AGROFLORESA
PARA QUEM TEM A NATUREZA COMO MESTRA
Os princípios da agrofloresta recordam os versos de Cio da Terra, canção do Milton Nascimen to e Chico Buarque. Os poetas cantam que é pre ciso “afagar a terra, conhecer os desejos da terra” para poder “fecundar o chão”.
No Vale do Capão - Chapada Diamantina, Bahia - o que não falta é gente da terra, que trabalha aprendendo com essa dinâmica.
Nesta reportagem, traçamos dois perfis de agrofloresteiros dessa região.
TEXTO E IMAGENS
Thalita Lima
MORADA DO MIUAN: QUINTAL PRODUTIVO PARA MULHERES
A agrofloresta da Mara, na Morada do Miuan, é um quintal grande de família, que abriga seus pais, irmã e três filhos. Os ancestrais da Mara são da região da Chapada Diamantina e sua vivência no campo começou na infância, vendo sua mãe tirar da roça o alimento para o café da manhã ou para a sopa da noite.
Batizou seu quintal com o nome de “miuan”, uma árvore grande cujo tronco é mais resistente ao fogo e às queimadas e protege outras espécies.
Mara é circense des de criança e, graças ao circo, pôde viajar para outros cantos do Bra sil. Mas foi depois da formação em Educação no Campo que ampliou sua consciência sobre o lugar social das mulhe res na agricultura e for taleceu uma postura de valorização da produção local.
Tudo isso ela me conta com o café que vem da sua roça, torradas com molho pesto de manjericão do quintal e pão de queijo com ingredientes de produtores locais.
O interessante é en xergar as pequenas ati-
tudes anticapitalistas em prática: valorizar ao máximo a economia lo cal e entender o tempo da natureza para guiar o consumo.
“A gente tem mania de querer comer manga o ano inteiro, mas o seu corpo não precisa de manga o ano inteiro”, explica Mara. Respeitar esse processo é o mais importante, ao invés de forçar a natureza a pro duzir algo que ela não consegue naquela estação e que o seu corpo não precisa.
“A manga vem quan do o tempo está quente e seu corpo necessita de fibras, já a laranja dá muito no inverno e te ajuda quando o organismo pede vitamina C. Esse entendimento é a essência do viver em harmonia com a nature za.”
Para Mara, um dia co mum inclui a prepara ção de um almoço com abóbora e ora-pro-nóbis do quintal, saladas com três tipos de alface, pe pinos, tomates, e a família reunida na cozinha do jamelão, um fogão a lenha ao ar livre embaixo de um pé gigante de jamelão que o pai dela plantou.
Sua família tem origens negra, indígena e portuguesa, mas é o tra ço negro que se destaca no fenótipo de todos. Ela conta que sua avó paterna era parteira no Vale e foi de quem herdou o interesse pelas er vas medicinais, também presentes no quintal.
Carrega o desafio de congregar saberes ancestrais e científicos. Seu pai é pedreiro e artífice e, enquanto conversávamos, construía a casa da irmã no mesmo terreno.
Às vezes ele acha graça quando ela deixa o mato crescer na horta, o que para o seu conhecimento rouba o adubo, mas Mara já entende esse crescimento como parte da dinâmica.
“A gente tem mania de querer comer manga o ano inteiro, mas o seu corpo não precisa de manga o ano inteiro. Esse entendimento é a essência do viver em harmonia com a natureza.”
No quintal convivem assim: horta e comida por toda parte, raízes, verduras, PANCs (plan tas alimentícias não convencionais), entre elas azedinha, ora-pro -nóbis, peixinho, ser ralha, quiabinho; além das árvores que carac terizam a agrofloresta: jamelão, manga, laranja, milho, café e muitas bananeiras, as musas da agrofloresta.
SISTEMA EMBRAPA E FOSSA DE BANANEIRA
Duas técnicas ajudam a produção do quintal da Mara. O sistema Em brapa consiste no consórcio entre lugar para peixes mais horta e gali nheiro. As plantinhas da horta que não servem para consumo viram ali mento para as galinhas, que devolvem com car ne e ovos para a casa, além de adubo orgânico que volta pra horta.
Os peixes no pequeno lago em ctambém conso mem o que tem na hor ta. A água do lago serve para regar as plantas, processo que atualmen te faz de forma manual. As crianças também adoram essa piscina na tural de lama com vista para montanha!
Já a fossa da bananeira é projetada para receber e filtrar os dejetos do banheiro. O tamanho da fossa é calculado de acordo com a quantida de membros da família. Constrói-se a base com entulhos, brita, areia e terra. Por cima, a bana neira é plantada, num
lugar com luz solar ao menos parte do dia.
Por evapotranspiração, a água sobe e é filtrada no caule da bananeira, que sua e libera essa água através das folhas. Assim, não contamina os lençóis freáticos e a banana também pode ser consumida.
CAFÉ
O café ocupa lugar afetivo no quintal. Este cultivo é muito popular na região da Chapada Diamantina, os cafés da qui são considerados um dos melhores do Brasil.
A família de Mara to mava o próprio café des de que ela era pequena, e agora eles tentam re tomar o hábito. Sua mãe entende de todo o processo, da colheita, seca gem, pilagem e queima.
O processo de chegar ao pó é árduo, Mara me explica. Eles cons truíram um forno onde queimam esse café pila do e investiram também num moinho.
O cultivo dá café de ano em ano e eles fazem o processo num tanto que serve para a família usufruir por um mês e oferecem também para alguns amigos, que só tomam do café todo es pecial deles.
