Publicado em : ROSENDHAL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato (org.) Religião, identidade e território, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001, PP. 93-114.
A CULTURA PÚBLICA E O ESPAÇO DESAFIOS METODOLÓGICOS
Paulo Cesar da Costa Gomes
Há muitas formas possíveis de abordar e definir a cultura. Uma delas, é vê-la como um conjunto de práticas sociais, generalizadas em um determinado grupo, a partir das quais, este grupo forja uma imagem de unidade e de coerência interna. O conjunto destas práticas exprime os valores e sentidos vividos por certo grupo social e a delimitação de suas diferenças em relação aos outros grupos. Trata-se pois de um processo pelo qual a aceitação de um patamar comum de comportamento é responsável pela idéia de identidade e de patrimônio próprio. Neste sentido, cultura corresponde a certas atitudes, mais ou menos ritualizadas, através das quais se estabelece uma comunicação positiva entre os membros de um grupo. Dentro deste resumido quadro, como é possível pensar uma contribuição geográfica ao estudo da cultura, ou em outras palavras, que contribuições epistemológicas podem advir de um horizonte desenhado pela nova geografia cultural. Há alguns observamos um movimento no interior desta disciplina, que vem cada vez mais se conscientizando de que a descrição ou simplesmente o estudo morfológico do espaço, não são suficientes para uma efetiva compreensão e análise de todos os complexos processos sociais que orientados segundo uma matriz espacial. Infelizmente, pouco temos realizado para ultrapassar esta dificuldade no campo epistemológico. De fato, ao observarmos somente as formas espaciais esquecemos daquilo que lhes dá vida e sentido, ou seja, a maneira pela qual este espaço é vivido, valorizado e simbolizado. Esquecemos também que as formas de disposição das coisas neste espaço orientam as
práticas sociais, definindo-as e delimitando-as: em outros termos, a disposição espacial é uma condição fundadora das práticas sociais1. Como nos recomenda Milton Santos, é preciso ver o espaço como um sistema de objetos e um sistema de ações2. Em outras palavras, isto quer dizer que a maneira como os objetos estão dispostos espacialmente tem uma lógica, porém a teia de ações que se desenvolve em torno desta organização dos objetos gera um novo produto, resultado desta relação entre a organização física e as práticas sociais que aí têm lugar. A geografia cultural, em sua mais recente orientação, pode vir a ser justamente a oportunidade de compreender este jogo complexo entre as dimensões física e simbólica, entre signo e sentido, e desta forma, pode vir a se constituir como a oportunidade ideal para aprofundar esta discussão epistemológica que comumente nos tem escapado. Neste sentido, a nova orientação da geografia cultural nos conduz a um novo olhar sobre a dimensão espacial de certos fenômenos. Isto corresponde a dizer que a geografia dispõe de condições para constituir um novo conceito e um inovador domínio epistemológico em torno destas idéias de espaço e cultura. Assim, pretendemos trazer à tona alguns elementos básicos para esta discussão, servindo-nos da noção de espaço publico, em busca de uma demonstração da maneira própria de trabalhar um espaço e ser sensivelmente diferente daquela que é habitualmente veiculada.
O desafio de um novo tema Sabemos por experiência cotidiana que um espaço público não depende simplesmente do estatuto jurídico que o define legalmente. De fato, os princípios fundamentais que orientam a construção deste tipo de espaço se nutrem de uma concepção fundada sobre a lei, geral, uniforme e democrática. Este espaço se estrutura, primeiramente, pela aplicação de diferentes regras que classificam e hierarquizam os territórios, mas só isso não é suficiente para percebermos a variedade de tipos de espaço público. No entanto, sabemos também que espaços públicos são diferentemente apropriados por variadas dinâmicas e se inserem de maneira diversa na vida pública. Isto faz com que uma praça seja efetivamente vivida como um espaço de livre acesso a todos, de ritualização da vida social, em grande parte devido ao comportamento daqueles que a utilizam. Desta forma, podemos afirmar que o espaço público é, por um 1
A este respeito consultar : GOMES, Paulo Cesar da Costa « Geografia fin de siècle e o fim das ilusões. In: Explorações geográficas, Castro, I. Gomes, P. e Correa, R. (org.), Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,1998. 2 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. Hucitec, São Paulo, 1996.
