ZARTI edição 01 • 2019
ZANETE MUHOLI • GUERRILLA GIRLS • SHIN NESHAT
CURADORIA
Espaço dedicado a trabalhos indicados pelos nossos leitores. Nessa edição contamos com as ilustrações vibrantes da artista Martina Paukova. Para enviar o seu trabalho envie um e-mail com o título “Curadoriaˮ para o endereço contato@zarti.com
EDITORIAL Boas-vindas à ZARTI! Somos uma revista semestral que visa abordar subjetividades que permeiam as relações sociais através da manifestação artística, em especial produções realizadas por mulheres artistas, historiadoras, curadoras, estudiosas e educadoras. Nessa edição, traremos os impactantes e profundos olhares anticoloniais, antipatriarcais e combativos das artistas Zanete Muholi e Shin Neshat, entrevista com o grupo Guerrilla Girls e as cores de Martina Pauvoka, além de questões para se pensar a performance e a arte no contexto ditatorial brasileiro. Leia, releia, sinta e reflita. Até a próxima edição! Thatiane Moreira da Silva
EXPEDIENTE Projeto editorial desenvolvido para a conclusão da Qualificação Profissional em Design Editorial, Senac Lapa Scipião. Projeto Grafico e Diagramação: Thatiane Moreira Docentes: Sérgio Nicodemo; Fábio Christão Maio, 2019, São Paulo - SP.
5
SUMÁRIO
06
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FOTOGRAFIA
ARTIGO
16
24
Guerrila Girls
Zanete Muholi
Shin Neshat
ARTIVISMO
Performance
CAPA
32
HISTÓRIA
Artes Plásticas na Ditadura
6
Fotos: Shin Neshat /Reprodução
FOTOGRAFIA
A MIRA CERTEIRA DE
SHIN NESHAT
Primeiro, a mira do olhar, muito marcante em todas as fotos da artista, e depois a mira de seus trabalhos: um foco muito bemdefinido nas mulheres e na história do Irã, onde nasceu em 1957. Shirin Neshat não erra o alvo.
FOTOGRAFIA
8
Redação: Camila Mellos (Artes e Ideias)
U
m fascínio peculiar de seu pai pelo Ocidente fez com que Neshat tivesse uma educação ocidentalizada. Segundo a própria artista, o pai “fantasiava o Ocidente, romantizava o Ocidente, e lentamente rejeitou seus próprios valores; tanto ele quanto minha mãe”. A artista estudou em uma escola católica no Teerã, e em 1979, antes da Revolução Iraniana, ela se mudou para os Estados Unidos. Formou-se em Artes na Universidade da Califórnia, e depois partiu para Nova Iorque. Em 1990, voltou ao Irã e declarou ter levado um choque diante das mudanças em seu país. Desenvolveu um interesse especial por questões de gênero, dominação, imperialismo e violência. Os inúmeros trabalhos em fotografia e filme de Neshat buscam problematizar a posição da mulher muçulmana. Para o espectador ocidental, seu trabalho pode ser um tanto difícil, visto que o islamismo é, em geral, um mistério para a maioria das culturas não muçulmanas. O valor da arte de Neshat, no entanto, está exatamente nesse diálogo intercultural e na proposta muito eficaz de sua estética: não importa a nacionalidade do espectador, o conteúdo das obras de Neshat são universais. Mesmo sem compreender os fundamentos do Islã e os escritos e símbolos persas que geralmente estão em suas fotos, Neshat extrapola a gramática. ▲
Foto: Zaneli Muoli /Reprodução
Foto: Zaneli Muoli /Reprodução
10 FOTOGRAFIA
Foto: Zaneli Muoli /Reprodução
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ARTIGO
Redação: SP-ARTE (adaptado)
MAS, AFINAL, O QUE É UMA PERFORMANCE?
