Machado de Assis _ Contos Escolhidos

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MACHADO DE ASSIS contos escolhidos


MACHADO DE ASSIS contos escolhidos

A Igreja e o Diabo · Um Homem Célebre · Papéis Velhos · Missa do Galo · Longe dos Olhos... · A igreja · A Cartomante ←

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Site: Biblioteca Virtual de Literatura – Machado de Assis: www.biblio.com.br Obras de Machado de Assis Projeto Gráfico: Thatiane Moreira, 2019, São Paulo - SP.

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SUMÁRIO

A IGREJA DO DIABO....................................................................... 5 Capítulo I -De Uma Ideia Mírfica ..................................................... 6 II - Entre Deus e o Diabo................................................................... 6 III - A Boa Nova aos Homens............................................................ 9 IV - Fanjas e Franjas.........................................................................12 UM HOMEM CÉLEBRE...................................................................14 PAPÉIS VELHOS............................................................................. 25 MISSA DO GALO............................................................................. 33 LONGE DOS OLHOS...................................................................... 42 I........................................................................................................ 43 II....................................................................................................... 46 III.....................................................................................................50 IV...................................................................................................... 54 A CARTOMANTE............................................................................60


A IGREJA DO DIABO

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CAPÍTULO I DE UMA IDEIA MÍRFICA

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onta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. - Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

II ENTRE DEUS E O DIABO

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eus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor. - Que me queres tu? perguntou este.

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- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. - Explica-te. - Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros... - Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura. - Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece? - Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor, - Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental. - Vai - Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra? - Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja? O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: - Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura... - Velho retórico! murmurou o Senhor.

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- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos... Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo. - Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez? - Já vos disse que não. - Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão? - Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. - Negas esta morte? - Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los... - Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

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Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

III A BOA NOVA AOS HOMENS

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ma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas. - Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que

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a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem

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os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para

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as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

IV FRANJAS E FRANJAS

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previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino

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cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: - Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

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UM HOMEM CÉLEBRE

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- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular. - Diga, minha senhora. - É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô. Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna. Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de

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cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu. Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa. Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear. - Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir. Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver. Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da

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noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café. Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos,

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ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou. - Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes. - A bengala. - Mas parece que hoje chove. - Chove, repetiu Pestana maquinalmente. - Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente: - Espera aí. Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda. - Vai fazer grande efeito. Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados

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à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa. - Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor. - Não quer dizer nada, mas populariza-se logo. Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante. Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio. - E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor. Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado. Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites,

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gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil... - As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se. Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar. - Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia. - Vai casar com uma viúva. - Velha? - Vinte e sete anos. - Bonita? - Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica. Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas. Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias. Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um

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princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. - Acaba, disse Maria; não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão. - Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca! Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa. Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um

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ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível. Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda. Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando. Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem. - Para quê? dizia ele a si mesmo. Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor. - Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? - Nada. - Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma

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porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar. Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato. - Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião. Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois. Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio. Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu. - Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu. - Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

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Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se. - Adeus. - Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

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PAPÉIS VELHOS

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B

rotero é deputado. Entrou agora mesmo em casa, às duas horas da noite, agitado, sombrio, respondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquilo, e ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só. Uma vez só, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete, com os olhos no teto e o charuto na boca. Não pensa tranqüilamente; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo sentase; logo depois levanta-se, vai a uma janela, passeia, pára no meio da sala, batendo com o pé no chão; enfim resolve ir dormir, entra no quarto, despe-se, mete-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete. Mal se sentou outra vez no canapé, bateram três horas no relógio da casa. O silêncio era profundo; e, como a divergência dos relógios é o princípio fundamental da relojoaria, começaram todos os relógios da vizinhança a bater, com intervalos desiguais, uma, duas, três horas. Quando o espírito padece, a coisa mais indiferente do mundo traz uma intenção recôndita, um propósito do destino. Brotero começou a sentir esse outro gênero de mortificação. As três pancadas secas, cortando o silêncio da noite, pareciam-lhe as vozes do próprio tempo, que lhe bradava: “Vai dormir”. Enfim, cessaram; e ele pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando: - Não há outro alvitre, é isto mesmo. Dito isso, foi à secretária, pegou da pena e de uma folha de papel, e escreveu esta carta ao presidente do conselho de ministros: “Excelentíssimo senhor “Há de parecer estranho a V. Ex.ª tudo o que vou dizer neste papel; mas, por mais estranho que lhe pareça, e a mim também, há situações tão extraordinárias que só comportam soluções extraordinárias. Não quero desabafar nas esquinas, na Rua do Ouvidor, ou nos corredores da Câmara. Também não quero manifestar-me, na tribuna, amanhã ou depois, quando V. Ex.ª for apresentar o programa do seu ministério; seria digno, mas seria aceitar a cumplicidade de uma ordem de coisas, que inteiramente repudio. Tenho um só alvitre: renunciar à cadeira de deputado e voltar à vida íntima.

