Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao curso de Artes Visuais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas para obtenção do título de bacharelado, sob orientação da Profª Drª Paula Cristina Somenzari Almozara. Campinas, 2015
DEDICATÓRIA Aos meus pais, pelo amor e histórias que constroem até hoje a minha identidade. A Luzia, tataravó caboclabraba que inspirou a ancestralidade indígena. Aos meus 7 irmãos por completarem as memórias esquecidas.
JANILTON | In Memoriam Ainda temos fotografias, alguns documentos, fita K7, uma folha escrita com palavras coloridas. O pato amarelo nunca quebrou. A praça continua no mesmo lugar e a trave já não está mais solta, agora é seguro. Gabi e Camila já são maiores de idade e Henrique é um menino alto. Todos sentimos sua falta.
SUMÁRIO
1. 2. 3.
ROTEIRO INICIAL MIGRAÇÃO | LUGAR E MEMÓRIA MEMÓRIA | ANCESTRALIDADE
4. PROCESSO PRODUTIVO DESLOCAMENTO | PERCURSO LUGAR INFÂNCIA | REMEMORAÇÃO ENSAIO | ANCESTRALIDADE
NARRATIVAS PEQUENA CURUMIM MORREU DE DESGOSTO
7. 8.
BIBLIOGRAFIA ANEXOS
5.
ROTEIRO INICIAL Araripina | Serra da Torre | Serra do Minador - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --
(2015) Pesquisa de Campo / (1996) Migração
MIGRAÇÃO | LUGAR E MEMÓRIA Desde os meus cinco anos de idade faço parte de um deslocamento, de uma estatística, faço parte do movimento de migração nordestina. Antônio Berto, migrante e meu pai, esteve presente também na construção de Brasília. Soube disso quando cantando Faroeste Caboclo1, ele reconheceu o nome Taguatinga. Algum tempo depois pude vê-lo como um personagem carregado de fatos históricos, onde a minha memória, assim como a de meu pai, precisam de recursos para ser reativada. Enquanto cabocla, migrante e nordestina em São Paulo, as memórias, lembranças e culturas familiares se tornaram fatores fundamentais que motivaram esse processo de pesquisa em arte. Como personagem na família que mais depende da memória coletiva para se reafirmar, o desejo de entender parte da construção desencadeou uma série de processos em busca de resgatar algo que fizesse real sentido em minha produção artística. As memórias trazidas pela família criaram uma série de imagens que costumo colocar entre o imaginário e a realidade. Surge então, a necessidade de voltar para o lugar da infância e rever as memórias individuais e coletivas, necessárias para que o trabalho seja considerado em todas as suas potencialidades. Como era de se esperar, durante e após a viagem essas ideias que giram em torno do sertão e da ancestralidade indígena tomaram proporções maiores e organizaram-se entre si, adquirindo aos poucos a qualidade de “obra”, levantando questionamentos durante todo o processo, norteando o processo produtivo. ‘’E se a obra é, ao mesmo tempo, um processo de formação e um processo no sentido de processamento; de formação de significado (...) Ela perturba o conhecimento de mundo que me era familiar antes dela: ela me processa. ‘’ Sandra Rey 1 | Artista: Legião Urbana / Álbum: Que País É Este / Composição Renato Russo. “No Ano Novo eu começo a trabalhar. Cortar madeira aprendiz de carpinteiro. Ganhava cem mil por mês em Taguatinga”
MEMÓRIA | ANCESTRALIDADE A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças. (Memória e Identidade Social Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.)
