Vida em Ocupação

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Gabriel Caetano

VIDA EM OCUPAÇÃO


03 INTRODUÇÃO 06 QUEM SÃO OS SEM-TETO 21 PRESTES MAIA 44 MAUÁ 64 CAMBRIDGE 84 CONSIDERAÇÕES FINAIS


INTRODUÇÃO Este trabalho busca compreender quem são os sem-teto que vivem nas ocupações urbanas no centro de São Paulo. Antes vazios e residência de pragas urbanas e muito lixo, esses imóveis ganham função social a partir do momento em que são ocupados por pessoas que moram longe de seus trabalhos, não conseguem mais pagar aluguel, que têm o sonho de conquistar a casa própria por meios mais viáveis de pagamento. São diversos os casos. A ideia de realizar esse trabalho veio por dois motivos. Em 2014 foi o ano em que a Copa do Mundo de futebol no Brasil foi estopim para a realização de protestos de diversos seguimentos sociais, que já vinham embalados pelas jornadas de junho de 2013. Dentre essas manifestações, estavam as dos movimentos sem-teto. Na época, eu era estagiário da assessoria de imprensa da SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo), situada na rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo. A sala de imprensa dava vista exatamente para a prefeitura da cidade, alvo de vários atos dos semteto. E durante essas manifestações ouvia-se vários xingamentos por parte dos funcionários da SSP, acusando os manifestantes de vagabundos, preguiçosos, aproveitadores e demais palavras de ofensa. A partir desses episódios, percebi que os sem-teto eram marginalizados por todo tipo de pessoa e toda classe social. E, quando eu passava pelas ruas e notava os integrantes dos movimentos, ficava claro que ali, provavelmente, não haveria só aproveitadores como se ouvia nos julgamentos apressados. Eram pais com filhos, idosos, mães com crianças no colo, homens, mulheres, negros, brancos. Todo tipo de gente pobre ali misturada, como é o retrato do Brasil mesmo. O segundo motivo veio na sequência. Como os movimentos sem-teto estavam muito em evidência, principalmente o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), e frequentemente estavam na imprensa, questionar os motivos que levaram essas pessoas às ocupações foi

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Agência Brasil EBC

inevitável. E quando se tratavam de ocupações no centro da cidade, mais interrogações surgiam sobre o quão interessante deveria ser para essas pessoas morar no centro, local privilegiado e que a

população pobre não consegue morar sem sacrificar grande parte do salário no pagamento de um aluguel. E as pessoas vinculadas aos movimentos sem-teto estavam exatamente ali, morando em um lugar proibido para eles, de acordo com o mercado imobiliário. Além de pagar pouco, tudo que um trabalhador precisa está ao alcance: ônibus, trem, metrô, emprego perto da moradia, hospital, escola, espaços para lazer. Tudo. E em meio a tantas regras dentro das ocupações, encontrei gente satisfeita por morar bem, mas triste pela discriminação sofrida por habitar um espaço pertencente a outrem. Pessoas que estão em vulnerabilidade social ou que, em algum momento da vida, já estiveram à margem da sociedade. Buscando deixar evidente a vulnerabilidade dos personagens desse livro, que são um retrato das vidas que ocupam prédios vazios em São Paulo, os erros de português presente nas falas dos entrevistados foram preservados justamente para dar autenticidade às citações. No âmbito jurídico, a utilização de imóveis ociosos pelos movimentos sem-teto, por um lado, são condenadas por serem invasões da propriedade alheia, argumentação usada para diversas ordens judiciais de reintegração de posse. Já por outro lado, essas ações são defendidas e classificadas como ocupações pelo fato de estarem dando uso social a prédios abandonados há até mesmo décadas. Sem a intenção de discutir se as estratégias praticadas pelos movimentos sem-teto são juridicamente legais ou não, este trabalho visa somente retratar as vidas que, sem melhores alternativas, acabam por irem morar nesses edifícios abandonados.


QUEM SÃO OS SEM-TETO Quando se fala na população sem-teto, há quem pense que são somente as pessoas em situação de rua, socialmente vulneráveis. Claro que essas também são por viverem em extrema degradação, com escassez de comida, falta de higiene e, claro, sem uma casa para chamar de sua. Mas é preciso desmitificar a visão de que os sem-teto são só os mendigos, porque esses são os que chegaram no limite da degradação. Sendo assim, a maioria dos sem-teto não faz parte dos dados que tabulam o número de pessoas em situação de rua. Geralmente, grande parte dos sem-teto tem uma residência onde se abrigar, porém, a questão aí está nas condições dessas moradias. Os sem-teto se configuram a partir da instabilidade e vulnerabilidade de suas condições habitacionais, quando, por exemplo, estão sujeitos a desmoronamentos, remoções, despejos, reintegrações de posse etc. Uma família é considerada parte do déficit habitacional dependendo do nível de degradação do imóvel que habita; como são os casos de ônus excessivo com aluguel; se há adensamento excedente de pessoas numa mesma casa; se o domicílio é bastante precário ou se há muitas pessoas morando num imóvel alugado (como acontece em cortiços, por exemplo). De acordo com a Fundação João Pinheiro (FJP), entidade mineira que realiza os balanços utilizados pelo Governo Federal, o Brasil têm um déficit total de 6.068.061 de moradias, número que representa uma significativa porção da população brasileira. 06

Já na cidade de São Paulo o déficit chega a 358.097, de acordo com a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (SEHAB) a partir de dados do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e Fundação João Pinheiro. Famílias que têm até três salários mínimos mensais de renda representam a maior parte desse número, 74,5%, seguidas por famílias que recebem de três a seis salários (20,5%) e as sem rendimentos (4,9%). Já nos critérios de condições de moradia, a maior concentração desse grave número está concentrado em casos de ônus excessivo com aluguel, que representa 52,4% do total, seguido por coabitação familiar (28,9%), adensamento excedente de pessoas em domicílios alugados (13,2%) e domicílios precários (5,4%). Morando nas periferias Até os anos 1930, a região central de São Paulo foi marcada pelo ritmo industrial e por grande parte dos imóveis sendo usados para fins residenciais por trabalhadores das diversas fábricas que haviam na cidade. Mesmo com a população se desenvolvendo de forma adensada, o problema da moradia foi, até então, resolvido porque eram as fábricas que custeavam as vilas operárias para seus funcionários. Porém, conforme foi aumentando a quantidade de pessoas que procuravam a região para trabalhar, a oferta dos imóveis populares foi cada vez aumentando mais e, consequentemente, os valores foram pesando mais para o patrão também. Conforme a alta dos valores da habitação, os que moravam nas vilas operárias foram gradualmente deslocados das vilas e o custo da moradia foi transferido para o trabalhador, que deixou de morar perto do emprego e passou a habitar locais cada vez mais distantes do centro. Com a implantação das linhas de transporte coletivo sobre rodas, nos anos 1940 ocorreu o agravamento da expansão 07


horizontal da cidade, devido a falta de fiscalização do poder público sobre a produção de moradias. Nos anos 50, o processo de periferização continuou a todo vapor e, na região central, ocorreu uma densificação da estrutura urbana a partir da intensa verticalização da cidade. De acordo com Andrea Piccini, no livro Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro urbano de São Paulo, dados da época apontam que entre os anos 1940 e 1950, aproximadamente 100 mil famílias, calculadas em cerca de meio milhão de pessoas, saíram do centro para a periferia, sendo que a maior parte passou a habitar casas próprias autoconstruídas e imóveis alugados. Dessa forma, o desenvolvimento explosivo de São Paulo foi regrado pelos interesses privados do mercado imobiliário. Enquanto grandes áreas próximas ao centro eram reservadas e ficavam à espera de valorização, terrenos mais distantes eram loteados e vendidos a um preço que era mais acessível à classe trabalhadora. Isso é o que conhecemos por especulação imobiliária. Esse método consiste em nunca fazer um novo loteamento em continuidade imediata ao anterior, que já é provido de serviços públicos. Entre o novo e o já provido de serviços, reserva-se uma área sem lotear e aguarda a chegada dos bens de uso coletivo, como o fornecimento de água, eletricidade, transporte público etc. Quando esses serviços chegavam, as áreas ainda não loteadas eram muito mais valorizadas no mercado imobiliário e, só depois disso eram colocadas à venda por um preço bastante superior aos terrenos comercializados anteriormente. Conforme essa lógica, os trabalhadores que não tinham condições financeiras para arcar com o preço do progresso foram expulsos das melhores áreas, onde a infraestrutura urbana chegava mais rápido, e acabaram tendo como única alternativa a periferia, que geralmente fica mais distante de tudo. A partir daí começou a se 08

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definir a separação entre a cidade dos pobres e a cidade dos ricos, os que não conseguem arcar com os custos do privilégio de morar em bons lugares e os que podem escolher onde morar. Áreas com custo financeiro baixo e alto custo social e locais com alto custo financeiro e ônus social quase nulo. Com o decorrer do processo de desconcentração habitacional do centro da cidade, iniciada na década de 1930 e 1940 e ocorrendo com certa intensidade até o final da década de 1970, várias áreas da capital e Grande São Paulo passaram a ser habitadas. Com isso originou-se o “padrão periférico de ocupação do solo urbano”, definido pelo urbanista Lúcio Kowarick no livro Escritos Urbanos, de 2000, que nada mais é que o crescimento desordenado da periferia sem o devido planejamento que deveria ser feito pelo poder público. A espoliação urbana, teorizada por Kowarick em A espoliação urbana, de 1979, tem suas raízes justamente nas periferias da metrópole e está ligada à exploração do capital e ao grau de pauperismo que dela decorre e a que estão sujeitos diversos segmentos da classe trabalhadora. Isso porque, de acordo com o autor, é o capital que gera, em última instância, a configuração espacial da cidade e, assim, os diferentes graus de inclusão e exclusão de acesso aos bens de consumo coletivo. Sendo assim, a espoliação urbana é o somatório de extorsões existentes através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo (como fornecimento de eletricidade, água, rede de esgoto, equipamentos culturais, escolas, rede pública de saúde etc.) que são fundamentais para o bom rendimento do cidadão no mercado de trabalho.

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Os sem-teto e as ocupações urbanas

Ao andar por São Paulo, principalmente em regiões periféricas como o extremo leste e o extremo sul, por exemplo, vemos diversas ocupações e invasões de espaços urbanos que se transformaram em favelas, acampamentos de movimentos por moradia, prédios vazios tomados por famílias sem-teto etc. Lugares em condições diversas de habitabilidade, dos mais conservados aos mais insalubres. Em todo caso, essas apropriações de espaços ociosos são consequência direta da urbanização totalmente desenfreada iniciada no século XX, quando a população empobrecida foi expulsa do centro e teve de ir morar nas periferias, e persiste até os dias de hoje na metrópole onde o preço da terra é regulado pelos interesses do mercado imobiliário e cada pedaço desse espaço vale ouro. De acordo com o Secovi-SP (Sindicato da Habitação de São Paulo), em julho de 2016 o preço do metro quadrado do aluguel de um imóvel com um quarto, no centro de São Paulo, não saia por menos de R$ 21,25, podendo chegar ao valor de R$27,30, sendo que em bairros do extremo leste da capital, como Artur Alvim e São Mateus, a média chega a R$ 20,16. Fazendo um comparativo histórico para demonstrar como está cada vez mais caro morar na capital paulista, vamos voltar 10 anos. Em 2006, o valor máximo que o metro quadrado do aluguel atingia em São Paulo era de R$ 11,90, em média e, no extremo leste esse valor chegava a uma média de R$ 9,07. Ou seja, se um cidadão fosse alugar um imóvel de 50 metros quadrados no centro de São Paulo em julho de 2006, pagaria cerca de R$ 595 mensais. Agora, 10 anos depois, esse valor chega a R$ 1.062, mais ou menos. 11


Mas é na região central da capital paulista onde acontecem disputas de interesses em diversos âmbitos. Há briga por tudo, inclusive no sentido literal da palavra. Há concorrência por pontos de venda nos setores de grande comércio, como Brás e 25 de Março; protestos por diversas causas e motivos; concorrência na venda e locação de imóveis; briga entre sociedade civil e o tráfico de drogas, como é o exemplo da região da Cracolândia; e é o lugar onde pulsa um dos maiores movimentos sem-teto do mundo. Principais movimentos sem-teto do centro de São Paulo ULC (Unificação das Lutas de Cortiços) – Movimento fundado em 1991 para lutar pelo direito à moradia no centro de São Paulo. ULC foi um dos primeiros movimentos a realizar ocupações de ociosos em São Paulo, iniciadas em 1997. Fórum de Cortiços – Movimento nascido na metade dos anos 1990 para brigar pelo direito à moradia na região central em decorrência aos diversos despejos que vinham acontecendo na época. Foi o primeiro movimento a realizar ocupações organizadas de imóveis ociosos, em 1997. MMC (Movimento de Moradia do Centro) – Movimento surgido nos anos 80 para lutar contra as altas taxas das contas de água, luz, IPTU, e despejos na região central. Posteriormente, na década de 1990 também passou a realizar ocupações na região central de São Paulo.


MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro) – Movimento fundado por dissidentes do Fórum de Cortiços, em 2000. Em 2002 encabeçou a fundação da FLM (Frente de Luta por Moradia), que reúne diversos movimentos paulistas com um objetivo em comum: a conquista da casa própria. Hoje, o MSTC é um dos principais movimentos atuantes no centro da capital paulista. MTSTRC (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central) – Contemporâneo do MSTC, também participou da fundação da FLM. Hoje, o movimento é extinto. De acordo com integrantes dos movimentos sem-teto, o líder do MTSTRC agia de maneira indevida com seus filiados. MMLJ (Movimento de Moradia e Luta por Justiça) – Nascido há cerca de quatro anos a partir da separação de alguns membros do MSTC. A sigla é considerada uma “alça” do MSTC, já que as alianças políticas permanecem. MMRC (Movimento de Moradia da Região Central) – Sigla nascida no começo dos anos 2000 e que também realizou diversas ocupações na região central, mas hoje só participa da ocupação Mauá. As ocupações no centro de São Paulo As ocupações organizadas de imóveis ociosos no centro de São Paulo começaram na segunda metade da década de 1990 depois que os movimentos por moradia cansaram de dialogar com o poder público pelos meios legais. Porém, até então, tomar posse de imóveis vazios não era novidade nenhuma numa metrópole onde movimentos por moradia e ocupações autônomas já existiam há décadas. Invadir ou ocupar para morar já era prática recorrente na região metropolitana paulista desde o início do século XX, quando houve os primeiros 14

registros desse modo de ação. Os movimentos por moradia na região central também não eram novos. O que mudou nos anos 90 foram as estratégias de reivindicação. A partir de 1997 a estratégia mudou e, assim, aconteceram as primeiras ocupações de imóveis ociosos no centro de São Paulo. E o que tornam inéditas essas ações é porque foram realizadas em larga escala, de forma recorrente e coordenada pelos movimentos sem-teto. A primeira ocupação de um prédio no centro de São Paulo, em 1997 mesmo, foi um edifício de propriedade da Secretaria da Fazenda, situado na rua do Carmo. Organizada pela ULC (União de Luta dos Cortiços), essa foi a primeira de uma série de ocupações que ocorreram nos anos seguintes e se tornaria um marco não só por ser a primeira, mas também por representar a mudança de estratégia dos movimentos sem-teto, que já haviam se cansado de obter poucos resultados acerca das políticas habitacionais revindicadas. E, ao perceber o grande número de imóveis ociosos no centro da capital, a ocupação desses passou a ser vista como estratégia viável de pressionar o governo e poder avançar nas discussões. E foi então, a primeira vez que foram traçadas questões políticas mais amplas a partir desse tipo de ação. “Tomar posse” do imóvel alheio que está inutilizado, seja público ou privado, passa a servir como tática para que sejam estabelecidos canais de diálogo com o poder público, negociar políticas habitacionais para que os integrantes dos movimentos que estão em determinado imóvel permaneçam na região central, mas em melhores condições de moradia. Além disso, as ocupações são também para denunciar a grande ociosidade da região e também exigir o cumprimento da função da propriedade urbana e da própria cidade. A partir de então, diversas siglas disputam o espaço urbano do centro de São Paulo promovendo ocupações de imóveis 15


abandonados, especialmente os prédios. Movimentos como o MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), MMLJ (Movimento de Moradia e Luta por Justiça), MMC (Movimento de Moradia do Centro), MMRC (Movimento de Moradia da Região Central), ASTC (Associação dos Sem-Teto do Centro) entre outros, estão à frente da luta pelo direito à moradia na região central, onde há infraestrutura urbana para a população espoliada. A FLM (Frente de Luta por Moradia) foi fundada em 2002 pelo MSTC e MTSTRC (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central), quando esses se desfiliaram da UMM (União dos Movimentos de Moradia) porque a entidade havia optada mais por fazer negociações com o poder público a fazer ocupações. A FLM, então, passa a ser uma central que une os movimentos que utilizam de estratégias parecidas de ação. Quem acaba indo morar em prédios vazios no centro de São Paulo, geralmente sai de lugares onde há escassez de hospitais, transporte público, escolas, espaços para lazer, empregos e até mesmo porque não consegue mais custear o aluguel em regiões privilegiadas com a infraestrutura urbana. É como destaca Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), em seu livro Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto, de 2015, elencando alguns fatores que fazem com que o trabalhador opte pela ocupação, por mais degradada a condição de moradia. “Grande parte não consegue comprar uma casa no mercado imobiliário por causa da especulação imobiliária [que faz com que os preços decolem]; os programas habitacionais (como o Minha Casa, Minha Vida) não atendem a maioria, especialmente entre os mais pobres; os alugueis aumentam a cada dia também por conta da especulação. Muita gente precisa tomar a dramática decisão no final do mês: pagar o aluguel ou colocar comida na mesa”. 16

A legitimidade das ocupações e os imóveis ociosos Mesmo não sendo o objetivo central desta discussão, é inevitável escapar das questões jurídicas acerca da utilização de imóveis ociosos pelos movimentos sem-teto. Qualquer assunto que envolva a questão da moradia, acaba caindo sobre a legalidade ou não dessas ações. Juridicamente há dois lados: o direito à propriedade e o direito à moradia. Como a legislação é interpretativa, para alguns a utilização de imóveis vazios são invasões da propriedade alheia, o que fere o direito à propriedade. Para outros, são ocupações, por defender o direito à moradia. De acordo com os movimentos sem-teto, as ocupações só acontecem porque os prédios abandonados em São Paulo estão violando o direito à moradia numa cidade onde o número de imóveis ociosos é maior que o de pessoas sem uma casa própria. Alguns sem-teto até confessam ser errado utilizar a propriedade de outrem, mas justificam que é o mais importante é as famílias sem-teto terem um abrigo. “A gente sabe que ocupar não é legal porque aqui não é nosso, mas a gente tá lutando por um direito, para que com o movimento por moradia a gente possa ter o atendimento de um financiamento de uma casa própria. Existe alguma coisa mais importante do que a casa própria? Não existe! Todo ser humano precisa de uma moradia”, defende Domingas “Magali” Maria, ex-coordenadora do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e moradora da ocupação Cambridge, no centro de São Paulo. As ocupações são frequentemente vistas como algo negativo, como se ali estivesse sendo cometido um crime hediondo. Pessoas que moram em prédios ocupados no centro de São Paulo, por exemplo, relatam frequentemente o preconceito sofrido pelo fato de tão ter uma casa própria e morar num edifício abandonado há anos pelos proprietários. 17


seja, que toda propriedade imobiliária deve servir para moradia, comércio, ou qualquer outra coisa que traga benefícios para a sociedade.

Magali é ex-coordenadora da ocupação Cambridge

Além da Constituição, os movimentos sem-teto também se apoiam no artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que cita a direito à “habitação” como fundamental. Até a Bíblia entra como instrumento de argumentação para as ocupações. Em um artigo escrito por Manoel Del Rio, assessor jurídico dos movimentos filiados à FLM (Frente de Luta por Moradia), e publicado num jornal da FLM distribuído nas ocupações há a citação: A “Bíblia Sagrada” também dispõe sobre moradia: “Construirão casas e nelas habitarão” (Isaias 65:21/22); ou “São coisas indispensáveis para a vida: água, pão, roupa e casa para preservar a própria intimidade” (Eclesiastes 29:21).

Para realizarem ocupações, o instrumento de defesa mais comum que os movimentos utilizam é a Constituição Federal brasileira. Apesar de defender a propriedade privada, a Constituição também defende a efetivação do direito à moradia. Explicado nos artigos 182 e 183, dentro de um capítulo sobre a política urbana, são estabelecidos diversos instrumentos para efetivação do direito à moradia, defesa social da propriedade etc. Já por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia passou a compor o artigo 6º da Constituição, sendo reconhecido como direito social fundamental.

Sendo assim, os lugares que sempre são ocupados pelos movimentos por moradia atuantes na região metropolitana paulista não pertencem a cidadãos que utilizam os imóveis para alguma finalidade essencial. Muito pelo contrário, as propriedades ocupadas estão sempre inutilizadas e, geralmente, são usadas por investidores do mercado imobiliário somente para especulação imobiliária. Isso quer dizer que os donos desses imóveis deixam as propriedades vazias e sem utilização social alguma durante anos só esperando a valorização da área pelo mercado e, só depois disso, vender e lucrar muito mais do que poderia lucrar antes.

Mais tarde, em 2001, os artigos 182 e 183 foram finalmente regulamentados pelo Estatuto da Cidade. Conforme essas leis, então, se a propriedade não cumpre função social, o proprietário deve ser penalizado. Assim ficou explicito que todo imóvel deve exercer a função social da propriedade, ou

De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (SEHAB), existem cerca de 290 mil imóveis não habitados na capital paulista, número que, na teoria, poderia abrigar grande parte da famílias que compõem o déficit habitacional da cidade.

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Além disso, segundo dados do Departamento de Controle da Função Social da Propriedade da PMSP (Prefeitura Municipal de São Paulo), até o fim de agosto de 2016, 1421 imóveis ociosos estão na mira da gestão municipal e foram identificados e cadastrados por não estarem cumprindo a função social urbana. Desses, 1106 já foram notificados em toda a capital e estão sujeitos ao aumento progressivo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), chegando até a dobrar o valor em cinco anos ou até mesmo ser desapropriado para uso social.

PRESTES MAIA 20


de vida humana nesse recinto tão insalubre por fora. Prefeito da cidade de São Paulo por duas vezes, Francisco Prestes Maia (1896-1965) esteve à frente de grandes obras de reurbanização da capital durante a vida pública. Vias importantes de acesso entre o centro e as regiões periféricas foram construídas durante a primeira gestão do engenheiro civil e arquiteto, que durou de 1938 a 1945 e a segunda, que foi entre 1961 a 1965. Mas uma ironia alimenta a história pós-morte do vigésimo prefeito paulista que o faria revirar no caixão: seu nome batiza a segunda maior ocupação urbana sem-teto da América Latina, de acordo com o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Fica atrás somente da Torre de David, na Venezuela. Com o Plano de Avenidas idealizado por Prestes Maia, o remodelamento urbano acabou por expulsar a população pobre do centro de São Paulo. Agora, no século XXI, o cidadão está reivindicando seu lugar ao sol justamente num edifício batizado pelo nome daquele que, direta ou indiretamente, contribuiu para a expansão periférica eliminando do centro quem não conseguia arcar com a valorização imobiliária agregada pelas novas estruturas que serviriam melhor à elite paulista. Situado no número 911 da avenida Prestes Maia, o prédio imponente se destaca de longe pelo tamanho. Visto de perto, a altura se torna só mais uma das várias peculiaridades ali existentes. A estrutura é marcada por diversas pichações feitas em um cimento com aspecto sujo, algumas partes enegrecidas por incêndios passados e até algumas plantas que encontram espaço para crescer em meio ao concreto. As antenas de televisão e as janelas sem vidros tampadas com pedaços de tábuas de compensado ou telas deixam evidente a existência

A entrada principal é marcada pelo letreiro da falida Companhia Nacional de Tecidos, situada na rua Brigadeiro Tobias, onde a poucos metros também fica a sede do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) da Polícia Civil. Apesar do nome da velha empresa inaugurada nos anos 60 e falida nos anos 90 ainda resistir às décadas de abandono, ali a porta está lacrada e cheia de sujeira deixada pelos transeuntes. Hoje em dia é preciso dar a volta no quarteirão para chegar ao acesso à ocupação, que é na rua paralela. Exceto o constante risco de sofrer um assalto pelos dependentes químicos que circulam pela região e frequentam a famigerada Cracolândia, a localização é privilegiada. Quase em frente à ocupação está a estação da Luz, a algumas quadras fica a rua 25


de Março, há diversas lanchonetes, lojas de roupa, de calçados, a Pinacoteca do Estado, a Sala São Paulo, Parque da Luz. Tudo perto. Ao chegar no número 911 escrito a tinta vermelha na parede, é preciso bater num portão de ferro totalmente sem brechas para bisbilhotar o que acontece do outro lado. Lá de dentro, por meio de uma câmera de segurança, o porteiro confere quem está chamando e libera a entrada. O local é todo iluminado por lâmpadas fluorescentes e com uma das paredes brancas com a inscrição em vermelho do MMLJ (Movimento de Moradia e Luta por Justiça). Atrás de um balcão protegido por uma grade de ferro, ele questiona onde você vai. É preciso informar o nome do contato e apresentar o RG. Os dados do visitante são registrados para não correr o risco de elementos estranhos entrarem na ocupação. Feito isso, o rapaz abre um sorriso e libera um segundo portão gradeado que dá acesso à maior ocupação urbana do Brasil. Após passar pela portaria, começa um trajeto que é uma verdadeira academia para as panturrilhas, já que não há elevador. Só para chegar ao primeiro andar é preciso subir 62 degraus divididos em quatro lances de uma escada bastante degradada e com uma frequente umidade nas paredes, chegando até mesmo ao chão, sendo preciso tomar cuidado para não escorregar e cair. Tudo resultado de uma infiltração que enche o subsolo de água. Foi instalada até uma bomba para jogar a água excedente fora. Até a própria estrutura do Prestes Maia é diferente da maioria das ocupações verticais da capital. As cerca de 400 famílias que habitam a antiga fábrica de tecidos, calculadas em mais de 1500 pessoas, se dividem em duas torres. O bloco A, que tem vista para a rua Brigadeiro Tobias, tem nove andares. Já o bloco B é um arranha-céu de 21 andares – contando o terraço são 22 – com vista para a avenida Prestes Maia, que faz parte do corredor 24

norte-sul, uma das principais vias de São Paulo. Lá pelas 19h, quando grande parte dos adultos já está de volta do trabalho e todas as crianças chegaram da escola ou creche, o prédio ganha mais vida. É quase impossível não escutar os vizinhos conversando, criança gritando enquanto brinca, mãe corrigindo o filho com algumas palavras rígidas. A presença dos pequenos é tão intensa que em alguns andares existe uma espécie de porteira de madeira para barrar os que se arriscam a ir em direção às escadas. Mesmo que um ou outro piso não tenha gente, o barulho dos outros andares ecoa. Mas apesar da alegria que invade os blocos todos os dias, é proibido fazer barulho depois das 22h. Escalar os 21 andares do bloco B a essa hora é como andar pelas ruas de periferia da Grande São Paulo. As pessoas tem calor humano, conversam, há interação entre si. Só que está todo mundo ali vivenciando o mesmo espaço e as particularidades dos companheiros de moradia. Sempre há tempo para conversar, nem que seja um “boa noite, como vai?” por alguns segundos com um sorriso no olhar. Em cada andar, há um banheiro, uma lavanderia e uma pia para lavar louça das 12, 13, até 14 famílias que moram em cada pavimento. É tudo coletivo, portanto, os moradores precisam se organizar para não ocorrer confusão. Em caso de desentendimentos, quem deve resolver o problema são os coordenadores. São três no bloco B e, no bloco A quem segura as pontas é Gracione Freitas conhecida no Prestes Maia como Gau. Negra e alagoana de 43 anos, seis desses no Prestes Maia, Gau têm um semblante forte, voz bastante grave por causa do uso excessivo de cigarro e quando algo não está bom, nada a faz dar risada. Ela admite que era uma “tapada” antes de ir morar na ocupação e diz ter aprendido 25


tá pagando só essa quantia [R$ 105], que é pouca por morar no centro, ter acesso a água, luz, morar do lado de tudo, que a gente é vagabundo. A gente trabalha. Você pode ver às cinco horas da manhã o monte de mulheres que sai pra trabalhar”, desabafa Roberta. O edifício, que até 2015 era do empresário Jorge Hamuche, já havia sido ocupado pelo MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro) em 2002 e, em 2007, as famílias foram despejadas após o cumprimento de uma ordem judicial de reintegração de posse solicitada pelo dono. Uma parte dos sem-teto foi contemplada com o financiamento da casa própria em regiões periféricas de São Paulo e, o restante recebeu auxílio aluguel. Questionada sobre o que faz quando o movimento sem-teto é discriminado por tomar posse de prédios vazios, Nete responde de forma categórica. “Tratam a gente como invasores, como pessoas que não têm muito o que fazer... Em primeiro lugar a gente deixa claro que nós não somos invasores, quem invade é o sistema. Nós somos ocupantes. Ocupa o espaço vazio sem função social. Seja ela sem função social da saúde, sem função social da educação, sem função social referente à moradia, sem nenhuma função social”, explica a líder do MMLJ, que diz defender o que está na Constituição Federal. “‘Pô, eu trabalho há trinta anos e conquistei minha casa sem precisar invadir nada de ninguém’. A gente aplaude”, ironiza, batendo palmas enquanto fala, “parabéns para aqueles que conseguiram, tá certo? E aí a gente explica: não estamos tomando nada de ninguém. Simplesmente buscando aquilo que é nosso por direito. ‘Mas ah, vocês invadem um lugar que não é de vocês’, a ocupação que a gente faz, a maioria deles é pra denunciar o espaço vazio porque é crime deixar mais de dois anos e um dia um espaço sem utilização, sem usufruir. Tá na Constituição que o espaço é seu mas você tem que usar, você tem que gozar daquilo. Se você 27


