes de discutirmos propriamente o assunto, precisamos falar um pouco sobre o que são necessariamente esses produtos da cultura digital, como eles foram vistos nas décadas passadas e como são reconhecidos hoje no mundo e principalmente na sociedade brasileira. 2 OS VIDEOGAMES NA CULTURA E NA EDUCAÇÃO
A história dos jogos eletrônicos atravessou momentos importantes do século XX, tendo se iniciado praticamente no início da década de 1960, considerando como marcos os jogos feitos para o computador TX-0 e o célebre game Spacewar, desenvolvido no Massachussets Institute of Techonology – MIT (GULARTE, 2010, p. 42). No século XXI, vivemos a sétima geração dos consoles 12 e as evoluções 12 A expressão “console” significa o aparelho de videogame em si na sua configuração mais conhecida, ou seja, conectado ao televisor. Ainda existem outros tipos de aparelhos que dão suporte a jogos eletrônicos e que não são “consoles de mesa”: são os arcades, mais famosos pelo nome de “fliperamas”, e os consoles portáteis, que apresentam pequenas telas acopladas ao aparelho, dispensando a necessidade do televisor.
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técnicas e simbólicas sofridas pelos videogames são grandiosas e incontáveis, tanto graficamente quanto no que se refere às narrativas e à complexidade das tramas dos jogos. O primeiro console foi fabricado e colocado à venda no mercado em 1970, nos Estados Unidos, e ficou conhecido pelo nome de Simon no mercado norte-americano. No Brasil ele foi comercializado pela empresa Estrela do Brasil com o nome de Genius. Do Simon americano (o Genius brasileiro) até aqui, os videogames ganharam reconhecimento mundial e hoje lideram a indústria de entretenimento, sendo apontada como uma das mais impactantes e lucrativas de todo o mundo. Entretanto, no Brasil, a comercialização desses produtos não vingou nas primeiras décadas, como nos Estados Unidos e no Japão, por questões fáceis de identificar: da década de 1970 até a de 1990 o Brasil não possuía um mercado de eletrônicos aquecido, o poder de consumo do brasileiro era bem menor do que podemos constatar hoje e a tecnologia da informação e da comunicação demorou muito a se popularizar no país. Os próprios computadores pessoais (PCs) se popularizaram tardiamente na sociedade brasileira. Isso impediu, é claro, a popularização dos videogames no cenário nacional, o que automaticamente criou uma verdadeira barreira para seu reconhecimento enquanto produto ou bem cultural da sociedade da informação pelo motivo de não haver grande circulação do produto, acarretando numa enorme falta de conhecimento sobre esses aparelhos e seus jogos. O videogame era considerado um produto caro e reservado a uma pequena parte da elite, que entendia o produto como certa brincadeira eletrônica de criança. Isso não quer dizer que o videogame, hoje, se popularizou totalmente ou que o produto já está acessível a todos os setores sociais, mas o ramo dos jogos eletrônicos é um dos que mais cresce no país. Podemos dizer que foi somente a partir da segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000 que os videogames passaram a ser tratados com mais seriedade no Brasil. Hoje em dia, os 40
principais consoles já são fabricados e montados no país13, sem contar como as empresas desenvolvedoras de jogos inseriram o Brasil no circuito mundial de consumidores ativos de games. Além disso, temos as primeiras gerações de adultos que consomem videogames e seus produtos relacionados com os frutos de suas próprias independências financeiras, contribuindo bastante para aquecer os pontos de vendagem do setor na economia nacional. No entanto, os videogames ainda não são completamente reconhecidos no Brasil, sobretudo porque a opinião pública sobre o assunto é formada em grande medida por pessoas de gerações que se desenvolveram em contextos não tecnológicos, ao contrário da realidade de algumas gerações de adultos atuais, que conheceram o mundo dos jogos eletrônicos nas suas infâncias e adolescências durante os anos 80 e 90, mais diferente ainda da visão dos jovens da já mencionada geração net, pertencente à cultura do teclado, mouse, controle remoto e joystick.14 Um livro intitulado originalmente The effects of television, computers and video games15, publicado em 1984 por uma pesquisadora norte-americana chamada Patricia Marks Greenfield, mostrou que o tema videogames também foi tratado de forma preconceituosa pela sociedade dos Estados Unidos naquele início de década. Ela relata que, em uma audiência pública em Los Angeles, na Califórnia, pais de crianças e adolescentes pediram a proibição dos fliperamas, que eram acusados injustamente como elementos nocivos semelhantes ao cigarro, bebida alcóolica e à violência gratuita (GREENFIELD, 1988, p. 85). 13 Na verdade essa realidade é muito recente no Brasil, tendo se iniciado somente em 2012, quando a empresa norte-americana Microsoft iniciou a fabricação do seu console XBOX 360 em terras brasileiras. Somente este ano, em 2013, a empresa japonesa Sony deu início à montagem do seu console Playstation 3 no país. Os consoles citados aqui concorrem de igual pra igual no mercado de videogames e significam os produtos mais importantes para suas empresas criadoras. 14 O termo “joystick” é utilizado para nomear o que mais popularmente é conhecido como “controle de videogame”. 15 “Os efeitos da televisão, computadores e vídeo games”.
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A pesquisadora mostrou que estudos realizados na própria época da polêmica afirmaram o contrário, que os videogames não são capazes de afetar negativamente a moral social ou dos usuários dos produtos e que se os jogos eletrônicos viciavam naquela época, o fazia muito menos do que a televisão. Greenfield ainda constata que a reação negativa ao novo produto também era fruto de uma enorme ignorância de setores da classe média conservadora, ainda não acostumada a um cotidiano cercado de tecnologia e, portanto, desinformada acerca dos temas apresentados pelos jogos eletrônicos. Certamente podemos estabelecer relação da situação apresentada pela autora com o que aconteceu na mesma época e mesmo posteriormente na sociedade brasileira. Para a autora norte-americana, que possuiu visão pioneira considerando a época, os jogos eletrônicos são capazes de despertar no jovem uma alta capacidade de resolução de problemas pelo fato deles lidarem constantemente com desafios que são colocados na tela do computador ou da televisão. Os videogames têm o elemento visual dinâmico da televisão, mas também são interativos. O que acontece na tela não é inteiramente determinado pelo computador; também é bastante influenciado pelas ações do jogador. Um exemplo simples é o jogo original do computador comercial, Pong, um pingue-pongue eletrônico. Como outros jogos populares de computador, Pong envolve imagens visuais, tal como a televisão. Mas, ao invés de simplesmente assistir a uma partida animada de pingue-pongue, como se assistiria aos jogos de Wimbledon pela televisão, o jogador joga de verdade a partida, e assim participa da criação do que é mostrado na tela do vídeo. (GREENFIELD, 1988, p. 85).
A citação da autora está em sintonia com as primeiras discussões deste texto, isto é, a que sugere que o uso dos videogames contribui para o desenvolvimento de certos tipos de inteligência, 42
como a capacidade de resolução de problemas e a leitura dinâmica dos espaços. Isso se dá justamente porque jogar games requer um conjunto de habilidades necessárias para se vencer desafios, que são constantemente impostos ao jogador. E se ainda levarmos em consideração que a autora está falando de um jogo rústico, de mecânica simplória e de gráficos elementares se comparado aos jogos atuais, podemos maximizar essa exigência de habilidades, uma vez que os games recentes são desenvolvidos com gráficos que beiram o realismo, com cenários sofisticados que requerem potentes simulações e capacidade interativa, bem como narrativas cada vez mais complexas e envolventes. Entre os pesquisadores brasileiros, os videogames são temas recentes, principalmente nas áreas de design gráfico, programação de softwares, linguagem e semiótica, comunicação social, educação e, em menor medida, nas ciências humanas. No entanto, hoje já é possível identificar um número crescente e significativo de estudos de alunos e professores de várias universidades brasileiras que tratam seriamente do assunto e constroem diversificadas problemáticas. Para Sérgio Nesteriuk (2009), atualmente existem três linhas de pesquisa bem definidas no meio acadêmico brasileiro que tomam os videogames como objetos de estudo. A primeira delas sugere uma abordagem funcionalista, isto é, busca investigar os efeitos e as consequências dos jogos sobre seus usuários; a segunda linha abrange os estudos técnicos e tecnológicos, que se concentram no desenvolvimento de inteligências artificiais e computação gráfica; e a terceira linha reúne os estudos identificados pelo autor como formalistas, ou seja, aquele que trata de questões “referentes à linguagem, à estética, à retórica do meio e que procura investigar as formas expressivas e potencialidades intrínsecas do videogame”. (NESTERIUK, 2009, p. 25). Acreditamos que as nossas preocupações estão situadas na terceira linha identificada pelo autor, especialmente no que diz respeito à investigação das “potencialidades intrínsecas dos videogames”, já que sugerimos a aplicação de seus usos no ensino de História. 43
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Para uma importante pesquisadora brasileira da linguagem e da semiótica, Lucia Santaella (2009), os games alcançaram o ponto mais sofisticado de exploração diversificada dos tipos de linguagem, e por essa razão devem ser cada vez mais investigados cientificamente. Sua proposta de estudo formalista constrói o conceito de “auto-referencialidade” para evidenciar que os jogos eletrônicos promovem o mais forte intercâmbio dos tipos de signos, o que constitui, na visão da pesquisadora, uma questão semiótica: [...] não só a imagem, mas também as tradicionais formas híbridas de linguagem e comunicação (cinema, televisão) para culminar nas mais novas hibridizações sígnicas que pululam nas hipermídias das redes de comunicação e atingem o seu paroxismo nos games. (SANTAELLA, 2009, p. 55).
Ainda segundo a autora, os games ganharam espaço na cultura das massas, assim como teve sua vez a fotografia, o jornal, o rádio, a televisão e o cinema (SANTAELLA, 2009). Só para termos um panorama da circulação alcançada pelos videogames hoje em dia, vale informar sobre um anúncio da Revista Forbes em 18 de setembro de 2012, que apresentou uma estimativa de crescimento econômico da indústria dos videogames de U$67 bilhões em 2012 para U$89 bilhões no ano de 2017, segundo a DFC Intelligence Forecasts, renomada empresa de estatística e previsão de mercado norte-americana.16 Esses dados são significativos para percebermos não apenas o crescimento econômico das principais empresas destinadas à produção e venda de games, como Sony, Microsoft, Nintendo, Activision, Electronic Arts etc., mas também para deduzirmos a quantidade de pessoas que entram em contato com os jogos eletrônicos através 16 Os dados são de 18 de setembro de 2012 e estão disponíveis em: http://www.forbes.com/ sites/johngaudiosi/2012/07/18/new-reports-forecasts-global-video-game-industry-will-reach-82-billion-by-2017/. Acesso em: 5 abril 2013.
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de várias plataformas. A versão eletrônica do noticiário norte-americano CNBC apontou que em 2012 existiam cerca de 211,5 milhões de pessoas que jogam videogames somente nos Estados Unidos, principal mercado do produto no mundo, seguido pelo Japão.17 No Brasil, os dados são menores, mas não menos surpreendentes se levarmos em conta que o grande aquecimento do mercado de videogames é um fenômeno relativamente novo se comparado com o que ocorre em países como Japão e Estados Unidos. Segundo a GFK Custom Research, uma das maiores empresas de pesquisa de mercado do mundo, durante a 9ª Conferência Anual chamada GFK Consumer Choice, foi anunciado que no Brasil houve um crescimento notório entre os anos de 2011 e 2012 no consumo desses produtos. A movimentação de 2012 foi de aproximadamente R$1 bilhão de reais.18 Outra pesquisa realizada pelo Ibope no primeiro semestre de 2012 afirmou que 31% dos brasileiros possui videogame em casa, o que corresponde a aproximadamente 60 milhões de pessoas. Os números são inferiores aos dos Estados Unidos, que contam com mais de 60% da população sendo proprietária e consumidora de games, mas, como já dissemos, os números do Brasil chegam a surpreender.19 Sem dúvidas, um dos fatores que contribuíram para o crescimento do mercado de videogames no Brasil se dá à maior robustez do poder aquisitivo do brasileiro nos últimos anos, o que proporcionou uma migração significativa de consumidores de produtos eletrônicos para o mercado formal, uma vez que o mercado informal de videogames (a famosa pirataria) era uma realidade bem mais sólida nos anos 90 e início dos anos 2000.20
17 Os dados são de 5 de setembro de 2012 e estão na matéria disponível em: http://www. cnbc.com/id/48917308. Acesso em: 5 abril 2013). 18 Os dados informados foram obtidos no endereço eletrônico: http://www.gsmd.com.br/pt/ noticias/mercado-consumo/mercado-brasileiro-de-consoles-para-videogames-movimenta-cerca-de-r-1-bilhao. Acesso em: 6 abril 2013). 19 Dados obtidos no endereço eletrônico http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/03/cerca-de-30-dos-brasileiros-tem-videogame-diz-pesquisa-do-ibope.html . Acesso em: 6 abril 2013). 20 O mercado informal de videogames ainda é grande no Brasil, só estamos tentando ilustrar a diminuição ocorrida nos últimos anos.
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Até este ponto da discussão, já conseguimos dar ênfase à importância de estudar os videogames, apresentando algumas visões de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento sobre o assunto. A partir daqui gostaríamos de dar sugestões de como alguns jogos eletrônicos que tratam de temas históricos podem ser ferramentas úteis no ensino da História escolar, como sugerimos no início deste texto. 3 ALGUNS GAMES APLICÁVEIS ÀS AULAS DE HISTÓRIA
Devemos considerar que o professor da atualidade deve saber ler e compreender realidades específicas do que entendemos por cibercultura para conseguir desenvolver métodos dinâmicos e tarefas interativas em suas aulas. No mínimo dois conceitos devem ser bem compreendidos pelo professor para que ele consiga operacionalizar suas aulas utilizando alguma peça ou produto das NTICs: são os conceitos de ciberespaço e hipertexto ou hipermídia. O primeiro, como já vimos, é o campo de atuação capaz de comunicar e compartilhar significados entre os usuários daquela realidade; o segundo, de acordo com Santaella (2009), é o resultado compósito do conjunto de mídias que se entrecruzam no universo de uma mesma produção cultural. Se considerarmos que os games operam nas duas realidades apresentadas, temos então, na exploração pedagógica dos jogos eletrônicos, a possibilidade do trabalho realizado em sala de aula entendido como uma ferramenta comunicativa e um espaço interativo capaz de desafiar os alunos à tarefa de resolução de problemas, bem como à leitura dinâmica dos espaços caso sejamos capazes de identificar no jogo as várias mídias ou tipos de textos existentes que se cruzam e se comunicam convergindo para um único objetivo. Um bom exemplo de jogo que se tornou famoso por simular algumas transformações sociais da História foi Age of Empires21
21 Na verdade, existem cinco títulos da série Age of Empires, mas nos deteremos no texto ao título Age of Empires 2, que é o mais famoso e o mais jogado, sendo considerado um clássico dos jogos eletrônicos para computadores.