Quantos brasileiros terão avós, bisavós ou tataravós indígenas? E desses, quantos conhecem pelo menos o nome do povo a que pertenciam? Essas e outras questões motivaram uma viagem de campo ao sertão nordestino em Maio de 2015, na busca por reafirmar memórias individuais e coletivas presentes na cultura familiar, criando um caminho por meio de pesquisas antropológicas e processos artísticos presentes no ato de reorganizar os registros, por vezes excluindo e/ou adicionando, criando em todas as experimentações novas possibilidades de olhar para os fatos. Com as investigações em torno da memória surge no processo artístico a relação de pertencimento com o lugar e o imaginário infantil a partir das vivências ocorridas antes e depois de migrar para São Paulo. Memórias que envolvem a ancestralidade indígena e as pesquisas feitas em torno da cidade de Araripina no Pernambuco formam um enredo das lutas travadas através de séculos de mistura e apagamento na região, mas que resistem nos relatos da nossa matrilinhagem que segundo Nunes (1975: 29-30) é principalmente ameríndia e africana no nordeste brasileiro. As mulheres, sobreviventes da resistência indígena no nordeste conhecida como Confederação Cariri ou Guerras dos Bárbaros, ficaram conhecidas no imaginário como caboclas-brabas, pegas pelo colonizador “a dente de cachorro e casco de cavalo” (CASCUDO). Elas fazem parte da memória coletiva de muitos brasileiros e permitem uma ponte com os acontecimentos que são muitas vezes ignorados pela história, possibilitando o reconhecimento e a reafirmação de uma identidade étnica de um individuo ou grupo.
Os estudos empoderar de perda frisando a reaparecem
e desdobramentos que surgem dessa prática artística pretendem esses relatos e trazer para o campo artístico o sentimento cultural e familiar provocadas pelo extermínio indígena, ligação maternal com as bisavós, essas caboclas-brabas que de hora em hora fragmentada na boca de algum mestiço.
[...] é difícil dizer em que momento desapareceu uma lembrança coletiva, e se ela saiu realmente da consciência do grupo, precisamente porque basta que se conserve em uma parte limitada do corpo social para que ali sempre se consiga reencontrá-la. (HALBWACHS, 2011, p. 10)
PROCESSO PRODUTIVO Em 2013, em meu segundo ano no curso de Artes Visuais, percebi durante a disciplina de Performance ministrada pela Profª M.ª Luana Veiga que as ideias que utilizamos em nossa busca artística sempre estiveram conosco. Elas se desenvolvem e se estruturam conforme nos deparamos com questionamentos e construímos novos conhecimentos, nos coloca no papel de artista explorador em busca de uma dialética que transponha nossos ideais para um universo de signos mais familiares. A arte contemporânea possibilita o uso de nossa experiência intelectual, pessoal e imagética para tratar a forma como percebemos o mundo e nos colocamos nele. Como uma área qualificada na interdisciplinariedade, o artista se apropria dos meios utilizados por outros campos e o desloca na tentativa de desmembrar uma ideia e reorganizá-la. Em uma experimentação performática realizada nessa mesma disciplina, percebi através da ação a importância da auto-identificação com as mulheres indígenas e minha possível ligação étnica com elas. A recorrência dessa imagem se fez presente em rascunhos, pinturas e desenhos feitos desde o ensino fundamental, indícios da temática a ser desenvolvida. O imaginário idealizado ao se descobrir descendente de uma bisavó indígena traz certo mistério e desejo em reconhecer-se nessa cultura e repensar novas formas de comunidade. No processo de compreender melhor essa ligação fui descobrindo a violenta verdade do processo de extermínio que meus ancestrais foram submetidos desde a colonização, sendo negado gradativamente qualquer direito e escolha de exercer sua cultura e perpetuá-la. Com esses referenciais comecei a pensar mais amplamente em formas de organizar essas memórias e trazer para o espaço expositivo soluções que trouxessem à tona o que estava submerso, seja da memória enquanto criança
no sertão nordestino, seja no momento posterior a migração para São Paulo, nessa busca por entender minha construção social e as raízes indígenas. Durante esse processo, visitei a exposição Campo Geral,1 do artista Ícaro Lira. Percebi algumas semelhanças em sua produção que interessavam a minha prática artística, sendo: a conterraneidade, a migração, o indígena, o nordeste como meio de pesquisa, o olhar para o apagamento da história e a memória como forma de resgate daquele povo em particular. O percurso arqueológico e arquivista utilizado por Ícaro expõe o apagamento da história do povo nordestino por meio de objetos e documentos coletados em museus, bibliotecas e comunidades durante sua passagem pelo nordeste, são dispostos na exposição com simples arranjos que proporcionam uma leitura direta de sua pesquisa. Já Sertão imaginário, em uma configuração ainda prematura, utiliza como objeto de estudo a memória individual e coletiva junto a oralidade da família. Os registros fotográficos são explorados para propor narrativas que não se limitam apenas ao apagamento da história de uma forma geral, mas para trazer a vivência e o cotidiano do imaginário infantil no sertão, numa proposta de buscar o lúdico das vivências pessoais unidas ao peso da realidade que a ancestralidade carrega.