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“Não sei se, ainda assim, V. Ex.ª me chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá razão. Mas rogo-lhe que advirta que há duas qualidades de despeito e o meu é da melhor. “Não pense V. Ex.ª que recuo diante de certas deputações influentes, nem que me senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o B... para meter o C... no ministério. Tudo isso são coisas mínimas. A questão para mim é de lealdade, já não digo política, mas pessoal; a questão é com V. Ex.ª. Foi V. Ex.ª que me obrigou a romper com o ministério dissolvido, mais cedo do que era minha intenção, e, talvez mais cedo do que convinha ao partido. Foi V. Ex.ª que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janela, que os meus estudos de questões diplomáticas me indicavam naturalmente a pasta de estrangeiros. Há de lembrar-se que lhe respondi então ser para mim indiferente subir ao ministério, uma vez que servisse ao meu país. V. Ex.ª replicou: - É muito bonito, mas os bons talentos querem-se no ministério. “Na Câmara, já pela posição que fui adquirindo, já pelas distinções especiais de que era objeto, dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira ocasião; e, ao ser chamado V. Ex.ª ontem para organizar o novo gabinete, não se jurou outra coisa. As combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas elas. É que ninguém ignorava as finezas de V. Ex.ª para comigo, os bilhetes em que me louvava, os seus reiterados convites, etc. Confesso a V. Ex.ª que acompanhei a opinião geral. “A opinião enganou-se, eu enganei-me; o ministério está organizado sem mim. Considero esta exclusão um desdouro irreparável, e determinei deixar a cadeira de deputado a algum mais capaz, e, principalmente, mais dócil. Não será difícil a V. Ex.ª achá-lo entre os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima e consideração. “De V. Ex.ª desobrigado amigo, BROTERO”. Os verdadeiros políticos dirão que esta carta é só verossímil no despeito, e inverossímil na resolução. Mas os verdadeiros políticos ignoram duas coisas, penso eu. Ignoram Boileau, que nos adverte da possível

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inverossimilhança da verdade, em matérias de arte, e a política, segundo a definiu um padre da nossa língua, é a arte das artes; e ignoram que um outro golpe feria a alma do Brotero naquela ocasião. Se a exclusão do ministério não bastava a explicar a renúncia da cadeira, outra perda a ajudava. Já têm notícia do desastre político; sabem que houve crise ministerial que o conselheiro *** recebeu do Imperador o encargo de organizar um gabinete, e que a diligência de um certo B... conseguiu meter nele um certo C... A pasta deste foi justamente a de estrangeiros, e o fim secreto da diligência era dar um lugar na galeria do Estado à viúva Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que abastada, elegera dias antes para seu marido o recente ministro. Tudo isso iria menos mal, se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viúva; mas, cobiçá-las, cortejá-las e perdê-las, sem que ao menos uma viesse consolá-lo, da perda da outra, digam-me francamente se não era bastante a explicar a renúncia do nosso amigo? Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescritou-a; depois atirou-a a um lado, para remetê-la no dia seguinte. O destino lançara os dados. César transpunha o Rubicão, mas em sentido inverso. Que fique Roma com os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis! Ele volve à região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas de aparato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou; e levantou-se porque ouviu bater quatro horas, e recomeçar a procissão dos relógios, a cruel e implicante monotonia das pêndulas. Uma, duas, três, quatro... Não tinha sono, não tentou sequer meter-se na cama. Entrou a andar de um lado para outro, passeando, planeando, relembrando. De memória em memória, reconstruiu as ilusões de outro tempo, comparou-as com as sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dor, mirou afincadamente essas ilusões perdidas, como uma velha contempla as suas fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia que, em todas as dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que futuro? Ele não via nada. E foi-se achegando da secretária, onde tinha guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos correligionários políticos, todas as

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cartas. Já agora não podia conciliar o sono; ia reler esses papéis velhos. Não se relêem livros antigos? Abriu a gaveta; tirou dois ou três maços e desatou-os. Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de cemitério; donde se pode inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E ele começou a relê-las, uma a uma, as de dez páginas e os simples bilhetes, mergulhando nesse mar morto de recordações apagadas, negócios pessoais ou públicos, um espetáculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma confidência amorosa. Uma das cartas, assinada Vasconcelos, fê-lo estremecer: “A L..., dizia a carta, chegou a S. Paulo, anteontem. Custou-me muito e muito obter as tuas cartas, mas alcancei-as, e daqui a uma semana estarão contigo; levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na tua de H... estimo que tenhas perdido a tal idéia fúnebre; era um despropósito. Conversaremos à vista”. Esse simples trecho trouxe-lhe uma penca de lembranças. Brotero atirou-se a ler todas as cartas do Vasconcelos. Era um companheiro dos primeiros anos, que naquele tempo cursava a academia, e agora estava de presidente no Piauí. Uma das cartas, muito anterior àquela, dizia-lhe: “Com que então a L... agarrou-te deveras? Não faz mal; é boa moça e sossegada. E bonita, maganão! Quanto ao que me dizes do Chico Souza, não acho que devas ter nenhum escrúpulo; vocês não são amigos; dão-se. E depois, não há adultério. Ele devia saber que quem edifica em terreno devoluto...” Treze dias depois: “Está bom, retiro a expressão terreno devoluto; direi terreno que, por direito divino, humano e diabólico, pertence ao meu amigo Brotero. Estás satisfeito?” Outra, no fim de duas semanas: “Dou-te a minha palavra de honra que não há no que disse a menor falta de respeito aos teus sentimentos; gracejei, por supor que a tua paixão não era tão séria. O dito por não dito. Custa pouco mudar de estilo, e