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(A Era dos Impérios), desenvolvido e distribuído pela empresa Microsoft. Um dos desafios interessantes do jogo é a administração de recursos necessários à manutenção e expansão do reino de um determinado povo ou cultura, como francos, vikings, anglo-saxões, astecas e celtas, entre outros povos famosos da História que são apresentados como possibilidades jogáveis. O desafio maior em Age of Empires é conseguir obter a maior quantidade possível de recursos como madeira, ouro, pedra e alimentos no menor tempo possível para que a sociedade cresça em quantidade (demograficamente) e em qualidade (progressos técnicos e tecnológicos). Somente com uma sociedade desenvolvida e fortalecida o jogador poderá colocar em prática as políticas expansionistas necessárias para que o objetivo se conclua: conquistar outros reinos. Se a experiência do jogador for online, isto é, em um modo multiplayer (multijogador), a interação será com outros usuários daquele cenário, sendo possível formar equipes que trocam experiências, estratégias e recursos entre si. O jogo de estratégia, que foi desenvolvido para computadores, é capaz ainda de proporcionar uma visão panorâmica ou macroscópica da História das sociedades. Visão esta bastante necessária aos estudantes da educação básica. O jogo, que inicia sua primeira etapa na chamada alta Idade Média, pode chegar, caso o jogador consiga evoluir seu reino até o último estágio, na Idade Moderna, possibilitando ao jogador conhecer aspectos interessantes das transformações técnicas ocorridas nas passagens das épocas. É claro que o professor precisa ter a competência e a habilidade de fazer inúmeras ressalvas na forma como o jogo apresenta a narrativa e as transformações mencionadas, mas esse trabalho também é exigido para outros tipos de produções culturais que intencionem apresentar algum tipo de conteúdo histórico, como filmes, músicas etc. Age of Empires pode ser utilizado para explorar o universo da História de duas maneiras: a primeira é proporcionando a percepção das continuidades e rupturas nas passagens ou fronteiras temporais da 47
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História (as passagens de época); a segunda é através da captação dos elementos contidos em sua narrativa, ou seja, na maneira como o jogo é descrito/contado no universo da trama. Sem contar que os desafios gerenciais que são apresentados no jogo requer o desenvolvimento de um hábil ferramental voltado para o desenvolvimento do raciocínio lógico, alta capacidade de planejamento e organização de material. Games de consoles de outras naturezas também podem ser explorados nas aulas. Um bom exemplo são as séries de jogos que retratam as grandes guerras da História, como as duas guerras mundiais e os conflitos da Guerra Fria. De uma forma ou de outra, esses jogos apresentam narrativas que se cruzam com o que os alunos precisam ler nos livros ou assistir em documentários comumente exibidos nas aulas. Na exploração de jogos das séries Call of Duty, Medal of Honor e Battlefield 22, os professores podem atrair seus alunos e levá-los a simular a realidade de pessoas que estiveram envolvidas nesses conflitos contemporâneos. No caso dos jogos de guerra, o professor ainda pode explorar o tema “violência”, criando espaços de interpretação crítica sobre o assunto ou abordar as tendências ideológicas intrínsecas às narrativas dos jogos, por exemplo: os discursos assumidos nas tramas são os dos países vitoriosos, ou seja, os do bloco ocidental na segunda guerra ou na guerra fria. Ainda vale ressaltar que o trabalho realizado com um game em sala de aula não significa retirar dele apenas aspectos positivos sobre os temas tratados. Uma aula de História deve ser dotada de uma essência interpretativa crítica e o professor é o grande responsável por conduzir esse processo com sabedoria. 22 As séries de jogos mencionadas são muito famosas na indústria dos videogames e absurdamente rentáveis. Call of Duty, por exemplo, série desenvolvida pela empresa Activision, teve início em 2003 e colocou no mercado, em 2012, seu décimo título, batendo recorde de vendas. A franquia rende milhões de dólares já nas primeiras 24 horas de lançamento de um jogo. Já os jogos da franquia Medal of Honor foram idealizados inicialmente por Steven Spielberg e são produzidos pela DreamWorks Interactive. Battlefield é um produto oficial de outra famosa empresa do mundo dos games, a Electronic Arts – EA Games.
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Já no campo das habilidades motoras, os jogos mencionados exigem concentração, observação cuidadosa dos cenários e leitura dinâmica dos espaços já que pertencem ao gênero FPS – First Person Shooter (Jogo de tiro em primeira pessoa). Os jogos FPS assumem uma posição de câmera que sugere que o jogador real (humano) está assumindo o papel do personagem do jogo, apresentando apenas as mãos e as armas utilizadas no jogo na interação com os cenários, marcados pelo realismo e pela fidelidade dos seus elementos componentes. Mais uma vez temos, para além dos elementos narrativos, um jogo capaz de contribuir com o desenvolvimento sensório-motor dos jogadores. Para Greenfield (1988), esse tipo de operação realizada pelos jogadores de videogames contribui para o desenvolvimento de duas habilidades motoras: uma chamada “sensorimotora” e outra conhecida como “coordenação viso-motora”. Como já sinalizamos anteriormente, as reflexões da pesquisadora norte-americana foram realizadas no início da década de 1980 e sobre jogos eletrônicos muito simples se comparados aos atuais. Por essa razão não podemos deixar de pensar como jogos dinâmicos e que exigem habilidades motoras como os mencionados acima podem maximizar essas potenciais inteligências. A autora mostrou em seu trabalho que essas habilidades resultam no desenvolvimento do raciocínio humano, ao contrário do que sugeriram os críticos dos jogos eletrônicos dos anos 80. Para a pesquisadora, os games: [...] não apenas são complexos, como também incorporam tipos de complexidade impossíveis nos jogos convencionais. Estou convencida de que muitos dos que criticam os jogos não seriam capazes de jogá-los e que suas dificuldades não se restringiriam apenas à coordenação viso-motora. [...] A qualidade de variáveis dinâmicas que interagem entre si caracteriza quase todos os jogos de ação de computador. De fato, existe na forma mais simples possível em Pac-Man. Esta simplicidade é conveniente para transmitir o conceito de 49
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variáveis interativas àqueles que não estão familiarizados com os jogos de computador, mas nem de longe indica o nível de complexidade cognitiva que os jogadores mais experientes têm que lidar. (GREENFIELD, 1998, p. 92-7).
Outros jogos das atuais gerações de videogames também podem ser explorados nas aulas de História por trazerem temas que abordam conteúdos comumente trabalhados nas salas de aula da educação básica. A série de jogos de aventura intitulada Assassins Creed, produzida e distribuída pela empresa francesa Ubisoft Montreal, apresenta a história de membros de uma ordem secreta fundada na Idade Média e que lutava contra o poder da ordem dos cavaleiros templários. Apesar de a trama apresentar pesados elementos de ficção quando exibem o personagem principal como um indivíduo que está revivendo as memórias de seus ancestrais, seja no período medieval ou na época moderna, o jogo é capaz de reproduzir cenários incrivelmente realistas, capazes de informar de forma didática aspectos da história dos lugares visitados pelo jogador, além de estimular a interação com o mundo criado para o jogo. No caso particular do título Assassins Creed II e sua continuidade, Assassins Creed Brotherhoods, o envolvimento da narrativa do game com elementos históricos é claramente perceptível. Os dois jogos foram ambientados no contexto da Itália renascentista e o personagem jogável, chamado Ezio Auditore, se relaciona com figuras reais do período, como Nicolau Maquiavel, Leonardo Da Vinci, César Borgia e os integrantes da família florentina dos Médici. Apresentando com seriedade o contexto da Itália renascentista, os games mencionados podem auxiliar o professor e os alunos a construírem reflexões históricas sobre o período a partir do diálogo e principalmente da experiência prática que o jogo propõe. O jogo mais recente da franquia, Assassins Creed III, apresenta a história fictícia de Connor, um indígena da América do Norte filho de uma nativa com um colono inglês que se envolveu profundamente 50
com os movimentos pela independência das treze colônias inglesas durante o século XVIII. Neste game também contracenam com o protagonista da história personagens reais como Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e George Washington, além de algumas fases do jogo simularem episódios reais da História que são estudados pelos alunos nas escolas, como a Festa do Chá de Boston (The Boston Tea Party), acontecimento que simbolizou um dos pontos mais tensos da reação dos colonos contra as imposições da coroa inglesa. Todos os títulos da série Assassins Creed apresentam situações políticas como disputas de poder entre grupos, relação entre Igreja e Estado e confrontos de ideologias que realmente marcaram algumas épocas. Entretanto, o que é mais importante de se ressaltar é que, participando do game, os jogadores têm a possibilidade de aprender interagindo com uma representação do universo social da época, composto com traços de fidedignidade, ao invés de simplesmente ser o absoluto espectador da História, como quando é levado a aprender o conteúdo somente lendo os parágrafos do livro didático. Não queremos dizer com isso que a leitura dos livros didáticos (ou qualquer outra) não seja importante para o aprendizado previsto para a História escolar, mas de acordo com a essência da nossa discussão sobre as novas práticas necessárias ao ensino, inserir o estudante como um participante da trama histórica desenvolvida no game permite que ele se perceba enquanto sujeito ativo do processo de significação da própria interpretação e, mais importante, o aprendizado está sendo construído de forma instrumentalizada a partir de uma experiência dinâmica e prática. Ao ler este texto, muitos podem se perguntar se esses jogos eletrônicos não possuem anacronismos, erros históricos considerados graves, ficções exageradas ou elementos narrativos equivocados que podem confundir mais do que ajudar na aprendizagem dos estudantes. E essas perguntas são pertinentes, pois a maioria dos jogos de temas históricos, em maior ou menor grau, apresentam distorções da realidade apresentada nas narrativas acadêmicas e científicas sobre o assunto. 51
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Entretanto, devemos levar em conta que nenhum filme, romance, música, revista em quadrinho, fotografia, pintura ou outras peças culturais e mesmo fontes são capazes de transmitir fielmente (se é que isso é possível de algum modo) a narrativa histórica sobre um determinado período. O professor necessita, vale a pena repetir, de competência metodológica para interferir na leitura e compreensão do que está sendo trabalhado de acordo com a meta estabelecida no seu planejamento. Os games mencionados acima são apenas alguns exemplos famosos que podem ser vinculados claramente às práticas do ensino de História, mas a verdade é que existem inúmeros outros títulos que podem ser trabalhados como fontes históricas nas aulas. 4 CONCLUSÃO
Neste momento da reflexão, alcançamos três pontos de constatação importantes. O primeiro é que o ensino de História, assim como o de outros componentes curriculares, necessita atribuir às práticas pedagógicas um caráter mais instrumental, com o objetivo de dinamizar os métodos aplicados nas aulas direcionadas para um público formado no universo das novas tecnologias da informação e da comunicação. De outra forma podemos afirmar que os professores de História não precisam mais “ensinar informações”, mas ensinar a problematizar essas informações (que são públicas e gratuitas) na relação com outras para que se chegue a um resultado concreto e verdadeiramente útil para as novas formas de aprendizado. O segundo ponto identificou que esse público, constituído por leitores assíduos das mídias digitais, consome produtos culturais carregados de significados sociais importantes ou de representações da história que nem sempre são percebidas da forma adequada ou coordenada de uma forma inteligível por parte dos consumidores. Com isso entra o papel de destaque dos professores na orientação sobre o que se está aprendendo com a televisão, com o cinema, a música, a internet e, no caso específico deste artigo, com os videogames. Isso sugere uma 52
nova identidade docente, que ainda está em construção, muito embora se discuta há algum tempo essa necessidade de atualização das práticas de ensino diante de novos públicos nas salas de aula. O terceiro ponto dá destaque aos videogames como meios comunicativos relevantes e muito presentes entre as novas gerações. Especialmente ressalta os jogos de conteúdos históricos que são consumidos por milhões de pessoas em todo o mundo e que muitas vezes se tornam preferenciais devido à intensidade de suas tramas ou narrativas. Tentando ligar essa realidade às duas outras descritas, resumimos a preocupação deste trabalho em refletir os games como ferramentas colaboradoras do aprendizado nas aulas de História, posto que essas peças importantes da cultura digital são atualmente as mais consumidas por boa parte dos estudantes. O professor da University of Wisconsin-Madison dos Estados Unidos, James Paul Gee (2005), afirmou que a maior parte das pessoas não consegue enxergar como os games podem contribuir com o aprendizado dos jovens porque, na realidade, a concepção do que é útil de ser aprendido por esses “críticos” não compõe mais os elementos essenciais do que se deve ensinar e aprender no século XXI. Para ele, ensinar “fatos” históricos, matemáticos, biológicos ou geográficos não são mais as prioridades do ensino. Com o dinamismo da sociedade da informação, Gee afirma que a aprendizagem deve ser baseada em problemas e esse tipo de aprendizado, como já vimos anteriormente, os videogames são capazes de estimular23 (GEE, 2005). De fato, os games não podem ser utilizados em larga escala para informar os estudantes sobre as especificidades dos conteúdos de todos os componentes curriculares. Devemos compreender que os jogos eletrônicos estimulam mais formas de inteligência do que transmitem informações específicas das matérias escolares. Mas, se 23 Em outra obra mais famosa, intitulada What video games have to teach us about learning and literacy (O que os videogames têm para nos ensinar sobre aprendizado e letramento), James Paul Gee discute minuciosamente como os jogos eletrônicos colaboram com as formas de aprendizagem da sociedade da informação.
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levarmos em conta que as discussões da educação do século XXI convergem para a ideia de uma aprendizagem baseada em problemas, os videogames podem ser ferramentas muito eficientes na contribuição para o alcance dessa meta educacional. Ignorar essa possibilidade prática do ensino, isto é, a aplicação dos games nas aulas de História, é no mínimo desperdiçar um poderoso ferramental. Ao se deparar com estudantes nascidos e formados na cultura digital do joystick e do touchscreen, a escola não pode resistir à globalização das identidades dos sujeitos, que se enxergam conectados a uma cultura mundial. O revés disto: a escola precisa se preparar para atender às novas demandas da sociedade da informação, sob ameaça de se perder no próprio tempo ou se desaperceber no espaço onde está existindo caso escolha se conservar quando deveria quebrar as barreiras. REFERÊNCIAS CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. GEE, James Paul. What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2003.
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3 ENSINO DE PORTUGUÊS: concepções de linguagem, de língua e de gramática no livro didático do ensino médio profissionalizante
Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva24
1 INTRODUÇÃO A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB/96) trata a educação profissionalizante como forma integrada às diferentes etapas de educação: o ensino básico – fundamental e médio, ou o superior. No ensino médio, a LDB/96 rompe com a dualidade antes existente entre formação básica X formação profissional e promove a articulação dessas duas formações. Considerando, pois, a relevância do ensino de Português na promoção dessa articulação, este estudo visa a analisar as concepções de linguagem, de língua e de gramática nos textos didático-pedagógicos, em particular o livro didático, na medida em que ele pode se constituir como um recurso de apoio, portanto de importância secundária, ou como recurso explicitamente adotado, por conseguinte principal referência em sala de aula para o ensino de Português. A escolha por uma análise de tais concepções justifica-se pelo fato de se entender que o modo como o professor organiza a aula de Português pode ter implicações na articulação ou não dos saberes e práticas tanto da formação básica como da profissionalizante. Para essa análise, o corpus se constitui de textos didático-pedagógicos, em particular o livro didático, utilizados na aula de Língua Portuguesa de uma escola pública de ensino médio profissionalizante da cidade de Natal. 24 Professora do Curso de Letras da Universidade Potiguar (UnP), Natal/ Brasil, da rede Laureate International Universities. Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: celiabarbosa@unp.br.
