O tiro que adiou o golpe Em 2014 são rememoradas duas datas marcantes na história recente do Brasil: os 50 anos do golpe civil-militar, de 1964, e os 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. O intervalo de 10 anos entre os dois acontecimentos mais significativos do cenário político brasileiro do século XX estão, para muitos pesquisadores do período, relacionados. “Existia, mesmo antes de 1954, uma força de setores que tinham a intenção de romper com a ordem estabelecida, com uma deposição forçada. O suicídio de Getúlio foi, sim, um ato político. Só se pode dizer hoje que ele adiou o golpe porque é uma visão prospectiva, mas ele inibiu aqueles que intentavam o golpe. Esta intenção já se via antes e se viu depois, em 1961, quando foi outra vez impedida, pela legalidade”, explica o historiador e pesquisador de História Política do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luiz Alberto Grijó. As pressões sobre o governo em crise de Getúlio não vinham só do setor militar. “Existia isso pelo lado civil também. Carlos Lacerda era um exemplo disso, de uma parcela civil que se opunha ao governo supostamente de esquerda de Vargas e desejava uma ruptura, não importando os meios”, complementa Grijó. Lacerda, político e jornalista, vociferava em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, contra Getúlio. Este periódico também teria papel importante no grupo da imprensa que apoiaria o golpe, 10 anos depois. Na madrugada de 5 de agosto de 1954, Lacerda sofreu um atentado na Rua Tonelero, no Rio de Janeiro, que foi atribuído ao presidente Vargas e sua guarda pessoal, agravando a crise. Depois da última reunião ministerial no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, em que havia decidido por se licenciar, Getúlio se recolheu e, poucas horas depois, na manhã de 24 de agosto de 1954, disparou contra o próprio peito, concretizando o que escrevera em sua carta-testamento: “Saio da vida para entrar na História”. Para o historiador e jornalista Juremir Machado da Silva, autor do romance histórico Getúlio, o suicídio não só adiou o golpe como mexeu também com o cenário eleitoral dos anos seguintes. “Com a morte dele e a comoção popular, mudaram os rumos das eleições seguintes. Em 1954 se elegeu Juscelino Kubitschek, com Jago na vicepresidência, muito mais próximos das ideias de Getúlio. Muito possivelmente, seGetúlio tivesse terminado aquele mandato, sairia desgastado e seus opositores assumiriam”, reflete Juremir. O partido opositor de Getúlio, a União Democrática Nacional( UDN), contava com o apoio de setores conservadores da elite, contarariados pelo populismo e as medidas sociais implementadas pelo presidente. Com forte alinhamento com a imprensa do centro do país, a UDN liderou a campanha cotra Getúlio nos meses que antedecederam sua morte. O jornalista Walter Galvani conta que, na época, se posicionava como antigetulista e percebia o protagonismo da imprensa. “Naquele ano de 1954, eu era o que se poderia chamar de um guri bobo, com recém completados 20 anosde idade, e
sem nenhuma maturidade. Havíamos fundado, em Canoas, um pequeno jornal que teria o nome de Expressão. Com a influência da UDN, líamos sempre que podíamos os jornais do Rio e São Paulo e, de um modo muito especial, a Tribuna da Imprensa, de Lacerda”, lembra. A notícia da morte comoveu todo o país e, em especial, o Rio Grande do Sul. “No dia 24 de agosto, assim que a rádio Farroupilha de Porto Alegre deu a notícia, pouco depois das 8h30min, as pessoas pró e contra começaram a se juntar no centro de Canoas, onde vivíamos. E por uma questão até de definições políticas, os pró Getulio ficaram acima dos trilhos ferroviários, nas imediações da praça central, a Praça da Bandeira, e os curiosos ou opositores se juntaram na avenida Vitor Barreto. Com 300 metros de permeio”, relembra Galvani. Getúlio Vargas foi um divisor de águas na história brasileira. Governou o país entre 1930 e 1945, com o a ditadura do Estado Novo a partir de 1937, e depois voltou democraticamente na chamada “eleição carismática” de 1950, quando fez um governo de centro-esquerda. “O Brasil é um antes e outro depois dele. Ele tinha um projeto nacionalista, de incorporação de grandes setores excluídos da população, de modernização do país. E ele conseguiu, mudou o Brasil”, explica Juremir. Entre as maiores realizações dos períodos em que o país foi governado por Getúlio estão a criação da Petrobrás e a Consolidação das Leis do Trabalho. “O que ele fez, nunca antes havia sido feito. O legado histórico-social dos governos que ele capitaneou é incomparável. Ele criou um modelo de organização do Estado e de administração pública que não existia antes no Brasil”, finaliza Luiz Alberto Grijó.