Quando a democracia redescobriu o Brasil Se considerada apenas a cronologia, em 2015 o Brasil comemora três décadas do fim da ditadura militar, instaurada em 1964, que manteve o país em um regime de repressão por 21 anos. Mas um debate historiográfico sugere que a data da eleição indireta do civil Tancredo Neves para a presidência da República, em janeiro de 1985, apesar de pontuar o fim do período autoritário, não necessariamente corresponde ao início da redemocratização. Compreendido como um processo por historiadores e cientistas políticos, o restabelecimento da democracia brasileira pode ser balizado por três momentos diferentes: a reabertura gradual das instituições políticas ainda durante o regime militar, no fim da década de 1970; o ano de 1985, quando um civil é eleito indiretamente para a presidência; e as eleições diretas de 1989, previstas na nova Constituição de 1988. O cientista político e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo González explica que a primeira questão da polêmica está na definição do que significa alcançar a democracia. “Os próprios requisitos da democracia são objetos de debate. Como é um processo, há mais de uma data que marca. No caso brasileiro, há vários eventos que marcaram. O que poderia ser uma grande ruptura seria a campanha das Diretas Já, em 1984. Se o movimento tivesse tido resultados, se teria um marco claro. Mas foi um movimento derrotado”, argumenta. A campanha pela emenda constitucional levou milhões de brasileiros às ruas ainda durante o governo do último ditador, general João Figueiredo (1979-1985), para pressionar a aprovação da emenda Dante de Oliveira, que previa a restituição das eleições diretas para presidente. Com a derrota da emenda, a eleição do presidente da República ocorreu por meio do Colégio Eleitoral, que escolheu Tancredo Neves como o primeiro presidente civil pós-ditadura, em 15 de janeiro de 1985. Amorte de Tancredo Em uma reviravolta digna de folhetim, que sobressaltou o país, Tancredo foi internado um dia antes da posse, que seria em 15 de março, e seu estado de saúde virou caso de exploração midiática e comoção nacional até 21 de abril, quando o político mineiro morreu por complicações de uma diverticulite aguda. Em seu lugar, assumiu o vice, José Sarney, expresidente da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação da ditadura. Para o historiador e professor da UFRGS Enrique Serra Padrós, o ano de 1985 é o marco mais significativo da redemocratização. “Sempre se colocou essa data, de 1985, como o ponto de arrancada de superação da cronologia da ditadura, ao ponto de aquele período ter sido chamado de Nova República, como a retomada de algo interrompido com a experiência do estado de exceção. Isso é o que está consagrado nos manuais didáticos”, lembra. Porém, ele explica que há um debate entre os estudiosos do período sobre as datas da redemocratização. “Na procura de raízes disso, poderíamos recuar para uma etapa anterior, em que o Brasil avançou por uma abertura lenta e gradual, determinada pelo ditador
Ernesto Geisel, na década de 1970, e aprofundada por João Figueiredo, o último ditador brasileiro. A partir daí ,temos a aprovação da Lei de Anistia (1979), que define um marco importante, junto com as medidas que acabam com a censura e que possibilitam um cenário, ainda dentro da ditadura, de retomada do diálogo político e das organizações partidárias e sociais, a volta dos exilados e saída das prisões de boa parte dos presos políticos”, lembra. “Existiram, neste período, mecanismos que possibilitaram a articulação partidária e política, mas a ditatura não deixa de ser ditadura por causa disso”, reflete. Do final da década de 1970 até chegar a 1985, o Brasil ainda viveu formalmente um regime ditatorial, embora tenham se realizado eleições para governador em 1982. “Que a ditadura acabou em 1985, isto é certo. Agora, se a democracia brasileira foi instaurada em 1985, isto é motivo de debate. O fim de um período não significa que o outro tenha se iniciado imediatamente”, sinaliza González. A influência dos militares ainda era muito expressiva no momento de transição em 1985. “É bom lembrar que a emenda das diretas foi votada com o Congresso cercado por tanques”, destaca o cientista político. Ele argumenta que a eleição de Tancredo Neves também fazia parte de uma moderação com o regime autoritário: “Aqui já há uma negociação, porque o candidato natural da oposição seria Ulysses Guimarães. Foi Tancredo Neves, um candidato mais conservador, porque o regime não aceitaria um líder