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Situado no âmbito da Linguística Aplicada, o estudo é conduzido numa perspectiva qualitativa e interpretativista, seguindo-se procedimentos da etnografia da comunicação e aportes da linguística funcional, do sociointeracionismo da linguagem e da didática de língua materna. Dessa forma, para um melhor entendimento do tema em questão, este estudo inicia com a abordagem sobre o ensino de Português no nível médio profissionalizante, especificamente abordagens nos documentos oficiais. Em seguida, procura-se discorrer um pouco sobre as concepções de linguagem, de língua e de gramática, bem como de textos didático-pedagógicos e, por fim, analisam-se as concepções de linguagem, de língua e de gramática dos textos didático-pedagógicos, em particular o livro didático, que subsidiaram o professor em sua prática docente no ensino médio profissionalizante. 2 ENSINO DE PORTUGUÊS NO NÍVEL MÉDIO PROFISSIONALIZANTE: abordagens nos documentos oficiais
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN/9625 (BRASIL, 2006, p. 24) estabelece que o ensino médio não seja etapa de formação profissional, mas obrigatoriamente formação básica para toda a vida, uma vez que a profissionalização é uma etapa a priori. Contudo, a Lei possibilita à escola, conforme sua estrutura, oferecer formação profissional, desde que cumpra as exigências da Base Nacional Comum, conforme Art. 36 da Lei:
§ 2º - O ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. § 4º - A preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação profissional, poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas em educação profissional. (LDBEN/96, 2006, p. 29).
25 Faremos uso dessa sigla para as demais citações.
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Verificamos, pois, que há uma formação geral que contempla os conhecimentos necessários para essa última etapa da educação básica e outro que direciona o aluno a uma profissão, no caso, para o ensino médio profissionalizante. Para o desenvolvimento desses conhecimentos, faz-se necessária, de acordo com o Art. 36 da Lei, a observação acerca do currículo nesse nível de ensino, uma vez que I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania (LDBEN/96, 2006, p. 29).
Assim, dentre os conhecimentos elencados no texto da Lei, destacamos o estudo da língua portuguesa como imprescindível na formação básica do aluno. Os PCNEM (BRASIL, 1999), ao abordar a importância do estudo da língua materna nessa etapa básica, apontam como principais objetivos o desenvolvimento da competência comunicativa do educando, a fim de que ele saiba e possa adequar o seu discurso nas mais variadas situações sociocomunicativas. Também objetiva desenvolver a capacidade de ler e escrever, expressar-se e refletir criticamente sobre os fenômenos da linguagem, além de aprimorar o seu conhecimento linguístico e gramatical de modo que possa articular criativamente as sequências textuais do idioma português. Dessa forma, a disciplina Língua Portuguesa é base, de acordo com os PCNEM (BRASIL, 1999), para todo o conhecimento que será pedagogicamente transmitido durante todo o ensino médio, pois, segundo esses documentos, é pela e com a linguagem, principalmente a verbal, que nos comunicamos. Isso significa dizer que tornar o aluno competente em sua língua materna o possibilitará interagir de forma criativa e crítica com o mercado, que se desenvolve tecnologicamente e que exige cada vez mais profissionais qualificados. Daí a importância do ensino de Português no currículo do ensino médio profissionalizante. 59
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3 SOBRE CONCEPÇÕES 3.1 DE LINGUAGEM, DE LÍNGUA E DE GRAMÁTICA
No ensino de Português, conhecer a partir de que concepção de linguagem, consequentemente de língua e de gramática, as questões linguísticas devem ser trabalhadas em sala de aula vem se tornando um ponto importante em busca por uma educação de qualidade. Sobre isso, Travaglia (2000) enfatiza que
[...] o modo como se concebe a natureza fundamental da língua altera em muito o como se estrutura o trabalho com a língua em termos de ensino. A concepção de linguagem é tão importante quanto a postura que se tem relativamente à educação. (TRAVAGLIA, 2000, p. 21).
Nesse caso, segundo o autor, é preciso conhecer as diferentes concepções de linguagem, pois só após o conhecimento dessas concepções se pode avaliar com qual delas o professor predominantemente trabalhará e se esta é a mais adequada, hoje em dia, para o ensino de Português. Para Koch (1995, p. 9), no decorrer da história, a linguagem humana tem sido concebida de uma forma muito distinta, que pode ser assim sintetizada: a) como representação (‘espelho’) do mundo e do pensamento; b) como instrumento (‘ferramenta’) de comunicação; c) como forma (‘lugar’) de ação ou interação. Pode-se, então, resumir que basicamente existem três diferentes possibilidades de conceber a linguagem: a primeira é entendida como expressão de pensamento, em que se acredita que há regras a serem seguidas para a organização lógica do pensamento e da linguagem. A segunda diz respeito à linguagem como instrumento de comunicação. Nesse caso, o ensino e a aprendizagem de língua materna devem ocorrer linear e descritivamente. A terceira refere-se à 60
linguagem como forma ou processo de interação, em que ela é o lugar de interação humana, da interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, numa dada situação comunicativa, bem como num contexto sócio-histórico e ideológico. Em se tratando dessas três concepções, Travaglia (2000, p. 21-23) estabelece que a primeira está relacionada aos “[...] estudos linguísticos tradicionais que resultam no que se tem chamado de gramática normativa ou tradicional [...]”; a segunda mostra que a língua é estudada “[...] enquanto código virtual, isolada de sua utilização [...]”; ao passo que a terceira se refere ao estudo da língua em que os seus usuários ou interlocutores “[...] interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e ‘falam’ e ‘ouvem’ desses lugares”. Faz-se importante ressaltar que a terceira concepção é a que os PCNEM (BRASIL, 1999) sugerem para ser trabalhada em sala de aula pelo professor. Sobre isso, esse documento enfatiza que o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa devem fundamentar-se em propostas interativas de língua/linguagem. Essa concepção destaca a natureza social e interativa da linguagem, em que o ensino de língua não seja deslocado do uso social desta, considerando o aluno como produtor de textos, refletindo assim a sua história social e cultural. Para isso, os Parâmetros estabelecem a partir de que concepção de linguagem as questões linguísticas devem ser trabalhadas: As expressões humanas incorporam todas as linguagens, mas para efeito didático, a linguagem verbal será o material de reflexão, já que, para o professor de língua materna, ela é prioritária como instrumento de trabalho. O caráter sócio-interacionista da linguagem verbal aponta para uma opção metodológica de verificação do saber linguístico do aluno, como ponto de partida para decisão daquilo que será desenvolvido, tendo como referência o valor da linguagem nas diferentes esferas sociais (BRASIL, 1999, p. 139). 61
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Ao sugerir uma abordagem sociointeracionista para o tratamento dado às questões linguísticas, verifica-se que os PCNEM priorizam a ideia de que é por meio da interação em diferentes instituições sociais (família, grupo de amigos, trabalho, escola, comunidade, shopping, entre outros) que o sujeito “aprende e apreende” as várias formas de funcionamento da língua, bem como os modos de manifestação da linguagem. Isso ocorre porque a interação propicia ao sujeito que este vá construindo os seus conhecimentos relacionados aos usos da língua e da linguagem, considerando os seus diversos contextos. Ao propor que “[...] a unidade básica da linguagem verbal é o texto [...]”, sendo este entendido “[...] como a fala e o discurso que se produz, e a função comunicativa, o principal eixo de sua atualização e a razão do ato linguístico [...]” (BRASIL, 1999, p. 139), tem-se ratificado nos PCNEM que o tratamento dado às questões linguísticas deve levar em considerar a concepção sociointeracionista da linguagem. Isso porque, de acordo com essa concepção, todo e qualquer texto é produzido na interação e que é [...] pelas atividades de linguagem que o homem se constitui sujeito, só por intermédio delas é que tem condições de refletir de si mesmo. Pode-se ainda dizer que, por meio das atividades de compreensão e produção de textos, o sujeito desenvolve uma relação íntima com a leitura – escrita –, fala de si mesmo e do mundo que o rodeia, o que viabiliza nova significação para seus processos subjetivos (BRASIL, 2006, p. 24).
Geraldi (2005), ao abordar a linguagem e sua forma de ser concebida, reforça a sua importância no processo de interação:
Mais do que ver a linguagem como uma capacidade humana de construir sistemas simbólicos, concebe-se a linguagem como uma atividade constitutiva, cujo lócus de realização é a interação verbal. Nesta relacionam-se um eu e um tu e na relação constroem os 62
próprios instrumentos (a língua) que lhes permitem a intercompreensão. Obviamente, nascemos num mundo onde muitos eus e muitos tus já se encontraram. E a herança de seu trabalho encontramos não só nos produtos materiais, mas também na própria compreensão destes produtos, e esta compreensão expressa-se simbolicamente (GERALDI, 2005, p. 67).
Dessa forma, entende-se que o trabalho do professor deve estar voltado para o desenvolvimento e sistematização da linguagem interiorizada pelo aluno, o que estimulará a verbalização dessa linguagem e a sua adequação a situações de uso. Assim entendido, percebe-se que o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa não podem ser vistos como algo “acabado, pronto, fechado em si mesmo”, uma vez que as estruturas linguísticas devem ser explicadas com base no uso a que elas se prestam na situação da comunicação. É, portanto, no âmbito de uma concepção sociointeracionista da linguagem que o fenômeno social da interação verbal encontra o “[...] espaço próprio da realidade da língua, pois é nele que se dão as enunciações enquanto trabalho dos sujeitos envolvidos nos processos de comunicação social” (GERALDI, 2005, p. 27). 3.2 DE TEXTOS DIDÁTICO-PEDAGÓGICOS
Para um melhor entendimento dessa denominação, propõe-se uma retomada de três conceitos: de texto, de didática e de pedagógico. Em se tratando do conceito de texto, verifica-se que este pode variar dependendo do ponto de vista teórico a que está submetido. Sobre isso, Bronckart (1999, p. 71) afirma que, independente do suporte teórico, os textos são dotados de algumas características comuns, a saber: têm uma relação de interdependência ao contexto no qual são produzidos; apresentam um modo específico de organização do seu conteúdo referencial; constituem-se de frases relacionadas umas às outras, conforme regras de composição, mais ou menos 63
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restritas; bem como exibem mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos com propósito de garantir a coerência interna. Antunes (2010, p. 29) remete o entendimento de texto à compreensão de textualidade, uma das características que, segundo Bronckart (1999), é comum a cada texto. Essa concepção se dá a partir da ideia de interação por meio de “atividades sociocomunicativas” que, segundo ela, significa que seja qual for a língua, seja qual for o contexto de interação verbal, “[...] o modo de manifestação da atividade comunicativa é a textualidade ou, concretamente, um gênero de texto qualquer”. Percebe-se, portanto, que as relações do texto com seu contexto e com os propósitos comunicativos constituem um processo na busca da construção de significados por parte dos usuários da língua. Estes, por sua vez, são denominados por Travaglia (2000, p. 67) como “falante,escritor/ ouvinte,leitor”. Assim, entende-se que quaisquer produções com sentido podem ser consideradas texto. Registra-se que, por se tratar de um amplo campo de estudos (cf. BRONCKART, 1999), são diversos os conceitos de texto, mas não são dicotômicos, na medida em que a produção do sentido é o que constitui uma forma de comunicação como texto. Quanto ao conceito de didática, o termo tem sua origem na Grécia Antiga e lá significava “ensinar, instruir, fazer aprender” (MASETTO, 1997, p.12). A didática é a parte da pedagogia que se ocupa dos métodos e técnicas de ensino que se destinam a pôr em prática os encaminhamentos da teoria pedagógica. Estuda os processos de ensino e aprendizagem. O educador Jan Amos Komenský, conhecido por Comenius, é reconhecido como o pai da didática moderna. Segundo Fattori (2006), esse reconhecimento decorreu devido ao interesse de Comenius em estudar a relação ensino e aprendizagem, mostrando que há diferença entre o ensinar e o aprender. Daí a concepção de didática estar relacionada diretamente com o processo de ensino e aprendizagem, o qual envolve professores, alunos e toda a comunidade escolar. O ensino é o objeto de estudo da didática, que 64
tem como uma de suas finalidades fornecer procedimentos práticos entre o ensinar e o aprender. De acordo com Masetto (1997, p. 13), tais procedimentos são organizados e sistematizados mediante teorias educacionais desenvolvidas por pesquisadores de diversas áreas, como, por exemplo, a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia etc. Os procedimentos englobam métodos de ensino, projeto político pedagógico, planejamento de aulas e utilização de recursos materiais. Em relação à concepção de pedagógico, essa denominação está diretamente ligada ao trabalho em sala de aula, isto é, diz respeito à prática docente. Para Libâneo (1994, p.16), não se pode pensar no pedagógico sem relacioná-lo à Pedagogia, pois é a Pedagogia a ciência que investiga a teoria e a prática da educação nas suas relações com a prática social. É uma ciência, segundo o autor, que se “[...] ocupa do estudo sistemático da educação − do ato educativo, da prática educativa como componente [...]” (LIBÂNEO, 1994, p. 16). Após breve retomada desses conceitos, entende-se como texto didático-pedagógico, neste estudo, aquele que subsidia a prática docente no processo de ensino e aprendizagem. Pode-se, portanto, considerar como texto didático-pedagógico o texto previamente elaborado para fins educacionais, por exemplo, o livro didático, objeto de análise deste estudo, como também outros textos que não tenham exclusivamente essa finalidade, mas que são utilizados pelo professor em sua prática com o propósito de atingir objetivos para o ensino e aprendizagem. 4 OS TEXTOS DIDÁTICO-PEDAGÓGICOS: concepções de linguagem, de língua e de gramática
Os textos aqui selecionados para análise dessas concepções foram retirados do corpus organizado por dois alunos de iniciação científica, bolsistas do projeto de pesquisa do curso de Letras da Universidade Potiguar – UnP, O ensino de português na educação básica: 65
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texto e gramática. Esse corpus, cujas informações foram coletadas no período de agosto a dezembro de 2010, é constituído pelo que denominamos textos didático-pedagógicos, por nós entendidos como textos adotados pelo professor em sua prática. Para esta análise, escolhemos o livro didático, uma vez que este se constitui, hoje, como principal referência em sala de aula e é por nós considerado o protótipo, o mais representativo do texto didático-pedagógico. As concepções de linguagem, de língua e de gramática aqui examinadas se encontram no manual do aluno26 do ensino médio, Português: ensino médio (NICOLA, 2005), o mesmo livro adotado em escolas de ensino médio não profissionalizante. Faz parte, desde 200627, do catálogo do PNLEM (Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio) para ser utilizado nos anos de 2009, 2010 e 2011. A obra está dividida em três partes: (1) Formando o leitor e o produtor de texto: as estruturas gramaticais dos textos, (2) Formando o leitor e o produtor de texto: os textos do cotidiano, (3) Formando o leitor e o produtor de texto: os textos artísticos. Na parte (1), em geral, a gramática é concebida, nesse texto didático-pedagógico, como um conjunto de normas que regulam o funcionamento da língua. Nela são apresentados os conceitos de fonologia, morfologia e sintaxe. Na parte (2), são trabalhados conceitos de linguagem, língua e gramática. A concepção de linguagem é tida como expressão do pensamento, conforme se pode observar nesta passagem: “[...] mas linguagem, como já vimos, tem um conceito mais amplo: é todo sistema que permite a expressão ou a representação de ideias e se concretiza em um texto” (NICOLA, 2005, p. 125). O conceito de língua é abordado no texto como um sistema de códigos organizados e estruturados que servem de canal para a comunicação, tendo em vista que a concepção é a de que “[...] o falante vale-se de um código já convencionado e instituído antes de 26 Empregaremos também esse termo para nos referir ao livro didático. 27 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/port_1818.pdf.