lado, um espaço definido por um estatuto jurídico igualitário e democrático e, por outro, aquele no qual praticamos certa atitude e certo comportamento social que o identificam a uma vida pública e democrática. A partir desta perspectiva, um olhar geográfico sobre o espaço público deve ser capaz de identificar, por um lado, sua configuração física e, por outro, o gênero de práticas sociais que aí se desenvolvem. Sob este ângulo, o espaço torna-se um conjunto indissociável de formas e de práticas sociais: é sob esta perspectiva que a noção de espaço público pode se constituir verdadeiramente em uma categoria analítica para o pensamento geográfico. Aliás, parece-nos que esta é a única maneira de estabelecer uma relação direta entre a condição cidadã e o espaço público, isto é, concebendo este espaço como configuração física, como teatro de certas práticas e como um terreno investido de uma efetiva vivência social. O espaço formal e normatizado é a matriz que estrutura a idéia de um espaço público. Por conseguinte, é-nos permitida a hipótese de que a condição fundamental para o exercício da cidadania na vida cotidiana se deve à existência e se nutre da reafirmação do estatuto regulamentar do espaço público. Ele e também o locus de um certo comportamento, de um tipo de cultura, de uma cultura pública. Portanto, este espaço constitui o lugar físico onde se constrói a vida coletiva democrática. Assim, é estruturado por normas que são a garantia dos direitos e deveres individuais em relação ao conjunto da sociedade e seu uso põe em perspectiva os princípios básicos desta coabitação democrática. Ou, se preferirmos, ele e o espaço fundamental do exercício da civilidade. Nosso interesse neste trabalho é, em primeiro plano, demonstrar a necessária interação entre os conceitos de espaço público e de civilidade. Civilidade pode ser assim compreendida - dentro da perspectiva já desenvolvida anteriormente - como certo comportamento relacionado a este espaço, ou seja, como o conjunto das práticas sociais que dão conteúdo a certo arranjo espacial que é, ele mesmo, uma condição primordial para que estas práticas existam. Em outras palavras, é a existência deste espaço e a renovação permanente de seu uso, sob a forma de civilidade, que definem uma verdadeira cultura pública. Uma vez estabelecido este primeiro ponto, nosso desafio é iniciar uma incontornável discussão metodológica que estabelecerá as condições necessárias para o êxito neste tipo de estudo proposto. Ao observarmos desta maneira o espaço público, compreendemos facilmente que dentro de uma cidade há distinções fundamentais na vivência destes espaços. Isto
resulta em uma diferenciação não prevista pela lei, que estabelece uma isonomia e uma mesma regulamentação para todos os espaços públicos. Compreendemos que existem nas cidades espaços públicos privilegiados, carregados de simbolismo e de centralidade no que diz respeito à organização e à representação da vida pública. Estes espaços não são permanentes, acompanham a vida e a evolução da cidade, sua dinâmica social e sua organização espacial - diríamos até que acompanham sua própria identidade. Para exemplificar, tomemos o caso do Rio de Janeiro. Desde o começo do século XX, vimos acontecer o deslocamento desta carga da cultura publica sucessivamente: Rua do Ouvidor e arredores; Rua do Catete e Lapa; Praça da Cinelândia; orla das praias - primeiramente Copacabana, depois Ipanema - e hoje, em grande parte, pelo conjunto dos bairros que ocupam a faixa litorânea das praias da chamada Zona Sul da cidade. Ouve um deslocamento da identidade “carioca” do centro da cidade na direção destes bairros próximos à praia. De fato, estes outros logradouros não deixaram de ser públicos nem perderam completamente