seus direitos durante a luta cotidiana dentro do MMLJ. “Antes eu era uma tapada, hoje não. Hoje até o meu direito que eu não sabia que eu tinha, eu sei. Eu aprendi muito. Hoje eu falo pra você: eu conheço meus direitos”, afirma. Quando os coordenadores de andar não conseguem resolver os atritos, a discussão é levada a um grupo denominado “Mediação de Conflito”, que vai buscar entender a desavença para determinar o que será resolvido. “A pessoa num primeiro momento é orientada; num segundo ela recebe uma advertência verbal, dependendo da gravidade; no terceiro recebe advertência por escrito, dependendo da gravidade, seguido de multa revertida para o andar”, explica Ivanete Araújo, a Nete, de 43 anos, uma das lideranças do MMLJ. “Meu filho tava jogando bola aqui no corredor. Ele, o neto da vizinha e outro do 20 [andar]”, conta Roberta Fialho, moradora do 21º andar, “e eles brincando com a bolinha e alguém subiu pra comprar coisa, viu e falou pra coordenação. Em cinco minutos o coordenador subiu e falou ‘a senhora conhece as regras, sabe que não pode. Infelizmente vou ter que te dar multa. No caso como vocês são duas [famílias] e estão precisando de um chuveiro novo aqui no andar, o chuveiro vai custar só cem reais de multa pra vocês’. A gente pegou e revertemos a multa em chuveiro”, explica ela lembrando que o chuveiro era muito bom, mas já queimou. Além dos mal entendidos entre os moradores, também é proibido portar armas, usar drogas, andar pelos corredores sem camisa ou somente de toalha, tomar banho a dois, demorar mais de dez minutos no banho, jogar bola nos andares, jogar lixo pelas janelas, receber visitas depois das 22h. Tudo isso entra para a lista de regras do movimento que não podem ser violadas pelos sem-teto. “Achei que você ia sair loiro do banheiro”, grita Karen Nascimento, de 26 anos, para um garoto que ficou

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mais tempo do que devia em baixo do chuveiro do primeiro andar do bloco A. Karen é uma dos seis filhos de Gau e tem o mesmo pulso firme da mãe. Cada uma das 400 famílias deve contribuir com R$ 105 mensais. Em caso de atrasos, existe o risco até de expulsão do espaço. Grande parte dos moradores do prédio acha o valor aceitável por ser financeiramente mais viável do que pagar o aluguel de um quarto de pensão, por exemplo. De acordo com Nete, todo o dinheiro da contribuição é destinado para a manutenção da ocupação e pagamento dos porteiros, comissão de limpeza, coordenação, custeio de viagens à Brasília para realizar negociações acerca dos semteto e também para subsidiar famílias que não tem condições de pagar e ficam isentas por até seis meses. “Vou pegar um exemplo: na semana retrasada o cabo da energia da Prestes Maia estourou. Os cabos que eram pra colocar lá custavam 17 mil reais, a gente conseguiu por 10 mil, a pessoa foi buscar em Campinas. Eu vou tirar esse dinheiro de onde? Com quem?”, explica Nete, “agora, se a pessoa não está feliz em pagar os 105 reais, ela pode sair e pagar um aluguel de 600 [reais] lá fora e água e luz por cabeça”, conclui. Quando o assunto é discriminação já sofrida pelo fato de ser sem-teto, é bastante difícil algum morador da ocupação não contar a história de algum drama que sentiu na pele ou que já presenciou. Uma das coisas que mais chateia Roberta, de 38 anos, é a cobertura da imprensa. Porque, de acordo com ela, isso ajuda para que as pessoas pensem errado sobre a ocupação. “É que nem quando a gente faz protesto e o povo fala ‘ah, mas esse povo é tudo vagabundo’. Já vi os repórteres falarem isso. Já vi o [José Luiz] Datena falando, já vi o [Luiz] Bacci falando muito mal dos sem-teto. Só que eles não vêem que a maioria das pessoas que mora aqui dentro levanta cinco horas pra trabalhar. Ninguém aqui é vagabundo. Não é porque a gente

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não usa ou se você não goza, você tem que passar pro próximo, entendeu? E é isso que a gente faz. A gente acaba denunciando que aquele imóvel não tem nenhuma função social”, explica. Em 2010, o MSTC viu que a antiga fábrica de tecidos continuava sem exercer função social e resolveu ocupá-la novamente. No dia 4 de outubro daquele ano o prédio foi tomado por cerca de 1500 pessoas que vinham de favelas, não conseguiam mais pagar aluguel, não tinham onde morar. São diversos os casos. Após cerca de dois anos da ocupação, surgiu o MMLJ que, segundo as lideranças, virou uma “alça” do MSTC. A partir de então, o MSTC saiu da administração da Prestes Maia – por algumas divergências políticas em termos de estratégia, nada que tenha afetado a aliança entre as duas siglas, segundo as próprias lideranças – e ficou somente o MMLJ. Após dezenas de pedidos de reintegração de posse do imóvel terem sido revogados, a Justiça suspendeu o último em 3 de outubro de 2015, quando a gestão municipal do prefeito Fernando Haddad (PT) já estava com as negociações avançadas para a desapropriação do prédio. No mesmo mês, Haddad anunciou que a prefeitura havia concluído o processo de desapropriação do edifício, após o Decreto de Interesse Social ter sido assinado em agosto de 2013. Com o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) sem ser pago desde 1986, acumulando uma dívida de aproximadamente R$ 9,1 milhões – que ultrapassa o valor venal do imóvel, usado para calcular o imposto, de R$ 6,5 milhões –, o empresário Jorge Hamuche queria R$ 26 milhões pela desapropriação. Mas a prefeitura conseguiu negociar e chegar aos R$ 22 milhões pagos ao antigo dono. Apesar de realizada a desapropriação para destinar o prédio à 30

moradia das famílias que ocupam o local por meio do Minha Casa, Minha Vida, Nete afirma não ter perspectiva para a reforma do Prestes Maia. Além de não haver garantia de que todas as quatrocentas famílias continuarão a morar no mesmo endereço, a conjuntura política municipal com João Dória (PSDB) como prefeito pode atrapalhar, segundo ela. “A gente também não tá com muita pressa do prazo dele [da reforma do prédio] porque se mexer ali vai ter que mexer pra começo, meio e fim. Não dá pra tirar as famílias pra reforma sem uma garantia de retorno. E com essa nova conjuntura, com um prefeito do PSDB, da direita, então a gente tem que sentir o cenário”, aponta a principal liderança do MMLJ. ROBERTA Tente não se assustar se você estiver no bloco B da ocupação Prestes Maia por volta das oito da manhã e de repente ouvir uma mulher passando pelo pátio – como os moradores chamam os corredores dos andares – gritando em alto e bom som “olha o pão!!”. Ainda mais se for numa manhã de sábado e você estiver querendo dormir um pouco mais. Para os moradores do prédio essa gritaria toda manhã já se tornou habitual. Apesar da cara de sono e o cabelo bagunçado, alguns até agradecem o barulho porque é sinal que o pão fresquinho chegou para o café da manhã. E não é só o pão. Se quiser leite, manteiga, pó de café, açúcar ou qualquer outra coisa, o serviço é delivery. Roberta Fialho tem 38 anos, e desses, quatro vivendo no Prestes Maia. Mineira nascida em Belo Horizonte, ela vive no quarto oito do 21º andar do bloco B da ocupação. Dentro do próprio espaço – como são chamadas as residências improvisadas – de três cômodos divididos com pedaços largos de madeira, ela 31


tem um minimercado que administra junto com o marido. Na verdade, a principal atividade de Roberta é vender água, sucos e refrigerantes nos arredores do Detran (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo), situado na Avenida do Estado, região do Bom Retiro, no centro. Mas quando o marido não está em casa, a mineira não alimenta medo do trabalho e parte pra cima. Enquanto o companheiro viajava ao Maranhão, sua terra natal, Roberta vendia pão pela manhã e partia para a rua à tarde para vender a mercadoria. São 7h30 de um sábado. Roberta e a filha do meio, Vitória, de 13 anos, descem os 21 andares para esperar os pães que estão vindo do Bom Retiro. O vento frio transforma a avenida Prestes Maia num corredor e passa mais rápido do que os carros que seguem sentido centro. Mãe e filha se acomodam no banco do ponto de ônibus a cerca de 50 metros da portaria do arranha-céu para aguardar a massa que vai alimentar os vizinhos e dar lucro para conseguir por dinheiro na mesa da casa onde vivem cinco pessoas. Somente com uma blusa e de shorts, Vitória dobra as pernas em cima do banco para tentar se desvencilhar do vento que faz a sensação de frio aumentar ainda mais. Roberta mora com os três filhos mais novos na Prestes Maia. Quando o assunto é as duas filhas mais velhas, a emoção não perdoa e chega com tudo. Tamara, de 20 anos, e Tainá, de 18, são filhas do primeiro casamento de Roberta ainda quando a capital mineira Belo Horizonte era chamada de casa. Quando havia pouco tempo do nascimento da segunda bebê, veio a separação. Separação não só do companheiro de relacionamento, mas também das duas pequenas. Tamara foi levada para a Espanha junto com o pai e uma tia paterna, e lá 32

foi criada. Já Tainá foi “dada” a uma família que tinha melhores condições financeiras de criá-la. Pouco depois de perder as filhas, Roberta veio para São Paulo tentar a vida no final dos anos 90. Aqui acabou conhecendo o segundo marido, com quem está até hoje. Teve o primeiro filho, João Vitor, e em meados de 2002 foi para o Maranhão porque a vida em São Paulo não estava fácil. Mas, depois de oito anos acabou voltando para a capital paulista por perceber que a sobrevivência no nordeste estava ainda mais difícil. Demorou mas chegou. O homem que vinha pedalando uma bicicleta cargueira da padaria lá do Bom Retiro atrasou alguns minutos mas trouxe os pães pedidos. Enquanto faz a entrega e toma fôlego, ele conta durante alguns segundos os pontos que ainda precisa ir, um distante do outro. Colocou os pães em dois sacos, pegou o pagamento e seguiu para a próxima entrega. Roberta joga um dos sacos nas costas e Vitória leva o outro. Aos sábados a quantidade aumenta cerca de 50%, explica a mineira. Dias de semana são 50 pães franceses e outros 50 de leite. Já aos sábados e domingos, são 75 de cada tipo, totalizando 150 unidades. “Na semana eu pego só 100 [pães], porque o pessoal geralmente vai pra escola, trabalhar cedo. Aí [os que sobram] fica lá em cima e o pessoal vai lá comprar”, explica. Antes de entrar na Prestes Maia, uma pausa para um cigarro. Segundo Roberta, o marido nem desconfia que ela fuma, mesmo com o forte cheiro. Depois de alguns minutos “bronzeando o pulmão”, está pronta para começar o trabalho. Graciele, a porteira do período matutino, filha mais velha de Gau, libera o portão de ferro. Agora é uma maratona. Só para começar, 62 degraus foram vencidos para chegar ao primeiro andar, mas ainda é preciso subir mais um pavimento porque no primeiro andar já tem um mercadinho, e atrapalhar o trabalho dos outros é contra a política de boa vizinha do lugar. “Tanto que já me deram um quarto lá no 33


A e eu não quis... Bem perto da venda da outra mulher. Ia queimar o filme dela e o meu”. Chegando novamente em São Paulo com os três filhos pequenos e sem ter onde morar, Roberta acabou conhecendo o movimento sem-teto por meio de uma colega da época. Na primeira oportunidade que teve, Roberta já participou de uma ocupação no centro da cidade em 2010. Menos de um mês depois, houve reintegração de posse do edifício e a gestão do prefeito Gilberto Kassab acabou concedendo auxílio aluguel para as famílias despejadas. “Aí eram 300 reais de bolsa aluguel. Aí disseram que eu tinha 120 dias para procurar uma moradia, deram uma lista com o nome das moradias que aceitavam. Eu fui morar lá na [rua] Jorge Velho [região do Bom Retiro], numa pensão. Lá eu fiquei trinta meses, dois anos e meio”. Roberta conta que mesmo recebendo a bolsa aluguel da gestão municipal, continuou frequentando as ações realizadas pelo MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro). “Mesmo com eles pagando, eu nunca desisti do movimento. Porque tem gente que recebe e sai fora, só volta quando acaba”, conta. “Aí eu sempre participei das reunião, do grupo de base, sempre estava presente nos atos, manifestação. Sempre participei de tudo”, conta. Depois que venceu a bolsa aluguel, Roberta diz que tentou renovar. Mas era justamente na época de eleição. “Não renovou porque eles falaram que como era mudança de prefeito ficaria como se tivessem comprando meu voto, então não poderia renovar naquele tempo”. Segundo ela, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) concedeu um crédito emergencial de R$ 900 para custear a locação do imóvel, mas, depois que essa quantia acabou, a família não conseguiu mais arcar com o preço do aluguel.


Chegando no segundo andar, com um sorriso entre os dentes ela avisa que está na hora. “Cê vai ver, eu vou gritando”. “Ó o pão, ó o pão...Qué pão, moça”, pergunta para uma mulher que aparece em uma das portas. “Obrigada”, responde a moça. Até agora nada de venda. Enquanto caminha para subir os próximos 19 degraus que chegam ao terceiro andar, Roberta reclama “nossa, eu já tô cansada... É por causa do cigarro”. “É uma chaminé humana. Fuma dois maços por dia”, denúncia Vitória mais que depressa. Roberta não dá papo e corta o assunto da filha. Chegando ao pátio do terceiro andar, ela retoma o assunto do cansaço. “Tô cansada. É porque hoje eu peguei mais pão”, “é por causa do cigarro também”, retruca a filha traquina sem perder a oportunidade de alfinetar a mãe. Uma mulher pede para esperar “um pouquinho”. É a primeira venda do dia e a mineira pergunta se o pão “é de leite ou de sal”. A cliente responte que são cinco de leite. “Faz as conta aí, Vitória, porque minha cabeça tá fraca”, pede à filha de forma ligeira.

ociosos. “No artigo quinto lá da Constituição tá escrito que todo brasileiro tem direito a uma moradia digna e é o que você não vê. Se vai pagar um aluguel você paga 400, 500, no mínimo, 700 reais num quartinho, um fundo dum cortiço e além do mais eles cobram por cabeça a água e a luz”, explica. “Tem muitas pessoas que não entendem, fala assim ‘ah, mas vocês vão lá, invade um prédio que tem um dono’. Não é assim, a gente não tá invadindo nada. Se tivesse invadindo, eu taria invadindo a sua casa que você paga seu aluguel e paga seus impostos. Agora o prédio que tá há dez anos sem nenhuma função social, abandonado com rato, barata e outras coisas. A gente vai lá, pega o prédio, limpa, organiza, e coloca as famílias que tão morando praticamente na rua”, justifica. “Se não fosse aqui, não sei onde a gente taria agora. Ou a gente teria voltado pro Maranhão, mas eu não sou de lá e pra mim não é interessante morar lá. Ou não sei, estaria por aí. Porque eu, particularmente, já dormi em albergue com meus filhos, já dormi na rua”, desabafa, dizendo que a ocupação melhorou bastante a vida da família.