1 | A exposição “Campo Geral”, individual de Ícaro Lira, propõe uma reflexão sobre os movimentos migratórios originados pela seca, que começaram no Ceará, no final do século XIX.
Campo Geral | Ă?caro Lira
DESLOCAMENTO | PERCURSO
Quando pousei, a primeira coisa que senti foi a temperatura.
13 Maio de 2015 - 2h30 AM / Aeroporto Regional do Cariri Juazeiro do Norte (CE)
Registro de Viagem | CĂcera
ELEMENTOS DA MEMÓRIA Acontecimentos vividos pessoalmente; Acontecimentos vividos “por tabela”; Pessoas e/ou personagens; Lugares. Pollak (1992 pg. 2)
LUGAR Hoje, certamente mais importante que a consciência do lugar é a consciência do mundo, obtida através do lugar (SANTOS, 2005, p. 161).
As primeiras imagens de Lugar e Imaginário foram tiradas na divisa de Araripina com o estado do Piauí na zona rural. No banco de trás de uma moto em movimento, utilizei a câmera em modo automático para captar as imagens da Chapada do Araripe. O resultado das imagens me surpreendeu e dentre tantas outras, foram escolhidas por serem paisagens mais limpas, com divisão clara entre terra, horizonte e céu. Com essa divisão percebi que a interferência direta com lápis 3B e 8B não seriam um problema para as imagens, excluindo a necessidade de recorrer a programas de edição, preservando o momento fotográfico e seus resultados. As imagens-paisagens vieram carregadas de informações intrínsecas da memória individual e coletiva, e colaboram com a ideia narrativas escritas, visuais e orais que potencializam os relatos da memória. Com esse movimento procurei encontrar um caminho onde essas memórias pudessem se apropriar e serem apropriadas. Pensando nas histórias de cordel1 muito ouvidas ao longo da vida por meio de meu avô materno e meu pai, escolhi o conto do “Pavão Misterioso” para resgatar do imaginário infantil, explorando a ligação afetiva com o lugar e as histórias que fazem parte da região.
1 - Cordéis são folhetos contendo poemas populares, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome. Os poemas de cordel são escritos em forma de rima e alguns são ilustrados.
“A Chapada do Araripe é uma formação do relevo e sítio arqueológico localizado na divisa dos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, no Brasil. A chapada abriga uma floresta nacional, uma área de proteção ambiental e um geoparque. A importante pista para a identificação dos sítios arqueológicos da Chapada do Araripe são as lendas e os mitos do povo Kariri, que são testemunhos orais da cultura dos povos que habitaram a região antes da colonização.”
