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dEmia
Homenagem ao artista João Acaiabe no teatro da Hans
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Contar Histórias em BiBlioteCas púBliCas: resistênCia e reinvenção em tempos de pandemia
elisangela alves silva
A arte de contar histórias e encantar pessoas sempre esteve presente na história da humanidade, mas é em momentos de crise, seja por uma tristeza, preocupação, ou ainda com a angústia causada pela pandemia, que o bem-estar proporcionado pelas palavras mostra a sua potência e muitos acreditam no poder curativo das histórias. Eu acredito e vivencio isso na minha vida pessoal e profissional!
Não é à toa que os círculos de biblioterapia (encontros terapêuticos de leituras) têm se popularizado, assim como os clubes de leitura, podcasts literários e saraus, ainda que aconteçam no meio virtual, mas são as contações de histórias que constituem o pilar das programações culturais em bibliotecas e acontecem com freqüência também em hospitais, para além os ambientes que já estamos acostumados.
De fato, há uma trama histórica e complexa por trás do ideal do contador profissional e sua atuação nas bibliotecas: trata-se de um movimento histórico que envolve desde a urbanização das cidades, a migração artística de profissionais do teatro que, por falta de investimentos em suas áreas principais de atuação, direcionam os estudos e a carreira para a arte de contar histórias. Por outro lado, os equipamentos culturais nos anos 1990, também sofreram o impacto da migração de público, quando muitos deixaram de copiar os conteúdos dos livros e enciclopédias para usarem alguns poucos comandos e terem pesquisas completas oriundas da Internet. Nesse momento, como forma de atrair o público e promover os acervos, os contadores de histórias passaram a estar cada vez mais presentes nas bibliotecas, entre outros equipamentos culturais.
Também houve uma mudança na concepção de bibliotecas, antes reservada ao silêncio e estudos, havia uma visão elitizada e de público erudito, para tornarem-se grandes pólos culturais e desenvolverem conexões: entre livros e leitores, entre artistas e seu público, antes passivos, hoje protagonistas de sua história.
Atualmente proliferam cursos, formações e pós graduação para ensinar técnicas de contação de histórias. Aliás, como afirma Giuliano Tierno, ator e professor da arte narrativa, a própria palavra “arte” vinculada à contação, tem sua origem na década de 1940 reforçando o “fazer bem feito” e, como a contação de histórias tem se multiplicado em diferentes esferas, Giuliano também lembra que “tudo pode, só não pode qualquer coisa”. A “historinha” tem uma potência que contrasta ao diminutivo comumente usado.
Como bibliotecária e por ter a felicidade de trabalhar na Biblioteca Pública Hans Christian Andersen (temática em contos de fadas), na zona leste de São Paulo, que oferece, por meio da Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas e da área de Programas e Projetos, há mais de uma década, o curso para formação básica para contadores de histórias (nos últimos 3 anos também a formação avançada) planejada com muito carinho, bem como oficinas com estudiosos apaixonados pelos contos que nos contam, é comum confundirem ou automaticamente receber o rótulo de contadora de histórias. De fato, como afirmam os professores da área, somos todos contadores de histórias e um bom contador de histórias é, antes de tudo, um bom ouvinte! Porém, mesmo aqueles que são contadores natos, afirmam que sempre é possível aperfeiçoar, aprender mais e ampliar repertórios. Além disso, a cada momento a história, ainda que seja a mesma, reverbera de modo diferente no público e em quem conta.
Na verdade, tenho profunda admiração pela arte narrativa, pela entrega e dedicação que vejo em quem conta histórias por ser, sobretudo, um ato de resistência já que dispomos de diversas formas de divulgação dos livros, causos e contos populares, desde os disquinhos dos anos 1980, grupos de whatsapp, aos canais de YouTube. As tecnologias, ao sopro do capitalismo, não param de evoluir e nos surpreender, mas o livro físico e a narração coexistem, se reinventam e ainda encantam pessoas de todas as idades. Sim, porque contar histórias não é uma arte voltada apenas ao público infantil, como muitos pensam. Embora, como alertam os estudiosos da área, é fundamental contar histórias e a leitura para crianças ainda bebês, ou até mesmo na barriga, a fim de ampliar o leque de sons, palavras e memórias. Assim, à medida que desenvolve o vocabulário, as crianças pequenas cessam as mordidas, ou seja, as palavras já mostram o seu poder desde cedo e a falta dela também.