Depois que não aguentou mais pagar aluguel, Roberta conta que foi chamada para ir morar na Prestes Maia. “A coordenadora [do movimento sem-teto] pegou e mandou eu vir aqui pra Prestes Maia. Eu falei ‘tudo bem’”. Mas o susto ainda estava por vir. “Ela falou ‘só que você vai morar lá no 19 [andar]’. Até então, eu via a Prestes Maia só por fora, não sabia que não tinha elevador. Aí quando eu cheguei foi um choque”, conta, dando gargalhada da própria situação. “Eu falei ‘tá bom, fazer o quê? Não tem outro jeito’. Aí vim morar na Prestes Maia. Depois de um tempo, peguei, mudei pro 21 [andar]. Aí eu estou desde 2012”.

“Mas eu faço isso [vender pão] enquanto meu marido não tá aqui. Porque quando ele tá, não acordo cedo, não. Acordo cedo pra mandar os meninos pra escola e depois eu fico dormindo. Durmo até umas dez horas, depois acordo e meio-dia vou trabalhar”, diz Roberta relatando sua rotina diária. Mesmo parecendo fácil ir trabalhar no começo da tarde, ela conta que no dia anterior não foi para a rua porque estava exausta por correr muito do “rapa” (como são chamados os guardas municipais e os policiais militares que apreendem o material de trabalho de camelôs irregulares).

Apesar de não ter diploma, a moradora do 21º andar demonstra que conhece seus direitos e cita que o direito à moradia está na Constituição Federal e diz porque acha justo ocupar imóveis

Enquanto Roberta é responsável por negociar o pão, a filha recebe o dinheiro e leva consigo o estoque se sacolinhas para empacotar

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os pães. “Bom dia! Acabei de acordar”, fala meio tímida uma senhora do quinto andar após abrir a porta de casa. “Tá todo mundo assim, minha filha. Olha minha cara de sono”, brinca Roberta para mostrar empatia com a cliente. “Eu quero seis de leite e seis de sal”, pede a mulher. “A senhora vai levar na mão mesmo? Têm uma sacolinha, Vitória?”, diz à Vitória, que está do outro lado do pátio. Entre uma venda e outra fica bastante visível a diversidade cultural existente dentro da Prestes Maia. Karen, uma menina de aproximadamente 10 anos filha de uma boliviana, sai da sua casa de madeirite no oitavo andar, atravessa o pátio e pergunta à Roberta num português meio embolado, porém, fluente “ô moça, dois reais dá quanto de pão?”. Roberta não entende e pergunta “quanto?”. Karen melhora a frase. “Dois reais dá pra comprar quantos pães?”. “Três pão... de sal?”, questiona. A garota diz que “é”. Para entrar na ocupação é necessário ter um contato lá dentro. Isso é para evitar problemas com desconhecidos e também para acontecer igual ao personagem da história contada por Roberta enquanto subia rumo ao nono andar. “Esses dias eu fiquei com dó de um rapaz. Ele subiu até o 21º procurando uma tal de Carla Roberta que tinha três filhos. Aí o pessoal falou ‘a única Roberta que eu conheço é lá no 21’’. Aí mandaram o cara lá em casa. Aí eu falei ‘mas eu não me chamo Carla’. Aí ele ficou procurando, coitado. Como você quer achar se tem quatrocentas famílias aqui dentro? Se você não tiver o número do quarto e o andar, você não acha”, diz ela dando risada do rapaz que subiu os 21 andares e perdeu caminhada. Depois de longos anos de ter perdido as duas primeiras filhas, Roberta as reencontrou de forma bastante inesperada. “Em 2013 a minha filha veio embora da Espanha, ela fugiu. Falou 38

pro pai que queria passar o aniversário em Belo Horizonte na casa da minha família e da família dele e fugiu e veio bater aqui na ocupação pra ficar comigo”, conta a sem-teto sem esconder a felicidade no olhar. “Aí eu falei pra ela assim ‘ó, filha, eu moro aqui a situação é essa, não tenho luxo, minha vida é simples’. Porque que ela foi criada lá no luxo, né. Aí ela disse ‘mas, mãe, eu sempre tive tudo e nunca fui feliz porque sempre vivi longe da senhora. Então quero ficar aqui’”. Depois de três meses morando com a mãe na Prestes Maia, Tamara foi embora para o Rio de Janeiro, onde mora a avó paterna. Lá casou com um rapaz, com quem teve uma filha e hoje, com 20 anos, mora no Panamá, país da América Central. “Só que ela não tá gostando porque é outro país e é bem distante e não pega televisão, não pega internet, não pega nada”, conta Roberta lembrando das histórias contadas pela filha durante as conversas à distância. Em cerca de uma hora e vinte Roberta subiu cerca de 442 degraus até chegar em casa com praticamente todos os pães vendidos. Só sobraram alguns que foram reservados para tomar café da manhã junto com Vitória e os outros dois filhos que estavam jogando videogame enquanto esperavam o retorno da mãe. “Eu acho muito pequeno esse espaço. Pra cinco pessoas é pequeno”, afirma ela enquanto abria a porta e entrava na singela residência de três cômodos divididos com pedaços de madeira. O pequeno mercado administrado pelo marido fica junto à cozinha. São bolachas, refrigerantes, sal, açúcar, pó de café, sucos, juntinho ao fogão e à geladeira, que também abriga produtos para vender e para o consumo da família. À esquerda, entre a cozinha e o quarto principal, fica o quarto de João Vitor, de 15 anos. Segundo a mãe, como está mais velho, João Vitor gosta de privacidade, por isso o quarto exclusivo, onde dorme com o cachorro da casa. O quarto maior é um espaço onde só cabe uma cama de casal e a um beliche para Vitória e João Pedro, de 11 anos. 39


Orgulhosa, depois de chegar em casa, Roberta pega o celular e começa a mostrar algumas fotos das duas filhas mais velhas. “Aqui tem umas fotos das minhas filhas... Aqui é minha neta, filha da Tamara. Essa é a Tainá, que tava desaparecida... São muito bonitas, né?!”, pergunta, com brilho no olhar depois de ter batalhado tanto para achá-las. “Tem uma aqui que eu fiz questão de tirar os cinco juntos. Essa sou eu, né?! Aí a Tamara, a Tainá, o João, a Vitória e o Pedro. Os cinco filhos reunidos. Acho que a Tamara parece mais comigo. Fiquei muito feliz de ver meus filhos juntos. Tem um mês mais ou menos”. O encontro a que ela se refere aconteceu no aeroporto internacional de Cumbica, em Guarulhos, na grande São Paulo, logo após de ter reencontrado a segunda filha, Tainá, que estava desaparecida há 17 anos. “Liguei pra rádio, televisão, jornal, tudo que você imaginar eu fiz pra tentar encontrar e não conseguia”. Após ser “levada” ainda quando tinha meses de vida, Tainá ficou sem ver a mãe até completar 17 anos. “Eu ia em Belo Horizonte, tinha contato com algumas pessoas da família dessa mulher [que havia adotado a menina], pedia informações e ninguém me dizia nada. […] Continuei vivendo minha vida mas sempre procurando. Tive dez anos de depressão, tomei dez anos de remédio controlado, não conseguia trabalhar, não conseguia cuidar dos meus filho por causa das minhas filhas”.

“O espaço é muito pequeno para cinco pessoas. São três cômodos e um pequeno mercado junto à cozinha”

Depois de prometer que acharia a irmã, a filha mais velha de Roberta encontrou Tainá por meio das redes sociais mas, ela tinha mudado o nome porque havia sido adotada pela segunda vez. “Aí conversando, conversando, conversando, descobriu que realmente era ela. Só que ela tava em Vitória, no Espírito Santo, e minha filha, no Rio, falou ‘mãe, achei. Ela tá lá em Vitória. Ela quer fugir, não quer ficar com essa família que tá com ela’”. A mulher que pegou Tainá ainda bebê para cuidar havia entregado 41


à outra família proprietária de um restaurante na capital do Espírito Santo. Emocionada, Roberta conta que há cerca de dois meses “vinha do serviço e estava bem cansada e daí eu falei pra Deus: Senhor, de hoje em diante eu não procuro mais a minha filha porque eu já procurei tanto e não encontro. Eu vou desistir. E eu chorando muito. Aí fui pra casa, dormi e sonhei que ela chegava lá no meu comércio, sentava, me abraçava e eu começava a chorar. E ela falava assim: mãe por que você tá chorando? Você não sabe que tudo é no tempo de Deus? Deus mandou eu chegar agora e eu cheguei. Me abraçava e cantava um louvor lindo. Aí no outro dia eu acordei toda assim, com mais esperança. Fui na igreja, falei pro pastor e ele me disse: é porque sua benção tá perto de chegar”.

Sem que ninguém percebesse, Tainá não perdeu tempo e fugiu. Ela e o atual marido fugiram juntos para São Paulo. “Chegando aqui em São Paulo eles pensando que não tinha ninguém, encontraram logo a família biológica. Foi Deus”, conta Roberta com o sorriso aberto. Antes de embarcar para o Panamá, Tamara, que estava morando no Rio de Janeiro, disse que gostaria de ver a irmã que perdeu o contato quando ainda tinha dois anos. O sonho de Roberta era ver os cinco filhos reunidos, encontro que aconteceu uma só vez. “E foi lindo, todo mundo junto”, conta ela sem conter tamanha alegria. Agora, para Roberta, falta só um sonho a ser realizado: conquistar a casa própria.

“Onze horas da noite meu filho colocou internet no celular e começou a mexer”, conta. Tainá havia adicionado o garoto como amigo no Facebook e os dois começaram a conversar. Após vários minutos de conversa e muitas perguntas, eles não só descobriram que era mesmo a filha de Roberta, como também souberam que ela estava morando no bairro dos Pimentas, em Guarulhos, cidade da região metropolitana paulista. “Eu quase caí pra trás. Não acreditei, foi Deus mesmo”, relembrou. Após conversarem por telefone, mãe e filha marcaram de se encontrarem em Guarulhos mesmo. Tainá contou que foi adotada de forma ilegal por uma mulher dona de um restaurante no Espírito Santo. A mãe adotiva mantinha Tainá praticamente presa. Além de não permitir que a garota andasse sem sua companhia, a mantinha o dia todo trabalhando no restaurante, de acordo com Roberta. Certo dia, o filho da mulher deixou o portão do estabelecimento destrancado.

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MAUÁ

Julia Chequer/R7


Quem passa pela Rua Mauá, no centro de São Paulo, e não presta atenção, pode não ver que bem naquele local situase uma das mais emblemáticas ocupações urbanas da região metropolitana paulista. Quando se passa pela calçada oposta à estação da Luz, onde ficam instaladas algumas lojas de roupas, bugigangas e lanchonetes, é preciso abrir bem os olhos porque ali se encontra a entrada da ocupação Mauá. Com o número 340 bastante tímido escrito no lado superior direito do portão, o que mais chama a atenção, na verdade, é o conjunto parede e portão de ferro pintados de branco e vermelho. Mistura de cor fria e quente que destoa do tom apagado dos demais estabelecimentos ali existentes, inclusive algumas portas de alumínio hoje fechadas mas que, notavelmente, tempos atrás eram lojas que não resistiram à desvalorização da região que sofre com o alto índice de assaltos e pequenos furtos. A rua Mauá é constantemente palco para dependentes de crack usarem a droga, principalmente quando a noite cai e o movimento de transeuntes também diminui. A prostituição também acontece 24 horas por dia, a calçada está suja o tempo todo, mas no número 340 a situação é bem diferente. Ali encontra-se esperança. "O Perninha entrou aqui agora?", pergunta um rapaz com uma fala meio apressada que chega à portaria da ocupação por volta das 19h de uma terça-feira. Atrás do balcão protegido por uma grade, quem assume a portaria é um senhor de 56 anos, negro, calvo e com cerca de 1,80 de altura, que pergunta "quem é esse tal de Perninha?". O rapaz de shorts, chinelo, 46

boné e um celular em mãos alega não lembrar o verdadeiro nome do homem, diz só saber o apelido. Ele tenta lembrar e nada. Diz que é um "cara" que anda mancando e nada. Mesmo sem informar os dados, o homem pede ao porteiro que abra o portão porque ele precisa "pegar um dinheiro com o Perninha". O senhor, por sua vez, diz para ele usar "o celular para ligar para o Perninha" porque só com o nome do morador e do visitante poderia deixá-lo entrar. O rapaz alega estar sem crédito e mesmo assim fica impaciente no meio do caminho de quem passa. Sem o nome do contato dentro da ocupação Mauá, não há possibilidades da portaria liberar a entrada do visitante. O procedimento é sempre o mesmo. Maria Elisete, que assume o posto de segunda a sábado, das 7h às 19h, é de pouca conversa, personalidade forte e também não dá moleza para os estranhos justamente por nunca saber a índole de cada um. O cabelo curto pintado de louro e a bermuda larga completam o figurino dela, que conta estar desde 2007 controlando o acesso das pessoas à comunidade. De acordo com Elisete, cerca de um mês após a entrada das centenas de famílias no edifício abandonado, ela foi escolhida para ser porteira por meio de uma votação popular durante uma assembleia. “Me candidatei para ser porteira e acabaram me escolhendo. Tô aqui até hoje”. Já o senhor de 56 anos, negro, calvo e com cerca de 1,80 de altura é Nelson Cruz, líder do MMRC (Movimento de Moradia da Região Central). Baiano de Santo Amaro da Purificação – mesma cidade onde nasceu Caetano Veloso – ele já atuou pelo MMC (Movimento de Moradia do Centro) entre 1992 e 1996 e, após deixar a militância por um tempo, acabou fundando o MMRC em 2000, ano em que liderou a primeira ocupação no centro de São Paulo. 47


Após uma reunião entre três membros do MMRC dentro de um espaço amplo usado para exibição de filmes, reuniões, assembleias, etc. Nelson conta que entrou para o MMC depois que veio para São Paulo, em 1990, buscar uma vida melhor, mas as coisas não deram tão certo assim. Morou em Perdizes, zona oeste da capital, São Miguel Paulista, Guaianazes e Artur Alvim, ambos os bairros situados na zona leste. Em todos os casos morou de aluguel. “Só deixei de pagar aluguel mesmo quando eu entrei no movimento. Separei da minha mulher porque eu fiquei desempregado, a situação ficou difícil. Fui morar [nas ruas da] Sé e depois entrei para o MMC”, conta. Ele ainda ressalta que não estar vivo se não fosse o movimento sem-teto, porque muitos colegas que também bebiam cachaça e moravam na rua não estão mais aí para contar história. Em toda a história dos movimentos sem-teto em São Paulo, a comunidade Mauá foi a única ocupação a ser gerida por mais de uma organização. Aliar diferentes siglas no mesmo local, para as lideranças, é uma coisa positiva porque torna a ocupação ainda mais forte. “Para ficar mais forte, mais robusto. Porque a gente sabe que, pra nós, chegar a algum lugar é preciso estar unido. Se você estiver unido, vai longe. Se estiver sozinho, não vai a canto nenhum, né?! Então foi isso que aconteceu e tá aí até hoje. Eu não sei se vai acontecer mais se juntar três movimentos pra fazer outra ocupação. Vai ser difícil”, aponta Nelson.