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ele nascer, ou seja, a criatividade de seu uso individual está limitada à estrutura da língua e às possibilidades que ela oferece” (NICOLA, 2005, p. 129). A concepção de gramática está relacionada à de linguagem como expressão do pensamento. Daí percebe-se certa valorização pela gramática normativa, já que na primeira parte as questões de língua são exploradas apenas na variedade padrão da língua, sem levar em conta o contexto comunicativo dos alunos em sala de aula. Isso pode ser observado na parte em que o manual aborda questões de língua como, por exemplo, questões relacionadas à concordância. Para abordar esse assunto, incialmente há introdução de um anúncio publicitário, a saber: Exportadores de carne argentinos Querem seguir exemplo do Brasil Após a leitura do anúncio acima, responda; o que é de nacionalidade argentina, a carne ou os exportadores? Claro que são os exportadores, e nada se dizem sobre a carne que exportam e sua nacionalidade, e por que sabemos disso? O adjetivo gentílico argentino está no masculino plural, concordando com um nome também masculino, plural exportadores, se ao contrário, o adjetivo gentílico estivesse no feminino singular, “exportares” de carne argentina querem seguir exemplo do Brasil. Com certeza seria a carne e não os exportadores, ou seja a carne seria de nacionalidade argentina (NICOLA, 2005, p. 47).
Como podemos verificar, logo abaixo desse anúncio, são feitos alguns questionamentos que devem ser respondidos com base na leitura do texto. Como se trata de solicitar ao aluno a leitura de um anúncio, tem-se a ideia de que o leitor/ouvinte, no caso o aluno, possa entender o texto com base nas leituras que ele já tem sobre o tema para, a partir desse entendimento, compreender porque os argenti67
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nos querem tanto seguir o exemplo do Brasil no que tange à exportação de carne, e porque esse fato propiciou a produção de um gênero publicitário. O que se vê, no entanto, é uma leitura já direcionada, com o único propósito de justificar regras do uso padrão de aspecto gramatical da flexão de pessoa e número – a concordância verbal – e da flexão de gênero e número – a concordância nominal. As questões de concordância, tanto a verbal como a nominal, vão sendo explicadas na seção intitulada A gramática da frase (NICOLA, 2005, p. 49), por meio de exemplos soltos e descontextualizados do texto inicial: o anúncio publicitário. Esses exemplos vão desde citações de obras da literatura brasileira, como em (01) e (02), até aqueles que já se tornaram comuns na abordagem de aspectos gramaticais de concordância, como em (03), (04) e (05):
(01) a) Memórias de um sargento de milícias é a melhor crônica do Brasil de D. João VI. b) As Memórias de um sargento de milícias são a melhor crônica do Brasil de D. João VI. (NICOLA, 2005, p.49)
(02) a) Dom Casmurro é o livro machadiano mais conhecido. a) Dom Casmurro e Memórias Póstumas são os livros machadianos mais conhecidos. (NICOLA, 2005, p. 51) (03) a) Consertam-se sapatos. b) Aluga-se casa de praia. (NICOLA, 2005, p. 52)
(04) a) É proibido a passagem de pedestres. b) São proibidos as passagens de pedestres. (LD, p. 53)
(05) a) Já é meio-dia e meia [hora]. a) Particularmente, acho que os horários são meio autoritários. (NICOLA, 2005, p. 53) 68
Considerando que se trata de um texto didático-pedagógico destinado ao ensino médio, em que a literatura já é objeto de estudo ou deveria ser, o manual poderia aproveitar e abordar situações de organização interna da língua (a sintaxe) por meio de abordagem voltada para discussão acerca de algumas construções sintáticas de concordância em obras que fizeram parte de um estilo literário (o Realismo), já que faz referência em (01) às crônicas de Manuel Antônio de Almeida e em (02) ao famoso clássico machadiano – Dom Casmurro, com aquelas mais contemporâneas que, em muitas situações, estão disponíveis nos meios de comunicação de massa, como jornal e revistas, e nas redes sociais. Além disso, tais situações poderiam ser contextualizadas com temas relacionados a, por exemplo, mercado de trabalho, já que se trata de um curso de ensino médio profissionalizante. Nesse caso, os alunos seriam motivados a, primeiramente, analisar a organização textual em épocas diferentes, especificamente questões de organização interna do texto como a flexão de nome e de verbo – tema do capítulo em estudo, para depois refletirem acerca do que permaneceu ou mudou nas questões de língua como concordância verbal e nominal após um século e como as profissões também foram se adaptando a essas mudanças. 5 CONCLUSÃO
Neste estudo, verifica-se a predominância da variedade padrão nas aulas de Português em que são abordadas questões de língua. Devido a isso, os conteúdos de gramática ainda são trabalhados por meio de uma prática que se destina à exploração de regras para serem memorizadas, por meio de listas de exercícios com frases soltas, descontextualizadas. Acredita-se que essa prática, baseada em uma concepção de língua centrada no estudo isolado desta, que, como se pôde perceber, é a concepção ainda utilizada no livro didático, continua a ser a que mais gera uma falsa expectativa no aluno de que, para ler e escrever bem, ele dependerá do quanto absorve ou apreende essas regras. Segundo Travaglia (2000, p. 107), “[...] aprender uma 69
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língua [...] implica sempre reflexão sobre a linguagem”. De tal modo, de acordo com o autor, o estudo de gramática somente por meio de usos “prontos” da variedade padrão, sem levar em consideração o uso efetivo da língua dentro de um contexto de interação, não faz com que o aluno se desenvolva como leitor crítico, nem tão pouco como escritor. Percebe-se também, neste estudo, que o enfoque dado aos conteúdos de língua portuguesa trabalhados nos textos didático-pedagógicos no ensino médio profissionalizante não seguiram os encaminhamentos sugeridos nos documentos oficiais para o ensino de língua materna nesse nível. Isso porque tais documentos sugerem que as questões de língua sejam trabalhadas com base em uma concepção de linguagem, de língua e de gramática como uma forma ou processo de interação, a língua como uma atividade interativa e a gramática como “regularizadora” dessa interação (GERALDI, 2006; POSSENTI, 1996; TRAVAGLIA, 2000). O que se constatou na análise do livro didático, uma vez que este se constitui, hoje, principal referência em sala de aula e é por nós considerado o protótipo, o mais representativo do texto didático-pedagógico, foi uma concepção de linguagem, de língua e de gramática centrada no uso da língua pela língua, sem considerar os possíveis contextos de interação em sala de aula e nem os propósitos para um ensino médio já voltado para a profissionalização do aluno. REFERÊNCIAS
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BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006. ______. Lei n. 9394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 3. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2006. 70
______. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Media e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. 2.ed. São Paulo: Educ, 1999.
GERALDI, João Wanderley (Org.) O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.
______. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas (SP): Mercado de Letras, 2005.
FATTORI, Marta. Didática Magna – Comenius: aparelho crítico. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-relação pela linguagem. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1995.
MASETTO, Marcos Tarciso. Didática: a aula como centro. São Paulo: FTD, 1997.
NICOLA, José de. Português: ensino médio. São Paulo: Scipione, 2005, v1. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2° graus. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000. 71
4 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E OS SABERES SOBRE APRENDIZAGEM DE PROFESSORES Tereza Cristina Leandro de Faria28 1 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que teve por objetivo geral investigar os fundamentos da Psicologia da Educação que sustentam os saberes docentes sobre aprendizagem. Do objetivo geral formularam-se as seguintes questões de estudo: a) quais os saberes dos professores sobre aprendizagem e ensino; b) quais as necessidades formativas do professor da Educação de Jovens e Adultos. É uma pesquisa de caráter interpretativo e descritivo dos saberes dos professores fundamentados na Psicologia da Educação, cujas informações foram colhidas por meio de um questionário escrito, composto de identificação e de questões abertas. As respostas às questões, depois de transcritas e categorizadas, foram submetidas à técnica de “análise de conteúdo”. A profissionalização do ensino passa necessariamente por uma renovação nos saberes dos professores da Educação de Jovens e Adultos sobre como aprender e ensinar e, nesse sentido, a Psicologia da Educação tem muito a contribuir para o aperfeiçoamento tanto da formação inicial quanto da formação continuada. Esperamos, com os resultados obtidos, contribuir para o debate acerca dos saberes necessários ao exercício da profissão de professor. 28 Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Potiguar (UnP), da rede Laureate International Universities. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: terezafaria@unp.br
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2 BASES CONCEITUAIS Uma análise da trajetória histórica da Educação de Jovens e Adultos no Brasil revela que não é de hoje a preocupação com os analfabetos, embora os números do analfabetismo ainda sejam alarmantes. A proporção dos chamados analfabetos absolutos – aqueles que não sabem ler nem escrever, inclusive o próprio nome, entre 15 e 64 anos – caiu de 9% para 7% entre 2007 e 2009, número alto se comparado com o de países desenvolvidos e mesmo com o de vizinhos sul-americanos, como Chile e Argentina. Vale lembrar que, em 2002, esse percentual era de 12%. Os dados são do Indicador de Alfabetismo Funcional, do Instituto Paulo Montenegro (IBOPE, 2010). Apurado desde 2001, o indicador mede os níveis de alfabetismo e analfabetismo funcional da população brasileira, residente em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país. Um dos desafios enfrentados para atender esse público são os altos índices de evasão: 42,7% dos 8 milhões de brasileiros que frequentaram classes de Educação de Jovens e Adultos até 2006 não concluíram nenhum segmento do curso (IBGE, 2007). Vale salientar que a qualidade da educação brasileira também tem sido questionada quando são tornados públicos os resultados dos alunos da Educação Básica em testes de aferição do conhecimento nacionais e internacionais. Nesse contexto, surgem os questionamentos acerca da formação do professor, porque educação de qualidade passa, dentre outros fatores, pela qualidade da formação que é oferecida a quem quer exercer essa profissão. Em se tratando da formação do professor da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o quadro é ainda mais inquietante, uma vez que, no Brasil, são raríssimos os cursos de Pedagogia que oferecem a habilitação em EJA. Os motivos da pequena existência de formação específica para o educador de jovens e adultos oscilam entre o pouco conhecimento da área e a ausência de políticas públicas voltadas para a educação desses sujeitos, o que muitas vezes influencia os futuros pedagogos a não escolherem essa habilitação (SOARES, 2006). 74
Mesmo que se mostrassem apenas estatísticas da EJA escolar, o atendimento atual não passa dos 10% da demanda potencial, prejudicado ainda por índices de abandono e evasão, bem como por questionamentos quanto à existência de quadros profissionais formados para trabalhar com as especificidades desse campo educacional (IRELAND, 2012, p. 54).
Torna-se importante enfatizar que muitas das experiências ocorridas em relação à alfabetização de adultos se organizaram no formato de campanhas, como ações emergenciais que, desconsiderando a educação como um processo que exige tempo e maturação, buscaram baixar as estatísticas do analfabetismo sob a marca da improvisação, do voluntariado e da transposição de métodos e materiais didáticos da escola para crianças para a escola de adultos. Assim sendo, qualquer pessoa de “boa vontade”, com “paciência” e “espírito missionário” podia se tornar um alfabetizador. Atualmente, sabe-se, cada vez mais, que para ensinar a ler e escrever a jovens e adultos, uma série de saberes específicos é necessária. Um grupo de adultos caracteriza-se por uma grande heterogeneidade. São pessoas com experiências e bagagens distintas provindas das vivências familiares, sociais e do mundo do trabalho. Há os mais jovens, os adolescentes, os adultos e os mais adultos, ou os da chamada terceira idade. Há brancos, negros, homens, mulheres, católicos, evangélicos e espíritas. Essa diversidade de trajetórias requer um melhor preparo do professor; logo, não é mais fácil do que se ensinar às crianças. Se a heterogeneidade e a diversidade são características das turmas de alfabetização, exige-se uma proposta que contemple o tempo necessário a uma educação em que a alfabetização não se restrinja exclusivamente a só codificar e a decodificar o código escrito. De acordo com Ribeiro, Durante muito tempo, considerou-se que uma pessoa estava alfabetizada quando sabia ler e escrever, ainda que num nível muito rudimentar. Foi essa a 75
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concepção que orientou a maioria das campanhas de alfabetização de jovens e adultos em todo o mundo (RIBEIRO, 2002, p. 35).
No final dos anos 70 do século passado, os estudiosos ampliaram a compreensão do processo de desenvolvimento para além da adolescência, considerando a idade adulta e a velhice fases que comportam mudanças no processo de desenvolvimento psicológico (PALACIOS, 1995). Sendo a idade adulta passível de mudanças e processos de adaptações, não podemos entendê-la como se fosse estável nem classificar os adultos pouco escolarizados nos níveis estáveis e fechados de desenvolvimento psicológico. Segundo Oliveira, não há
[...] um percurso universal para o desenvolvimento humano, mas, ao contrário, os modos de pensamento e a atividade psicológica em geral seriam definidos na relação do ser humano com situações reais que enfrenta em sua vida concreta (OLIVEIRA, 2002, p. 25).