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custa muito perder um amigo, como tu...” Quatro ou cinco cartas referiam-se às suas efusões amorosas. Nesse intervalo o Chico Souza farejou a aventura e deixou a L...; e o nosso amigo narrou o lance ao Vasconcelos, contente de a possuir sozinho. O Vasconcelos felicitou-o, mas fez-lhe um reparo. “... Acho-te exigente e transcendente. A coisa mais natural do mundo é que essa moça, perdendo um homem a quem devia atenções e que lhe dera certo relevo, recebesse com alguma dor o golpe. Saudade, infidelidade, dizes tu. Realmente, é demais. Isso não prova senão que ela sabe ser grata aos benefícios recebidos. Quanto à ordem que lhe deste de não ficar com um só traste, uma só cadeira, um pente, nada do que foi do outro, acho que não a entendi bem. Dizes-me que o fizeste por um sentimento de dignidade; acredito. Mas não será também um pouco de ciúme retrospectivo? Creio que sim. Se a saudade é uma infidelidade, o leque é um beijo; e tu não queres beijos nem saudades em casa. São maneiras de ver...” Brotero ia assim relendo a aventura, um capítulo inteiro da vida não muito longo, é verdade, mas cálido e vivo. As cartas abrangiam um período de dez meses; desde o sexto mês começaram os arrufos, as crises, as ameaças de separação. Ele era ciumento; ela professava o aforismo de que o ciúme significa falta de confiança; chegava mesmo a repetir esta sentença vulgar e enigmática: “zelos, sim, ciúmes, nunca”. E dava de ombros, quando o amante mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia alguma exigência. Então ele excedia-se; e aí vinham as cenas de irritação, de reproches, de ameaças, e por fim de lágrimas. Brotero às vezes deixava a casa, jurando não voltar mais; e voltava logo no dia seguinte, contrito e manso. Vasconcelos reprimia-o de longe; e, em relação às deixadas e tornadas, dizia-lhe uma vez: “Má política, Brotero; ou lê o livro até o fim, ou fecha-o de uma vez; abri-lo e fechá-lo, fechá-lo e abri-lo é mau, porque traz sempre a necessidade de reler o capítulo anterior para ligar o sentido, e livros relidos são livros eternos”. A isto respondia o Brotero que sim, que ele tinha razão, que ia emendar-se de uma vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu.

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Os anjos dissolveram a sociedade. Parece que o anjo L..., exausto da perpétua antífona, ouviu cantar Dáfnis e Cloé, cá embaixo, e desceu a ver o que é que podiam dizer tão melodiosamente as duas criaturas. Dáfnis vestia então uma casaca e uma comenda, administrava um banco, e pintava-se; o anjo repetiu-lhe a lição de Cloé; adivinha-se o resto. As cartas de Vasconcelos neste período eram de consolação e filosofia. Brotero lembrou-se de tudo o que padeceu, das imprudências que praticou, dos desvarios, que lhe trouxe aquela evasão de uma mulher, que realmente o tinha nas mãos. Tudo empregara para reavê-la e tudo falhara. Quis ver as cartas que lhe escreveu por este tempo, e que o Vasconcelos, mais tarde, pôde alcançar dela em S. Paulo e foi à gaveta onde as guardara com as outras. Era um maço atado com fita preta. Brotero sorriu da fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou nada, data ou vírgula; leu tudo, explicações, imprecações, súplicas, promessas de amor e paz, uma fraseologia incoerente e humilhante. Nada faltava a essas cartas; lá estava o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler, mas supunha-se. A frase era esta: “Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...” Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito. A última carta falava de suicídio. Brotero, ao reler esse tópico, sentiu uma coisa indefinível, chamemos-lhe o “calafrio do ridículo evitado”. Realmente se ele se houvesse eliminado, não teria o presente desgosto político e pessoal; mas o que não diriam dele nos pasmatórios da Rua do Ouvidor, nas conversações à mesa? Viria tudo à rua, viria mais alguma coisa; chamar-lhe-iam frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro assunto, uma ópera, por exemplo. - Uma, duas, três, quatro, cinco principiaram a dizer os relógios. Brotero recolheu as cartas, fechou-as uma a uma, emaçou-as, atou-as e meteu-as na gaveta. Enquanto fazia esse trabalho, e ainda alguns minutos depois, deu-se a um esforço interessante: reaver a sensação perdida.

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Tinha recomposto mentalmente o episódio, queria agora recompô-lo cordialmente; e o fim não era outro senão cotejar o efeito e a causa, e saber se a idéia do suicídio tinha sido um produto natural da crise. Logicamente, assim era; mas Brotero não queria julgar através do raciocínio e sim da sensação. Imaginai um soldado a quem uma bala levasse o nariz, e que, acabada a batalha, fosse procurar no campo o desgraçado apêndice. Suponhamos que o acha entre um grupo de braços e pernas; pega dele, levanta-o entre os dedos, - mira-o, examina-o, é o seu próprio... Mas é um nariz ou um cadáver de nariz? Se o dono lhe puser diante os mais finos perfumes da Arábia, receberá em si mesmo a sensação do aroma? Não: esse cadáver de nariz nunca mais lhe transmitirá nenhum cheiro bom ou mau; pode levá-lo para casa, preservá-lo, embalsamá-lo; é o mesmo. A própria ação de assoar o nariz, embora ele a veja e compreenda nos outros, nunca mais há de podê-la compreender em si, não chegará a reconhecer que efeito lhe causava o contacto da ponta do nariz com o lenço. Racionalmente, sabe o que é; sensorialmente, não saberá mais nada. - Nunca mais? pensou o Brotero... Nunca mais poderei... Não podendo obter a sensação extinta, cogitou se não aconteceria o mesmo à sensação presente, isto é, se a crise política e pessoal, tão dura de roer agora, não teria algum dia tanto valor como os velhos diários, em que se houvesse dado a notícia do novo gabinete e do casamento da viúva. Brotero acreditou que sim. Já então a arraiada vinha clareando o céu. Brotero ergueu-se; pegou da carta que escrevera ao presidente do conselho, e chegou-a à vela; mas recuou a tempo. - Não, disse ele consigo; juntemo-la aos outros papéis velhos; inda há de ser um nariz cortado.