O corpo performático Em uma performance, o corpo do artista não serve mais às necessidades básicas ou cotidianas do ser humano, ele é utilizado como instrumento para gerar novos sentidos. No trabalho de Schwartz, o performer se utiliza da nudez para ressignificar sua imagem – ele não mais seria o homem diante da plateia, mas um “bicho” (obra da artista Lygia Clark, manipulável pelo público) à mercê da vontade da audiência em questão. O mesmo acontece com Pavlov-Andreevich. “Durante a performance, o corpo deixa de ser meu e passa a ser uma obra de arte. Em um museu, não se pode tocar em pinturas ou esculturas, a performance é uma das únicas possibilidades artísticas em que a interação com o público não só é permitida como passa a ser parte da própria obra”, afirmou o russo a’O Globo. Para Paula Garcia, curadora do setor Performance da SP-Arte/2018, esse corpo performático é indissociável de uma intenção política. “Mais do que nunca, acho que a performance tem que trazer um corpo político, tem que trazer um corpo que esteja em diálogo profundo com o contemporâneo, consciente do que está acontecendo”, reflete. a potência da mente Mas não é só de corpo que se faz uma performance. O desafio é sobretudo mental. “O performer não precisa ser
um atleta, a realização de determinada obra está muita mais ligada a um preparo emocional e mental”, afirma Paula. Na obra “Noise Body”, a artista, após ficar sentada por cinco horas, veste uma armadura de metal e recebe um bombardeio de peças, que, à medida que se aglutinam na vestimenta, a tornam mais pesada. Mesmo claustrofóbica – confessa Paula – ela se sustentou de pé até atingir quase meia tonelada sobre o corpo. Como? “A arte e a performance vêm de um lugar que a gente não sabe. Estão muito mais ligadas ao afeto, ao coração, ao instinto, ao amor, à raiva, à emoção do momento…”, afirma a performer. A relação com o público é central no desenvolvimento dessa potência mental. Marina Abramovic afirma em sua palestra: “Temos medo do sofrimento, temos medo da dor, temos medo da mortalidade. Então o que eu faço é encenar esses medos na frente de uma plateia. Eu uso a energia do público e, com ela, posso explorar os limites do meu corpo o máximo possível. E aí, eu me liberto desses medos.” o tempo presente O tempo também é um elemento muito importante em uma performance. Para Paula, esse tipo de arte não pode ser ensaiada, ela não tem passado, nem futuro. “A performance se dá no tempo. É na presença, no contato entre o performer e o público”, afirma. ▲
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ARTIVISMO
O QUE FAZEM E O QUE QUEREM AS
GUERRILLA GIRLS
Em atividade desde a década de 1980, o coletivo americano de artistas e ativistas Guerrilla Girls vem produzindo cartazes que citam nominalmente quais galerias, museus e eventos não expõem um número significativo de obras feitas por artistas não brancos e mulheres. Elas partem de uma pesquisa extensiva das coleções e exposições e usam a apresentação de muitos dados, além do humor e da ironia, como estratégias.