Portanto, o desenvolvimento não é um processo inato e universal determinado pela maturação e/ou pelo acesso à escolarização, mas decorrente da aprendizagem na interação do indivíduo com o contexto social. O conhecimento resulta de processos de interação em diferentes contextos sociais e não de diferentes potenciais cognitivos. Ribeiro (1999) e Pereira (2006), quando analisaram temas e objetivos da pesquisa acadêmica sobre a formação de professores de jovens e adultos, destacaram que as teses e dissertações produzidas no período de 1986 a 1998 sugerem que a falta de formação específica é um dos principais problemas das experiências educativas realizadas nos programas de alfabetização e, de modo amplo, na Educação de Jovens e Adultos. Das sugestões apontadas por esses autores decorre a questão sobre a qual refletiremos neste trabalho: quais os 76
saberes sobre aprendizagem e ensino que apoiam a ação educativa dos professores da Educação de Jovens e Adultos, sem os quais, dificilmente, podem-se compor programas conectados aos contextos onde atuam, às identidades profissionais em constante construção e às suas representações sobre a EJA? Nos últimos vinte anos, houve um aumento significativo no número de pesquisas voltadas para a questão da formação do professor. Esse aumento verificou-se tanto em relação à quantidade quanto à qualidade das questões abordadas. Portanto, aos poucos, foi crescendo o interesse em se procurar conhecer mais e melhor a maneira como se desenvolve o processo de formar um professor, ou o processo de “aprender a ensinar” pelos professores, a fim de se pensar a formação docente. Vários são os temas pesquisados e, se a princípio o foco de interesse centrava-se na questão do que é um ensino eficaz, atualmente o leque de investigação é amplo e pesquisa-se, por exemplo, o conhecimento didático do conteúdo que o professor possui, os estágios que ocorrem no decorrer do curso de formação, o desenvolvimento profissional, procurando saber o que os professores conhecem, quais os saberes e competências necessárias para ensinar, como ocorre o processo de transformação do conhecimento da matéria que o professor inicial possui em conhecimento ensinável, como acontece o desenvolvimento do conhecimento durante os estágios de ensino, como contribuir com a profissionalização do docente. Essas pesquisas, que também são realizadas no Brasil (GATTI, 1997; RAMALHO; NÚÑEZ, 1998; VEIGA, 1998; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2007), têm sido compartilhadas com pesquisadores de outros países, tais como: Zeichner (1995; 1998), nos Estados Unidos; Gauthier (1998) e Tardif (2000), no Canadá; Nóvoa (1995), em Portugal; Marcelo (1995; 1998), na Espanha; e Perrenoud (1993), na Suíça. Vale salientar que os autores citados têm, como ponto de partida para suas investigações, diferentes paradigmas, dentre os 77
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quais cumpre-se destacar o pensamento do professor. O estudo do pensamento do professor constitui uma linha de investigação que vem se consolidando desde fins de 1970. Apesar de não possuir um marco global de interpretação, fornece bases suficientes para elaborar modelos de formação e assessoramento ao professorado de modo que ajudem a melhorar a qualidade docente e, consequentemente, contribua para a profissionalização. Os professores possuem crenças, concepções, modelos, valores e teorias que influenciam a maneira de conceber a aprendizagem e o ensino e que determinam a sua ação na sala de aula. Existe, pois, certa coerência entre a teoria e a ação do professor. Quando a teoria serve de guia para a prática, defende-se, então, a ideia de interpretar e conhecer a prática a partir das concepções teóricas implícitas e explícitas dos docentes. Como afirma Carr (apud BAENA QUADRADO, 2000, p. 217), “Toda prática está incrustada na teoria; só podendo compreender-se em relação com as preconcepções teóricas tácitas dos praticantes”. O aparecimento tardio desses estudos é explicado pelo fato de, nas décadas de 1940 e 1950, a pesquisa sobre o ensino e os professores pouco ter se desenvolvido. Os estudos realizados nessa época, tanto do lado norte-americano quanto do lado europeu, voltavam-se para o aluno, pois o professor era visto como uma variável secundária que influenciava a aprendizagem por meio de seus comportamentos. Assim sendo, pesquisas nas salas de aula e junto aos professores eram raras e, quando existiam, se limitavam à observação dos comportamentos desses profissionais. Nas décadas de 1960 e 1970, ao mesmo tempo em que aumentava a quantidade de pesquisas ainda centradas na observação da eficácia dos comportamentos do professor na aprendizagem dos alunos, começavam a aparecer as primeiras críticas à fragilidade dos resultados da pesquisa sobre o ensino e a evidenciar-se a necessidade de se constituir uma sólida tradição de pesquisa nesse campo. O movimento pela profissionalização do ensino, iniciado nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e 1990, também fez sur78
gir a necessidade de se constituir um repertório de conhecimentos profissionais para o ensino, pois os professores, em seu trabalho cotidiano como profissionais, precisam se apoiar num repertório de conhecimentos validados pela pesquisa, capaz de garantir a legitimidade e a eficácia de sua ação. Como qualquer outro profissional, o professor deve possuir saberes – no caso específico, saberes teóricos/práticos – que lhe permitam organizar estratégias para a solução de seus problemas profissionais. Nessa perspectiva, ou seja, a de contribuir para a melhoria da formação do professor da Educação de Jovens e Adultos e para a profissionalização do ensino, é que se insere este estudo, cujo quadro teórico de referência é composto pela teorização sobre os saberes docentes (PORLÁN ARIZA; RIVERO GARCIA; MARTÍN DEL POZO, 1997; GAUTHIER, 1998; PIMENTA, 1999; TARDIF, 2000) e pelas teorias psicológicas da aprendizagem (condutista ou behaviorista, cognitivistas e a histórico-cultural). É importante mencionar que a questão da profissionalização do ensino tem norteado importantes reformas propostas para a formação de docentes na América do Norte, na Europa e na América Latina. No Brasil, as reformas que vêm ocorrendo a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei nº 9.394/96, com a proposta de formação, em nível superior, dos profissionais da Educação Básica, enfatiza a questão dos saberes e das competências na formação dos futuros professores brasileiros e, consequentemente, na sua profissionalização. Na construção desses saberes, destaca-se a Psicologia da Educação. Esta é uma disciplina pedagógica que, com suas teorias sobre aprendizagem, entre outras, pode oportunizar referências ao professor a fim de que ele construa, com os alunos, estratégias de aprendizagens necessárias para responder aos desafios que lhe estão sendo colocados pela educação da atualidade, caso seja ministrada nos cursos de formação inicial e continuada, sob a perspectiva da profissionalização docente. 79
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3 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES Como a natureza do fenômeno investigado e os objetivos determinam a escolha dos instrumentos de coleta de informações e este é um estudo de caráter interpretativo e descritivo dos saberes dos professores fundamentados na Psicologia da Educação, as informações foram colhidas por meio de um questionário escrito, composto de identificação e de 14 questões abertas. As respostas às questões foram transcritas, categorizadas e submetidas à técnica de “análise de conteúdo” (BARDIN, 1977). A pesquisa foi realizada com 26 professores, sendo 1 de escola particular e 25 de escolas públicas. São 14 do sexo feminino e 12 do masculino; 12 professores têm idade igual ou inferior a 40 anos, 7 entre 41 e 50, e 7 mais de 50 anos; 12 são formados em Pedagogia, 4 em Letras, 3 em Matemática, 2 em Geografia, 2 em Química, 1 em Educação Artística, 1 em História e 1 em Biologia; 16 têm 20 ou menos anos de atuação no magistério e 10 mais de 21 anos; 18 têm menos de 10 anos atuando na Educação de Jovens e Adultos e 12 entre 11 e 22 anos. Como queríamos investigar os saberes dos professores sobre aprendizagem, saberes provenientes da Psicologia da Educação, privilegiamos o professor da Educação de Jovens e Adultos, graduado e em exercício na rede regular de ensino. A caracterização dos professores permite verificar que, apesar do número de mulheres ser pouco maior que o de homens, reflete a realidade da quantidade de professoras na Educação Básica ser maior do que a de professores. Os participantes da pesquisa possuem graduação em cursos de licenciatura, mas nem todo curso de licenciatura prepara o professor para atuar na Educação de Jovens e Adultos e/ou oferece a disciplina Psicologia da Educação com ênfase na aprendizagem. Com relação à idade, não são professores tão jovens, têm bastantes anos no magistério, mas o número de anos não coincide com a docência na Educação de Jovens e Adultos. Vale salientar que mesmo os professores que possuem pouco tempo lecionando 80
nessa modalidade de ensino possuem bastantes anos de magistério, portanto, são profissionais experientes. Ao serem indagados a respeito de “o que é ensinar no contexto escolar?”, 6 professores afirmaram que “é transmitir conhecimentos”; 5 que “é lecionar de acordo com a realidade do aluno”; 4 que “é auxiliar o processo de aprendizagem”; 2 que “é formar cidadãos”; 2 que “é um desafio diante das dificuldades enfrentadas pelo país”; 2 que “é contribuir para uma melhor formação”; 1 que “é desenvolver habilidades”; 1 que “é entender que o aluno não é criança”; 1 que “é aprender ao mesmo tempo que ensina”; 1 que “é contribuir para o aumento da autoestima”; e 1 que “é aplicar a adversidade plena em tudo e para tudo”. Quando perguntados sobre se “o professor tem por função ensinar”, 20 professores responderam que “sim” e 6 que “não”, pois atribuíram ao professor um papel além do de transmissor, ou seja, o de mediador, orientador, parceiro, amigo, pesquisador e intermediário do conhecimento. As respostas às duas questões, além de diversificadas, quando confrontadas, permitem inferir que, para eles, o professor ainda é o transmissor de conhecimentos. Entretanto, para propiciar a passagem do saber espontâneo para o saber científico, é necessário ir além do discurso informativo, da explanação dos conteúdos. O questionamento e a explicitação de dúvidas, por exemplo, são comportamentos que levam à formação do pensamento crítico e à construção do conhecimento. Os conteúdos das aulas devem ser assimilados pelos alunos a partir de situações concretas e estar relacionados ao contexto social, político e econômico no qual está inserida a sociedade contemporânea. Eles precisam desenvolver, junto com o aprendizado dos conteúdos, novas habilidades cognitivas de compreensão, elaboração e controle da própria atividade; precisam também criar novas motivações para transformarem a si mesmos e o meio onde vivem. Quando indagados sobre “como o jovem e/ou adulto aprende na escola”, 8 professores responderam que “através de dinâmicas e 81
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trabalhos”; 6 que “é através de técnicas de acordo com a realidade dos alunos”; 2 que “é através do prazer de estar na escola”; 2 que “é ouvindo”; 2 que “é o professor tendo paciência”; 2 que “é o aluno sendo motivado”; 1 que “o aluno aprende igual aos alunos do turno regular”; 1 que “é através da aula expositiva e da pesquisa”; 1 “construindo uma relação de autoconfiança”; e 1 professor não respondeu à questão. Em se tratando do que facilita “a aprendizagem do jovem e/ ou adulto de um dado conteúdo”, 12 responderam que “é a relação entre teoria e prática”; 5 que “é uma aula bem preparada”; 4 que “é o interesse do aluno em aprender”; 2 que “é partir dos conhecimentos prévios do aluno”; 1 que “é ser um ensino baseado em competências”; 1 que “é um ensino a partir da interação e da pesquisa”; e 1 não respondeu a pergunta. Ao serem indagados sobre “o que facilita a aprendizagem do jovem e/ou adulto de um dado conteúdo”, 6 professores responderam que “significava ser capaz de andar sozinho”; 5 “aquisição de novos conhecimentos a partir de situações cotidianas”; 4 “o desenvolvimento de passos como reflexão, ação, reflexão”; 3 “experiência, interesse e assiduidade”; 2 “é o resultado do ensino”; 2, “derramamento de saberes que faltaram para jovens e adultos”; 1 “materiais didáticos e assuntos interessantes”; 1 “resumo das matérias para o aluno aprender o mais importante”; 1 “aprender a ler e escrever em um contexto que contribua para a compreensão e a interação com a cultura letrada”; e 1 professor não respondeu a questão. “Como você pode saber se o aluno aprendeu ou não um dado conteúdo” foi outra das questões: 6 professores responderam que “com um questionário”; 9 que “sabe por meio de trabalhos práticos”; 4 “quando o aluno consegue utilizar o conteúdo na vida cotidiana”; 4 que “a partir da avaliação diagnóstica”; 1 não respondeu; 1 que “sabe que o aluno aprendeu a partir da abordagem construtivista”; 1 “quando mais de 50% da turma tira nota baixa”. Considerando-se as respostas relativas às perguntas formuladas, percebe-se que os professores, em sua maioria, acreditam que, 82
para aprender, o aluno precisa ser ativo, fazer a relação entre teoria e prática, apesar de ainda haver quem acredite que tudo depende de uma aula bem preparada e de que o aluno ouça o que o professor está explicando. Entretanto, tanto as crianças como os jovens e adultos já trazem um conhecimento de mundo que não pode ser desconsiderado. Uma proposta didática atualizada, fundamentada na Psicologia da Educação, que leve em conta as capacidades dos alunos, deve propiciar, desde o início do processo, oportunidades para que eles mostrem o que já sabem e aquilo que precisam ou desejam saber; deve propor-lhes desafios e ampliar os recursos disponíveis para que possam superá-los. Por outro lado, a clareza do professor no que se refere à concepção que embasa sua prática, como se dá o processo de aprendizagem e quais fatores interferem no ato de ensinar são determinantes para o desenvolvimento da prática pedagógica. O professor precisa saber o que dá sustentação teórica e metodológica às suas ações para que possa organizar as situações de aprendizagem. Quando perguntado sobre “você trabalha em Educação de Jovens e Adultos fundamentado em algum posicionamento teórico específico”, 15 professores responderam que “sim”, 10 que “não” e 1 professor afirmou que “não foi capacitado”. A respeito de em quem se fundamentam, as respostas foram: 9 em “Paulo Freire”; 2 em “Paulo Freire, Emília Ferreiro e Vygotsky”; 4 em “Emília Ferreiro”; 1 em “Baktin e nos PCNs”; 1 “no Projeto Político Pedagógico da escola em que leciono”; 2 “no construtivismo”; 1 “no sócio-construtivismo”; 1 disse que “como estudou muitos talvez faça um pouco de cada”; 2 não especificaram em quem se fundamentam para ensinar; 1 disse que “já utilizou Paulo Freire, mas que atualmente isso não funciona mais”; 1 disse que “utiliza um teórico dependendo da turma que ensina”; 1 disse que “não trabalha fundamentado em teóricos europeus e sim de acordo como o sistema está montado hoje, ou seja, meio que espontâneo e provocador”. A análise das respostas às questões permite inferir que são poucas e/ou limitadas as expressões que denotam conhecimento das teorias psicológicas sobre a aprendizagem. O discurso dos professores 83
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demonstra que eles lembram-se de algumas das ideias em relação à aprendizagem e ensino defendidas pelos teóricos mencionados, entretanto, insuficientes para delas saberem fazer uso. Vale lembrar que Paulo Freire não era psicólogo, suas ideias sobre aprendizagem são pedagógicas. Por outro lado, a educação na perspectiva freireana vai além da esfera pedagógica e interessa-se, sobretudo, pelas implicações sociais e políticas. A visão de liberdade com a participação livre e crítica dos jovens e adultos é o mote que dá sentido a essa prática educativa. Para Rapoport (2008, p. 43), “Grande parcela dos que afirmam se basear em determinadas correntes pedagógicas ou pensadores deixa o discurso cair por terra quando precisa justificar essas escolhas”. Esse tipo de conhecimento, que não permite um saber fazer argumentado e explicativo, é chamado de declarativo, descritivo, através do qual se pode expressar em forma de proposição algum fato ou conceito. O conhecimento declarativo sobre aprendizagem tradicional de base condutista ou behaviorista e a aprendizagem por construção não constituem um “saber” na perspectiva assumida pela pesquisadora; por conseguinte, pode impedir a adequação das práticas pedagógicas às demandas educativas do século XXI e, sobretudo, limitar o agir competente e profissional por parte dos professores para atender a essas novas exigências. Tudo indica que os saberes docentes sobre aprendizagem emergem de ideias implícitas construídas por uma prática e experiência baseadas na “metodologia da superficialidade” (GIL PEREZ; CARRASCOSA ALIS, 1985), com limitadas reflexões a partir de referências sólidas na Psicologia da Educação – como referências de um saber científico – na construção de saberes da e para a prática. Para Cagliari (1998, p. 36), “existe uma confusão muito grande entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas que lidam com educação.” Isso acontece porque se leva em consideração apenas o ensino, acreditando que a aprendizagem ocorre automaticamente, como fruto do ensino, o que, para este autor, é um erro grosseiro. Ensinar é um ato coletivo que pode ocorrer para um grande número de pessoas em uma sala de aula, com informações organizadas 84
e relevantes para quem ensina. E não é porque o professor ensina que o aluno aprende. Aprender é um ato individual, cada um aprende segundo seu próprio metabolismo, seus interesses; o que é importante para quem ensina pode não parecer importante para quem aprende. Portanto, como são processos distintos que se complementam dependendo da ação do professor, é preciso que se diversifiquem as práticas docentes em função da heterogeneidade dos alunos e dos diferentes ritmos de aprendizagem. A Psicologia da Educação ensinada nos cursos de formação inicial e continuada na perspectiva da profissionalização docente, ao mobilizar os saberes dos professores sobre aprendizagem e ensino, pode contribuir para modificar essa situação. Os saberes são recursos importantes quando se pensa uma nova ação profissional competente. 4 CONCLUSÃO
As novas demandas de aprendizagem não podem satisfazer-se frente a um modelo educativo transmissivo no qual o professor atua, na maioria das vezes, como provedor de um saber culturalmente acumulado e os alunos, no geral, se limitam a ser receptores passivos. Em uma sociedade que requer de seus cidadãos a utilização de seus conhecimentos de modo flexível frente a novas tarefas, que interpretem novos problemas a partir de conhecimentos anteriormente assimilados e que conectem seus saberes escolares com a sociedade da informação onde estão inseridos, não parece suficiente “encher a cabeça” dos alunos com conteúdos científicos, mas dotá-los de estratégias para ativar adequadamente esses conhecimentos quando for necessário. Isso pode ser conseguido com a utilização, como referência, das teorias construtivistas de Piaget (1977), Ausubel (1980) e as dos teóricos da escola Histórico-Cultural representada por Vygotsky (1998), Leontiev (1983) e Galperin (1986) no planejamento e execução das atividades didáticas. 85
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Para isso, é preciso que os professores da Educação de Jovens e Adultos tenham clareza da necessidade de estabelecer a relação entre teoria e prática em todos os momentos das atividades didáticas. Também é necessário que, ao elaborarem a proposta curricular, compreendam que se trata de uma decisão político-pedagógica pertinente às exigências dessa clientela. Como diz Freire (1983), as concepções sobre aprendizagem e o processo pedagógico são indissociáveis do político. Portanto, cabe ao professor a percepção de que “[...] toda prática educacional envolve uma postura teórica por parte do mesmo. Esta postura, em si mesma, implica, às vezes mais às vezes menos, explicitamente, numa concepção dos seres humanos e do mundo” (FREIRE, 1983, p. 42). A profissionalização, como um movimento global, reclama uma transformação significativa não só dos programas e conteúdos, mas também dos próprios fundamentos da formação docente, já que essencialmente leva a conceber a docência como uma atividade profissional de alto nível, a exemplo das profissões liberais. Essa atividade repousa sobre uma sólida base de conhecimentos, fortemente articulados e integrados nas práticas profissionais, que, simultânea e constantemente, a alimentam e a enriquecem, graças ao aporte de praticantes experientes e de investigadores que com eles colaboram. Mudanças na formação, como as requeridas pela profissionalização docente, não podem ficar dependendo apenas de leis ou decretos. Estes são necessários, porém, enquanto as mudanças forem feitas somente através desses mecanismos, não se farão as que resultam em transformações efetivas. É conveniente lembrarmos que a implementação de mudanças se faz urgente e deve ocorrer, em primeiro lugar, naqueles que estão envolvidos nos processos de formação inicial e continuada dos professores, pois como afirma Gatti (1997, p. 4), “reverter um quadro de má formação ou formação inadequada não é processo para um dia ou alguns meses, mas para décadas [...]”. Podemos afirmar, portanto, que a profissionalização do ensino passa necessariamente por uma renovação nos saberes dos 86
professores da Educação de Jovens e Adultos sobre como aprender e ensinar e, nesse sentido, a Psicologia da Educação tem muito a contribuir para o aperfeiçoamento tanto da formação inicial quanto da formação continuada. REFERÊNCIAS
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5 ENSINO DE HISTÓRIA E VIDA PRÁTICA: o uso deproduções cinematográficas no desenvolvimento de conhecimento histórico.