a antiga imagem da cultura pública carioca, mas talvez tenham perdido sua anterior centralidade. Assim, uma parte da vida noturna, boêmia e popular ainda existe na Lapa e se identifica à velha imagem da malandragem do Rio de Janeiro dos anos 30/40. Da mesma forma, as grandes manifestações de protesto e os comícios políticos, ainda ocorrem por exemplo na Cinelândia - espaço disputado por diversos partidos e associações sindicais. Porém, na atualidade, os grandes espaços que concentram a idéia de coabitação, de mistura e de espetáculo da vida pública são as praias cariocas. Ainda que a orla das praias da Zona Sul concentre esta idéia de vida pública, não há equivalência ao longo da mesma. Existem diferenças entre as praias e também em relação a trechos de uma mesma praia. Podemos perceber nitidamente a existência de dinâmicas próprias á freqüência destes lugares, estratégias de ocupação, conformação de identidades, limites de atividades etc. No entanto, o mais importante aqui é perceber que estas dinâmicas, embora relacionadas ao contexto imediato das praias, não são completamente inteligíveis em si mesmas. Elas ganham novo sentido quando as associamos à dinâmica mais geral que tem lugar no interior da cidade, seu quadro próprio de oposições (favela-bairro; subúrbio-zona sul; migrante-nativo; turistahabitante), seu elenco de valores espaciais, suas lutas territoriais. Neste sentido, as praias não são um fenômeno completamente distinto tampouco propriamente um teatro - uma cena onde as exclusões e diferenciações socioespaciais são representadas. A cena tem vida própria, os conflitos não são estetizados, são vividos
e recriados em um novo espaço e dão origem a uma dinâmica própria. As identidades sociais são reavaliadas e há uma recomposição dos grupos, das vizinhanças e das formas de referências. Os jogos de territorialidade são adaptados e os combates e conflitos redefinidos. Alguns favelados se unem a jovens originários das classes médias em torno da cultura surf; outros, se alinham aos jovens dos bairros suburbanos pobres e identificando-se às “galeras” funk. Os lutadores de artes marciais ocupam um espaço contíguo ao do grupo denominado GLS (gays, lésbicas e simpatizantes); estes, por sua vez, avizinham-se do grupo da “esquerda festiva”, ou do “território da maconha”. Desta forma, neste terreno de alto valor simbólico, redefinem-se solidariedades sociais e espaciais, alianças e, por outro lado, acirram-se oposições, criam-se novas, definidas mesmo pela disposição de uma territorialidade que nem sempre figura expressamente no terreno da cidade. O fato interessante é que cada um destes grupos pode ser distinguido com alguma precisão, social e territorialmente, como no caso que corresponde ao da praia de Ipanema. Interessa-nos ainda observar que cada um destes grupos desenvolve formas próprias de agenciar sua territorialidade, ou seja, de impor uma presença identitária sobre certa extensão espacial, definida pelo contraste e pelo conflito, e que por isso se define como um território. As famílias com filhos, usam uma série de objetos dispostos em círculo, criando um espaço interno bem delimitado, em geral respeitado pelos outros banhistas. Alguns grupos, criam verdadeiros corredores, alinhando toalhas e cadeiras; outros se reúnem de forma densa, deixando apenas o espaço mínimo para uma circulação periférica. Enfim, são múltiplos os exemplos destas diferentes estratégias criadas com o intuito de afirmar um certo domínio sobre o espaço. A dimensão de sua compreensão é que não se esgota apenas no ambiente onde isso ocorre. Precisamos refletir a partir deste quadro de referência para desenvolver instrumentos metodológicos apropriados e empreender uma nova interpretação destes fenômenos.