Nelson Cruz é líder do MMRC

Cerca de 237 famílias vivem hoje no edifício de seis andares. As janelas dos apartamentos do lado interno da estrutura dão vista para um pátio bem no centro do prédio. É ali que todos os dias as diversas crianças que habitam o local jogam bola, brincam de rouba bandeira, pega-pega, conversam sobre tudo. As vozes alegres dos jovens que correm e gritam, ecoam por todo o prédio, principalmente à noite, quando o número de jovens é maior. Mas a regra é sempre a mesma para as ocupações: deu 22 49


horas, hora de parar o barulho. Além de recinto da diversão infantil, o pátio da Mauá também é palco de vários eventos e já virou uma espécie de cartão postal da comunidade. Os Racionais MCs, por exemplo, gravaram no pátio o clipe da música “Mil faces de um homem leal”, dedicada a Marighella. O rapper Emicida também fez o clipe de “Crisântemo” no mesmo espaço. Após passar pela portaria, um amplo corredor arejado também pintado de branco e vermelho nos acompanha na caminhada até uma escada, que fica antes do pátio, e que dá acesso aos apartamentos. No decorrer de toda a subida, do primeiro ao sexto andar, e ao longo dos corredores de todos os pavimentos, as duas cores se repetem.

portas. De acordo com Ivanete Araújo, a Nete, líder do MMLJ, a ocupação durou cerca de um mês porque o proprietário pediu reintegração de posse do imóvel. Em 2007, quando o lixo e as pragas urbanas já haviam tomado conta do edifício novamente, outra tentativa de ocupação. No dia 25 de março de 2007, depois que o MSTC juntou-se à ASTC (Associação dos Sem-Teto do Centro) e ao MMRC, o prédio foi ocupado de novo. Dessa última vez deu certo e hoje abriga 237 há quase dez anos. Assim como o MSTC foi posteriormente substituido pelo MMLJ no Prestes Maia, aconteceu o mesmo na Mauá. Apesar de haver três movimentos dividindo o espaço, o

Logo no primeiro andar há instalado um pequeno mercado, dos próprios ocupantes, vendendo muita coisa que o pessoal necessita. De pão com mortadela até sabonete. Quem não estiver animado para sair de casa, é só ir até lá. As janelas existentes na escadaria, no trajeto de um andar para o outro, assustam por dois aspectos: não possuem vidros e uma criança de até uns cinco anos passaria sem problemas pelo vão. Mãe de crianças pequenas que circulam livremente pela ocupação, Silmara Congo, uma das lideranças do MMLJ e coordenadora do quinto andar da Mauá, garante que não há risco nenhum das crianças caírem porque já são acostumadas com todo aquele sobe e desce. Tudo começou em 2003, quando o MSTC (Movimento SemTeto do Centro) resolveu ocupar o antigo Hotel Santos Dumont, que vinha servindo de moradia de ratos, baratas, pulgas e todo tipo de praga urbana desde 1989, ano em que o estabelecimento encerrou as atividades e fechou as 50

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MMLJ que é o responsável pela “negociação do prédio”. Após sofrer dezenas de pedidos de reintegração de posse ao longo dos anos, a gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) realizou a desapropriação do imóvel, que já acumulava quase R$ 3 milhões em dívidas com o poder público. A gestão municipal fez, em abril de 2014, um depósito judicial de R$ 11 milhões. Mesmo com o valor depositado, um perito judicial avaliou o imóvel em R$ 25 milhões, o que pode fazer com que a prefeitura desista do processo. Como a compra do imóvels ainda não foi concluída, existe a chance das 237 famílias que ali moram serem despejadas. Inclusive, há um pedido de reintegração de posse sendo apreciado pela Justiça baseado na reivindicação do dono antigo hotel e também por um laudo do Corpo de Bombeiros alegando que o imóvel apresenta risco para os moradores por causa da quantidade de ligações irregulares na fiação elétrica. “Aí a gente avaliou o seguinte: se nós estamos em perigo, a cidade toda está em perigo porque o que não falta, principalmente nos poderes públicos, é gambiarra de eletricidade. E se tirar o povo daqui, vai levar pra rua. Qual é o risco maior? Então, tá na luta. A luta continua”, alega Nete, que entre uma fala e outra repete com frequência a frase “quem não luta, tá morto”, sua marca registrada dentro do movimento sem-teto de São Paulo. A vulnerabilidade social das famílias que moram na Mauá, e também nas outras ocupações, é algo latente quando se conversa com cada uma das pessoas. São cidadãos que, mesmo inseridos dentro de um movimento que se apoia principalmente na Constituição Federal para buscar direitos, desconhecem o que estão fazendo ali. “Tem gente, coitados, que tá dentro da ocupação e ele acha que aquilo ali já resolveu o problema dele. Então você vê que ele não conhece mesmo o direito dele. Porque se ele conhecesse, ia dizer: isso aqui não é nada!”, enfatiza Nelson, em frases bem articuladas deixando transparecer seu 52

tom palestrante. Isso fica muito evidente em um diálogo entre Silmara Congo, uma das líderes do MMLJ, e Maria Elisabete, a Beta, de 54 anos, moradora do 5º andar da comunidade Mauá. “Tem gente que chega e fala: eu quero sair daqui pra ir pra um apartamento. Não existe isso. É o que Deus quer. Se disser que tem um barraco ali todo de madeira, a gente vai”, confessa Beta. “Eu não tô numa luta pra morar num quarto de barraco, não”, contesta Silmara. “Mas eu não exijo nada”, afirma Beta. “Mas são direitos, tá lá na Constituição Federal”, retruca novamente Silmara. Para evitar atritos com a líder do movimento, Beta volta atrás. “Sabe o que eu quero? Um apartamento de três cômodos, garagem e já é pedir demais”, diz. “Mas é direito. Eu não quero o mínimo, eu quero o máximo”, encerra Silmara de maneira assertiva. “Porque o direito é ele [o cidadão] ter um teto como reza na Constituinte e que é um direito universal do cidadão ter saúde, educação, lazer e moradia. E cadê isso? Quem é o responsável de proporcionar isso ao cidadão? O Estado. Mas quando o Estado é do povo? Mas como a gente não tem Estado do povo e para o povo, então a gente fica mendigando a esses poderosos que dizem que governam em nome da população”, conclui Nelson, que mesmo estudando só até a 8ª série, conta já ter feito palestras sobre habitação e direito à cidade para estudantes universitários da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e na UFABC (Universidade Federal do ABC). “Ô Luiz Henrique, senta no cantinho pra não atrapalhar o corredor”, pede Divina Cunha, de 59 anos, ao neto de nove anos que brinca com os dois irmãos mais novos no corredor do Shopping Comunidade Mauá, situado a duas portas da portaria da ocupação. O local, que faz parte do terreno do imóvel, é uma pequena galeria com estabelecimentos administrados 53


por moradores do prédio. A maior parte das lojas vende roupas, mas também há quem comercialize bugigangas diversas e até mesmo produto de limpeza. Divina trabalha há um ano vendendo roupas dentro do pequeno Shopping. “Hoje em dia, graças a Deus, eu tenho minha lojinha aí na frente. Mês que vem vai fazer um ano. Trabalhava na rua de camelô. Vendia roupa também. Graças a Deus vai fazer um ano que estou sossegada”, diz ela, com uma voz sempre calma, contando que era camelô de forma ilegal na região do Bom Retiro, onde também vendia roupas. “Depois que eu comecei a trabalhar aqui nunca mais a polícia pegou a minha mercadoria. Então se eu compro vinte peças de roupa lá na rua, com dez minutos eu perco. Se eu compro vinte peças pra vender aqui, as vinte peças eu vendo. Quer dizer que eu não tenho perda, só tenho a ganhar”. Negra e de postura tímida, Divina é parte de um retrato comum nos movimentos sem-teto: pessoas que ocupam prédios vazios por não conseguirem mais pagar aluguel e também por morarem longe do trabalho. Ela conta ter morado na favela Boca do Sapo, situada na região da Vila Joaniza, periferia da zona sul de São Paulo. Saiu de lá porque era longe de tudo, inclusive do local de trabalho, no centro da capital. “Foi porque pra mim vir de lá pra cá é muito longe. São umas duas horas de ônibus, você pode pegar o ônibus daqui pra lá pra você ver. São duas horas. Gastava mais com condução do que com aluguel se você quer saber. Porque aí eu não deixava minhas filhas lá sozinhas, daí tinha que pagar a condução delas também”, atesta. Shopping Comunidade Mauá

Nelson defende que morar no centro é a melhor das opções para o trabalhador. "Na cidade, a gente tem vários instrumento que dá direito à cidade. A cidade nossa não é do povo. A cidade é do povo pra vir trabalhar. Mas abrigo, é na periferia. Mesmo na periferia pagando caro. Porque nego sai da periferia pra vir trabalhar no centro cheio de infraestrutura sendo que ele 54

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poderia morar aqui, mas não mora porque não tem condições”, diz. Com longas explicações e vários exemplos dignos de quem está acostumado a falar em público, Nelson exemplifica. “O companheiro sai da Cidade Tiradentes [zona leste de São Paulo] pra vir aqui pro centro e leva quantas horas? Uma hora e meia? Quanto tempo ele leva pra chegar no trabalho e em casa mesmo com corredor e o escambal a quatro? Não é que não tem que morar lá. Mas tem que morar lá farto de infraestrutura para que ele possa trabalhar lá. Você tá entendendo? Tinha que ter toda infraestrutura pra que saísse de lá pra cá só pra passear. E que também não pagasse condução. Porque se ele pagar condução, ele não vem passear na cidade”, conclui. Divida, então, saiu da favela Boca do Sapo e foi morar de aluguel durante oito anos com as duas filhas, que hoje têm 17 e 26 anos, em um apartamento na rua Frei Caneca, região central. Na época Divina trabalhava como empregada doméstica e com o tempo o preço do aluguel não estava mais cabendo no bolso. “Aí eu fiquei desempregada, fui despejada, morei uns dias na rua porque eu não consegui mais pagar aluguel”, relata. Foi morando na rua que ela conta ter conhecido Nelson, líder do MMRC, que a convidou para ocupar o antigo hotel, em 2007. De maneira categórica, Nete explica que as famílias não enfrentam fila nenhuma para ocupar um prédio em São Paulo. “Chega de fila, né? Fila quem faz é o sistema. Fila quem faz é o poder público, que tem que entrar na fila para conquistar. Aqui não, aqui é diferente”, afirma. Segundo ela, todas as pessoas entram no movimento por meio dos grupos de base existentes nas regiões periféricas e também no centro. Por meio desses grupos, a situação de cada família é avaliada e o coordenação chega a conclusão quem está em extrema vulnerabilidade e pode ocupar. “Essas pessoas vem pra cá [para o grupo de base] e vão entender o que é o movimento, o que é a luta, o 56

que é o critério. Aí na hora que essas pessoas já compreendeu o processo de luta nosso, aí é tirado uma luta [um imóvel a ser ocupado]. A gente vai avaliar a necessidade de cada família. Aí a gente verifica um alvo e ocupa. E essas famílias do grupo de base vem para a ocupação”, explica. Nas ocupações aqui retratadas, o critério para ser beneficiado em qualquer programa social é a participação dentro do movimento que é contabilizada por meio de uma lista de presença existente em todas as atividades. “É importante deixar claro que vai pela participação. Não adianta você entrar na ocupação, trancar sua porta e achar que a vida tá resolvida”, afirma Nete. “Aí tem um processo. Tem momento que a gente luta incansavelmente, toda semana tem coisa. Tem momento que não. É ato, tem que pressionar algum governo, tem que acampar, tem que fazer marcha, tem que ir pra porta [de algum órgão público]. É feito uma lista de presença, existe um sistema no computador, aí vai lá e coloca o nome da pessoa e automaticamente a pontuação dela vai subindo. Quem participa mais, tem chance de conquistar primeiro. Se você participa uma e fica duas sentado, vai mais uma e fica três sentado e o seu parceiro tá lá, é o seu parceiro que vai. Você fica pra próxima. É tipo um Ayrton Senna e um Rubinho Barrichelo”, explica.

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O casal e os filhos moraram cerca de 10 anos na capital paraibana. Como as condições de sobrevivência não estavam nada fáceis, eles acabaram indo morar com a mãe de Cremildo. “Lá não tinha trabalho. Era muito difícil. Aí fui morar com a minha sogra, morei mais de 10 anos com minha sogra. Aí minha sogra faleceu, a gente ficou mais um tempo lá e depois voltamos pra cá”, conta Ailza.