Robson William Potier 29 Leda Virgínia Belarmino Campelo Potier 30
É ilusório crer que as imagens, mesmo animadas, falam por elas mesmas: elas mostram as coisas, elas afirmam; não carregam, porém, facilmente a marca do julgamento daquele que as produziu. (GAUDREAULT; JOST, 2009)
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1 INTRODUÇÃO Qual professor de História - seja do ensino básico ou do ensino superior - em algum momento de suas aulas não decidiu por alçar mão de recursos considerados “não didáticos” para auxiliá-lo no trabalho de desenvolvimento de conhecimento histórico em sala de aula? Temos certeza de que muitos profissionais do ensino, ao lerem essa indagação inicial, identificaram-se com o que foi questionado. A percepção da necessidade de reflexão sobre os usos, em sala de aula, de materiais que não foram necessariamente concebidos para fins didáticos, tais como filmes, jornais, poemas, fotos, pinturas e músicas, nos motivou a refletir sobre como esses tipos de recursos podem contribuir com a construção de conhecimento em aulas de 29 Professor do Curso de História da Universidade Potiguar. (UnP), Natal/ Brasil, da rede Laureate International Universities. Mestre em História Cultural pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: robson.potier@unp.br 30 Professora de História no Ensino Básico. Mestranda em História Cultural pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: ledacampello@hotmail.com.
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História. Se tomarmos como ponto de partida uma ação cotidiana, basta, por exemplo, uma breve busca por websites, confiáveis, especializados em ensino de História, para que possamos constatar a existência de muitas proposições de aulas de História, muitos relatos de experiências por parte de professores de História, que levam em consideração o uso de elementos de suas próprias vidas cotidianas, além da de seus alunos, como potenciais promotores de desenvolvimento de conhecimento histórico e orientação no tempo e nos espaços de suas vidas práticas. Já faz muito tempo que o professor de História possui à sua disposição uma gama de possibilidades para que este possa desenvolver suas aulas levando em consideração o conhecimento prévio que seus alunos adquiriram, inclusive, fora do espaço escolar. Os próprios livros didáticos brasileiros, nos últimos anos, passaram a recomendar a utilização de diferentes recursos pertencentes à vida prática dos alunos, a fim de que um maior aprofundamento do conhecimento histórico em sala de aula pudesse ser alcançado. É comum encontrarmos, por exemplo, em muitos livros didáticos, indicações de produções cinematográficas para serem utilizadas como recurso nas aulas a serem ministradas. Por vezes, essas indicações ainda tratam os filmes como recursos meramente complementares na construção de conhecimento histórico, porém, já não são mais tão raros os casos em que o livro didático traz recomendações de usos de produções fílmicas juntamente com orientações de usos que as colocam como fontes a partir das quais a construção de conhecimento sobre determinado assunto pode vir a ser operacionalizada de forma bastante consonante com os preceitos teóricos do ensino de História. O livro didático, porém, não seria o único a oferecer orientações e indicações de usos para recursos não didáticos em aulas de História. Além destes, o professor também encontra na internet, cada vez mais, indicações de possibilidades e materiais capazes de contribuir para o desenvolvimento do conhecimento histórico a partir do 92
espaço escolar. Ao acessarmos, por exemplo, o Portal do Professor, do MEC (Ministério da Educação e Cultura)31, temos a oportunidade de travar contato com diversos modelos de planos de aulas que recomendam o uso de fontes históricas a partir de diversas exemplaridades, estratégias e abordagens didáticas, propostas para desenvolvimento e produção do conhecimento em aulas de História no ensino básico. Nesse website, ao pesquisarmos, por exemplo, sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, encontramos algumas sugestões de aulas que recomendam a utilização do filme Carlota Joaquina (1995), a partir de proposições como a de que “o filme ajudará os alunos no entendimento, pois conta de forma divertida a História de Carlota” (MIRANDA, 2013). A linguagem cinematográfica para aqueles que, no mínimo, tem acesso a um aparelho de televisão, acaba por fazer parte do cotidiano de muitos alunos brasileiros. Sabemos que a maioria dos filmes com teor “histórico”, ou seja, filmes que representam um dado conjunto de acontecimentos, ficcionais ou não, ocorridos no passado, não foram produzidos segundo requisitos teóricos e metodológicos da pesquisa histórica, uma vez que esse tipo de produto costuma visar ao entretenimento e ao atendimento de demandas de um mercado consumidor com características e carências específicas. Porém, são justamente os conhecimentos sobre preceitos teórico-metodológicos da História que auxiliam o profissional historiador no entendimento de que, mesmo filmes cujas narrativas não pretendam reconstruir acontecimentos históricos, nos servem como fontes tanto para a pesquisa quanto para a construção de conhecimento histórico em sala de aula. Também sabemos que filmes oferecem representações sociais que precisam atender às demandas de uma produção cultural de massa, que necessita vender e ser consumida por grupos de pessoas capazes de se interessarem por essas narrativas; sabemos ainda que os filmes, sejam “históricos” ou não, são capazes de representar 31 http://portaldoprofessor.mec.gov.br/
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os elementos socioculturais pertencentes aos seus tempo e espaço de produção muito mais do que os acontecimentos relativos a algum passado que por ventura se busque reconstruir. 2 DISCUTINDO A PARTIR DE UM CASO: a superprodução cinematográfica 300
Se quisermos alçar mão de um exemplo que nos permita uma reflexão inicial acerca de como os filmes conseguem produzir orientações temporais em seu público consumidor, podemos voltar atenções ao filme 300 (2006), do diretor Zack Snyder, que foi baseado em uma Graphic Novel homônima de autoria do famoso roteirista e desenhista de quadrinhos, Frank Miller. A obra em quadrinhos se tornou um clássico no gênero e alcançou altos índices de sucesso, tanto de crítica quanto de vendas, a partir de seu lançamento em 1996. A transposição dessa História dos quadrinhos para o cinema pode ter sido motivada, entre outros, pelo alto potencial de vendas que, em tempos de sucesso de bilheteria de filmes como Gladiador (2002), Cruzadas (2005) e Alexandre (2004), essa produção fílmica poderia proporcionar. Apesar de buscar certa identificação estética com o estilo visual dos quadrinhos de Miller, o filme que, assim como a revista, buscou representar acontecimentos relacionados com a sociedade grega existente em 480 a.C., teve suas representações construídas de modo a atender ritmos narrativos e padrões visuais capazes de agradar aos mercados cinematográficos ocidentais do início do século XXI. Indo para além dos padrões meramente estéticos, 300 também precisou representar a Esparta de Leônidas a partir de escolhas sobre o passado produzidas no e para o presente. Essas representações da sociedade espartana se concretizaram no filme sob a forma de visibilidades e silenciamentos acerca de elementos desses tempo e espaço que fossem capazes de atrair bilheteria para esse produto da “cultura POP” que, desde seu projeto inicial, teve como objetivo atrair multidões aos cinemas pelo mundo. 94
O diretor do filme 300, Zack Snyder, concedeu algumas entrevistas esclarecedoras no que se refere às demandas e interesses das produções cinematográficas, principalmente em Hollywood. De acordo com Snyder, referindo-se à necessidade de adaptação de um roteiro para as salas de cinema, visando a um público específico, a fim de extrair dessa produção o melhor retorno financeiro e comercial possível, “quando eles têm que produzir um filme que já tenha um personagem definido, uma História consagrada e os elementos visuais que não podem ficar de fora, eles não tem nada” (SNYDER, 2007). Snyder segue alegando que uma produção cinematográfica não pode nascer “amarrada” a um formato ou História rigidamente definida, sob a pena de não se conseguir produzir uma narrativa que “caiba” no formato exigido para um filme. Quando perguntado sobre a sociedade grega e sobre a História dessa sociedade representada a partir de seu filme, o diretor afirma que o principal objetivo de um filme desse tipo é divertir e entreter. Snyder faz um alerta: É muito importante que as pessoas saibam disso, já que muito do que vivemos hoje é baseado na História da sociedade ocidental e esse momento [representado no filme] é muito importante, por isso, não queremos que as pessoas tirem conclusões radicais ou erradas sobre isso. 300 é fantasia. Não é real. O céu é absurdo, os elefantes são alucinantes, Xerxes é gigante (SNYDER, 2007).
Nessa perspectiva, vale questionar: a partir de quais tipos de procedimentos filmes como esse podem ser utilizados em aulas de História com a finalidade de desenvolver, junto aos alunos, conhecimentos capazes de orientá-los no tempo e em suas vidas práticas? Quais bases de entendimentos teórico e metodológico o profissional da História deve possuir para propiciar uma efetiva aprendizagem histórica a partir do uso desses recursos? As duas questões levantadas mais acima são de fato pertinentes e recorrentes quando se pensa na produção do conhecimento 95
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histórico para os alunos de todos os níveis de ensino, no Brasil e em outras partes do mundo. Neste texto estamos tomando como exemplaridade o filme 300 a fim de analisar e discutir especificamente os usos didáticos de filmes produzidos pelo cinema a partir da intenção de atingir uma grande “massa” de espectadores. Cabe, portanto, à nossa discussão, refletir sobre como esses filmes podem servir ao papel de promover desenvolvimento de consciência histórica dentro ou fora da escola. O que pretendemos problematizar parte primeiramente da percepção de que produções como os filmes cinematográficos desenvolvem consciência histórica nos indivíduos já a partir de espaços exteriores ao escolar. Ainda assim, produções culturais como os filmes, idealizadas para fins não necessariamente didáticos, possuem poderosos potenciais comunicativos e podem ser utilizadas com níveis bastante interessantes de eficácia e eficiência no que tange ao desenvolvimento de aprendizagem histórica, em aulas de História formalmente pensadas para acontecerem a partir do espaço escolar. Se as narrativas fílmicas são produzidas fora do espaço escolar sem nenhum ou quase nenhum interesse, por parte de seus produtores, em educar historicamente um determinado grupo de pessoas, podemos nos perguntar ainda: como – a partir de quais mecanismos teórico-metodológicos – esse tipo de material é capaz de produzir alguma forma de orientação temporal e espacial para aqueles que o consomem? Propomos que, antes de tentarmos responder a essa pergunta, nos concentremos em conceituar aquilo que estamos chamando de consciência histórica, bem como busquemos compreender, em linhas gerais, no que consiste a Didática da História, campo disciplinar que tomará a consciência histórica como base para a sua operacionalidade. 3 CINEMA, VIDA PRÁTICA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Nos últimos anos, diversos historiadores brasileiros ligados às pesquisas sobre o ensino de História têm experienciado um processo de aproximação entre os estudos relacionados com a Educação His96
tórica e a Teoria da História produzida pelo historiador alemão Jörn Rüsen. Muitos trabalhos vêm sendo desenvolvidos a partir da compreensão de que Teoria e Metodologia da História e ensino de História podem e devem andar juntos; aliás, conceitualmente, segundo conclusões obtidas nesses mesmos trabalhos, Teoria da História e Educação Histórica podem mesmo ser tomadas como parte de um todo inerente à Ciência Histórica, com o intuito de responder as carências humanas desenvolvidas na vida prática dos indivíduos em sociedade. De acordo com Luis Fernando Cerri, um dos pesquisadores brasileiros que tem fornecido significativas contribuições para esses estudos, podemos perceber que “teoria e prática se uniram a partir de uma compreensão da História enquanto ciência ligada ao cotidiano, o que vem provocando uma união crescente entre universidades e professores da rede de ensino básico” (CERRI, 2012, p. 992). Para que a afirmativa de Cerri seja compreendida de forma eficaz e eficiente, fazem-se necessárias algumas aproximações com a Teoria da História proposta por Rüsen, a fim de que possamos buscar construir compreensões acerca das formas como o conhecimento histórico parte de carências de orientação nascidas na sociedade e deve poder voltar a ela, auxiliando os indivíduos a se orientarem em sua vida prática. Para este historiador, A teoria da História preocupa-se em colocar a relação do conhecimento histórico à prática, de maneira que se possa reconhecer nela a possibilidade dos procedimentos especificamente científicos e dos pontos de vista reguladores que se lhe aplicam. (RUSEN, 2010, p. 86).
Em sua obra Razão Histórica, Rüsen (2010) propõe um modelo de uma matriz disciplinar32 idealizada por ele para a Ciência Histórica. A partir da matriz disciplinar de Rüsen podemos compreender que o conhecimento histórico produzido pela Ciência Histórica pode
32 Uma matriz disciplinar propõe descrever as etapas de produção do conhecimento científico atendendo a todos paradigmas de qualquer escola metódica.
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e deve ser construído a partir de carências de orientação no tempo e interesses imanentes da sociedade. Tais interesses devem motivar os historiadores a produzir conhecimentos históricos capazes de gerar soluções e orientações para essas carências sociais no momento em que voltem para a sociedade. São pelas formas de apresentação33 aplicadas aos conhecimentos produzidos pela Ciência Histórica que a sociedade poderá se beneficiar das respostas e orientações que o aprendizado histórico é capaz de oferecer. O conhecimento produzido deve, portanto, responder às carências de orientação no tempo da sociedade e à aprendizagem histórica. Na base dessa linha de raciocínio, encontra-se o pressuposto de que o ser humano, uma vez pertencente a um grupo social, desenvolve, ao longo de sua existência, mecanismos que lhe permitem se orientar no tempo e no espaço a partir da noção de que o mundo já existia antes dele, o mundo está mudando durante a sua vida e, ainda, o mundo existirá e continuará mudando quando ele se for. Tal capacidade de compreensão de si no tempo e no mundo desenvolve-se e pode atingir patamares diferenciados a depender de como cada indivíduo consegue desenvolver compreensões de mundo a partir da aquisição de conhecimentos sobre acontecimentos do passado que lhe tenham aplicabilidade para a vida prática no presente. A esse conjunto de experiências cognitivas, aquisições de conhecimentos e operações de memória que levam o indivíduo a compreender-se como sujeito histórico e compreender a sociedade à sua volta podemos denominar consciência histórica. Para Cerri,
[...] a consciência histórica não é meta , mas uma das condições de existência do pensamento: não está restrita à um período da História, a regiões do
33 A matriz disciplinar Histórica proposta por Rüsen divide-se em cinco etapas, a saber: Interesses (ou carências de orientação temporal), Ideias (perspectivas orientadoras da experiência no passado), Métodos (regras da pesquisa empírica), Formas de apresentação e Funções (de orientação existencial).