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Foto: Guerrilla Girls /Reprodução
Foto: Guerrilla Girls /Reprodução Tradução: Museu de Arte de São Paulo
ARTIVISMO
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Redação: Juliana Domingos de Lima (Nexo Jornal)
Q
uando começaram, esses pôsteres, destinados a constranger e apelar para o senso de responsabilidade de instituições e artistas coniventes com a manutenção da falta de diversidade no meio da arte, eram colados pelas ruas de Nova York. Atualmente, seu trabalho migrou em grande parte para a internet, onde exercem presença ativa pelas redes sociais. O ativismo do coletivo não se restringe a uma crítica do domínio dos homens brancos nas artes visuais: passa também por questões de diversidade, misoginia e objetificação feminina no cinema, no teatro, nos videoclipes, aponta o dedo para figuras de Hollywood e da política americana. Vestindo suas indefectíveis máscaras de gorila, que confirmam na aparência a ferocidade de seus cartazes e as mantêm anônimas, as artistas estiveram em São Paulo no final de setembro para a abertura da exposição “Guerrilla Girls - Gráfica (1985-2017)”, uma retrospectiva completa de seu trabalho no Masp, o Museu de arte de São Paulo. As identidades das artistas não são conhecidas: elas usam, como pseudônimos, nomes de grandes artistas mulheres da história da arte. No museu de São Paulo, elas receberam carta branca para fazer um levantamento da coleção, como já fizeram em várias outras instituições pelo mundo. A partir dos dados que reuniram, reeditaram,
em português, uns de seus cartazes mais famosos, que falava, originalmente, do Museu Metropolitan, de Nova York. As Guerrilla Girls responderam a quatro perguntas do Nexo sobre sua trajetória e como a diversidade na arte avançou (e não avançou) desde que iniciaram seu trabalho. O que estava acontecendo no mundo da arte em 1985 que fez com que vocês entrassem em ação? Guerrilla Girls Em resumo, o Museu de Arte Moderna [de Nova York] abriu uma exposição chamada “An International Survey of Painting and Sculpture” (Um panorama internacional da pintura e escultura, em tradução livre) na qual havia menos de 17 mulheres entre quase 200 artistas, e um número ainda menor de artistas não brancos. Sabíamos que não poderia ser um panorama completo da arte mundial com tantos homens brancos e tão poucas mulheres e artistas não brancos. Então nos comprometemos a encontrar novas maneiras de fazer as pessoas pensarem sobre o racismo e o sexismo no mundo da arte. De lá para cá, o que mudou? GG A consciência de artistas críticos e acadêmicos mudou e ninguém defenderia abertamente hoje a discriminação. No entanto, se você olhar para as estatísticas
Foto: Guerrilla Girls /Reprodução
de quem é exibido em galerias e colecionado por grandes museus, a maioria esmagadora ainda são homens brancos. O mercado de arte está muito atrasado. Há também o tokenismo [um termo da militância que significa incluir falsamente uma minoria historicamente discriminada para usá-la como troféu]. As instituições acham que se colecionarem ou exporem uma mulher ou um artista não branco, resolveram o problema. Uma não é suficiente! E há um teto de vidro esmagador para além do qual mulheres e artistas não brancos raramente têm permissão de ir. E há a desigualdade de renda. Trabalhos das artistas mulheres que mais vendem custam em torno de 17% dos preços pagos pelos artistas homens mais vendidos. Vocês tradicionalmente usam muitos dados no seu trabalho. Qual a razão disso? Como era obter esse tipo de informação dos museus e galerias quando vocês começaram? GG Se você diz algo escandaloso para chamar a atenção das pessoas e sustenta isso com informação, é difícil ignorar. Costumava levar muito tempo para fazer
um levantamento das coleções e obter informações sobre as vendas de leilões [de arte]. Mas hoje com a internet, é muito mais fácil. O que levava dias agora leva apenas algumas horas. O grande segredo agora ainda são os preços pagos por obras de arte em galerias. Nos EUA, não há regulamentação das vendas de obras de arte e não há registros públicos oficiais de vendas multimilionárias. Como é que o público pode realmente saber quanto vale o trabalho quando tudo é um mistério? Em mais de um dos seus pôsteres, vocês também criticam a resposta dada pelas instituições às suas críticas, transformando mulheres, pessoas negras e outras minorias em tokens de diversidade. Vocês veem isso acontecer hoje? Como lidar com isso? GG Não é fácil. Quando realizamos um projeto em um museu, normalmente pedimos para examinar sua coleção e exigimos a liberdade de fazer o que quisermos com essa informação. Temos que tomar cuidado para não sermos usadas por uma instituição para praticar “whitewashing” [embranquecimento] em suas coleções e exposições. ▲
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ARTIVISMO
Diversidade de Artistas nos Princi Historicamente, os artistas representados nos grandes museus dos EUA foram predominamente do sexo masculino e caucasianos. Pensando nisso, um grupo de pesquisadores, entre eles estudiosos da arte e da história da arte, analisaram a diversidade da origem demográfica , étnica e de sexo dos artistas desses museus. Os 18 museus de questão , foram escolhidos a partir de critérios como popularidade, terem as coleções publicadas de forma online, por representarem diferentes regiões e por fim possuirem diferentes modelos de financiamentos.