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MISSA DO GALO

MISSA DO GALO

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N

unca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora

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do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. - Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? Perguntou-me a mãe de Conceição. - Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. - Ainda não foi? Perguntou ela. - Não fui; parece que ainda não é meia-noite. - Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: - Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

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- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. - Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. - Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. - Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. - Justamente: é muito bonito. - Gosta de romances? - Gosto. - Já leu a Moreninha? - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. - Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto: - D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... - Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? - Já tenho feito isso. - Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. - Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho

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honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. - É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. - Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: - Mais baixo! Mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu

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lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: - Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. - Eu também sou assim. - O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. - Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada. - Foi o que lhe aconteceu hoje. - Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: - Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigome, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava

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de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. - Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. - São bonitos, disse eu. - Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. - De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. - Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu

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sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. - Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!” - Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. - Já serão horas? perguntei. - Naturalmente. - Missa do galo! repetiram de fora, batendo. -Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba.

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Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

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LONGE DOS OLHOS...

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I

N

a verdade, era pena que uma moça tão prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum sentimento inspirasse ao bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um herói de romance. E não é romance isto, senão história verídica e real, pelo que, vai esta narrativa com as exíguas proporções de uma notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o caso foi. Sabido que os dois se não amavam nem pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o interesse dos pais é que eles se amassem e casassem. Os pais punham uma coisa, e Deus dispunha outra. O comendador Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à assembléia geral. O desembargador pela sua parte achava que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia receber o filho do comendador, por morte deste. Pena era que os dois jovens, esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se freqüentemente, as reuniões e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar nem Serafina pareciam dar um passo para o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou a resolução de lho dar sondando o espírito do bacharel. - João, disse o velho pai certa noite de domingo, depois do chá, achando-se com o filho a sós no gabinete: Acaso nunca pensaste em ser homem político? - Oh! nunca! respondeu o bacharel espantado com a pergunta. Por que razão pensaria eu na política? - Pela mesma razão porque outros pensam...

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- Mas eu não tenho vocação. - A vocação faz-se. João sorriu. O pai continuou. - Não te faço esta pergunta à toa. Já houve quem me perguntasse a mesma coisa a teu respeito, eu não tive que responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso. - Quais eram? - Diziam-me que tu andavas em colóquios e conferências com o desembargador. - Eu? Mas naturalmente converso com ele; é pessoa da nossa amizade. - Foi o que eu disse. A pessoa pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra coisa... O bacharel arregalou os olhos à espera de ouvir outra coisa, enquanto o comendador acendia um charuto. - Imaginou então, continuou o comendador puxando uma fumaça, que tu andavas... quero dizer... que pretendias... em suma, um namoro! - Um namoro! - É verdade. - Com o desembargador? - Velhaco! com a filha. João Aguiar deu uma gargalhada. O pai pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta. Depois de um silêncio: - Mas não vejo que houvesse alguma coisa de admirar, disse o comendador; tem-se visto namorar muito rapaz e muita moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se com freqüência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho supusesse alguma coisa? - Tem razão; mas não é verdade. - Pois tanto melhor... ou tanto pior. - Pior? - Maganão! disse o velho pai afetando um ar galhofeiro, parece-te que

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a moça é algum peixe podre? Pela minha parte, entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare. - Oh! - Oh! quê! - Protesto. - Protestas? Achas então que ela... - Acho que é muito formosa e prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que conhecemos... - Mostra-me alguma... - Ora, há tantas! Mostra-me uma. - A Cecília por exemplo, a Cecília Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador. - Não digas isso; uma lambisgóia! - Meu pai! disse João Aguiar com um tom de ressentimento que fez pasmar o comendador. - Que é? perguntou este. João Aguiar não respondeu. O comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas adivinhou alguma coisa desastrosa; - desastrosa, entenda-se, para os seus cálculos conjugo-políticos ou político-conjugais, como melhor nome haja. - Dar-se-á caso que... começou a dizer o comendador. - Que eu a namore? interrompeu galhofeiramente o filho. - Não era isso o que te ia perguntar, acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra coisa), mas visto que tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses... - A verdade? - A singela verdade. - Gosto dela, ela gosta de mim, e aproveito esta ocasião meu pai, para... - Para nada, João! O bacharel fez um gesto de espanto. - Casar, não é? perguntou o comendador. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante coisa? Impossível, não digo que seja; tudo pode

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acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é impossível. - Impossível! - Tu levas-lhe em dote os meus bens, a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer essa beleza que só tu lhe vês. Demais, e isto é o importante, não se dizem boas coisas daquela família. - Calúnias! - Pode ser, mas calúnias que correm e se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade, segue-se que as calúnias triunfarão. Era a primeira vez que o bacharel conversava com o pai a respeito daquele grave ponto do seu coração. Aturdido com as objeções dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida. - Por que te não levou a fantasia à filha do desembargador ou outra nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho. João Aguiar não achou que responder ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si ele estava longe. O bacharel foi para o seu quarto.

II

E

ntrando no quarto, João Aguiar fez alguns gestos de enfado e zanga e de si para si prometeu que, embora não agradasse ao pai, havia de casar com a formosa Cecília, cujo amor era para ele já uma necessidade da vida... O pobre rapaz tão depressa fez este protesto como entrou a ficar frio com a idéia de uma luta, que se lhe afigurava odiosa para ele e para