Fotografia, Maio 2015 | Chapada do Araripe
Fotografia | Vassouras
Composição | Memória e Lugar
CAPA | Sertรฃo Misterioso Fotografia digital, Lรกpis HB
“A identidade, o sentimento de pertencimento e o acumulo de tempos e histórias individuais constituem o lugar. Este guarda em si o seu significado e as dimensões do movimento da história, apreendido pela memória, através dos sentidos.“ Revista Formação, n⁰14 volume 2 – p.54”
INFÂNCIA | REMEMORAÇÃO Ao chegar na Serra da Torre, zona rural de Araripina, passei a acompanhar os caminhos percorridos pelas crianças. Eram quatro, cada uma com uma particularidade, energia e conhecimentos sobre o lugar. A identificação com as experiências vividas no passado e neste presente me fizeram passar por uma espécie de rememoração, na companhia dos meus primos, a ação do lugar agia como um reativador de memórias, lincando acontecimentos passados com o presente. Assim, as histórias vivenciadas e contadas pelos meus irmãos pareciam estar sendo reapresentadas de maneira sutil através das crianças, do lugar e da cultura ali instaladas.
Serra da Torre, Araripina
SER(TÃO) IMAGINÁRIO Galinha Choca
SER(TÃO) IMAGINÁRIO Pé de Siriguela
ILUSTRAÇÕES
Sertão Imaginário | A criança que eu fui no sertão Lápis H3, aquarela sob sulfite
Micauã, Bisôrin | (uma das 4 crianças) Lápis H3, aquarela sob sulfite
Kaline | (uma das 4 crianรงas) Lรกpis H3, aquarela sob sulfite
“os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado, porque este foi atravessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004: p.71).
ENSAIO | ANCESTRALIDADE
“ João Pacheco de Oliveira argumenta que a categoria analítica “índios do nordeste” foi preterida historicamente pela antropologia, sobretudo pela escola americanista, por não apresentarem uma distintividade característica do protótipo xinguano, e explica o processo que os tornou “índios misturados”. Esse decurso ocorre dentro dos movimentos de territorialização apontado pelo o autor, no que se chama de “mistura”. A primeira se deu em meados do século XVII e início do século XVIII com os aldeamentos missionários jesuítas. A “mistura‟ foi promovida pela tentativa de homogeneização de diferentes culturas através da sedentarização, catequese e disciplinamento do trabalho. A segunda foi promovida pelas agências indigenistas que estimulavam os casamentos interétnico. A terceira mistura decorreu da reorganização espacial ocasionada pela Lei de terras de 1850 da qual muitos índios perderam a posse de suas terras. No fim do século XIX não se falava mais em índios.” ( Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos índios Cariri em Queimada Nova – PI Cinthya Valéria Nunes Motta Kós)
Fotografia Digital, Piauí, 2015 | Bela Ancestralidade Composição | Fotografia e chão (tacos)
NARRATIVAS Como já mencionado, as histórias que rodeiam minha família fazem parte de um processo de apagamento que teve seu início com a colonização no nordeste e o extermínio físico e simbólico da população indígena da região. Utilizando então os dados de minha Tataravó cabocla-braba e o seu contexto histórico, busquei criar uma narrativa, uma ficção que representasse sua vida do momento de sua captura ao seu abatimento mental e físico. Essas narrativas foram desenvolvidas devido à infusão de sentimentos diante da reconstrução fictícia do caminho passado por minha tataravó cabocla-braba, que junto aos relatos da família e do contexto histórico trazido nas pesquisas causaram toda sorte de indignação e dor.
- Narrativas -
PEQUENA CURUMIM
Na verdade, meu desejo era usar as palavras que foram perdidas, a língua mãe que apenas os antepassados têm memória, e que hoje não passam de vagas lembranças, palavras soltas que não constroem frases, que não transmitem mais histórias, não alcançam mais os deuses. Talvez assim eu conseguisse transmitir com mais propriedade meus pensamentos, mas não existe um tradutor, muito menos uma língua viva para mostrar a você. Imagine que um dia, alguém chegue em sua comunidade com o poder de tirar a sua fala, de desconfigurar a sua história e o que te representa. Foi o que fizeram comigo. Você também foi sequestrada, assim como tantas outras. Muitas não sabem disso, não querem mais saber disso, mas você quer, por isso eu voltei. Eu não estou mais aqui, faz muito tempo desde que parti. Já visitei outros corpos, já vivi outras vidas, mas pude voltar por alguns instantes, porque você tentava compreender o que havia acontecido comigo. Vejo que o vermelho que representa a nossa pele ainda persiste em você, mas percebo que o apagamento também fez um bom trabalho, muitos já não se identificam assim. Pobre menina, o que você deseja foi tirado de você há tanto tempo, só notou agora? Não acredite em tudo que lhe contam sobre nós, eles escondem o essencial para que não sejamos de fato lembrados. Hoje, transmitirei através de ti fragmentos do que ocorreu, não conseguirei ser precisa porque a memória falha, porque a memória é dor e já estou em outra vida. Terei que emprestar partes da história de outros irmãos para que você consiga perceber minha dor.
