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Da Exatidão da Ciência Newton Nazareth

newton nazareth É carioca, Pianista, Compositor e Escritor

— Eleição não é questão de opinião.

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O slogan, enunciado ao final dos trinta segundos que lhe cabiam na propaganda eleitoral, deu ao Dr. Miranda uma enorme popularidade.

Ele não se arrependeu quando direcionou as suas lives para a discussão político-sanitarista.

Em época de pandemia, a ideia de lançar um candidato com tantos seguidores na Internet era por demais atraente e muitos partidos disputaram o passe do geriatra. Decidiu-se por um deles. Um mês depois, migrou para outro. E, finalmente, lançou a sua própria legenda, fundando o MCB – Movimento Científico Brasileiro.

A adesão de virologistas, epidemiologistas e outros especialistas só aumentava a confiabilidade do partido perante o eleitorado. A candidatura do Dr. Miranda ao Senado “viralizava” — com licença da má palavra — na rede.

A eleição aproximava-se com toda a sua carga de preocupações. Até que, em certa madrugada, Miranda não conseguia conciliar o sono. Não pensou duas vezes: medicou-se com um sonífero e apagou.

Logo estava imerso em outra dimensão, mas seu cérebro vivenciava todas as emoções como se estas fizessem parte da realidade material.

Em volta de uma ampla mesa redonda, os maiorais do governo levantaram-se para a entrada de Miranda na sala. Este se observava no sonho como se fosse outro, mas com sua habitual persona elegante.

Ao sentar-se, foi acompanhado pelos seus pares e olhou em volta, com um largo sorriso de satisfação. A cena era bonita

demais: a exemplo do seu líder, todos os colegas ali reunidos trajavam a “casaca branca” que os distinguia dos demais cidadãos.

Aquela cúpula de governantes representava a ascensão do pensamento racional científico, legitimado nas urnas da última eleição.

Última em todos os sentidos, pois dali em diante aquela legião ganhava o status de “classe de excelência” e tornava-se desnecessário convocar futuros pleitos. Quem melhor que aqueles doutos para zelar pelo bem estar do povo?

O sonho de Miranda era real. A Medicina era agora reconhecida como uma Ciência Exata e nunca mais dependeria das decisões de políticos ignorantes: ela era o próprio Poder!

E aquele não era um caso isolado. Nas nações mais representativas do mundo, o fenômeno se repetia: eram os primeiros “Estados Racionais Científicos” do planeta.

Após a equilibrada fala de abertura, o dirigente passou a palavra ao seu Ministro da Propaganda. Apesar dos números positivos, era preocupante que aquele relatório apontasse a sobrevivência de movimentos antivax. O Ministro da Segurança interrompeu o colega e pediu ao governante que autorizasse a criação de “campos de confinamento”, onde aqueles desajustados pudessem ter seu comportamento excêntrico devidamente estudado. Para isto, era necessário equipar melhor a Polícia Sanitária e atualizar os ultrapassados Códigos de Ética.

Miranda prometeu uma resposta positiva, mas também questionou o Ministro da Saúde quanto aos números apresentados em seu relatório. — Meu caro, examinei o arquivo que me foi enviado nesta manhã... A planilha de óbitos não está satisfatória... — Mas, excelência, onde está o problema? Todos os números de “morte por viroses” decaíram, inclusive quanto às mais recentes pandemias. Nossos cidadãos tomaram, em média, sete dos dez coquetéis de

vacinas trimestrais... Bem, as baixas por outras causa mortis como “enfarto” e “suicídio” são inevitáveis, o senhor sabe... — Sim, mera coincidência. Ademais, o Ministério do Confinamento precisa destes óbitos para revertê-los em aumento de intensidade de suas políticas sociais. Não é a isto que me refiro. — Miranda, nervoso, passava as páginas do extenso relatório na tela de seu tablet. Até que deparou-se com o que buscava. — Aqui está: “morte por susto”. O que significa isto? Quem é o “psicólogo” que está sabotando o meu governo? — Senhor, eu posso lhe garantir que seguimos rigidamente os protocolos administrativos mundiais. Estes antigos profissionais não atuam em seus Ministérios, pois não podem atender aos requisitos da Ciência Exata. Irei verificar... — E verifique também, o Sr. Ministro da Cultura, a existência de editoras clandestinas que fazem circular de mão em mão, como em um passado distante de um atraso indesejável, exemplares impressos de obras nefastas que subvertem a nossa Literatura! — Desculpe, não estou entendendo. Vossa Excelência está se referindo à existência de obras da banida “ficção científica”?

Miranda perdeu a elegância de vez, com um murro na mesa alva: — Não pronuncie este nome em minha presença! A Ciência não é ficção! A Ciência é... é...

O pesadelo acabou.

Miranda levantou-se, foi ao banheiro e procurou o espelho.

Refletiu bem.

Pegou o celular e, com um clique, renunciou à sua candidatura.

Arrumou-se, dirigiu-se ao hospital e retomou o antigo trabalho junto aos seus pacientes que, antes aflitos com sua ausência, o saudaram emocionados.

Mais uma vez, Hipócrates sorriu satisfeito.

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