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o pai, em todo o caso triste para ambos. As palavras deste relativamente à família da namorada fizeram-lhe grave impressão no espírito; mas ele concluiu, que ainda sendo verdadeira a murmuração, nada tinha com isso a formosa Cecília, cujas qualidades morais estavam acima de todo o elogio. A noite correu assim nestas e noutras reflexões até que o bacharel dormiu e na manhã seguinte alguma coisa se lhe havia dissipado das apreensões da véspera. - Tudo se pode vencer, disse ele; o que é preciso é ser constante. O comendador, porém, tinha dado o passo mais difícil que era falar no assunto ao filho; vencido o natural acanhamento que resultava da situação de ambos, aquele assunto tornou-se assunto obrigado de quase todos os dias. As visitas à casa do desembargador amiudaram-se; amiudaram-se igualmente as deste à casa do comendador. Os dois jovens foram assim metidos à casa um do outro; mas se João Aguiar parecia frio, Serafina parecia gélida. Os dois estimavam-se antes, e ainda se estimavam então; entretanto, a nova situação que lhes haviam criado, estabelecera entre ambos uma certa repulsa que a polidez mal disfarçava. Porquanto, leitora amiga, o desembargador fizera à filha um discurso igual ao do comendador. As qualidades do bacharel foram postas em relevo com suma habilidade; as razões financeiras do casamento, melhor direi as vantagens dele foram levemente indicadas de maneira a desenhar aos olhos da moça um brilhante futuro de pérolas e carruagens. Infelizmente, (tudo se conspirava contra os dois pais) infelizmente havia no coração de Serafina um obstáculo semelhante ao que João Aguiar tinha no seu, Serafina amava a outro. Não se atreveu a dizê-lo ao pai, mas foi dizê-lo a sua mãe, que não aprovou nem desaprovou a escolha visto que a senhora pensava pela boca do marido, a quem foi transmitida a revelação da filha. - Isto é uma loucura, exclamou o desembargador; esse rapaz (o escolhido) é bom coração, tem carreira, mas a carreira está no princípio, e demais... creio que é um pouco leviano. Serafina soube deste juízo do pai e chorou muito; mas nem o pai soube

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das lágrimas nem que soubesse mudaria de intenção. Um homem grave, quando resolve uma coisa, não deve expor-se ao ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher. Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem austero. Conclusão; a moça chorou à toa, e só violando as leis da obediência, poderia realizar os desejos do seu coração. Que fez então ela? Recorreu ao tempo. - Quando meu pai vir que eu sou constante, pensou Serafina, há de consentir no que pede o coração. E dizendo isto, entrou a lembrar-se das amigas a quem acontecera o mesmo e que à força de paciência e tenacidade domaram os pais. O exemplo alentou-a; sua resolução era definitiva. Outra esperança tinha a filha do desembargador; era que o filho do comendador se casasse, o que não era impossível nem improvável. Nesse caso, cumpria-lhe ser com João Aguiar extremamente reservada a fim de que ele não viesse a conceber esperanças a seu respeito, o que tornaria muito precária a situação e daria triunfo ao pai. Ignorava a boa moça que João Aguiar fazia a mesma reflexão, e pelo mesmo motivo se mostrava frio com ela. Um dia, andando as duas famílias na chácara da casa do comendador, em Andaraí, aconteceu encontrarem-se os dois numa alameda, quando justamente não passava ninguém. Ambos mostraram-se incomodados com aquele encontro e de boa vontade teriam recuado; mas não era natural nem bonito. João Aguiar resolveu cumprimentá-la apenas e ir adiante, como quem levava o pensamento preocupado. Parece que isto foi fingido demais, porque no melhor do papel, João Aguiar tropeça num pedaço de cana que se achava no chão e cai. A moça deu dois passos para ele, que apressadamente se levantou: - Machucou-se? perguntou ela. - Não, D. Serafina, não me machuquei, disse ele, limpando com o lenço os joelhos e as mãos. - Papai está cansado de ralhar com o feitor; mas é o mesmo que nada.

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João Aguiar apanhou o pedaço de cana e atirou-o para uma moita de bambus. Durante esse tempo vinha-se aproximando um moço, visita da casa, e Serafina pareceu um tanto confusa com a presença dele, não porque ele viesse mas por achá-la a conversar com o bacharel. A leitora, que é perspicaz, adivinhou já que é o namorado de Serafina; e João Aguiar, que não é menos perspicaz que a leitora, percebeu a coisa do mesmo modo. - Ainda bem, disse ele consigo. E cumprimentando a moça e o rapaz ia seguindo pela alameda fora quando Serafina amavelmente o chamou. - Não nos acompanha? disse ela. - Com muito gosto, balbuciou o bacharel. Serafina fez um sinal ao namorado para que ele se tranqüilizasse, e os três seguiram a conversar de coisas que não interessam à nossa estória. Não; há uma que interessa e não posso omitir. Tavares, o namorado da filha do desembargador, não compreendeu que ela, chamando o filho do comendador a seguir caminho com eles, tinha por fim evitar que o pai ou a mãe a encontrasse só com o namorado, o que agravaria singularmente a situação. Há namorados a quem é preciso dizer tudo; Tavares era um deles. Inteligente e atilado em todas as outras coisas, era neste particular uma verdadeira toupeira. Por esse motivo, apenas ouviu o convite da moça, a cara, que já anunciava mau tempo, passou a anunciar temporal desfeito, o que também não escapou ao bacharel. - Sabe que o Dr. Aguiar levou agora uma queda? disse Serafina olhando para Tavares. - Ah! - Não desastrosa, disse o bacharel, isto é, não me fez mal nenhum; mas... ridícula. - Ah! protestou a moça. - Uma queda é sempre ridícula, tornou João Aguiar em tom axiomático; e podem já imaginar o que seria do meu futuro, se eu fosse... - O quê? perguntou Serafina. - Seu namorado.