A importante discussão metodológica
No início deste texto, afirmamos a dificuldade epistemológica da geografia na criação de um quadro analítico para a reflexão entre espaço e cultura que ultrapasse o aspecto morfológico, ou melhor que o associe à dinâmica socioespacial, sem que precise renunciar ao domínio de legitimidade próprio pertencente à geografia. A partir do
momento em que estejamos convencidos da existência desta oportunidade, o passo seguinte é criar os instrumentos metodológicos capazes de refletir sob este novo campo e sobre seu novo modus operandi. Na falta de uma melhor designação, optamos no momento por denominar esta nova abordagem de microgeografia, face às inúmeras analogias com o que se desenvolve sob o nome de microhistória. Uma primeira advertência deve ser imediatamente levada em conta: uma microgeografia não supõe que nos debrucemos obrigatoriamente sobre um microespaço ou trabalhemos com fenômenos que são apenas visíveis em grande escala3. De fato, o local é uma escala de referência e tem certo privilégio sobre as outras esferas escalares, dentro da perspectiva aqui proposta. No local, podemos decifrar, com mais acuidade e elementos, a teia de sentidos das localizações. A busca de coerência entre o sistema de arranjo dos objetos e a organização dos comportamentos sociais relacionados aparece com muito maior expressão quando estamos neste patamar de observação. No entanto, o sentido desta dialética espaço-comportamento, ainda que observada localmente, não fica aí restrita. Não podemos voltar ao singularismo de uma geografia que pretendia simplesmente alinhar estudos de caso únicos. A observação local não pode ficar limitada a uma descrição das diferenças e propriedades singulares. É necessário dispor de condições para proceder a comparações e a reconstituições possíveis dos problemas em outras escalas. Os geógrafos se acostumaram a empregar a expressão jogo de escalas para exprimir certa particularidade e riqueza metodológica associada à própria natureza da geografia. O primeiro problema, que de fato não é muito grave, é que isto não corresponde efetivamente a uma exclusiva particularidade da geografia: outras disciplinas também utilizam o mesmo recurso (história, antropologia, biologia, etc.).
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Na verdade, o problema maior é que, em grande parte dos casos, este jogo de escalas é visto como o caminho para uma progressiva generalização, quando optamos por representar o fenômeno em escalas menores; ou de detalhamento, no caminho inverso, representando-os em escalas maiores. Um breve parêntese nesta discussão se faz necessário. De fato, a raiz deste problema da representação - cartográfica e analítica - é o fato de que partimos da hipótese de que há um fenômeno real, concreto, limitado e visível e de que somos 3
Esta noção corresponde aqui, por enquanto, a idéia cartográfica, grande escala, pequeno espaço representado e vice versa. 4 Ver, por exemplo, BOUDON, P. De l’architecture à l’épistémologie. La question de l’échelle, Paris, PUF, 1991.
capazes de representá-lo com rigor e precisão, por meio de uma linguagem cartográfica ou descritiva. Ora, sabemos que muitos objetos e fenômenos que desenhamos sobre um mapa não são proporcionais ao tamanho que escolhemos para representá-los - algumas vezes nem poderiam ser representados se a escolha fosse unicamente guiada pela proporção do tamanho. Este é o caso de estradas, vias secundárias, pequenas cidades, grupamentos de população, limites de manchas fitogeográficas, geomorfológicas, litológicas. De fato, cada carta é um quadro arbitrário de escolhas de objetos e fenômenos que desejamos colocar em relação. Desse modo, a carta é um meio gráfico utilizado como instrumento de demonstração. Ela não deve e não pode se confundir com a realidade. Segundo o conto de Borges, restam ainda alguns retalhos da carta em escala de 1:1, sonhada pelo cartógrafo do rei, e parece que alguns deles são preciosamente guardados por alguns geógrafos. Estes últimos, muitas vezes, obstinam-se nesta fantasia que os impede de vislumbrar o problema simples de que uma representação é uma escolha. Assim, ainda que fosse possível criar uma representação absoluta, estaríamos de fato procedendo somente a uma substituição, o real pela representação, tarefa impossível e sem sentido, uma vez que teríamos uma cópia perfeita que corresponderia ao objeto e, portanto, sem qualquer valor analítico ou instrumental. Depois deste breve esclarecimento, estamos mais aptos a visualizar o que pode ser um jogo de escalas, despojados da simplificadora metáfora do binóculo. Para cada escala cria-se um quadro referencial, o fenômeno não é o mesmo, seu universo relacional o redefine, embora mantenha em qualquer destas proporções uma identidade fundada em seus traços essenciais. Para simplificar, um exemplo concreto, levando-nos de volta ao tema da cultura pública. Durante muito tempo, a cidadania foi objeto de estudo para cientistas políticos que discorreram sobre a criação do Estado Moderno, relação entre os direitos e deveres dos cidadãos e estatuto jurídico da cidadania. No entanto, o fenômeno da cidadania pode ser apreciado sob outros ângulos, sob outras escalas e, por conseguinte, revelar novos aspectos e relações. Utilizando o olhar geográfico na escala local, podemos relacionar cidadania a determinados comportamentos sociais que guardam relações com a idéia de direitos e deveres. Este comportamento se revela no que concerne a espaços públicos. Assim, a observação de certos comportamentos espaciais sobre determinados logradouros públicos é indicativo da vivência da cidadania, de sua variedade, de sua intensidade e de sua afirmação ou negação..