Contudo, apesar do foco de atenção ser sempre a história a ser contada, cada vez mais a oralidade é artística, há um trabalho de profissionalização performático que pode acrescentar dança, canto, música e requer muito do corpo, da voz, além de horas de estudos, ensaios e reflexões. Não é impossível, mas uma missão delicada às equipes das bibliotecas cada vez mais enxutas e com atribuições que só se multiplicam à proporção da paixão pela promoção do livro, da leitura e das diferentes expressões de artes.
Já realizei contações na biblioteca, muitas vezes no improviso devido às visitas surpresas de grupos, ou para dar tempo do contador chegar como uma espécie de “aquecimento” nas visitas monitoradas. Em casa, com
dois filhos pequenos, as histórias são alimentos e afetos diários pela leitura e pela oralidade de “cor” (de coração, em latim). Apesar do cansaço ao final do dia, a energia trocada é muito significativa.
No ambiente de trabalho, prefiro ainda mediar os encontros entre profissionais que ganham a vida e se dedicam a este ofício e grupos ansiosos pela escuta, no qual me incluo. Para muitos, as histórias alimentam a alma e também a mesa, literalmente. Na biblioteca pública em que atuo, já recebemos contadores de histórias que, sozinhos, encantaram um auditório com mais de 150 crianças e adultos. Algo que foge à ideia da narração intimista, do olho no olho, que hoje, até por conta da pandemia, as redes sociais mudam aflitivamente tal perspectiva para o olho na tela, individualmente, mas se por um lado estamos em distanciamento social, não estamos isolados, já que a tela permite múltiplos encontros, alguns que, pelo deslocamento, seriam impossíveis de acontecer no meio presencial.
Por conta da pandemia, subitamente, a vida passou a ser online! Com as bibliotecas não foi diferente, o atendimento às pesquisas agora acontece principalmente no meio virtual e por telefone, pois só algumas bibliotecas retornaram presencialmente e sem acesso do público às estantes com acervos (saiba mais em www.bibliotecas.sp.gov.br). Proliferam os pedidos de acesso ao livro digital, uma delicada questão, tal qual a fragilidade da cadeia de livros em nosso país. As “lives” deram vida às programações culturais das bibliotecas e, assim, entre outras ações, as contações de histórias estiveram presentes nos equipamentos culturais numa difícil concorrência com tantas atividades acontecendo simultaneamente nas redes sociais. A interação do público, antes observada pelos artistas pelo olhar, gestos espontâneos e, por fim, abraços ou pedidos de fotos, agora acontece por comentários e a inserção de imagens sem saber ao certo se quem assiste é a população que frequentava a biblioteca fisicamente ou um admirador distante, como já houve programação com pessoas da Espanha, Irlanda ou de outros lugares do país nas lives das bibliotecas que acompanho.
Assim, embora haja muitos bibliotecários que são excelentes mediadores de leitura e contadores de histórias, somos ou desejamos ser, sobretudo, a ponte entre a comunidade, os acervos de livros impressos e os livros vivos que todos somos.
Aproveito para registrar um agradecimento às equipes com quem trabalho e a todos que me antecederam nesta jornada, na qual sou só um pontinho em meio a uma potente constelação, sendo impossível não destacar o nome de Alice Bandini por todo o seu trabalho em prol da arte de contar histórias e que se aposentou
do Sistema Municipal de Bibliotecas, mas continua atuante para as histórias e pelas histórias.
Para saber mais sobre os cursos e oficinas gratuitas oferecidas pelas Bibliotecas Públicas da Coordenadoria do Sistema Municipal de São Paulo acesse: http://www.bibliotecas.sp.gov. br/
Para saber mais sobre o histórico e reflexões sobre a formação de contadores de histórias, veja a publicação: SÃO PAULO. Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas. Teias de experiências: reflexões sobre a formação de contadores de histórias. Ana Luísa de Mattos Masset Lacombe (Org). São Paulo: CSMB, 2013. 83 p. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Teia%20 de%20experiencias_1382928283.pdf Acesso em: 26, Nov. 2020.