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- Que idéia! exclamou Serafina. - Que dúvida pode haver nisso? perguntou Tavares com um sorriso irônico. Serafina estremeceu e baixou os olhos. João Aguiar respondeu rindo: - A coisa era possível, mas deplorável. Serafina lançou um olhar de repreensão ao seu namorado e voltou-se rindo para o bacharel. - Não diz isso por desdém, acho eu? - Oh! por quem é! Digo isto porque... - Aí vem Cecília! exclamou a irmã mais moça de Serafina, aparecendo no fim da alameda. Serafina que estava a olhar para o filho do comendador viu-o estremecer e sorriu-se. O bacharel olhou para o lado de onde logo apareceu a dama dos seus pensamentos. A filha do desembargador inclinou-se para o ouvido de Tavares e murmurou: - Ele diz isto... por causa daquilo. Aquilo era a Cecília que chegava, não tão formosa quanto queria João Aguiar, nem tão pouco como parecia ao comendador. Aquele encontro casual na alameda, aquela queda, aquela vinda de Tavares e de Cecília tão a propósito, tudo melhorou a situação e desafogou a alma dos dois jovens destinados por seus pais a um casamento que lhes parecia odioso.

III

De inimigos que deviam ser os dois condenados ao casamento passaram a ser naturalmente aliados. Esta aliança veio devagar, porque, apesar de tudo, ainda se passaram algumas semanas sem que nenhum deles comunicasse ao outro a situação em que se achava. O bacharel foi o primeiro que falou, e não ficou pouco pasmado ao saber

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que o desembargador nutria a respeito da filha igual plano ao de seu pai. Haveria acordo dos dois pais? foi a primeira pergunta que ambos fizeram consigo mesmo; mas houvesse ou não, o perigo para eles não diminuía nem aumentava. - Oh! sem dúvida, dizia João Aguiar, sem dúvida que eu seria muito feliz se os desejos de nossos pais correspondessem aos de nossos corações; mas há um abismo entre nós e a união seria... - Uma desgraça, concluía afoitamente a moça. Pela minha parte, confio no tempo; confio sobretudo em mim; ninguém leva uma moça à força para a igreja e quando tal coisa se fizesse ninguém lhe podia arrancar dos lábios uma palavra por outra. - Todavia, nada impede que à liga de nossos pais, disse João Aguiar, opuséssemos nós uma liga... nós quatro. A moça abanou a cabeça. - Para quê? disse ela. - Mas... - A verdadeira liga é a vontade. Sente-se com força de ceder? Então é que não ama... - Oh! amo como se pode amar! - Ah!... - A senhora é bela; mas Cecília também o é, e o que eu vejo nela não é a beleza, quero dizer as graças físicas, é a alma incomparável que Deus lhe deu! - Amam-se há muito? - Há sete meses. - Admira que ela nunca me dissesse nada. - Talvez receio... - De quê? - De revelar o segredo do seu coração... Bem sei que não há crime nisto, todavia pode ser que por um sentimento de discrição exagerada. - Tem razão, disse Serafina depois de alguns instantes; também eu nada lhe disse a meu respeito. Demais, entre nós não há grande intimidade. - Mas deve haver, há de haver, disse o filho do comendador. Vê-se que

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nasceram para ser amigas; ambas tão igualmente boas e belas. Cecília é um anjo... Se soubesse o que me disse quando eu lhe contei a proposta de meu pai! - Que disse? - Estendeu-me a mão apenas; foi tudo quanto me disse; mas esse gesto era tão eloqüente! Eu traduzi-o por uma expressão de confiança. - Foi mais feliz do que eu? - Ah! - Mas não falemos nisto. O essencial é que tanto eu como o senhor tenhamos feito uma boa escolha. O céu há de proteger-nos; estou certa disso. A conversa continuou assim por este modo singelo e franco. Os dois pais, que ignoravam absolutamente o objeto da conversa deles, imaginavam que a natureza os ajudava no plano do casamento e, longe de impedir, lhes facilitavam as ocasiões. Graças a este equívoco, os dois podiam repetir essas doces práticas em que cada um ouvia o seu próprio coração e falava do objeto escolhido por ele. Não era um diálogo, eram dois monólogos, algumas vezes interrompidos mas sempre longos e cheios de animação. Com o tempo vieram eles a fazer-se confidentes mais íntimos; esperanças, arrufos, ciúmes, todas as alternativas de um namoro, comunicados um ao outro; um ao outro se consolavam e se aconselhavam em casos em que eram necessários consolação e conselho. Um dia o comendador disse ao filho que era conhecido o namoro dele com a filha do desembargador, e que o casamento podia ser feito naquele ano. João Aguiar caiu das nuvens. Compreendeu, porém, que a aparência enganava ao pai, e o mesmo podia acontecer às pessoas estranhas. - Mas nada há, meu pai. - Nada? - Juro-lhe que... - Retira-te e lembra-te do que te disse... - Mas... O comendador havia já voltado as costas. João Aguiar ficou só a braços

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com a nova dificuldade. Para ele, a necessidade de uma confidente era já invencível. E onde acharia melhor que a filha do desembargador? Era idêntica a situação de ambos, iguais os interesses; além disso, havia em Serafina uma soma de sensibilidade, uma reflexão, uma prudência, uma confiança, como ele não encontraria em nenhuma outra pessoa. Ainda quando a outra pessoa pudesse dizer-lhe as mesmas coisas que a filha do desembargador, não lhas diria com a mesma graça, e a mesma doçura; um não sei o que o levava a lastimar não poder fazê-la feliz. - Meu pai tem razão, dizia ele às vezes consigo; se eu não amasse a outra, devia amar a esta, que é certamente comparável a Cecília. Mas é impossível; meu coração está preso a outros laços... A situação, entretanto, complicava-se, toda a família de João Aguiar dizia-lhe que a sua verdadeira e melhor noiva era a filha do desembargador. Para acabar com todas essas insinuações, e seguir os impulsos do seu coração, teve o bacharel idéia de raptar Cecília, idéia extravagante e só filha do desespero, visto que o pai e a mãe da namorada nenhum obstáculo punham ao casamento deles. Ele mesmo reconheceu que o recurso era um despropósito. Ainda assim disse-o a Serafina, que amigavelmente o repreendeu: - Que idéia foi essa! exclamou a moça, além de desnecessário, não era... não era decorosa. Olhe, se fizesse isso nunca mais devia falar-me... - Não me perdoaria? - Nunca! - Entretanto, a minha posição é dura e triste. - Não o é menos a minha. - Ser amado, poder ser feliz tranqüilamente feliz para todos os dias da minha vida... - Oh! isso! - Não crê? - Quisera crer. Mas está-me a parecer que a felicidade que sonhamos quase nunca sai à medida dos nossos desejos, e que mais vale uma quimera que uma realidade. - Adivinho, disse João Aguiar.