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planeta, a classes sociais ou indivíduos mais ou menos preparados para a reflexão histórica ou social geral. Para isso a “História” não é entendida como disciplina ou área especializada do conhecimento, mas como toda produção de conhecimento que envolva indivíduos e coletividades em função do tempo. (CERRI apud RÜSEN, 2010, p. 28).
Ora, se todos os indivíduos desenvolvem consciência histórica independentemente de grupo social, tempo histórico ou condição socioeconômica aos quais pertençam, podemos supor que a consciência histórica pode (até) ser desenvolvida a partir da aprendizagem histórica promovida pela escola. Porém, no cotidiano extraescolar, o contato com informações advindas da educação familiar, televisão, música, cinema, jornais, internet, também podem desenvolver significativos patamares de consciência histórica junto aos indivíduos. Conceituando de forma abrangente, Rüsen se refere à consciência histórica com a essência das “[...] operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”. (RÜSEN, 2001, p. 57). Lidando diretamente com essa perspectiva de consciência histórica, a Didática da História, segundo Rüsen, constitui-se enquanto campo disciplinar e área de interesse promotora de pesquisas que buscam compreender as formas como os indivíduos são capazes de desenvolver patamares diferenciados de consciência histórica a partir do contato com diversas naturezas de narrativas, que buscam, no presente, representar ou reconstruir elementos do passado. Assim, a Didática da História não estaria interessada somente nas teorias do ensino que visam a discutir as formas de como produzir conhecimento histórico em sala de aula, mas sim em todas as formas de apreensão de conhecimento histórico não científico, capazes de se fazerem presentes na vida do homem em sociedade. 99
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Para historiadores como Rüsen, Cerri e Saddi, a Didática da História como campo disciplinar ou área de interesses de estudos faz parte da Ciência Histórica e a auxilia naquilo que, segundo Saddi (2012), seria a função didática básica da História. De acordo com o historiador Rafael Saddi A didática da História, como subdisciplina da Ciência Histórica que investiga a consciência histórica predominante em uma sociedade, não se reduz nem ao ensino escolar da História nem às elaborações da História sem forma científica. Ao se colocar na tarefa de estabelecimento da ‘Morfologia’, da ‘Gênese’ e da ‘Função’ da consciência histórica, e, em sua tarefa normativa, atuar como uma ‘Pragmática’ da didática da História, ela desenvolve sua investigação em três áreas fundamentais: a) o ensino escolar da História, em que atua como uma didática do ensino de História; b) o uso público da História, em que se estabelece como uma didática da História pública; e c) a ciência História, em que age como uma didática da ciência histórica ou uma instância de auto-reflexão dos historiadores (SADDI, 2012, p. 215).
Dentre os aspectos levantados por Saddi sobre as finalidades da Didática da História, estamos nos detendo principalmente aos primeiro e segundo fatores, tentando problematizar como a Didática da História pública se relaciona com o ensino escolar de História. Sobre esse último aspecto, Saddi ainda reflete: [...] no âmbito do ensino escolar da História, é preciso compreender como se aprende História, para saber como se deve ensiná-la. Mas, para além do ensino escolar da História, a didática da História também lida com os usos públicos da História fora da sala de aula e fora também das narrativas acadêmicas (sistemáticas) da ciência da História (SADDI, 2012, p. 217). 100
Saddi argumenta, portanto, que “A área que denominamos de ‘Usos Públicos da História’ ou ‘didática da História pública’ é aquela que se dedica aos elementos extra científicos e extraescolares da consciência histórica.” (SADDI, 2012, p. 217). Assim, levar em consideração a vida prática dos alunos, ou seja, seu cotidiano, suas apreensões e formas de ver a sociedade, pode ser o ponto inicial para se pensar a construção de compreensões acerca de como a consciência histórica se desenvolve em sociedade. Acreditamos que esse deveria ser um fator a estar “na ordem do dia” dos debates acadêmicos. Compreendemos que não podemos desconsiderar o fato de que vivemos neste momento em uma sociedade da informação, na qual as abordagens de assuntos em sala de aula remetem de forma cada vez mais forte (e imediata) aos processos de desenvolvimento de consciência histórica no espaço externo ao escolar. A produção do conhecimento em ambientes não escolares é válida e possível (ou até mesmo, obviamente inevitável), porém, é necessário que a Educação Histórica, a partir dos conhecimentos e preceitos teóricos oferecidos pela Didática da História, esteja preparada para realizar a consolidação desse conhecimento, a fim de que o indivíduo seja capaz de se orientar temporalmente, desenvolvendo sua identidade e sendo capaz de pensar historicamente. O aprendizado da História transforma a consciência histórica em tema da didática da História. Vale lembrar que os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas no ensino de História, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida concreta dos aprendizes, nos quais a consciência histórica desempenha um papel (RUSEN, 2010, p. 91).
Entendemos, portanto, que a vida prática dos alunos colabora para o aprendizado histórico. As memórias familiares, as informações dos sites na internet, os jornais, os meios de comunicação de massa, a arte, a religião, contribuem para o desenvolvimento da consciência histórica dos 101
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alunos e essa é uma constatação que não pode ser relegada ou desprezada. É preciso que nos lembremos de que é a Educação Histórica produzida no ambiente escolar a responsável por realizar a organização do “diálogo” entre os aprendizados históricos operacionalizados dentro e fora da escola, a fim de que patamares de consciência histórica qualitativamente cada vez melhores possam ser desenvolvidos. Nesse ponto da discussão, acreditamos ser pertinente retornar ao questionamento elaborado anteriormente, ou seja: como e a partir de quais mecanismos teórico-metodológicos os filmes produzidos para o cinema são capazes de produzir alguma forma de orientação temporal na vida prática daqueles que os consomem? Vejamos! Se nos basearmos nos preceitos teóricos discutidos até aqui, podemos facilmente chegar à conclusão de que os filmes poderão ajudar a desenvolver patamares de consciência histórica junto àqueles que travarem contato com seus discursos, mesmo que esses contatos tenham se dado unicamente objetivando o entretenimento do espectador. Já vimos que, nessas condições, as formas como essa consciência histórica pode se desenvolver são objetos de interesse da Didática da História, uma vez que essa está interessada em todas as formas de apreensão de conhecimento histórico. Vale lembrar que a qualidade do desenvolvimento de consciência histórica que esse filme poderá promover, dependerá da “bagagem” de conhecimentos prévios, ou seja, do “capital cultural” e da própria consciência histórica desenvolvida anteriormente em cada indivíduo. Por fim, levemos em conta que quando um filme, capaz de promover orientações no tempo, é assistido apenas para entreter e divertir, estamos diante daquilo que, parágrafos acima, conceituamos como usos públicos da História. Nesse caso, qual seria o papel do professor de História ao tentar se utilizar de filmes para o desenvolvimento de patamares mais consistentes e organizados de consciência histórica, a partir de aulas de História, no espaço escolar? O professor deverá estar embasado por preceitos teórico-metodológicos que permitam efetivar o uso de filmes em aulas de História, levando em conta todo o aparato de operações metodológicas, inerentes 102
à Ciência Histórica, capazes de lidar com esses recursos como fonte, ou seja, como produtos culturais produzidos pelo homem em determinada época e para determinados fins. Raciocinando-se dessa forma, torna-se vazio e sem sentido o procedimento que consistiria em “passar um filme” para uma classe de alunos simplesmente para que eles “aprendam sobre como as coisas aconteceram” a partir de seus conteúdos. Proceder assim seria desprezar toda a noção de que os filmes reconstroem acontecimentos passados a partir de seus respectivos tempos de produção, portanto, oferecerão ao espectador “leituras” do passado a partir daquilo que se pôde, ou que se quis alçar mão no presente para essa reconstrução. O papel de mediador na construção de consciência histórica atribuído ao professor de História confere a esse profissional a missão de compreender e saber operar em bom nível, junto aos alunos, os preceitos referentes a usos de fontes tanto como recurso de pesquisa, quanto como recurso didático. Essa afirmação não consiste em defender que o professor do ensino básico, por exemplo, ensine Teoria da História aos seus alunos, mas sim, serve para argumentar que, assim como o médico deve conhecer a composição química dos remédios que receita aos seus pacientes, o professor de História deve estar preparado para conhecer os elementos e os motivos que fazem desse ou daquele recurso ou fonte potenciais auxiliares no desenvolvimento de conhecimento histórico em sala de aula, bem como deve estar metodologicamente instrumentalizado para fazer com que o uso desses recursos, dessas fontes, produza bons resultados. A esse respeito, Saddi complementa Compreender o modo como os diferentes meios, linguagens e atores produzem uma interpretação do passado que orienta o presente e projeta futuros significa reconhecer que essas narrativas interferem diretamente no ensino escolar da História, uma vez que alunos e professores aprendem História não somente com referência à disciplina escolar ou acadêmica da História. (SADDI, 2012, p. 217). 103
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Seguindo por essa linha de raciocínio, percebemos ser necessário que o professor de História, objetivando atuar com excelência no que diz respeito à construção de conhecimento histórico, ou ainda, ao desenvolvimento de patamares qualitativamente bem edificados de consciência histórica, leve em consideração que o saber histórico pode ser desenvolvido a partir de diversas instâncias da vida prática de cada indivíduo. Em seu processo contínuo de formação profissional, o professor de História deve buscar instrumentalizar-se para lidar com os desafios propostos por tais premissas. Mesmo quando distante do espaço escolar, os sujeitos estão em constante contato com discursos que lhes fornecem subsídios capazes de construir sentidos de orientação no tempo e no mundo. O cinema – em foco nesse texto – seria um desses poderosos produtores de discursos. Ao professor de História cabe a importante missão de estar teórico-metodologicamente bem preparado para promover a articulação entre os saberes formais propostos pela ciência histórica e pelas teorias do ensino de História e as noções de conhecimento de mundo construídas a partir de outras instâncias da vida prática dos indivíduos em sociedade. A mediação de qualidade, realizada pelo professor de História nesse processo de desenvolvimento de consciência histórica junto aos seus alunos, seria por consequência um dos fatores mais imprescindíveis para que se alcance aquele que acreditamos ser um dos principais objetivos do processo de ensino e aprendizagem escolar, a saber: o desenvolvimento de cidadania. 4 CONCLUSÃO
Para finalizar nossas reflexões, pedimos licença para voltarmos uma vez mais ao exemplo fílmico anteriormente elencado. No filme 300, não apenas o céu é absurdo e os elefantes alucinantes. Suas cenas de violência são carregadas de sangue marrom, feito por computação gráfica e efeitos em slow motion. Seus homens 104
são inacreditavelmente plásticos, fortes e corajosos, feitos de pura honra, músculos e testosterona, destituídos, porém, de individualidade, de defeitos, de dilemas pessoais ou qualquer poder de questionar as circunstâncias que lhes são imputadas pela trama. Suas mulheres, ao contrário daquilo que encontramos nas narrativas oferecidas pelos manuais de História, são capazes de opinar e interferir tanto nas decisões políticas do Estado, quanto nas atitudes de um marido monogâmico. Seu Leônidas é capaz de gritar aos soldados: “nessa noite jantaremos no inferno”, em tempos em que a noção de inferno sequer existia. Mas afinal, esse filme representa melhor a sociedade espartana de 480 a. C. ou 2006, ano em que foi produzido? Independentemente de qual for à resposta para essa pergunta, sabemos que filmes como esse poderão influenciar os sentidos que seus espectadores passarão a dar ao mundo grego antigo. Influenciarão, também, uma série de valores e noções morais que serão aplicadas ao tempo presente, afinal, o próprio diretor, na entrevista supracitada, refletiu: “O negócio é que o espectador está doido para ser um espartano. Tem gente por aí que anda gritando ‘Isto é Esparta, Sou um Espartano’” (SNYDER, 2007). Sabemos, também, que independentemente de seus anacronismos ou “licenças poéticas”, filmes como esse podem ser utilizados em sala de aula de modo a produzir excelentes resultados no tocante ao desenvolvimento de consciência histórica junto aos alunos. Basta que o professor de História esteja preparado para trabalhar esse tipo de recurso de modo a problematizar suas narrativas, baseando-se em preceitos teórico-metodológicos capazes de produzir efeitos de sentido que orientem e ajudem a desenvolver autonomia na vida prática e na forma do aluno aprender a aprender História. Afinal, o professor de História bem preparado saberá, por exemplo, procurar junto aos seus alunos onde Leônidas e seus homens poderão jantar depois de uma possível derrota, uma vez que o inferno não estará lá esperando por eles. 105
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SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência histórica. História e Ensino, Londrina, v. 16, n. 1, p.61-80, 2010.
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CAMURATI, Carla. Carlota Joaquina, a princesa do Brasil. Produção de Bianca de Felippes e Carla Camurati. Brasil, Elimar Produções, 1995, 1h40min. Entrevista Zack Synder. Disponível em: <http://www.judao.com.br/ cinema/zack-snyder-300/> Acesso em: 20 mar. 2013. GAUDREAULT, André; JOST, André. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.
MIRANDA, Leonardo Souza de Araujo. Carlota Joaquina e o trono hispânico. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/ fichaTecnicaAula.html?aula=37065> Acesso em: 20 mar. 2013. RÜSEN, J. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa, v. 1, n. 2, p. 7-16, 2006. ______. Razão histórica. Brasília: UnB, 2010.
______. Reconstrução do passado. Brasília: UnB, 2010. ______. História viva. Brasília: UnB, 2010. 106
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6 LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: (DES)ENCONTROS Conceição Flores34 1 INTRODUÇÃO A minha reflexão sobre a literatura no ensino médio parte de dados divulgados pela Fundação Victor Civita que, em parceria com Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), realizou pesquisa, em 2012, com jovens de baixa renda em escolas de Recife e São Paulo e constatou que 78,8% deles consideram útil a disciplina Língua Portuguesa, no entanto, apenas 19% avaliam a Literatura positivamente35. Essa constatação pode ser ampliada para outras cidades brasileiras, tendo em vista que esses dados refletem a distribuição da carga horária da disciplina Língua Portuguesa e a ênfase que é dada à gramática e à produção textual. A tripartição da disciplina em aulas de gramática, de produção textual e de literatura indica a ordem de prioridades, sendo a gramática vista como o que há de mais importante e a literatura como o de menor importância, embora não seja essa a ordem adotada em todos os livros didáticos. Tomo como exemplo para este texto o livro Português: contexto, interlocução e sentido, elaborado por Maria Luísa M. Abaurre, Maria Bernardete M. Abaurre e Marcela Pontara, adotado por uma escola estadual de Natal, e que integra o catálogo do Plano Nacional do Livro Didático para 2012, 2013 e 2014. A ordem que o livro aborda essas temáticas é a seguinte: Literatura, Gramática e Produção de texto. O referente ao 2o ano do ensino médio 34 Professora do Curso de Letras da Universidade Potiguar. (UnP), Natal/ Brasil, da rede Laureate International Universities. Doutora em História da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: cflores@unp.br 35 Dados disponíveis em <http://www.fvc.org.br/estudos-e-pesquisas/2012/pdf/jovens_ bandeirantes_1106.pdf> e <http://www.fvc.org.br/estudos-e-pesquisas/2012/pdf/jovens_ terra_1206.pdf>. Acesso em 08 de jul. 2013.