Neste universo, o fenômeno é tratado de maneira diversa de seu enfoque sob a esfera do Estado nacional. O jogo de oposições é outros, espaço público/espaço privado, lutas comunitárias e associativas, espaços coletivamente apropriados e espaços freqüentados de forma a valorizar a idéia de independência e de liberdade individual. Nenhum destes elementos e passível de figurar em uma grande análise sobre o estado atual da cidadania como sistema de representação política, como igualdade de direitos e deveres de um cidadão definido em geral, ou mesmo de uma discussão sobre as disposições que dizem respeito ao espaço público e à propriedade pública nas constituições nacionais. O fenômeno é o mesmo e é diverso. Nada impede que sejam cotejadas estas diferentes escalas no qual a cidadania é passível de ser estudada, mas é preciso ter claro que para cada uma delas a trama dos elementos circundantes é diversa e própria. A geografia tem por tradição trabalhar em certas escalas que coincidem com momentos precisos de valorização de certas temáticas. A escala global foi largamente privilegiada na proposição de uma geografia positivista, que procurava relações necessárias entre grandes ordens de fenômenos. O exemplo do determinismo é o mais eloqüente, mas podemos também reconhecer o privilegio desta escala na definição da geografia como uma ciência de síntese, que operaria através de inter-relação de diversas gamas de fenômenos. A escala nacional, também foi largamente utilizada desde os primórdios da institucionalização da disciplina que coincidia com um momento de valorização dos limites do Estado-Nação, tomados como limites definitivos das diferenças e do poder. Todo um ramo da geografia - a geopolítica - se desenvolveu aliás sob este prisma. A escala regional teve também seu momento de glória quando houve necessidade de lidar com espaços de diferenciação no interior dos Estados modernos. Os estudos regionais chegaram mesmo a se confundir com a própria geografia: o método regional a definiria para aqueles que valorizavam a idéia de que os estudos geográficos residiam na descrição das relações entre cultura e solo dentro destas unidades médias, entre o Estado e o local. Mais recentemente, a escala local foi o foco preferencial da geografia humanista e de sua compreensão de uma dimensão vivida do espaço. Lembrando mais uma vez que o local não é o detalhe, tampouco a menor expressão possível de um mesmo fenômeno, esta proposta de microgeografia também concebe certa primazia aos fenômenos locais. Entretanto, isto não exclui a imperativa necessidade de proceder à reconstituição dos fenômenos em outras esferas escalares e,
com este procedimento, restituir-lhes a complexidade e os diferentes aspectos e primas possíveis de manifestação.