Moradores do quarto 507

AILZA E CREMILDO É no quarto 507 do quinto andar do antigo Hotel Santos Dumont que Ailza Ferreira Lima e Cremildo José dos Santos vivem desde junho de 2014. Com o sonho da casa própria sempre em primeiro plano, o casal vive economizando para um dia conquistar o tão sonhado “cantinho”. É junto com os filhos mais novos, Carol, de 15 anos, e Gabriel, de 12, que o casal divide o espaço de um cômodo. Já a filha mais velha, de 20 anos, se casou e foi morar fora. A segunda filha também mora na ocupação Mauá, mas sozinha. Toda a renda da família vai primeiro para a alimentação e o pagamento das contas mensais e, em segundo lugar, para a poupança. Junto com a mãe e dois irmãos, Ailza já morou em uma ocupação na rua Paula Souza, no centro de São Paulo, no início dos anos 2000. Mas acabou mudando com o marido para João Pessoa, na Paraíba, e acabou perdendo a oportunidade de conquistar a casa própria. “E a minha mãe continuou. Ela foi atendida, conseguiu o apartamento dela através do movimento. Minha irmã conseguiu, meu irmão conseguiu”, conta ela com pesar de não ter o sonho realizado. 58

Na cidade, o casal chegou a ser proprietário de um lava jato de veículos. Mas como o lucro do estabelecimento não estava dando para quitar as despesas acumuladas, o comércio teve de fechar as portas. A principal dívida foi com a Receita Federal: R$ 9 mil. “Então, meu maior desejo quando eu cheguei aqui em São Paulo, era trabalhar e conseguir pagar essa dívida pra mim ter meu nome limpo. Eu só consegui isso quando cheguei aqui na Mauá. Eu comecei a trabalhar, trabalhar e comecei a juntar dinheiro”, revela Ailza. Quando retornou a São Paulo, a família foi morar num cortiço na região do Brás, bairro colado ao centro mas pertencente à zona leste da capital. Pai, mãe, as filhas, todos estavam desempregados. E mesmo assim foram morar de aluguel. “Parece que era uma coisa, a gente encheu o Brás todo de currículo e não conseguimos emprego e meu aluguel já chegando a hora de vencer e eu não gosto de deixar de pagar minhas contas”, conta Ailza já com os olhos marejados. Na comunidade Mauá, a família mora num cômodo onde há uma cama de casal, um guarda-roupa, uma pia, um fogão, uma geladeira e uma televisão LCD instalada na parede. Não há espaço para mais nada. Os dois filhos dormem num colchão no único pedaço de chão que resta vazio. Quando Ailza lembra que as condições da moradia anterior eram ainda piores, onde morava o casal e os quatro filhos, os olhos já marejados 59


deixam as lágrimas escorrer. “Eu vi a hora de pagar o aluguel e não ter dinheiro. O espaço que eu morava era menor que isso, e eu pagava 700 reais, fora a água e luz. No total dava mais de 800 reais. Eu não gosto nem de lembrar”, desabafa com a voz totalmente embargada e interrompida pelo choro. Cremildo, meio desconcertado e com a fala meio tímida continua o relato. Ciente da falta de condições da família continuar morando de aluguel, o cunhado de Cremildo, que já morava na Mauá, contou para eles que o quarto estava vazio. Após conversar com a liderança do MMLJ, que avaliou a situação precária da família, eles conseguiram ir morar na ocupação. “Quando a gente chegou aqui, era quatro filho”, diz Ailza ainda chorando e com a voz embargada. “A gente não tinha nada”. Ela pede desculpas por se emocionar tanto e explica que as lágrimas escorrendo em seu rosto não são de tristeza, e sim de alegria por ter melhorado de vida. “Eu não choro hoje de tristeza, eu me lembro até onde eu cheguei porque eu me lembro de onde eu saí”. Mesmo depois de finalmente se mudarem para o número 340 da rua Mauá, o medo de ficar sem moradia continuaria sendo constante. Quem vive em ocupações de imóveis convive permanentemente com a apreensão de sofrer uma reintegração de posse a qualquer momento. E a preocupação dessas pessoas não é somente de serem despejadas, mas de deixar o imóvel ocupado e não ter para onde ir. Por isso que, juntos, Cremildo e Ailza tomaram a decisão de sempre reservar um dinheiro. Porque se algum dia tiverem de deixar a Mauá, poderão pagar aluguel até as coisas se ajeitaram ou até mesmo começar a pagar a casa própria. “Quando eu cheguei aqui, eu tinha tanto medo do prédio dar despejo, que eu e meu esposo combinamo de juntar dinheiro pra pagar três meses de aluguel em qualquer 60

lugar se aqui der despejo”, explica. “A gente juntou aquele dinheiro e não tirava pra nada porque tinha medo de correr esse risco [da reintegração de posse]. Podia faltar o que fosse que a gente não mexia naquele dinheiro”, conclui a esposa de Cremildo explicando sobre a reserva de dinheiro que possui caso um dia tiverem de deixar a ocupação em decorrência de uma reintegração de posse. Com a mudança para ocupação, a situação da família ficou um pouco mais tranquila só pelo fato de não ter mais de pagar aluguel, somente a contribuição mensal (como os movimentos sem-teto denominam as taxas a título de aluguel cobradas dos moradores) de R$ 180 e também por não ter mais de arcar com as contas de água e luz. Por outro lado, a preocupação ainda morava no desemprego que continuava a assombrar. Mas com o tempo os problemas logo foram resolvidos. “Deus abençoou e depois de um mês que a gente tava aqui, minhas duas filha conseguiu emprego na Caramelo [uma lanchonete situada na rua José Paulino, região do Bom Retiro, no centro]. As duas era de menor ainda. Uma tinha 17 e a outra, 16. Os menino não tinha roupa. Era muito triste”, relembra Ailza. Começando a vida praticamente do zero, a alternativa que Cremildo viu foi ir para as ruas do centro de São Paulo vender água. “Quando a gente chegou aqui, meu esposo não tinha dinheiro pra vender água. Não tinha emprego, colocava os currículo nas loja era a mesma coisa que nada e aí ele disse ‘não, eu tenho que fazer alguma coisa’. Pediu um isopor emprestado, pediu 20 reais emprestado pro Binho, o menino lá de baixo, pediu mais 20 emprestado pro meu irmão e desses 40 reais ele começou a vender água aqui na esquina,” explica a esposa. “Ele começou a vender água, Deus abençoou e no primeiro ano que a gente tava aqui, a gente conseguiu pagar o dinheiro pra Receita Federal. Paguei quase nove mil reais. Limpei o nome. O meu e 61


o dele”, conclui Ailza, que conseguiu quitar as dívidas somente com a renda da venda de água. Atualmente o casal trabalha ilegalmente como camelô vendendo roupas na rua José Paulino. As peças são expostas em cima de um plástico estendido no chão da via. O método facilita a fuga dos agentes da prefeitura e dos policiais militares, que são o famigerado “rapa”, que circulam constantemente pela região e, em caso de flagrante, apreendem toda a mercadoria do vendedor. E mesmo inseridos num trabalho informal e marginalizado, o casal relata já terem sido discriminados pelos próprios colegas de profissão só pelo fato de morarem em uma ocupação. “Quando eu cheguei na rua pra trabalhar de camelô junto com meu esposo a gente falava que morava aqui na rua Mauá, na ocupação, e as pessoa ficava assim, olhando pra gente”, conta Ailza, sinalizando a fisionomia estranha com que as pessoas os olhavam. “Hoje em dia, eles fica tudo elogiando a gente, eles fala ‘nossa como eu queria morar também aqui perto’, porque a maioria pega trem, pega metrô, mora muito distante e outros trabalha só pra pagar o aluguel”. A vida de vendedor ambulante, de acordo com os dois, é cheia de incertezas porque num dia dá para faturar bastante e no outro nada. Só em dezembro de 2015, por exemplo, o “rapa” apreendeu as mercadorias de Ailza três vezes, totalizando um prejuízo de R$ 5 mil. Noutro episódio, Cremildo perdeu R$ 2700 ao ser furtado na Feirinha da Madrugada, na região do Brás, enquanto comprava roupas para revender. “Naquela muvuca, colocaram a mão no meu bolso e pegaram o dinheiro. Lá na frente quando eu fui fazer um lanche, cadê o dinheiro? Era o dinheiro pra eu comprar mercadoria. Agora eu não coloco mais dinheiro no bolso, eu coloco num saquinho e enfio aqui”, explica ele indicando a parde de dentro da cueca, onde guarda o dinheiro destinado às compras. Mas essas incertezas quanto à 62

renda não afetam tanto a família porque a única despesa mensal é com a contribuição de R$ 180 para se manter no quarto 507. O resto dos gastos inevitáveis é só com alimentação. “Minhas colega ainda fica na rua com aquela preocupação ‘eu tenho que vender, eu tenho que vender, eu tenho que vender’. A gente trabalha de camelô e tem dia que a gente vai pra rua e não vende uma peça, só que a gente não fica com aquela preocupação que tem conta pra pagar”, compara Ailza, que revela que dá para faturar uma média de R$ 2 mil todo mês. Enquanto o filho mais novo, Gabriel, está deitado na cama de casal assistindo Eddie Murphy estrelando “O Professor Aloprado” na televisão, Ailza sentada na beirada da mesma cama, que serve como sofá, idealiza como será seu maior desejo: a casa própria. “Eu quero um apartamento com churrasqueira pra poder fazer um churrasco e convidar os amigo no final de semana. Eu quero uma academia pra gente ficar em ordem” e “uma quadra pra gente jogar bola”, completa o marido acomodado ao lado da companheira. Apesar do controle de gastos, a família conta que há pouco tempo transformou o cômodo em que vivem em um espaço melhor. Cremildo lembra que as roupas eram guardadas em caixas de papelão, mas agora eles têm um guarda roupa de madeira comprado há cerca de um mês. Colocaram azulejo para tampar o mofo que tomava conta da parede, tiraram a janela antiga e instalaram uma de alumínio e também colocaram a televisão de LCD na parede. “Porque aqui é o nosso apartamento, né?! A gente pode sair amanhã, mas hoje é o nosso apartamento”, diz Ailza com orgulho de onde mora. A vendedora ambulante ainda lembra que apesar de ser discriminada por ser sem-teto, foi comunidade Mauá que mudou a vida dela e da família. Juntar dinheiro para conquistar a casa 63


ObservaSP

própria no futuro não é a única coisa que se tornou possível. Depois que eles pararam de pagar aluguel e as contas de água e luz, até a alimentação melhorou porque começou a sobrar mais dinheiro no bolso. “A gente come o que a gente quer, se quer comer uma coisa têm dinheiro pra comprar. Antigamente pra eu comer uma pizza tinha que esperar dois meses. Eu pensava ‘meu Deus do céu’. Hoje se eu quiser comer uma pizza toda semana, eu tenho dinheiro”, exemplifica. “Aí eu vou no restaurante com meu esposo de vez em quando, com os menino, porque antigamente eu não ia. Aí eu pago 80 reais, cento e pouco. De vez em quando minha irmã me chama pra ir na churrascaria e eu já pago adiantado. Porque o povo ainda tá com aquilo na mente que a gente não tem condições de pagar e eu falo que eu vou pagar a minha parte”, conta. Além de um dia conseguir conquistar a casa própria, outro sonho do casal é ver os filhos cursando uma faculdade para continuar melhorando de vida. Sonhos simples mas, para alguns, difíceis de alcançar.

CAMBRIDGE


Hotel de luxo no passado, ocupação de luxo no presente. A ocupação do antigo Hotel Cambridge é diferente da maioria das outras existentes no centro de São Paulo. Quando foi ocupado por centenas de pessoas sem-teto na madrugada de 24 de novembro de 2012, o Hotel Cambridge já estava abandonado havia dez anos. Situado no número 216 da avenida Nove de Julho, vizinho do Vale do Anhangabaú e do emblemático edifício Joelma, encravado no privilegiado centro de São Paulo, o prédio passou uma década entregue à própria sorte. De acordo com os atuais moradores, antes da chegada do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro) o edifício era frequentado por moradores em situação de rua, usuários de drogas, vândalos e acontecia de tudo ali dentro daquele espaço sem leis. Além disso, os que ali passavam destruíram e furtaram muita coisa com o objetivo de vender como material reciclável. Quando os sem-teto entraram no edifício naquela madrugada de sábado, tiveram de conviver com o lixo, poeira, roedores, insetos, durante cinco dias consecutivos. Isso porque durante esse período a polícia fez a segurança do edifício caso houvesse alguma ordem para a retirada dos integrantes do movimento, que tomaram posse do imóvel que já havia sido adquirido pela Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) em 2010 para servir como habitação social para famílias de baixa renda. Até a entrada de comida e água foi barrada pelos agentes. O grupo teve de arrumar um jeito de, pelos fundos, puxar a alimentação por meio de uma teresa – como é conhecida a amarração de um pano ao outro que funciona como uma corda. Domingas Maria, a Magali, mora no quinto andar do Cambridge 66

e conta que foi uma das primeiras a entrar no edifício. “Eu fui a segunda pessoa depois da linha de frente, que é uma equipe de cinco a dez homens para abrir [a porta do prédio]. O Fabiano, meu esposo, abriu. Ele é quem mete a marreta”, dá risada enquanto lembra do episódio. “Fiquei cinco dias sem tomar um banho, as polícia tudo aí”. Hoje, Magali tem uma rotina tranquila em comparação ao seu passado dentro do movimento sem-teto, meio em que está há cerca de 18 anos. “Criei minhas filhas no movimento de moradia”. Mãe de três mulheres, Magali já fez parte do MTSTRC (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central) – que foi extinto – e há aproximadamente cinco anos está no MSTC. Dentro do Cambridge já teve uma rotina corrida como coordenadora da ocupação, era braço direito da liderança. “Eu não sabia o que era arrumar uma casa, não sabia o que era fazer uma comida, era 24 horas na coordenação. Duas, três horas da manhã e a gente tava lá pra saber o que aconteceu, o que não aconteceu”, conta ela, relembrando como era resolver as desavenças que aconteciam no prédio. Findado os cinco dias de enclausuramento, os novos hóspedes do Cambridge começaram a agilizar a limpeza do local. Carpetes cheios de pulgas foram retirados, vasos sanitários quebrados recolhidos, móveis destruídos também não ficaram para contar a história. A poeira era grossa para onde se olhava. Após realizarem um mutirão para retirar o lixo do interior do prédio, os sem-teto contabilizaram mais de 60 caçambas de lixo naquele momento. Porém, até hoje, quase quatro anos depois, alguns resíduos são eventualmente retirados durante algumas reformas. “Aqui teve mais de 60 caminhão de lixo pra tirar. Hoje aqui tá um palácio, né?! Nós passava de lado ali na portaria de tanto lixo”, afirma Magali. Após realizada a força-tarefa e depois de muito trabalho para ir 67