46.6%
44%
2.1%
DIVERSIDADE DEMOGRAFICA Museus
Mulheres %
MMA
7.3
DIA
MFAB NGA PMA
AIC NAMA
RISDM YUAG DMA DAM
HMA LACMA MFAH
MOCA
MOMA
Asiáticos % Negr/Afro Am. % Latinos/Hisp. %
Brancos % Outros %
7.4
2.8
1.6
0.4
94.7
0.6
8.2
16.1
1.1
2.1
79.9
0.8
10.4 8.8
12.5 11.6 13.1 11.6 15.1 13.3 10.6 16.1 29.9 18.1 11.0
SFMOMA WMAA
18.1
MÉDIA TOTAL
12.6
22.1
8.1 1.3 8.3 7.0 9.5
15.1 14.2 4.2 9.5 0.9
17.7 4.3 6.9
10.0 7.1 2.8
9.0
0.2 0.0 1.1 0.3 0.4 1.0 0.7 0.8 1.5
10.6 0.0 1.1 2.7 2.0 2.0 2.3
1.2
1.5 0.6 2.4 2.0 1.3 3.1 2.3 2.8 5.4 1.4 2.9 4.8 6.4 3.7 3.3 2.3
2.8
88.9 97.4 87.8 90.4 86.4 78.2 81.7 88.7 79.8 86.2 78.2 88.6 82.8 83.0 86.4 91.7
85.4
1.3 0.6 0.4 0.3 2.3 2.5 1.1 3.4 3.8
ETNIA E SEXO
1.2
Os quatros maiores grupos apresentados nos museus em questão em termos de sexo e etnia são homens brancos (75,7%), mulheres brancas (10,8%), homens asiáticos (7,5%) e homens latinos/hispanicos. Todos os outros grupos são representados em porporções menores que 1%.
0.9 1.2 1.3 1.3 1.1 0.9
1.5
DIA = Detroit Institute of Arts; MMA = Metropolitan Museum of Art; MFAB = Museum of Fine Arts, Boston; NGA = National Gallery of Art; PMA = Philadelphia Museum of Art; AIC = Art Institute of Chicago; NAMA = Nelson-Atkins Museum of Art; RISDM = Museum of Art, Rhode Island School of Design; YUAG = Yale University Art Gallery; DMA = Dallas Museum of Art; DAM = Denver Art Museum; HMA = High Museum of Art; LACMA = Los Angeles County Museum of Art; MFAH = Museum of Fine Arts, Houston; MOCA = Museum of Contemporary Art, Los Angeles; MOMA = Museum of Modern Art; SFMOMA = San Francisco Museum of Modern Art; WMAA = Whitney Museum of American Art.
Pesquisa usada como referência (adaptado): “Diversity of Artists in Major U.S. Museums”
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ipais Museus dos Estados Unidos A disponibilização dos dados contidos na pesquisa podem ser usados não somente para dirigentes dessas instituições e de similares aplicarem políticas de inclusão e diversadiade, mas também abre espaço para que artistas, estudantes, educadores, galeristas e interessados no geral, reflitam e discutam o que há de trás dos números apresentados, quais são os mecanismos que lhe caracterizam e qual a relação com o sistema racista e patriarcal ainda tão presentes no nosso dia-a-dia, inclusive no meio artístico que se pretende ser um espaço de questionamento, reflexão e expressão de si e do entorno.
8.7%
0.1%
0.4%
Mulheres
12.6%
Asiáticos
9%
Negros/ Afro Amer.
1.2%
Latinos/Hisp.