O quintal comunica o que precisa e deter mina a rotina de plan tio junto ao calendário lunar. “Agora, quando a lua está crescente, a gente fica mais na horta, para plantar. Quando é lua nova, preparamos o solo, colhemos. Na lua minguante, plantamos raízes, como aipim, ba tata doce, cenoura, beterraba.”
Para Mara, plantar está na essência de cada um. A construção do seu quintal funciona é também processo de cura pessoal. Seu sonho é en tender mais dos processos, solidificar sua edu cação financeira, tornar a horta sustentável e ver o seu quintal crescer junto a tudo que já é tão fértil ao seu redor.
EDUCAÇÃO AGROFLORESTAL
O sítio Água Viva, do Guio Ramos, é um es paço de aprendizado em campo das técnicas agroflorestais.
Recebe amantes da terra de diferentes ní veis de experiência interessados em aprender a plantar comida de for ma sintrópica.
Guio é agricultor e educador. Foi arrebata do pela botânica e pelo prazer em colocar a mão na terra logo quan do plantou as primeiras sementes em uma ca
lourada da Universida de Federal da Bahia, no curso de biologia.
Sua primeira e maior inspiração é o mestre Ernst Götsch, agricul tor e pesquisador suíço. Ao conhecer seus ensinamentos, teve a sen sação de estar próximo daquilo que iria movê-lo para a vida.
Antes de mudar para o Vale do Capão, passou um ano viajando por sí tios na Bahia e trocando hospedagem por mão de obra.
Através do seu traba lho com o Instituto de Permacultura da Bahia, surgiu a oportunida de de morar num sítio em Salvador, na região metropolitana. Lá con seguiu aproveitar o ter reno como laboratório, espaço produtivo para seu aprendizado.
Em parceria com o instituto, realizava projetos com o MST (Movimen to Sem Terra) e viajava toda semana para um acampamento do gru po em Alagoinhas, para plantar com eles.
CIÊNCIA MÃO NA TERRA
Nessa época, ele con ta que o conteúdo sobre agrofloresta não era tão abrangente e acessível.
“Lia e relia várias vezes os mesmos livros, além de aprender experi mentando”. Para ele, “a principal escola é a mão na terra.”
Guio entende a agrofloresta como uma ci ência profunda, para além de não fazer monocultura, plantar vá rias espécies juntas ou usar adubos orgânicos.
É um passo a mais: considerar como a natureza planta, como ela cria es ses sistemas de fartura e alimento que susten ta uma fauna bem rica, quais são as estratégias da natureza e como ela consegue, sem interven ção humana, criar sistemas abundantes.
“A gente desce do pedestal de ser o huma no inteligente e, assim como todos os outros organismos e espécies, nos tornamos parte desse sistema inteligente.” Assim, temos a natureza como mestra.
“Se a natureza cobre o solo, vamos entender: ela tá alimentando, gerando ciclos de nutrien tes, retendo a água por mais tempo, implicando em condições melhores para os micro-organis mos que vivem no solo.”
“Assim como os outros organismos e espécies, nos tornamos parte desse sistema inteligente.”
O grande triunfo é como trazer essa sabe doria para a produção dos nossos alimentos, como plantar nosso mi lho, feijão, tomate etc.
A dica do educador para quem quer come çar uma agrofloresta é começar pequeno, sem grandes intervenções, uma hortinha aqui, um canteirinho ali, apren dendo com as plantas.
Também vale investir em formações, cursos, juntar com gente mais experiente, aproximar dos nativos, com quem já mora na região do terreno para entender a vegetação da área, saber o que está sendo plantado e começar um proje to mais focado.
COMIDA
O percurso da criação de uma agroflores ta produz comida em abundância, diversidade e qualidade. “No mes mo espaço onde planta mos a rúcula, que dá em 25 ou 30 dias, também plantamos uma jaquei ra ou um jatobá, cujo crescimento ultrapassa a existência de quem o plantou”.
A floresta cresce junto: alimentos e espécies ar bóreas maiores.
O foco do Guio está mais na educação e consultoria do que na comercialização. O que o sítio produz serve para consumo próprio dele e de sua comunidade, incluin do aqueles que participam dos plantios.
“Em uma agrofloresta, quem comercia liza geralmente tem um carro chefe. Você pode ter o café como cultivo principal, por exemplo, mas dentro do sistema culti var também banana, laranja, jaca, manga, que irá potencializar a cultura do café.
Segundo última edi ção do Estado da Se gurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2022, mais 4 milhões de pessoas foram empurradas para a fome entre 2020 e 2021 na América Latina e no Caribe.
De acordo com uma pesquisa da Universi dade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e a Universi dade Livre de Berlim, 59,4% dos domicílios do Brasil vivem em insegurança alimen-
“No mesmo espaço onde plantamos rúcula, que dá em 25 ou 30 dias, também plantamos uma jaqueira ou um jatobá, cujo crescimento ultrapassa a existência de quem o plantou”
tar, agravada pela pan demia. A maioria deles liderada por mulheres.
Como é possível que, com tanta biodiversidade e terraem condições favoráveis à farta pro dução, ainda falte comida? Quem enriquece com áreas devastadas para monocultura e pastagem? Quem enriquece às custas da fome?
Pensar projetos agro florestais é pensar uma produção de comida democrática e sustentável.
A boa notícia aqui é que ainda tem muita gente trabalhando por e para uma terra fértil.
[[ESPAÇO PARA INFOGRÁFICO]]
59,4% dos domicílios no país estão em situação de insegurança alimentar