acomodando as pessoas, o antigo hotel passou a abrigar cerca de 170 famílias distribuídas entre os 15 andares do prédio. Com uma voz estridente e afirmações sempre ditas de forma articulada e categórica, Carmem Silva, líder do MSTC e uma das lideranças da FLM, diz que o Cambridge só foi ocupado porque o movimento tinha receio dele não ser destinado à moradia social, sendo que à época da ocupação o imóvel já havia sido desapropriado pela gestão de Gilberto Kassab (DEM) e comprado pela Cohab há cerca de dois anos e o local continuava na mesma situação: ocioso. Carmem ainda lembra que foi o próprio MSTC que indicou o antigo hotel à Cohab, ainda em 2006, para ser destinado às famílias despejadas da primeira ocupação do prédio da Companhia Nacional de Tecidos, conhecida como ocupação Prestes Maia, que durou de 2002 a 2007. “[O imóvel] Estava com uma dívida de quase cinco milhões [de reais]. Esse prédio quando foi desapropriado, fomos nós que indicamos, fomos nós que corremos atrás, fomos nós que procuramos o proprietário e aí o prefeito Kassab desapropriou. Mas tudo isso, foi uma indicação do movimento”, pontua Carmem que, dos seus 56 anos, está há 23 inserida no movimento sem-teto. A entrada da ocupação não é ampla como a do antigo hotel. O pequeno portão vermelho, localizado atrás de uma grade colocada para tentar barrar alguma possível entrada inesperada de policiais, por exemplo. Sempre aberto durante o dia, ele fica encostado, é só puxar e entrar. A portaria fica exatamente no espaçoso hall de entrada do hotel e quem sempre está lá durante o dia é Andréia, de 37 anos, uma mulher corpulenta e de dentes separados, que mora com o marido e os três filhos no terceiro andar do edifício. Atrás de um balcão branco, ela sempre recepciona quem chega com um “oi, amigo!” e pergunta onde o visitante vai. Se for morador, não precisa dar satisfação, basta assinar um caderno de presença para marcar o horário de entrada e saída. Quando o carteiro deixa correspondência para 68

as famílias, e a própria Andreia quem entrega. Andréia faz parte de um time porteiros que se reveza durante 24 horas para garantir a segurança da ocupação. Munidos de um monitor com as imagens das câmeras de segurança internas e externas do prédio e um porrete para barrarem algum intruso violento, os porteiros são remunerados através de uma contribuição mensal de R$ 200 paga por família – o valor não foi esclarecido à reportagem. De acordo com a liderança, o valor arrecadado mensalmente é revertido no pagamento do contador, assessoria jurídica, segurança, limpeza, manutenção do circuito de segurança e custos adicionais como instalação de extintores, por exemplo. Buscando se desvencilhar dos frequentes questionamentos acerca da cobrança da taxa mensal, Carmem dá uma gargalhada irônica e busca fazer uma comparação entre a ocupação Cambridge e os condomínios de luxo e até mesmo as entidades vinculadas à Fiesp (Federação das Industrias do Estado de São Paulo). “Olha a minha gargalhada pro Sistema “S”, que é o Sesi, Senai, o Senac, a própria Fecomércio, a Fiesp”, provoca. “Eu quero saber se o Skaf, se a Fiesp, seus impostos, se realmente serve a todo trabalhador como nós servimos”, questiona. Com o tom de voz mais alto, Carmem vai pontuando os aspectos que considera positivo. “Aí eu te digo: vai nesses condomínios aí que as pessoas moram mal, não têm nenhuma segurança e o condomínio custa 700 reais, mil reais... aqui ó, o movimento sem-teto sem ter ajuda de ninguém, tem uma contribuição de 200 reais [por família] revertida em advogado, impostos, contador, limpeza, extintores, nós temos aqui portaria 24 horas, o morador pra entrar tem que assinar, pra sair tem que assinar, câmeras. Aí eu pergunto: quem sabe administrar? o movimento sem-teto. Eu desafio qualquer síndico que cobre 700, mil reais”, diz a líder do MSTC, que conclui afirmando que a receita excedente é revertida numa festa “para que todos usufruam”. 69


Apesar de ter espaços para lazer, a circulação de crianças correndo pra lá e pra cá não é tão intenso como em outras ocupações. Até mesmo na biblioteca, situada junto ao escritório do movimento, no primeiro andar, a presença dos pequenos não é constante. Subindo de andar em andar pelas escadas, já que não há elevador, é possível esbarrar com alguma criança comportada porque o excesso de barulho pode ocasionar até em punição se algum vizinho se queixar à coordenação. Ainda do mezanino é possível sentir o aroma irresistível de bolo assado vindo da bolaria instalada também no primeiro andar. A responsável pelo cheiro é dona Nice, uma senhora negra moradora do décimo andar que, sozinha faz dezenas de bolos por dia para garantir a renda. Os bolos são vendidos na entrada dos fundos do prédio, situada na rua Álvaro de Carvalho, paralela à avenida Nove de Julho. “Gilberto tá na escuta? A cliente comprou dez reais em bolo. Traz troco pra 20 [reais]”, pede Anderson Tenório, o Carioca, a Gilberto, um funcionário da segurança da ocupação, por meio do rádio comunicador. Gilberto traz o troco. “Senhora, obrigado, fica com Deus. Precisando, estamos aí, tá?!”, afirma Carioca, de 37 anos, entregando o pedido à mulher. Como o próprio apelido já diz, Carioca veio do Rio de Janeiro, mais precisamente do Complexo do Alemão, há oito meses para se tratar em uma clínica de reabilitação em Guarulhos, na Grande São Paulo.

Carioca, o porteiro do Cambridge

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Vivendo sozinho e sem casa para morar depois de sair do tratamento para curar o vício em cocaína e cachaça, ele acabou conhecendo o movimento por meio de um dos coordenadores da ocupação e há pouco mais de um mês vive no Cambridge. Carioca conta que foi ele quem abriu a portaria dos fundos, onde dá acesso a um salão de cabeleireiro, um brechó e uma oficina de costura, ambos no mezanino, que são fonte de renda de algumas famílias que nem precisam sair do endereço para


trabalhar. O dinheiro circula ali dentro mesmo. Com a convicção de que é simpático – e é mesmo – ele fica na portaria só para recepcionar quem passa para ir aos estabelecimentos internos e atender quem vai comprar bolo de chocolate, fubá, baunilha, etc. por R$ 2 o pedaço. “As pessoas gostaram de mim, entendeu?! Sou sincero e sou um moleque maneiro graças a Deus”, diz ele convencido sobre sua personalidade contando como foi rápido o envolvimento com o pessoal do prédio. O silêncio nos pavimentos é quase constante, não há muita agitação. Quando alguém conversa, a voz ecoa. Mas nem sempre foi silêncio nas dependências do hotel Cambridge, fundado nos anos 50. Por ali passavam hóspedes famosos e a agitação era constante. “Eu passava aqui e nunca me imaginava morando aqui, ainda mais quando era o hotel. Ficava dois seguranças aqui, tinha um toldo. Uma vez tinha tanta criança nessa porta que eu perguntei ‘moço o que tem hoje? É dia das crianças?’, ele falou ‘é porque o Balão Mágico tá hospedado aqui’”, conta uma moradora do quarto andar enquanto fazia uma visita à oficina de costura. “Aqui tinha caixas e caixas de fotografias dessas pessoas da alta sociedade. Eu lembro bem das fotos daquele que era lutador de boxe... o Maguila. Tinha da Hebe Camargo, várias pessoas da Globo, Elke Maravilha, Roberto Carlos, tinha foto desse povo grande”, lembra Maria das Neves, que trabalha na oficina de costura, logo após ocupar o edifício, em 2012. Mesmo desativado em 2002, até os dias de hoje existem traços do que um dia foi um hotel de luxo. O próprio Carioca conheceu a ocupação e o movimento sem-teto depois de ser contratado para tirar uma banheira instalada numa antiga suíte. Para fazer trabalhos coletivos nas dependências do prédio, são realizados mutirões dos homens e também das mulheres. O primeiro é para serviço pesado, como quebrar paredes ou 72

Maria das Neves


carregar peso. Já o das mulheres é para limpeza, por exemplo. A banheira retirada por Carioca no 11º andar, de tão pesada, precisou ser levada para baixo durante um mutirão dos homens numa manhã de sábado. Foram dois grupos de quatro homens cada, em sistema de revezamento, para levá-la até o térreo. Os homens calculavam que estavam levando mais de 200 quilos escada a baixo. Algumas gotas de suor escorreram. Chegando ao térreo o serviço não tinha acabado. Precisava realizar a manutenção do esgoto. Para esta atividade mais leve, porém suja, mais pessoas participavam. Eram cerca de 15 homens para lá e para cá. Uns faziam mais, outros menos, mas no final todos assinam uma lista de presença que contabiliza a participação de cada um nas atividades do movimento. Quando alguns moradores forem contemplados com o financiamento da casa própria, por exemplo, os que tem mais participação – em mutirões, em manifestações, limpeza, contribuição paga em dia – são os escolhidos a receber o benefício. Como o prédio já foi desapropriado pela Prefeitura e o MSTC desenvolveu um projeto de habitação – que já foi aprovado –, o Cambridge será reformado e após terminado os trabalhos, 121 famílias permanecerão no edifício que terá as unidades financiadas por meio do Minha Casa, Minha Vida. A participação será o critério usado para determinar quem fica e quem sai. “As outras famílias, se tiverem participação, são indicadas para outros projetos do movimento. Ela nunca fica desamparada”, atesta Carmem. Discriminação “Você é discriminado em vários lugares, várias situações. Quando você chega para procurar um serviço, eles falam ‘você mora onde?’, quando você fala ‘eu moro na Nove de Julho, 217’, ‘mas é o que lá? Próximo do quê?’, quando cai no sistema e sabe que é uma ocupação, esquece. Eles tem a visão que é tudo 74

baderneiro, tudo vândalo, tudo usuário de droga e não é. Só que é o mundo aí de fora que tem essa visão da gente”, narra Magali simulando um diálogo entre um empregador e um sem-teto procurando um trabalho formal. O preconceito por ocupar um prédio que não exerce função social, é um dos pontos mais latentes dentro das ocupações. Muitos sem-teto tem histórias para contar em que já sofreram discriminação ou sabem de alguém que passou por isso. Durante mais de uma hora de conversa, o assunto que deixou Magali mais indignada foi sobre exatamente esse tema. É de dentro do seu apartamento pequeno e bastante organizado, que Magali fala sobre o que já passou durante os 18 anos que está no movimento sem-teto. Sentada no sofá seminovo situado em frente à televisão LCD de 42 polegadas, a ex-coordenadora do Cambridge conta que um dos piores episódios que já sofreu foi quando um antigo patrão soube que ela era integrante do MTSTRC. “‘Quer dizer que você é uma invasora, ocupa prédio no centro da cidade? Você acha isso certo? Se eu soubesse disso não tinha te registrado’”, fala em tom ríspido imitando o ex-chefe. “‘Isso é um bando de vândalo, gente sem o que fazer, bando de vagabundos. Os prédios não são de vocês, os prédios têm um dono’”, completa ela relembrando os tempos que trabalhava na limpeza da maior empresa de envio e recebimento de correspondências do Brasil. Para Carmem Silva, o preconceito parte da imprensa, do poder público e da Justiça que, segundo ela, não se aprofunda na causa dos sem-teto. “Por incrível que pareça o preconceito vem de quem não deveria vir, que é de alguns seguimentos do poder público, da polícia, e da grande mídia. O preconceito que eu sofri veio de quem deveria estar aberto a entender que direito, principalmente o da moradia, não é privilégio. Direito é fundamento”, explica. “A Justiça não fundamenta, não tem 75


conhecimento ou não quer se aprofundar na causa da não função social da propriedade. E então o que ocorre? Eles impregnam na sociedade que o trabalhador sem-teto quando ele ocupa, ele tá fazendo uma coisa errada. E a gente tá tão vulnerável, que acha que aquilo que estamos fazendo certo, é errado. Que a gente tá, na realidade, é denunciando a falta de política pública. Quem tá errado é o Estado. Quem tá fora da lei, é o Estado, é o proprietário que deixa a propriedade abandonada, é proprietário que não exerce sua função de gozar, a função de alugar, a função de dar, a função de emprestar. Então, o proprietário ele está totalmente errado. O Estado não faz prevalecer aquilo que é do Estatuto da Cidade, da Constituição. O Estado não faz aquilo que é de obrigação dele”, defende Carmem, batendo na mesa de seu escritório a cada término de frase. DAS NEVES É no mezanino do antigo Hotel Cambridge que fica a oficina de costura da ocupação gerida pelo MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) desde 2012. O cheiro de bolo assado pode até nos guiar para o andar superior, onde fica a bolaria do prédio, mas se o objetivo for mesmo consertar algumas peças de roupa é preciso entrar à direita da porta do elevador desativado e resistir à tentação que vem de cima e chega a fazer os estômagos vazios roncarem. É num pequeno espaço que dá vista para a portaria do edifício que fica uma das pessoas mais visitadas da ocupação. Basta passar algumas horas ali para comprovar. Alguns entram para entregar alguma roupa para reforma e ficam ali para bater um papo. Outros passam mesmo só para jogar conversa fora. 76

“Meu nome é Maria das Neves. Mas eu gosto de ser chamada só de Das Neves”. É assim que se apresenta a costureira da ocupação Cambridge, uma maranhense de 61 anos que desce de segunda a sexta lá do quarto andar para assumir a oficina. De cara Das Neves revela ter uma história de vida digna de um filme. “Olha, se eu fosse contar minha vida dava uma história. É um romance”, diz aos risos. Enquanto Das Neves mede, dobra, corta e costura as encomendas deixadas pelos moradores do prédio, a trilha sonora vem lá da 77


portaria, onde a porteira ouve uma famosa rádio que toca sucessos de duplas de sertanejo universitário.

e escrever e ficou morando até os 10 anos, quando a mãe pediu a filha de volta para ajudar nas tarefas domésticas e da roça.

Nascida no município de Coroatá, no interior do Maranhão, Das Neves cresceu longe dos grandes centros urbanos e acostumada com a difícil rotina da roça, onde “se olha vasto e só tinha carnaúba (árvore típica do nordeste brasileiro) e o gado no campo […] Na época das chuvas era muito cheio e na época do verão era muito seco. Era campo a perder de vista”.

Entre a medição de uma e outra peça de roupa, Das Neves confessa que não queria ter casado aos 18 anos. “Muito nova”, dispara. O verdadeiro sonho dela era ir para São Luís, capital do Maranhão, estudar advocacia. Mas a mãe nunca permitiu que a filha saísse de Coroatá porque ficaria sem mão de obra para ajudar em casa e também tinha medo de ela engravidar na cidade grande. “Minha mãe disse assim ‘eu não posso te tirar pra estudar porque eu não dou conta de trabalhar sozinha’, e realmente não dava”, narra.