2.8%
Brancos
85.4%
Outros
1.5%
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CAPA
“NÃO SOU FOTÓGRAFA SOU ATIVISTA VISUAL”
ZANELE MUHOLI
Caçula de 5 filhos, nascida em 1972 em Umlazi e filha de mãe empregada doméstica durante todo o Apartheid, Zanele Muholi é artista sul-africana que usa o seu ativismo visual culturalmente, economicamente, socialmente, e sexualmente como resistência para as mulheres marginalizadas na construção de um novo olhar, significativo, com o objetivo de abrir espaços e desafiar o silêncio da sociedade.
Fotos: Zaneli Muoli /Reprodução
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CAPA
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Redação: Glenda B. Fereira (Cidadão Cultura)
A
s fotografias de Zanele Muholi mostram seu compromisso em reparar as injustiças sociais enfrentadas pela pessoas LGBTI, a grave desconexão na África do Sul pósApartheid entre a igualdade promovida pela Constituição de 1996 e a atual intolerância e violência direcionadas aos indivíduos LGBTI. Sua primeira exposição “Sexualidade visual: apenas metade da foto” mostrada em 2004 pela Galeria de Arte de Joanesburgo, apresentava fotografias de sobreviventes de estupro e crimes de ódio. Penetrando conscientemente espaços que antes eram vistos como impossíveis, foi a primeira mulher negra a se apresentar no Stedelijk Museum em Amsterdã, expôs também no Brooklyn Museum e no Autograph em Londres. Seu trabalho oferece um documento cheio de simbolismos que desafiam uma postura estereotipada do retrato tradicional. Alegria, curiosidade, orgulho, amor, frustração, desencantamento, ironia, compaixão, dor, opressão, coragem, ela cria/constrói um arquivo visual que a auto-representa, como uma das comunidades mais vulneráveis e historicamente marginalizadas, ela registra uma intervenção brutal do cotidiano não para vitimizar mas para unir igualmente a todos da África do Sul. “Marcando, mapeando e preservando uma comunidade invisível para a posteridade”, ela diz. Desde 2012 trabalha no projeto Somnyama Ngonyama (Salve a Leoa Negra), que são auto-retratos onde ela utiliza a própria pele para criticar os clichês sobre as mulheres negras, usando a sua arte e sua grande confiança estética para transmitir suas mensagens de inclusão e revolução. ▲
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CAPA
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HISTÓRIA
Redação: Site Memórias da Ditadura
ARTES PLÁSTICAS NA DITADURA: EXPERIMENTAÇÃO ARTÍSTICA, ENGAJAMENTO E CENSURA A produção brasileira de artes plásticas no período da ditadura refletiu não só o inconformismo com o regime autoritário, como também as mudanças artísticas pelas quais o mundo passava na época. Se, durante os anos 1950, havia um otimismo da arte nacional em relação ao desenvolvimento do país, como nos mostram o concretismo e a construção de Brasília, nos anos 1960, a palavra de ordem era romper com todos os padrões do “sistema”.