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- Adivinha o quê? - Algum arrufo. - Oh! não! nunca estivemos melhor; nunca andamos mais tranqüilos do que agora. - Mas... - Mas não permite que às vezes a dúvida entre no coração? Não é ele do mesmo barro que os outros? João Aguiar refletiu alguns instantes. - Talvez tenha razão, disse ele enfim, a realidade não será sempre tal qual a sonhamos. Mas isto mesmo é uma harmonia na vida, é uma grande perfeição do homem. Se víssemos logo a realidade como ela há de ser quem daria um passo para ser feliz?... - Isso é verdade! exclamou a moça e deixou-se ficar pensativa enquanto o bacharel lhe contemplava a admirável cabeça e a graciosa maneira com que ela trazia os cabelos penteados. A leitora há de desconfiar muita coisa às teorias dos dois confidentes relativamente à felicidade. Pela minha parte, posso afiançar que João Aguiar não pensava uma só palavra que disse; não o pensava antes, quero eu dizer; ela porém tinha o secreto poder de lhe influir as suas idéias e sentimentos. Não poucas vezes dizia ele que se ela fosse fada podia dispensar a vara de condão: bastava falar.

IV

U

m dia, Serafina recebeu uma carta de Tavares dizendo-lhe que não voltaria mais à casa de seu pai, por este lhe haver mostrado má cara nas últimas vezes que ele lá estivera. Má cara é exageração de Tavares, cuja desconfiança era extrema e às vezes pueril; é certo que o desembargador não gostava dele, depois que soube das intenções com que ali ia, e é possível, é até certo que o seu modo afetuoso para com ele sofreu alguma diminuição. A fantasia de

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Tavares é que fez daquilo má cara. Eu aposto que o leitor, em caso igual, redobrava de atenções com o pai, a ver se lhe reconquistava as boas graças, e entretanto ia gozando a fortuna de ver e contemplar a dona dos seus pensamentos. Tavares não fez assim; tratou logo de romper as suas relações. Serafina sentiu sinceramente esta resolução do namorado. Escreveulhe dizendo que refletisse bem e voltasse atrás. Mas o namorado era homem teimoso; meteu os pés à parede, e não voltou. Jurar-lhe amor isso fez ele, e não deixava de lhe escrever todos os dias, cartas muito longas, muito repassadas de sentimento e de esperanças. João Aguiar soube do que se passara e procurou por sua vez dissuadi-lo da funesta resolução. Tudo foi baldado. - A desconfiança é o único defeito dele, dizia Serafina ao filho do comendador; mas é grande. - É um defeito bom e mau, observou João Aguiar. - Não é sempre mau. - Mas como não há criatura perfeita, é justo relevar-lhe esse único defeito. - Oh! de certo; contudo... - Contudo? - Preferia que o defeito fosse outro. - Outro qual? - Outro qualquer. A desconfiança é uma triste companheira; arreda toda a felicidade. - Eu a esse respeito, não tenho motivo de queixa... Cecília tem a virtude oposta num grau que me parece excessivo. Há nela um quê de simplória... - Oh! Aquele oh de Serafina foi como que um protesto e repreensão, mas acompanhado de um sorriso, não digo aprovador, mas benévolo. Defendia a moça ausente, mas talvez achasse que João Aguiar tinha razão. Dois dias depois adoeceu levemente o bacharel. A família do desembargador foi visitá-lo. Serafina escrevia-lhe todos os dias. Cecília, é Inútil dizê-lo, escrevia-lhe também. Mas havia uma diferença: Serafina escrevia

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melhor; havia mais sensibilidade na sua linguagem. Pelo menos, as cartas dela foram relidas mais vezes que as de Cecília. Quando ele se levantou da cama, estava bom fisicamente, mas recebeu um golpe na alma. Cecília ia para a roça durante dois meses; eram manias do pai. O comendador estimou este incidente, supondo que de uma vez para sempre o filho a esqueceria. O bacharel, entretanto, sentiu muito a separação. A separação efetuou-se daí a cinco dias. Cecília e João Aguiar escreveram um ao outro grandes protestos de amor. - Dois meses! dizia o bacharel da última vez que lhe falara. Dois meses é a eternidade... - Sim, mas havendo constância... - Oh! essa! - Essa havemos de tê-la ambos. Não te esqueças de mim, sim? - Juro. - Falarás de mim muitas vezes com Serafina? - Todos os dias. Cecília partiu. - Está muito triste? disse a filha do desembargador logo que nessa mesma tarde falou ao bacharel. - Naturalmente. - São apenas dois meses. - Fáceis de suportar. - Fáceis? - Sim, conversando com a senhora, que sabe tudo, e fala destas coisas de coração como senhora de espírito que é. - Sou um eco das suas palavras. - Quem dera que assim fosse! Eu poderia então ter vaidade de mim. João Aguiar disse estas palavras sem tirar os olhos da mão de Serafina, que mui graciosamente brincava com os cabelos. A mão de Serafina era realmente uma bela mão; nunca, porém, lhe pareceu mais bela do que naquele dia, nem ela a movera nunca com tamanha graça.