Quando ainda era criança, a mais velha de cinco irmãs faleceu vitimada pela rubéola, que se desenvolveu ainda durante a gestação e a deixou paraplégica. Com a morte da irmã, Das Neves passou a ser a mais velha e também sem nenhuma presença masculina – sendo só a mãe, avó, e as quatro garotas. “Eu mesma não me criei com muita presença masculina. Era só mulher e a gente fazia de tudo”, conta ela com seriedade no olhar explicando que o pai morava na mesma região, porém, era um sujeito bastante “safadinho” e não as assumiu. Por conta disso, ela e a irmã mais nova, que sempre andavam juntas, cresceram acostumadas a realizar tarefas da roça tradicionalmente direcionadas aos homens, como cuidar dos animais, das plantações, como também trabalhos “do lar” costumeiramente realizadas pelas mulheres. “Quando chegava no período de janeiro a fevereiro as vaca paria e depois a gente prendia elas pra ordenhar. Como era nascida em campo, a gente aprendia tudo. Eu andava a cavalo com o cabelo esvoaçante”, conta relembrando alegre dos tempos em que “era bem jovem” e tinha os “cabelos longos, pretos”. “Esse tempo eu parecia índia”. Ainda durante a infância foi para a casa de uma tia que tinha melhores condições financeiras para criá-la. Lá aprendeu a ler 78

Com apensas 18 anos, Das Neves casou-se com o terceiro namorado, depois que a mãe brigou por causa de dois relacionamentos anteriores. Já que a matriarca da família não permitia que a filha mais velha estudasse, ela aceitou se casar porque estava cansada da vida que levava. Após o matrimônio, mudou-se com o marido para o povoado de Beira da Baixa, próximo a Coroatá. Foi quando finalmente parou de realizar os serviços “de homem” que fazia quando morava com a mãe. Todas as tarefas relacionadas à vida no campo, como cuidar dos animais e da plantação, ficaram sob responsabilidade do marido. Aos 19 anos veio a primeira filha e os outros vieram todos na sequência. Quando nasceu a quarta filha, a família mudouse para São Luís para buscar melhores condições de vida. Na capital maranhense ainda nasceu o quinto filho. Mas o destino reservou uma tragédia para a família. Quando o filho caçula estava com apenas seis anos e a mais velha com 13, o marido de Das Neves, que trabalhava numa fábrica de gelo, faleceu depois de sofrer um infarto enquanto trabalhava em Natal, capital do Rio Grande do Norte. “Eu fiquei com os filho 79


pequeno. Aí começou o calvário de novo”. Para criar os cinco filhos sozinha, aos 33 anos, não foi nada fácil. Para continuar colocando comida dentro de casa, a senhora de sorriso aberto que hoje está com 61 anos trabalhou vendendo perfume, foi faxineira, lavadeira, costureira. “De tudo eu fazia!”, atesta. Após a morte do marido, a mãe de quatro filhos resolveu fazer supletivo para terminar os estudos até o ensino médio e depois fazer um curso de técnica de enfermagem, que era particular. Foram dois anos fazendo estágios, trabalhando para sustentar a casa e investir nos estudos que era promessa de uma vida melhor. Mas o destino daria outra rasteira em Das Neves. No último ano do técnico, foi demitida do emprego em que trabalhava como faxineira e, assim, não teve mais condições de pagar o curso. Uma cliente moradora do Cambridge vai à oficina cobrar se Das Neves arrumou o vestido que ela havia deixado. A roupa era para uma festa que aconteceria em três dias, um sábado. A vestimenta ainda não estava consertada. A mulher pressiona, fala que precisa o mais rápido possível porque vai lavar, mas não tem negociação. A costureira está ocupada com algumas camisetas de um rapaz encomendadas há aproximadamente um mês. O vestido ficará para o dia seguinte. Enquanto prega alguns botões em uma camisa, Das Neves relata como mudou-se para São Paulo há dez anos. “Uma das minhas menina era bem esforçada, estudiosa. E eu com uma vontade de ajudar ela e o dinheiro não dava”, conta da filha mais velha que estudava muito, de acordo com a mãe. Quando a garota estava com 20 anos, uma amiga que já morava em São Paulo foi a São Luís visitar os parentes. “Ela foi lá em casa e disse ‘olha Das Neves, se eu fosse a senhora mandava uma das suas filha pra lá [São Paulo]. Sabe, não é bom porque eu chorei muito quando fui. Mas é bom porque arruma trabalho’. Aí essa minha filha, 80

que era muito estudiosa, desejou vir. Meu coração apertava”, narra a história. Depois de muita indecisão se deixava a garota mudar-se para a capital paulista ou não, a resposta foi positiva. Após mudar-se para a terra da garoa e ir morar com a amiga, a garota seguiu os passos da mãe: fez um curso de técnica de enfermagem. Quando estava quase desistindo de São Paulo e voltando para a capital maranhense porque estava difícil conseguir emprego, ela foi contratada pelo Hospital São Paulo, situado na zona sul da capital. Depois do falecimento da mãe, em 2004, Das Neves ficou muito abalada e foi a São Paulo visitar a filha que já estava morando sozinha. O intuito seria ficar junto à filha somente dois meses, mas acabou ficando cinco. “Voltei [para São Luís] com o coração partido”, diz ela enquanto continua trabalhando. O gosto pela capital paulista foi tão grande que em julho de 2006 Das Neves voltou, mas agora para morar. E ainda levou duas netas. Com a vinda da família, a filha enfermeira alugou uma casa para todo mundo morar junto na região do Jardim Miriam, periferia da zona sul de São Paulo. Quando outra filha de Das Neves também saiu do Maranhão com o marido para morar com a mãe, a casa ficou mais cheia e com o tempo todo mundo foi se separando novamente. Com três anos que estava em São Paulo, Das Neves alugou uma casa e foi morar sozinha. Para sobreviver, já trabalhava com conserto de roupas e, pela experiência acumulado durante os anos que fez estágios em hospitais de São Luís, também começou a trabalhar como acompanhante de idosos para complementar a renda. Antes de ir morar no antigo Hotel Cambridge, ela morou sozinha em três casas diferentes. Com a agulha em uma mão e uma peça de roupa em outra, 81


Das Neves está sentada e com óculos no rosto realizando seu trabalho. De repente, para o que está fazendo e fica pensativa por alguns segundos. “Às vezes eu me pergunto assim: por que eu lutei tanto e não consegui mudar? Não consegui ter uma casa, não consegui ter um bom emprego e eu sei fazer um monte de coisa. Eu fico me perguntando se foi eu que não tive muita iniciativa ou se foi a vida que, pra uns é fácil e pra outros é bem complicada. Eu paro pra pensar”, e em seguida fica alguns segundos sem falar nada para segurar a emoção. “Eu já sabia que tinha ocupação, mas eles chamavam de invasão. E eu tinha medo que só faltava morrer”, fala em tom bastante acentuado. “Diziam que era só traficante, que matava, fazia acontecer. E eu não sabia de nada disso porque na minha terra não tinha. Aí me contavam essas histórias, né?! O que eu ia pensar? Só tinha medo mesmo”. “Até que o aluguel foi ficando caro e eu sem condições. Era 700 reais a casa que eu morava”, lembra ela que, com o passar do tempo não estava mais conseguindo pagar o aluguel no Jardim Miriam, além das contas de água e luz que pagava à parte. “A gente paga transporte, tem a alimentação, não é só o aluguel”. “Quando foi em 2012, o negócio apertou”, afirma. Nesse ano, a amiga Rose, que também mora no Cambridge, conheceu o MSTC e acabou influenciando Das Neves, que já havia imaginado como seria bom morar no centro de São Paulo. “Uma vez eu passei aqui no centro e falei ‘ai como seria bom se eu morasse aqui’, ainda mais aqui na República que eu achei a coisa mais linda”, relembra. Rose havia conhecido o movimento por meio de uma placa no centro de São Paulo informando que, quem estivesse sem moradia, procurar o movimento, de acordo com Das Neves, que foi 82

convidada pela amiga a também fazer parte de uma ocupação. “Aí ela [Rose] disse ‘vai ter uma festa que eles disseram’, ‘festa como menina?’, que era a ocupação, eu não sabia que [chamava de] era festa. ‘Que festa, menina? Festa pra quê?’, ‘Não, não sei, eles disse que vai ter uma festa porque vai ocupar um prédio’, ‘Ah não, mas eu não vou, não’. Aí ela disse que era tal dia”, narra a história Das Neves relembrando quando Rose a chamou para a festinha, como são chamadas as ocupações no jargão dos movimentos sem-teto. Como é muito apegada à amiga, Das Neves disse que quando ela fosse, para chamá-la, mesmo com o receio em ir morar num prédio abandonado. “Aí a gente veio”. Quando chegaram ao antigo Hotel Cambridge, no início da manhã, o prédio já havia sido ocupado por um grupo de sem-teto que entrou durante a madrugada. Por causa dos policiais que faziam vigília na Avenida Nove de Julho para ninguém mais entrar no edifício, Das Neves e Rose conseguiram acesso por uma porta dos fundos, onde não havia policiais. “Aí nós entramos e ficamos aqui cinco dias porque não podia sair […] E a gente aqui com fome, sem água pra tomar banho, comendo só uns biscoitinho”, relata. Foram cinco dias até a polícia deixar o local e as coisas se acalmarem e o MSTC dominar o espaço de vez. “Mas pensa que ficou todo mundo parado? Não! Enquanto isso nós já fizemo uma recife de lixo aqui”, aponta para o hall de entrada, onde está instalada a portaria, contando a montanha de lixo que ali foi acumulado. “Aí começamo a arrancar carpete, trazer mesa velha [dos andares superiores], tudo era coberto de lixo. Todos os cômodo tava montadinho. Só o que os vândalo mexeram. Mas as cama, que não interessava a eles, os colchão, as cortina pendurada, os banco jogado que eles só foram tirando do lugar, as pia todas quebrada, os vaso todos quebrados. Não sei pra que quebrar vaso. As pia eles quebravam pra tirar aquele 83


Quando a polícia foi embora, os sem-teto começaram a se organizar para tirar todo o lixo do prédio, ir ao Mercado Municipal de São Paulo pedir restos de alimentos para fazer comida para os ocupantes e isso chocou muito Das Neves. “Aí nós tivemos que pedir. Aí foi nessa hora que me apertou. Eu disse ‘eu não sei pedir, eu nunca pedi’”, relembra como ficou assustada. “E eu pensava ‘meu Deus o que eu tô fazendo aqui? Não vou ficar aqui, não vô’. Esse monte de gente, tem uns que fumava, você ficava doida de tanto cigarro. Misericórdia. Fedor de esgoto, o pó, e ainda tinha o cheiro de cigarro”. Mas agora, depois de quatro anos de ocupação e o fim do preconceito antes existente, Das Neves só faz elogios à ocupação e conta com a articulação dentro do MSTC para um dia conquistar o sonho da casa própria. Apesar de não mensurar quanto consegue lucrar com a oficina de costura, ela considera uma grande ajuda. “Mas eu agradeço tanto a Deus, porque em cada etapa da vida eu sofri, mas eu passei. Hoje eu olho pra trás e digo ‘mas será que foi eu quem passei tudo isso mesmo?’ Eu me sinto uma vitoriosa, apesar não ter casa pra morar. Mas eu ainda não desisti. Tô feliz porque eu tô com a mente lúcida. Tô trabalhando com 61 anos, não me sinto uma mulher incapaz. E tô com meus filhos todos criados, meus netos criados e, então pra mim é uma felicidade muito grande. Não tenho uma casa, não tenho um bom salário, vivo trabalhando aqui nessas coisinha pra manter. Tem dia que eu não tenho dez reais, tem dia que eu não tenho um real e não tenho vergonha de falar. Mas eu sento aqui e não demora e aparece. Aparece dez, vinte, vai surgindo e eu vou trabalhando”, conclui. 84

VIDA EM Ocupação

negócio que veda, que hoje é de plástico ou então inox, essas era de metal e eles tiravam pra vender”.


Mutirão da limpeza da ocupação Prestes Maia

Imigrante boliviana da ocupação Prestes Maia


CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho, nas idas e vindas das ocupações, busquei mostrar quem são as pessoas que moram em prédios totalmente abandonados no centro de São Paulo, a maior cidade da América Latina, onde o jogo de interesses é muito grande. Um lugar onde degradação e luxo ficam lado a lado. Onde quem tem pouco para comer é obrigado a conviver com quem pode escolher com qual carro vai sair da garagem. Muita desigualdade em um só espaço. Dentro das ocupações Mauá, Prestes Maia e Cambridge, este jornalista viu e viveu bastante coisa. De se surpreender com o quão arrumados e espaçosos são alguns quartos do Cambridge até se assustar com a sujeira e degradação existente no edifício Prestes Maia. Mas confesso que com um aspecto não me surpreendi tanto assim: quem encontraria dentro desses imóveis que antes de abrigar vida humana, eram casa de ratos, baratas, pulgas e demais pragas urbanas. As pessoas, na maioria das vezes, são receptivas, olham para você para cumprimentar. Comportamento típico de quem já passou dificuldades na vida e sabe fazer amizades é primordial para momentos em que a necessidade aperta. Mas também há quem não cumprimente. Esses, talvez, são os que levaram muitos baques durante a vida. Como Gau, a coordenadora do Prestes Maia, que é durona porque, de acordo com ela própria, já foi estuprada diversas vezes pelo padrasto, estuprada por um taxista uma vez, já usou todo tipo de droga, já foi traficante, já roubou, já foi presa na antiga Febem, já vendeu bala em ônibus para sustentar os filhos, morou na rua, 88

e, durante as entrevistas para esse trabalho, trabalhava como faxineira. Foi Gau quem me apresentou o Prestes Maia e, quando a vi pela primeira vez, percebi seu jeito durão, mas consegui conquistá-la e perceber que ela é como os demais ali dentro: sempre aberta a conversas e risadas. Todas as vezes que eu circulei pelo Prestes Maia, por exemplo, conversei com algum estranho. Em meio a uma cidade tão desigual, as ocupações apresentam um clima bastante horizontal e quem não respeita a horizontalidade acaba ficando para trás, visto que os mais sossegados e menos participativos são os que ficam para trás em momentos de receber o tão sonhado financiamento da casa própria por meio de programas sociais, por exemplo. Enfim, nas ocupações são muitos mundos dentro de um só. Pessoas de várias realidades diferentes mas com um único problema: não ter uma casa própria na cidade onde, na teoria, o número de imóveis vazios poderia abrigar os sem-teto que aqui vivem. São pessoas que romperam a ordem da urbanização da metrópole, que faz os pobres morarem nas periferias. Eles desafiaram a regra imposta pelo mercado imobiliário e foram habitar o centro, onde há emprego, escola, lazer, hospitais etc. Ao contrário do subúrbio, onde o acesso a serviços básicos muitas vezes é escasso. Mesmo encontrando os cidadãos que mal sabem dialogar acerca dos interesses do movimento sem-teto devido à vulnerabilidade social em que se encontram, é possível considerá-los guerreiros pelo fato de saírem às ruas todos os dias para trabalhar, sustentarem suas famílias, e terem consciência que, apesar das dificuldades, a única receita da sobrevivência é lutar sempre e não desistir nunca. E também há aqueles que estão dentro dos movimentos, buscam entender os meandros das negociações políticas e sabem muito bem onde querem chegar: à casa própria. 89


Orientação Marcello Rollemberg Diagramação Thalita Azevedo Fotografias Gabriel Caetano Osasco, 2016


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