- Narrativas -
CABOCLA-BRABA
No início quando chegaram em nossas terras, o homem branco chamou nosso povo de índio. Tempos depois nos chamaram de Caboclos. Que direito eles possuem? Tiraram as nossas terras por causa de nomes que na verdade nunca foram nossos. Mulher, pele vermelha. Com lança, tintura corporal e saiote de palha. Fuga, perseguição.
Respeitamos os animais, as matas, Jaci e Tupã, a terra é nossa mãe. Ensinamos nossas crianças a serem espíritos livres, a buscar o que os torna felizes, a conviver em harmonia com a Terra e a agradecer aos deuses pela vida. Mas como continuar com esses ensinamentos quando tentam deturpá-los a todo custo? Como ser um espirito livre, quando só há perseguição? Faz muito tempo que eu estou fugindo, quase não lembro mais como é viver sem isso, também já não sei mais se ainda resta algum futuro. Eramos uma grande comunidade. Os tupis da costa costumavam nos chamar de Kariris, porque somos um povo “calado”, “taciturno”. Se esconde em uma árvore de jenipapo - Vamos, ela deve estar por aqui em algum lugar!
Há muito tempo o homem branco chegou pelo mar, nosso povo os recebeu com hospitalidade. Fizemos trocas sem ter noção de que eles agiriam como uma praga, devastando o nosso povo com suas doenças, com seus trabalhos exaustivos, qual o sentido de produzir mais do que o necessário para viver? A natureza também possui o seu tempo, devemos respeitá-la. Qual o sentido de nos cobrir? O calor de Tupã quer tocar a nossa pele. Essas pessoas não compreendem nossas ações nem nosso modo de viver em comunidade. Se comportam como bichos que sugam o que acham apropriado. Desde então, anciãos, pajés, xamãs e caciques que possuíam a responsabilidade de preservar nossos costumes, rituais e sabedoria, desapareceram. Há tempos não tenho notícia nem dos povos que vivem
Alguns de nós, como eu, ainda resistem. Mas nem sei se essa realmente é a palavra. Não sei até quando. Já faz dois anos desde que fui pega a dente de cachorro e casco de cavalo, são essas palavras que definem o meu sequestro, a violência física e emocional a qual fui submetida, além disso, preciso conviver com os comentários de que sou “arriada”, “braba” e “selvagem”. Ainda não me acostumei com sua comida, por isso, vou no mato procurar algumas coisas, sim havia uma criança dentro de mim, quando me capturaram. Minha pequena criança nunca saberá o que é viver como como eu vivi e os outros antes de mim. Será que ela vai olhar para o céu e perceber Jaci e Tupã? O jenipapo, fruto maduro, serve para comer. Isso eu fiquei sabendo pela minha mãe, mas o Otávio me ensinou que o fruto verde do jenipapo ralado, espremido o bagaço, dava uma tinta escura preta azulada com que os antigos se pintavam. O caldo escorrido era colocado no fogo numa panela de barro só para mornar; tirava o caldo do fogo e deixava de molho uma noite: pronto para ser usado no corpo. Uma vez fiz para aprender; passaram-se muitos dias para sair a tintura do corpo. Só saiu com o passar do tempo, não continuando a renovar os traços.”