elis, elisangela alves silva
É bibliotecária, mestre em Ciência da Informação pela ECA/USP. É Coordenadora da Biblioteca Pública Hans Christian Andersen (temática em contos de fadas), São Paulo/SP, e desde fevereiro/2020 trabalha também como bibliotecária na Biblioteca Pública Paulo Duarte (temática em cultura afro-brasileira), São Paulo/ SP. Foi Supervisora de Atendimento da Biblioteca Mário de Andrade, onde também foi Supervisora de Acervo até abril de 2014. Trabalhou no CEDOC da Fundação Abrinq e em diferentes instituições na área de documentação. Também foi bolsista do Programa IFLA/OCLC em 2007 e do 76. IFLA World Library and Information Congress
▼ Curso Avançado de Contação de Histórias
Elis no auditório da Biblioteca Hans Chirstian Andersen, no Tatuapé
e o tal “estupro Culposo”??
dra. gisele luCCas
Acompanhamos recentemente a ampla divulgação nas redes sociais que um Juiz teria reconhecido o Estupro Culposo, proferindo sentença absolutória. As cenas postadas nas redes sociais mostraram fragmentos da audiência, onde a vítima fora humilhada pelo advogado de defesa, sua intimidade exposta, e, sem qualquer intervenção do Juiz ou demais membros presentes, ficando em total desamparo ou acolhimento. As cenas causaram clamor e irresignação de toda a sociedade. O caso envolveu André Camargo Aranha e Mariana Borges Ferreira. A vítima afirmou que foi estuprada pelo réu em momento de privação de seus sentidos, pois não podia oferecer resistência ao ato de seu agressor em razão de embriaguez ou substância diversa, que lhe tiraram totalmente as condições físicas e psicológicas de defesa, estando vulnerável. O réu foi preso e denunciado nos termos do artigo 127 A parágrafo 1°, última parte do Código Penal que dispõe sobre o “ Estupro de Vulnerável “. Vulnerável é toda pessoa que não possui discernimento necessário para a prática de um ato e, em razão dessa falta de discernimento encontra-se impedida de oferecer resistência. Importante frisar que essa “ vulnerabilidade”, essa incapacidade de resistir seja de conhecimento do agressor. Por esse motivo é um crime punido somente na forma DOLOSA, quando o agente atua com sua vontade livre e consciente para consumar o crime e sabendo que sua vítima está incapaz de resistir à ação criminosa. Portanto é um Crime Doloso, não admitindo a forma culposa. Se ausente o dolo do agente, sua vontade direcionada ao crime, impõe-se a absolvição.
No caso em tela, todos os exames periciais realizados apresentaram resultado “ negativo”! Tanto o laudo que detecta consumo de bebida alcoólica, quanto o laudo toxicológico, pesquisadas todas as substâncias entorpecentes cadastradas. As testemunhas ouvidas no curso da instrução criminal, tanto da defesa quanto da acusação, apresentaram versões controvertidas, deixando a versão da vítima isolada das demais provas produzidas. O Magistrado ao proferir sua sentença de 51 laudas, entendeu que André Camargo Aranha só poderia ser condenado por “Estupro de Vulnerável” se comprovado que Mariana não tinha discernimento para a prática do ato sexual em razão de sua vulnerabilidade, ou seja, estaria impossibilitada de oferecer resistência. A controvérsia entre as versões e o resultado negativo dos laudos periciais foram os pilares de sustentação da decisão. No entender do Julgador não foi possível auferir quem faltou com a verdade. Segundo o Princípio do Livre Convencimento e da Livre Apreciação das Provas, o Juiz entendeu que inexistia provas suficientes para ensejar um decreto condenatório e absolveu o réu com fundamento no artigo 386 III do Código de Processo Penal. Como já esclarecido, o crime em questão só é punido quando provado o dolo. Como o “Estupro de Vulnerável” não admite punição na forma culposa, se ausente a prova de dolo, absolve-se! Logo, não existe ESTUPRO CULPOSO!!! Em que pese a decisão absolutória, absolutamente NADA justifica a maneira como a vítima foi tratada em audiência. O desrespeito foi exacerbado tanto por quem se excedeu, quanto por quem se calou. A verdade será sempre verdade. A mentira será sempre mentira, mas o RESPEITO deve prevalecer sempre, quer seja na verdade ou na mentira!!!
Dra. Gisele Luccas
É Advogada, Especialista em Direito Médico, Pós Graduanda em Perícia Criminal e Ciências Forenses, com Capacitação em Psicopatologia Forense, Mediadora Judicial e Privada cadastrada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Palestrante, Colunista, Mestranda em Psicologia Criminal - Especialização em Psicologia Forense (Universidad Europeia Del Atlântico- Espanha).