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apresenta: três unidades de literatura, divididas em 12 capítulos em que comparecem as estéticas literárias do século XIX – da página dois à 302 – abrangendo literatura portuguesa, brasileira e literaturas africanas de língua portuguesa, essas com autores do século XX; duas unidades de gramática, também com 12 capítulos – da página 304 à 554 – tratando de morfologia e sintaxe; duas unidades de produção textual, com 5 capítulos, que versam sobre gêneros textuais – da página 556 à 638. São 638 páginas só de língua portuguesa, e destas, 302, isto é, a maioria, dedicadas às literaturas de língua portuguesa. Mas, afinal, o que é literatura? Quais são os “desencontros” que ocorrem nas aulas de literatura para que a maioria a avalie negativamente? Que “encontros” proporcionar aos alunos para reverter esse quadro? 2 O QUE É LITERATURA?
Proponho começar por um terreno movediço, onde se encontram diversas definições e colocações. Primeiro, a etimologia da palavra que tem sua origem no latim littera – letra, o que determina a sua ligação com a palavra, daí que a literatura tenha sido relacionada com o conhecimento das letras, com erudição. A partir do século XVIII, a palavra literatura passa a designar o conjunto de obras literárias de um país e começa a aparecer seguida de um adjetivo pátrio. Mas, afinal, o que é literatura? Para Erza Pound, “Literatura é linguagem carregada de sentido.” e deve ser estudada porque “Literatura é novidade que PERMANECE novidade.” (1977, p. 32, 33, grifo do autor). Sartre considera que “[...] a literatura é, por essência, a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente.” (2004, p. 120). Os conceitos apresentados não têm um fechamento, o que dá conta de que a questão têm várias respostas. Para Barthes, a literatura é “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem [...]” (2001, p. 16). 110
Entre os três teóricos, há pontos de convergência, pois a literatura é “[...] a língua fora do poder” (BARTHES, 2001, p. 16), “[...] subjetividade de uma sociedade em permanente revolução” (SARTRE, 2004, p. 120), “[...] novidade que permanece novidade” (POUND, 1977, 32), o que mostra o caráter revolucionário da literatura, tanto no plano das ideias, quanto no tocante à estética. A literatura tem que iluminar “[...] o novo dia que chega.” (BARTHES, 2001, p. 19,32), tem que incomodar, tem que ser “[...] a trapaça salutar”, ou como Clarice Lispector disse: “[...] tem que tocar”. E acho que vale a pena narrar o que a escritora falou na entrevista concedida à TV Cultura 2, em 01/02/1977, ao Programa Panorama. Na ocasião, Clarice contou que um professor de português do tradicional colégio carioca D. Pedro II a procurou dizendo que lera A paixão segundo G.H. quatro vezes, mas não havia entendido nada. Entretanto, uma garota de 18 anos lhe dissera que aquele era o seu livro de cabeceira. Assim, não basta ter conhecimento para entender, é preciso que a literatura “toque”, e esse é o problema, ou seja, não basta ter a técnica, tem que haver sensibilidade e gostar de literatura para ser professor de literatura, ou melhor, para ser professor de língua portuguesa. Creio, no entanto, que ainda não respondi à questão a que me propus e passo a pontuar alguns aspectos pertinentes a essa discussão. Primeiro, a sempre discutida e discutível definição de que “[...] os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade utiliza” (COMPAGNON, 2003, p. 45), definição que remete para o papel da sociedade na determinação do cânone, isto é, sobre o que deve ser lido, o que exclui, regra geral, a literatura escrita pelas minorias, ou seja, pelas mulheres, negros, minorias sexuais e étnicas, e a literatura contemporânea, esta última sob a alegação de que não tem fortuna crítica. Segundo, a vinculação do cânone à história da literatura, sobrecarregando a literatura de uma panóplia de textos sobre a literatura que a encobrem e acabam contribuindo para a fragmentação do texto literário nos livros didáticos. 111
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Não discuti, até o momento, a questão do valor da obra, isto é, aquela “[...] obra que continua a admirar, porque ela contém uma pluralidade de níveis capazes de satisfazer uma variedade de leitores” (COMPAGNON, 2003, p. 229). Esse aspecto leva à questão da leitura dos clássicos, dos textos que são lidos há gerações e que continuam a surpreender os leitores, posto que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” (CALVINO, 1993, p. 13). E, afinal, o que é literatura? Essa é uma questão em aberto, que vale a pena desdobrar em outro questionamento. Qual é a função da literatura? Ela tem uma função? Umberto Eco (2001) considera a literatura um bem imaterial que se consome pelo prazer e que não serve, a priori, para nada. No entanto, assume diversas funções na vida individual e social, entre elas: 1. “A literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo.” (ECO, 2001, p. 10). Para Eco, literatura e língua estão intrinsecamente ligadas, cabendo à literatura a função de manter a língua como patrimônio cultural da nação36. E essa função leva a outra, pois: 2. “A literatura, contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade.” (ECO, 2001, p. 11). Dessa função decorre o papel importante que a literatura tem na formação da língua e que se relaciona com o papel que a escola tem no ensino da literatura, dado que este contribui para a formação linguística e cultural dos cidadãos. 3. A literatura tem uma função educativa que não se reduz à transmissão de ideias morais, boas ou más que sejam, ou à transformação do sentido do belo. Porque: 36 Eco exemplifica citando o papel de Dante para a formação da língua italiana, escrevendo em língua vulgar, a falada pelo povo, a Divina Comédia, num tempo em que o latim era usado na literatura. A ousadia de Dante acaba sendo decisiva para a consolidação da língua falada pelo povo tornar-se a língua da literatura, criando assim uma identidade nacional.
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Ler um conto também quer dizer ser tomado por uma tensão, por um espasmo. [...] É a descoberta de que as coisas aconteceram, e para sempre, de uma certa maneira, além dos desejos do leitor. O leitor tem que aceitar essa frustração, e através dela experimentar o calafrio do destino. [...] A função dos contos ‘imodificáveis’ é precisamente esta: contra qualquer desejo de mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-lo. E assim fazendo, qualquer que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e por isso nós os lemos e os amamos. (ECO, 2001, p. 21).
Em consonância com a afirmativa de Eco, Antonio Candido afirma que a literatura é imprescindível, porque “[...] humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (1972, p. 806). Fecho essas considerações sobre o que é literatura, afirmando que “Uma definição de literatura é sempre uma preferência (um preconceito) erigido em universal [...] porque não há essência da literatura, ela é uma realidade complexa, heterogênea, mutável” (COMPAGNON, 2003, p. 44).
3 OS “DESENCONTROS” NAS AULAS DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO
Antes de adentrar nos “desencontros” que ocorrem nas aulas de literatura de muitas escolas, vale a pena referir alguns aspectos que dizem respeito ao livro didático, que, em muitas instituições de ensino, é a principal ferramenta, às vezes a única, de que o professor, sobretudo o da escola pública, faz uso. A saber:
(1) a organização do livro didático37 obedece a um modelo cujas origens remetem ao século XVIII, quando a literatura passou a ser acompanhada de adjetivo pátrio.
37 Não só o livro citado segue a cronologia da história da literatura, mas os livros didáticos de português que conheço obedecem à mesma organização.
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Considera-se, portanto, que o aluno precisa estudar literatura brasileira, acompanhando toda a trajetória nacional, isto é, o aluno tem de estudar a história da literatura brasileira, remontando ao século XVI até chegar à contemporaneidade. (2) O estudo da história da literatura brasileira é permeado pela história geral, o que implica um estudo alargado da história não só da brasileira, mas também da portuguesa e da ocidental. (3) O livro didático é organizado, portanto, sob uma perspectiva cronológica, a fim de dar conta do propósito a que se propõe: história da literatura brasileira. É preciso dizer que o nome história não aparece, mas a organização dos estudos literários segue a cronologia da história literária.
Postos esses aspectos, gostaria de lançar um olhar sobre o livro a que venho me referindo, Português: contexto, interlocução e sentido (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2008), para pontuar o que mais me chama a atenção. (1)
(2)
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Apresentação e diagramação: o conteúdo é apresentado por meio de textos, imagens coloridas e a preto e branco. Com o intuito de subsidiar a matéria em estudo, as margens das páginas são preenchidas com informações adicionais, desde imagens, tábuas cronológicas, a pequenos textos com informações adicionais. Predominância de textos informativos sobre a matéria em estudo, em detrimento dos textos literários do período. Demonstração de um saber enciclopédico, englobando informações variadas e estabelecendo conexões seja com obras literárias sobre o período em estudo, seja com o cinema e com sites em que o aluno pode pesquisar a matéria estudada. 114
Dadas essas colocações, pergunta-se: qual é o objetivo do ensino da literatura no ensino médio? Se a resposta for o estudo da história da literatura, pode-se afirmar que o livro atende ao objetivo. Mas esse estudo vai ser útil ao aluno que tem o objetivo de ingressar, seja na universidade ou em curso técnico, ou no mercado de trabalho, fazendo, regra geral, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)? Se o olhar se der a partir das provas do ENEM, a resposta é negativa, posto que a prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias demanda, sobretudo, um bom leitor dos textos literários, pois esses permeiam a prova. Será que desse modo o aluno irá entrar em contato com a literatura, com “[...] a linguagem carregada de sentido” (POUND, 1977, p. 32), com “[...] a trapaça salutar, [...] com a língua fora do poder” (BARTHES, 2001, p. 32)? A resposta, certamente, é negativa, pois ele leu mais textos sobre literatura do que textos literários. Por isso, é preciso deixar os “desencontros” e proporcionar “encontros” com a literatura. 4 OS “ENCONTROS” COM A LITERATURA
Seria ingenuidade não mencionar que a sala de aula é um espaço de poder e “Onde há poder, ele se exerce. [...] Ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros de outro;” (FOUCAULT, 1979, p. 390). E a relação professor/aluno é afetada pelo poder que, implicitamente, o professor exerce sobre o aluno, e que determina rituais de sala de aula e papeis diferenciados. Não há como romper essa relação de poder se não forem estabelecidas relações dialógicas entre professor e alunos, de modo a que o ensino da literatura passe a se configurar como um espaço de “encontros” com a literatura. Assim, é preciso modificar as práticas pedagógicas, porque, como diz Todorov (2009), a Literatura [está] em perigo, visto que as obras literárias não são lidas e discutidas na escola. E a literatura pode muito para estar ausente da sala de aula. 115
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Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. (TODOROV, 2009, p. 76).
Para o jovem, a literatura pode ajudar na compreensão da vida, embora a literatura nunca tenha lições prontas, pois não é manual de moral. Como Antonio Candido afirma:
[...] ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...]. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente (sic) aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CANDIDO, 1972, p. 805).
Por isso, ler literatura é imprescindível. O caminho não é fácil, é um desafio que leva à perda das certezas, das receitas prontas. Eu diria que no primeiro passo, ao qual já me referi, é preciso que o professor goste de ler literatura, que ele seja um leitor com um repertório amplo e com uma formação que permita estabelecer diálogos instigantes com os alunos. Segundo passo, abandonar resumos, seminários, pois são abordagens que não levam à leitura da obra, visto que, em tempos de internet, o google dá conta de tudo ou de quase tudo. Isso leva ao terceiro passo, fazer rodas de leitura, dramatizações, saraus, debates, para que a literatura seja a estrela. Quarto passo, levar os alunos a ler textos de autores que eles ainda não conhecem, discutir, ler coletivamente, a fim de que alunos e professor possam dialogar. Quinto 116
passo, fazer dos encontros momentos instigantes, prazerosos, que contribuam para o crescimento intelectual e para a promoção da cidadania. Sexto passo, propor aos colegas de outras disciplinas atividades transdisciplinares, em que o texto literário seja a mola propulsora das atividades a serem realizadas. Por último, ousar e seduzir. Não ter medo de errar e recomeçar. 5 CONCLUSÃO
Não quero que as minhas críticas sobre o livro didático usado neste texto pareçam que esse é um “mau livro”. Quero deixar claro que o livro referido segue o modelo vigente, o da história da literatura. Concordo que “Um dos maiores empecilhos para o estudo (ensino) de literatura é o livro didático. O professor que não usa essa muleta (livro didático) presta um serviço ao aluno” (ATAÍDE, 2002, p. 4). Mas como prescindir dessa ferramenta se em 72,5% das escolas públicas não há bibliotecas38? E é preciso não esquecer que a distribuição gratuita do livro didático nas escolas públicas é uma conquista recente. E se a isso se somar a sobrecarga de trabalho do professor, que precisa trabalhar em mais de uma escola para poder viver? Deixo propositalmente questões em aberto, pois os desdobramentos que elas envolvem são múltiplos. Não posso, contudo, deixar de enfatizar que a literatura é imprescindível. Cumpre um papel fundamental, pois “[...] nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida - a nossa e a dos outros -, ela arruína a consciência limpa e a má fé.” (COMPAGNON, 2009, p. 50). 38 Em janeiro de 2013, foi divulgado que apenas 27,5% das escolas públicas têm bibliotecas e que o Brasil tem de construir, até 2020, 130.000 escolas para cumprir a Lei 12.244, que estipula a obrigatoriedade de haver pelo menos um exemplar para cada aluno. Os estados mais carentes são os do Norte e do Nordeste. Cf. no Estadão.com.br de 23 de janeiro de 2013. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,em-725-das-escolas-nao-ha-biblioteca-lei-preve-obrigatoriedade-ate-2020-,987556,0.htm. Acesso em 12 de jul. de 2013.
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REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Luiza M., ABAURRE, Maria Bernardete M., PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2008, Vol. 2. ATAÍDE, Vicente. O ensino de Literatura. HD Livros Editora: Curitiba, 2002. BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
POUND, Erza. ABC da literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1977.
SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura? Tradução de Carlos Filipe Moisés. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Diffel, 2009.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1993.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. vol. 24, set. de 1972, p. 803-809.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
______. Literatura para quê? Tradução de Laura T. Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. ECO, Umberto. Ensaios sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder – Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. 118
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“Já é lugar-comum nas atuais discussões sobre o ensino que seus objetivos não consistem mais na transmissão imediata de informações ou de conteúdo, assumindo em um novo conjunto de metas o desafio de estimular uma aprendizagem baseada em problematizações. Diante desse quadro, isto é, da mudança paradigmática da história escolar, algumas perguntas podem ser feitas com o objetivo de se obter esclarecimentos sobre os procedimentos a serem adotados pelos docentes: quem são os alunos que chegam às salas de aula hoje em dia? Qual o volume de informações que eles têm sobre determinados assuntos? Como se deve trabalhar o conteúdo dos currículos através de métodos considerados inovadores? Quais os canais comunicativos dos quais os estudantes são usuários e que podem estar informando-os sobre possíveis temas históricos? Acredito que todos os leitores deste texto, sujeitos da sociedade midiática ou da informação, concordariam em apontar prontamente alguns desses canais sem receio de estar errando ou exagerando: a televisão; a rede mundial de computadores; as mídias e as redes sociais; os dispositivos móveis de comunicação; o cinema; os videogames. Estes últimos, inclusive, considerados fenômenos da cultura digital, já ultrapassaram, a nível mundial, o consumo do cinema e da música, enquanto em alguns países já superaram até mesmo a televisão.” (Mariano Azevedo Junior)
ISBN: 978-85-8257-012-8
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