1
Sinto falta da aldeia. Sinto falta das caçadas, das colheitas. Sinto falta das sábias histórias dos anciãos, das crianças reunidas na beira do rio. “Da cerimônia do Toré, usando saiotes de palha e soprando os búzios, dançamos um toré de búzios. O ritual do Ouricuri que dá sentido à terra, à família, à identidade, à chefia, enquanto princípio organizador. Estrutura a vida perceptível mediante a ordenação do sagrado, do misterioso, do intangível, daquele reduto da vida indígena que a sociedade nacional não consegue dominar.”
1 - Trecho adaptado de : DOSSIÊ MEMÓRIA Um pouco da minha infância. José Nunes de Oliveira. Estud. av. vol.13 no.37 São Paulo Sept./Dec. 1999.
ARQUIVOS E FOTOGRAFIA Os recursos fotográficos permitem a captação de diversos quadros em pouco tempo. Essa facilidade permitiu obter uma quantidade razoável de registros que hoje dão suporte a construção biográfica da memória. Essa linguagem permite uma série de associações e narrativas durante sua organização e coloca o expectador em posição de assimilar diversas possibilidades de leitura. Nas sociedades modernas o uso da fotografia está associada, de certa forma, à preservação da memória. “Ela registra o que restou depois que tudo se foi” e permanece como uma espécie de arquivo dentro de álbuns, jornais, livros e documentos. Durante o processo de pesquisa histórica pude notar que a forma com que lidamos com o registro permite tanto a preservação da história como o seu apagamento. Questionamentos sobre a utilização dessas ferramentas “colonizadoras” da cultura ocidental surgiram no trabalho, colocando em questão se a utilização das mesmas chegaria a deslegitimar as histórias a serem contadas. Partindo da ideia de que esses recursos seletivos raramente foram utilizados em favor dessas memórias e que as mesmas vivem do poder da oralidade, a ideia é que esse questionamento seja desenvolvido melhor com o tempo, afinal a pesquisa possui ainda muitos desdobramentos, podendo se estender e ser explorada até que se esgotem todas as possibilidades. Por fim, a decisão de utilizar esses métodos nesse primeiro momento permaneceu, uma vez que a pesquisa em andamento busca empoderar essas memórias e não apagá-las, usá-las para o seu aparecimento e não apagamento. espalhados pelo nordeste brasileiro que parecem legitimar os dados adquiridos no seio familiar. Os recursos arquivistas utilizados no projeto surgem através de anotações, registros fotográficos e pesquisas em artigos antropológicos que falam
da oralidade para contar a pedaรงos da histรณria. Esses artigos apontam registros parecidos de vรกrios outros descendentes espalhados pelo nordeste brasileiro que parecem legitimar os dados adquiridos no seio familiar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FADEL, D. A. F. Sobre a palavra “SERTÃO”: Origens, significados e usos no Brasil. Ciência Geográfica - Bauru - XV - Vol. XV - (1): Janeiro/Dezembro 2011 Guerra dos Bárbaros, Brasil, 2001 CURTA-METRAGEM EM 35MM - Prêmio Especial do Júri, Cine Ceará, Fortaleza 2001. ANIMAÇÃO. < https://www.youtube.com/watch?v=e5duD0qNCrU> HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. KÓS, Cinthya V. N. M. Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos índios Cariri em Queimada Nova – PI. LIRA, Ícaro – Campo Geral – Exposição individual na Central Galeria, 2015. MACEDO, Helder A. M. Caboclas Brabas: história indígena do sertão do Seridó por meio da memória dos seus moradores. Recife 2010. OLIVEIRA, José N. de Dossiê memória. Um pouco da minha infância. . Estud. av. vol.13 no.37 São Paulo Sept./Dec. 1999. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Companhia das Letras, 2006 POLLACK, Michael. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212 VIEIRA JÚNIOR, Antônio O. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; São Paulo: Hucitec, 2004. p. 31
ANEXOS
Imaginário I Pavão Misterioso Fotografia, 2015. Modelo digital para Exposição Experimental
Cadernos de Anotaçþes e testes