O
campo das artes plásticas, por sua própria história, foi o que mais encarnou esse ideal de ruptura e transgressão, tanto estética quanto comportamental. Era preciso criticar o regime autoritário e buscar novos modos de produção artística e de ocupação dos circuitos de exposição das obras, indo além dos limites de galerias e museus. As artes visuais assumiram primeiramente uma forma crítica e reflexiva a esse contexto histórico, na forma de um questionamento de seus próprios meios de criação. Sem se preocupar em transmitir mensagens fáceis e diretas através das obras, os artistas plásticos brasileiros reinventaram a vanguarda e o próprio sentido do engajamento político contra o regime militar. A única regra era a experimentação e a liberdade. Mesmo nos anos 1970, quando esse ímpeto de transgressão começou a refluir, as artes plásticas continuaram desafiando o
conservadorismo do regime e a caretice dos olhares convencionais sobre as representações do mundo. A resistência à ditadura, nesse campo, começava pela reeducação do olhar. Os artistas experimentavam radicalmente outras linguagens. A chamada “nova figuração” adaptou a pop art norteamericana para fazer críticas ao imperialismo, à cultura de massa e ao autoritarismo. Após o AI-5, com o endurecimento da censura, houve o radicalismo das propostas artísticas, com o que se habituou a chamar de “arte conceitual”. Novas formas de expressão foram criadas. Um artista não tinha mais uma forma limitada de atuação, como por exemplo, a pintura ou escultura. Performances, cartazes, pichações e até produtos industrializados modificados passaram a compor o catálogo das artes brasileiras. O que importava era o conceito,
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a leitura que o artista fazia da realidade. Um exemplo disso foi a intervenção de Cildo Meireles que carimbou em notas de dinheiro a pergunta “Quem matou Herzog?“. Com isso, driblou a censura e levou sua provocação ao público que não frequentava mostras de arte. Houve maior didatismo ideológico, com a oposição política clara e direta ao governo, como na obra de Rubens Gerchman, que consiste em enormes letras, expostas em uma avenida do Rio de Janeiro, formando a palavra “Lute”. Mesmo com o endurecimento da censura, nos anos 1970, as vanguardas artísticas continuaram a revolucionar códigos. Ainda que dissociadas da ideia de luta e utopia, obras como happenings, performances e conceitualismos geravam conteúdo artístico voltado a esse descontentamento. Artistas fundamentais da arte contemporânea, como Ivan Serpa, Antônio Dias, Hélio Oiticica e Carlos Vergara, participaram com obras igualmente contestadoras, que romperam com estéticas artísticas importantes, em nome da oposição ao regime. Foi o caso da obra “Tropicália”, de Oiticica, que desencadeou todo um movimento cultural, o tropicalismo. A obra era uma instalação, uma espécie de labirinto sem teto, que remetia à arquitetura das favelas. Em seu interior, havia uma TV que ficava sempre ligada. Houve resistência nas grandes exposições de arte, com repercussão internacional, como o caso da pré-Bienal de Paris, mostra que reuniria os principais expoentes das artes plásticas brasileiras no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1969. Os militares determinaram o encerramento da mostra e, em resposta, os artistas resolveram boicotar a 10ª Bienal de São Paulo, que se realizaria naquele ano. A Bienal foi inaugurada sem protestos,
mas também sem obras. Na França, reunidos no Museu de Arte Moderna de Paris, 321 artistas e intelectuais estrangeiros assinavam o manifesto “Não à Bienal”, baseados nas declarações de testemunhas e em documentos que provavam a existência de censura à atividade artística no Brasil. Foram tempos inquietos e que contribuíram para desgastar o regime frente à opinião pública. Ao longo dos mais de vinte anos do período militar no Brasil, as artes visuais reagiram de diversas formas às diferentes conjunturas. Todas elas expressavam, de alguma forma, a reação dos artistas ao regime e à censura. Porém, não dá para dizer que a vanguarda brasileira não tenha sido afetada pelo regime militar. A falta de liberdade para a produção artística e a desestruturação do sistema das artes plásticas no Brasil – com o exílio da crítica, a perseguição dos artistas, entre outros fatores – culminaram numa mudança profunda do significado da arte no país. O chamado “fim das vanguardas” foi percebido mundialmente na década de 1970, mas seu efeito foi particular no Brasil, também por causa do período político. Havia entre os artistas uma sensação de que toda transgressão e todo experimentalismo estético dos anos 1960 já tinham sido absorvidos pelo mercado e pelo chamado “gosto burguês”, termo que significava a acomodação do artista ao gosto médio de quem comprava obras. Em paralelo, com o surgimento de um mercado de artes, houve um impacto visível na produção de vanguarda: a “mostra de arte” passou a ser uma “feira de arte”, em que as mercadorias eram negociadas, e isso mudou todo o conceito das obras. ▲
@martinapaukova