tradicional da oposição. O Colégio Eleitoral era um teatro para marcar uma eleição já feita antes nos gabinetes”. Aposse de Sarney Apesar de 1985 ser o ano mais citado pelos especialistas para sinalizar a volta da democracia, dentro deste período ainda há uma divisão importante entre o momento da eleição indireta de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral e a posse de José Sarney. “Certamente a posse de Sarney é um marco muito mais importante do que a eleição em si. A eleição foi um ato planejado e negociado”, defende González. Padrós ressalta que, com a doença de Tancredo, se estabeleceu um clima de temeridade pela manutenção do acordo, o que pode ser visto como um sinal de que o país não vivia sua normalidade democrática. “Ali há um parênteses. Hoje se olha à distância e tudo parece a mesma coisa, mas aqueles meses em que Tancredo adoece e morre foram de muita incerteza. Há muita política de bastidores, os setores duros da ditadura tentam se rearticular. Aquilo era o início de tudo, e até então o presidente não tinha assumido, havia um vice em exercício e um vazio de poder”, pondera. O historiador lembra que nas imagens da posse, quando o presidente do Congresso, Ulysses Guimarães, toma o juramento constitucional de Sarney, o novo presidente está tremendo: “Se Tancredo fosse o presidente, o governo não mudaria quanto aos seus horizontes, mas começaria mais seguro. Sarney era um presidente odiado pelos antigos companheiros e visto com desconfiança pelos novos”.
As eleições de 1989 Outro grande momento da restauração da democracia no Brasil aponta para a primeira eleição direta no país desde 1960, o pleito que elegeu Fernando Collor de Mello, em 17 de dezembro de 1989, e sua posse em 1990. A eleição de 1989 efetivou o direito ao exercício da cidadania garantido na nova Constituição, promulgada um ano antes. “A Constituição se transformou em um instrumento de avanço do processo democrático, mas que mereceu e merece até hoje um esforço de efetivação. Como a transição em grande parte foi pactada com o Estado autoritário, mantiveram-se algumas heranças da experiência anterior. No Brasil, grande parte da liderança durante a experiência da ditadura militar foi politicamente preservada depois”, explica o constitucionalista Eduardo Carrion. Mesmo depois de um governo civil e com uma campanha em curso, ainda havia pouco espaço de tempo entre o fim do regime autoritário e o ano de 1989. Padrós explica que o país vivia sua primeira experiência de representatividade direta depois da ditadura, e o clima ainda era de incerteza: “Na época da eleição de 1989, em que Collor venceu o Lula, se dizia que, se Lula vencesse, talvez não levasse, porque poderia haver golpe de Estado. O fato de isso ser considerado era tão forte que mostrava o receio de um tempo que, em tese, havia passado, mas não para uma geração que viveu 21 anos de ditadura, pessoas de 30 anos que nunca haviam visto uma eleição”. Apesar da inconsistência do período eleitoral, a posse de Collor e o processo de impeachment dele, em 1992, ocorreram sem que as instituições fossem abaladas, o que demonstrava uma afirmação da estrutura democrática. “O processo de restauração da democracia é permanente. Tivemos uma ruptura limitada em 1985, com marcas da ditadura, mas a democracia vai se solidificando”, observa Carrion. A estabilidade foi consolidada ao longo de três décadas, com sucessões presidenciais legítimas e a manutenção segura das instituições, mas o Brasil ainda não expiou os fantasmas da ditadura. Os resquícios daquela época ainda existem em diversos setores, como em práticas do Judiciário e do sistema educacional e políticas de segurança baseadas na lógica do inimigo interno, além do não reconhecimento dos crimes de tortura pelas Forças Armadas. Padrós destaca que regimes de exceção deixam marcas geracionais e afetam a consciência política. “Existe, claro, ainda hoje, entulho autoritário em alguns setores, mas isso não significa dizer que a ditadura permanece”, argumenta o historiador. Para González, ainda se percebem fragilidades na democracia brasileira em função da cultura política da população. Conforme o pesquisador, a falta de revisão aprofundada acerca de um passado autoritário recente torna o país vulnerável: “Isso nos faz sujeitos a soluções semidemocráticas, como vimos acontecer em outros países da América Latina, com o cerceamento da possibilidade de governar e afastamentos rápidos e duvidosos de presidentes, como o que aconteceu com Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012”.