Chamaremos aqui este tipo de reconstrução de objetos em diferentes esferas de significação de jogo de escala vertical, ou seja, mudando a escala de observação, mudamos os elementos relacionais e o quadro analítico possível. Optamos pela idéia de verticalidade por existir ainda outro movimento necessário na construção deste tipo de análise nomeado aqui de jogo de escala horizontal. Trata-se simplesmente de criar comparações e analogias. Neste sentido, comparar não quer dizer fazer um uso abusivo dos casos semelhantes (espécie de multiplicação de um mesmo sentido, tautologia fortemente utilizada). Ao contrário, as comparações devem ser estabelecidas pelas dissemelhanças. Como diria Detienne, “é preciso comparar o incomparável”.5 Neste ponto de vista, a horizontalidade nos permite identificar os graus de variabilidade de um fenômeno e de seu quadro referencial. Mais uma vez, o apelo ao exemplo pode ser útil na demonstração desse ponto de vista. No Rio de Janeiro, as praias são um espaço público de primeira ordem: indicam certa maneira de convivência social e de estabelecimentos de regras de relações e de reconhecimento de diferentes estratos sociais. Nada nos impede de procurar extrair, de outras cidades, submetidas a outras dinâmicas, este quadro de relações. Em Paris, a vida pública se desenvolve sobre outros tipos de espaços: bulevares, praças e circuitos urbanos; os espaços são organizados de forma distinta; o comportamento público também possui nuanças variadas. As delimitações são outras, os valores são veiculados e lidos através de outra gramática, os valores colocados em cena os limites de tolerância a certos comportamentos e os espaços a eles consagrados são nitidamente diversos. Para retomar o tema principal de nossa reflexão, a cultura pública se organiza de forma diferente. Mais uma vez, para compreender os termos desta comparação não precisamos permanecer fixados no domínio do local, mas é a partir dele que podemos traçar uma série de relações com outras dimensões da vida pública, na França e no Brasil. Por meio destas comparações, observamos o quanto é útil relacionar fenômenos que estão diferentemente associados a outros, para cada caso. Assim, na França, o debate da inclusão social, por exemplo, tem um dado fundamental que no Brasil não é sequer relevante: a migração estrangeira. No Brasil, por outro lado, a compreensão da dinâmica do espaço público deve levar em conta as grandes distinções sociais -
elemento fundamental e valorizado na sociabilidade brasileira, e que na França se apresenta de forma muito menos eloqüente ou, pelo menos, de maneira muito mais sutil. A este tipo de contextualização não ortogonal de escalas, chamaremos de obliqüidade, ou seja, os elementos importantes das comparações não estão sempre situados no mesmo patamar e são chamados a depor segundo a importância que assumem em cada contexto. A imagem do tapete foi utilizada por historiadores para demonstrar a importância destes cruzamentos analíticos: “[...] pode-se verificar a coerência do desenho percorrendo com o olhar o tapete segundo diferentes direções”.
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A trama horizontal possui um desenho, uma seqüência de linhas e pontos de diferentes tonalidades, e a esta trama junta-se outra, coerente e ordenada, com outro padrão morfológico e de tonalidade. Juntas, estas tramas dão origem a um novo padrão, este, por sua vez, pode ser observado também sob um ponto de vista diagonal, desta vez saltando de um contexto ao outro. Esta formulação metodológica, fundada no que aqui chamamos de três procedimentos escalares e nas possíveis relações entre estes três planos analíticos, exige também uma nova organização dos dados e a definição do que pode ser um documento geográfico. Neste ponto, as discussões metodológicas da história podem nos ajudar bastante. Até o aparecimento da orientação que consistiu em verdadeira revolução metodológica conhecida na França como a École des Annales, um documento histórico era apenas aquele originário de uma fonte oficial, ou pelo menos, de um documento em que fosse atestada, datada e certificada sua origem. Os historiadores ligados à École des Annales, ao contrário, abriram novos rumos à pesquisa histórica na medida em que começaram a legitimar outros tipos de documentos, cartas, diários, literatura, etc. como possíveis objetos de pesquisa. O empreendimento lhes rendeu a abertura de campos epistemológicos novos, como a história das mentalidades, das paixões, da vida privada etc. Hoje, a microhistória se permite um novo passo ao decidir escrever sobre temas em que os dados ou documentos são obrigatoriamente de outra natureza. O exemplo do livro de Alain Corbain sobre as condições sanitárias e de higiene na França no século XVIII é eloqüente7. Como tratar, por exemplo dos odores em uma cidade do passado,
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DETIENNE, M. Comparer l’incomparable, Seuil, Paris, 2000. GINZBURG, Carlo, Mythes, emblèmes, traces : morphologie et histoire, Flammarion, Paris, 1989, p. 169. 7 CORBAIN, A. Les miasmes et les jonquilles, Seuil, Paris, 1982. 6
objeto em si mesmo circunstancial, não material e volúvel? Ele nos demonstra que a despeito da dificuldade em normatizar dados, é possível recriar uma descrição que nos aproxime deste mundo perdido no passado e que as reconstituições históricas haviam esquecido justamente pela dificuldade de obter informações, pelo menos aquelas em que a história havia dado sua marca de reconhecimento. Como ensina Guinzburg, seguido de Corbain: No dilema entre assumir um estatuto científico fraco para chegar a resultados marcantes ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados negligenciáveis, a posição desta escola é nitidamente pela primeira opção.