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Nessa noite João Aguiar sonhou com a mão da filha do desembargador. Que lhe havia de pintar a fantasia? Imaginou estar no alto das nuvens, a olhar pasmado o céu azul, donde viu repentina mente sair uma mão alva e delicada, a mão de Serafina, que se estendia para ele, que lhe acenava, que o chamava para o céu. Riu-se João Aguiar deste singular sonho e foi contá-lo no dia seguinte à proprietária da mão. Também ela riu do sonho; mas tanto ele como ela pareciam estar convencidos lá no seu interior que a mão era efetivamente angélica e era natural vê-la em sonhos. Quando ele se despediu: - Não vá sonhar outra vez com ela, disse a moça estendendo a mão ao bacharel. - Não desejo outra coisa. Não sonhou outra vez com a mão, mas pensou muito nela e dormiu tarde. No dia seguinte para se castigar desta preocupação, escreveu uma longa carta a Cecília falando muito de seu amor e dos projetos de futuro. Cecília recebeu a carta cheia de contentamento, porque muito tempo havia já que ele não escrevia carta tão longa. A resposta dela foi ainda mais comprida. Um período da carta convém ser transcrito aqui: Dizia assim: “Se eu fosse ciumenta... se eu fosse desconfiada... havia de te dizer agora muito duras coisas. Mas não digo, descansa; amo-te e sei que me amas. Mas por que havia eu de dizer duras coisas? Porque nada menos de quatorze vezes falas no nome de Serafina. Quatorze vezes! Mas são quatorze vezes em quatorze páginas, que são todas minhas”. João Aguiar não se lembrava de haver escrito tanta vez o nome da filha do desembargador; lembrava-se, porém, de haver pensado muito nela enquanto escrevia a carta. Felizmente nada mau resultara, e o jovem namorado achou que ela tinha razão na queixa. Nem por isso deixou de mostrar o trecho acusador à namorada do Tavares, que sorriu e agradeceu a confiança. Mas foi um agradecimento com a voz trêmula e um sorriso de íntima satisfação.

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Parece que as quatorze páginas deviam servir para longo tempo, porque a seguinte carta foi apenas de duas e meia. A moça queixou-se, mas com brandura, e concluiu pedindo-lhe que fosse vê-la à roça, ao menos por dois dias, visto que o pai resolvera lá ficar mais quatro meses, além do prazo marcado para a volta. Era difícil ao filho do comendador ir lá ter sem oposição do pai. Imaginou porém um meio bom; inventou um cliente e um processo, ambos os quais o digno comendador engoliu, cheio de satisfação. João Aguiar partiu para a roça. Ia por dois dias apenas; os dois dias correm nas delícias que o leitor pode imaginar, mas com uma sombra, uma coisa inexplicável. João Aguiar, ou porque aborrecesse a roça ou porque amasse demais a cidade, sentia-se um pouco tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência. - Serafina tem mais comedimento, dizia ele. No quarto dia escreveu uma carta à filha do desembargador, que lhe respondeu com outra, e se eu disser à leitora que tanto um como outro beijaram as cartas recebidas, a leitora verá que a história se aproxima do fim e que a catástrofe está próxima. Catástrofe, na verdade, e terrível foi a descoberta que tanto o bacharel como a filha do desembargador fizeram de que se amavam e já de longos dias. Foi principalmente a ausência que lhes confirmou a descoberta. Os dois confidentes aceitaram esta novidade um pouco perplexos, mas muito contentes. A alegria era travada de remorso. Havia dois embaçados, a quem eles fizeram grandes protestos e juramentos repetidos. João Aguiar não resistiu ao novo impulso do coração. A imagem da moça, sempre presente, fazia-lhe tudo cor-de-rosa. Serafina, porém, resistiu; a dor que ia causar no ânimo de Tavares deu-lhe forças para calar o seu próprio coração. Em conseqüência disto, começou a evitar toda a ocasião de encontro

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com o jovem bacharel. Isto e lançar lenha ao fogo era a mesma coisa. João Aguiar sentiu um obstáculo com que não contava, o amor cresceu-lhe e apoderou-se dele. Não contava com o tempo e o coração da moça. A resistência de Serafina durou o que duram as resistências de quem ama. Serafina amava; no fim de quinze dias abateu as armas. Tavares e Cecília estavam vencidos. Eu desisto de dizer ao leitor o abalo produzido naquelas duas almas pela ingratidão e perfídia dos dois felizes namorados. Tavares enfureceu-se e Cecília definhou longo tempo; afinal Cecília casou e Tavares está diretor de companhia. Não há dor eterna. - Bem dizia eu! exclamou o comendador quando o filho lhe impetrou licença para ir pedir a mão de Serafina. Bem dizia eu que vocês deviam casar! Custou muito! - Alguma coisa. - Mas agora? - Definitivo. Casaram-se há alguns anos aqueles dois confidentes. Recusaram fazer à força aquilo que o coração lhes indicou depois. Há de ser duradouro o casamento.

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A CARTOMANTE

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H

amlet observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. - Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade. - Errou! interrompeu Camilo, rindo. - Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois. - Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. - Onde é a casa? - Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: - Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita,

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e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. - O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

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Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era

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uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. - Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

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- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. “Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...” Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas,

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quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: - Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia...” Que perdia ele, se...? Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

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A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: - Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. - E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... - A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso. - As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. - A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. - Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a

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mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. - Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? - Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. - Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. - Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam,

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com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. - Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

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