A partir desta descrição, uma geografia dos odores pode ser estabelecida, ou como prefere Corbain “uma história da sensibilidade” pode ser incluída entre os campos consagrados da pesquisa histórica. Esta discussão demonstra que a construção de novos objetos de pesquisa nos confronta sempre a um desafio metodológico primeiro, que é o de construir novos caminhos, redefinir interesses e relevâncias, e, às vezes, o de criar documentos e dados onde aparentemente eles não existem. Voltando ao tema da cultura pública e do espaço, diríamos que há perfeita aplicabilidade à pesquisa geográfica, desde que esta se abra a novos horizontes metodológicos. Observar a ordem espacial dos fenômenos e analisar os comportamentos sociais que lhe são associados constituem um desafio para compreender os sentidos da espacialidade na vida social. Desse modo, refletir sobre a cultura pública em sua relação com espaço - em sua dimensão do vivido cotidianamente pelas populações que habitam e definem o espaço - sem que para isso sejamos obrigados a percorrer os caminhos da subjetividade absoluta, como muitas vezes a geografia dita “humanista” tem nos conduzido. De fato, deve haver a possibilidade de inquirir o vivido espacial sem rumarmos ao incerto domínio do pessoal e do individual. Os geógrafos que se interessaram pela geografia do local muitas vezes foram buscas na psicologia ou na psicanálise os instrumentos de suas análises. Acreditamos que outras solidariedades disciplinares podem ser estabelecidas por uma microgeografia. A antropologia tem uma verdadeira tradição de estudos que evocam, de longe ou de perto, a construção de uma espacialidade pelos grupos sociais; a história tem demonstrado um interesse renovado pela análise dos eventos nãoextraordinários e por séries de documentos comumente desprezados pelas correntes
dominantes (certidões, alvarás, processos penais etc.), que lançam luzes sobre novos problemas e dão significações diversas a conhecidos temas. Assim, uma abordagem nova indica também a necessidade de estabelecer novas solidariedades disciplinares. Em nosso caso, a cultura pública pode ser vista como um produto derivado da cultura nacional, mas nem por isso passível de ser inteiramente explicada por ela. Devemos partir da definição do público, do que é visto como cultura pública e dos arranjos espaciais que ela pressupõe (isto para cada caso). Certamente, estas noções ganham diferentes cores em várias escalas e se definem por oposições diversas, segundo o plano sobre o qual construímos nosso olhar (também individualmente). No mais, os casos aparentemente muito distantes - que o senso comum em geral classifica como incomparáveis - são úteis na medida em que relativizam nossos quadros analíticos e, sobretudo, mostram-nos a possibilidade de um fenômeno ocorrer e se organizar de formas diversas e variando em seus aspectos essenciais. Esperamos, no mínimo, ter demonstrado, por meio destes exemplos, o alcance possível desta perspectiva e o campo que nos oferece.