Viver a rua - TFG | fauusp - Thiago Lee

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Trabalho Final de Graduação | FAU USP | jul 2016 Prof. Orient.: Maria Cecília Loschiavo dos Santos Thiago Sang Hyun Lee

População de Rua e Projeto Urbano

VIVER A RUA


Verso da Capa (Parana cinza)


A Casa Transformação aluga um imóvel na Zona Norte da cidade. Carlos liderava os internos. Foto: Wilson Oh

¶Tem hoje 57 anos.1 É original de São Paulo, capital, mas é filho de migrantes paulistas. Seu pai é de Birigui, no nordeste do estado, e a mãe de Itu, e estes transferiram suas trajetórias para perto da colina histórica paulistana, continuando próximos do mesmo Tietê que conheceram quando pequenos. ¶Foi educado até o segundo grau e já engatou na procura pelo

Carlos


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Por razões éticas, a identidade dos entrevistados foi omitida e seus nomes alterados. 1

Entrevista cedida em 06.set.2015.

primeiro emprego. Primeiro tornou-se office boy, em seguida, arquivista. Até que viu um anúncio de jornal para um emprego de assistente e foi atrás. Deparou-se com seu engano pois achou que possivelmente seria assistente administrativo, mas acabou encontrando a vaga de assistente de enfermagem. A entrevistadora não se importou com seu erro nem com sua falta de experiência e ofereceu-lhe o emprego da mesma maneira, e ele aceitou. Começaria então uma carreira determinante para sua vida. ¶Estava com 19 anos quando começou a trabalhar em um renomado hospital-escola, e conta que desde os seus 17 anos começara a frequentar bailes e envolver-se com o uso de drogas, à maneira que deveria ser comum para a idade e ao meio social que conviveu, aprofundando esse hábito ao longo dos anos. ¶Relata que aprendeu muito, observava e aprendia com os técnicos que acompanhou. Aprendeu a fazer gesso e outras técnicas de cuidado e enfermagem apenas analisando, mas também absorveu costumes como forjar receitas de médicos para conseguir psicoativos. Foi a continuação do uso de psicotrópicos que começara alguns anos antes, e que se intensificou dali em diante. Artane, hipofagin, diazepam, entrou no hábito do local e passou a aumentar as doses até cair no vício. ¶Conheceu sua primeira mulher trabalhando no hospital, e juntos tiveram um filho que hoje já está com 33 anos. Porém, devido ao aumento de seu uso de substâncias, separaram-se, e assim iniciou seu processo de perdas. A indisposição que alguns medicamentos lhe causavam o afastou do primeiro hospital, e este acabou tornando-se um padrão. Foi empregado em diversos hospitais dos quais se afastava pelo consumo dos psicotrópicos. ¶Não tinha conhecimento sobre sua condição, não sabia como se tratar. Afirma que não havia locais de apoio como hoje existem a N.A., A.A. ou casas de recuperação. Se quisesse um tratamento, deveria recorrer ao setor de psiquiatria de alguns hospitais para ser medicado como os outros ‘loucos’. ¶Aos 23 anos casou-se pela segunda vez, dessa vez oficialmente, e tiveram uma filha. Infelizmente a união não durou, e logo seus pais deixariam São Paulo por Botucatu, ficando ele só com seus desejos. Seu pai adoecera e por essa razão quiseram voltar para uma cidade menor. Insistiram para que os acompanhasse mas resistiu e ficou, deixando-lhe seus pais uma certa quantia de dinheiro que tornou-se um frágil suporte. ¶Decidiu seguir para Ribeirão Preto e alugou um quarto de uma pensão. Porém, como consumia muita droga e não conseguia muito além de alguns ‘bicos’, viu-se com pouco mais de


cinquenta reais e resolveu voltar para São Paulo. Não quis contatar a família que tinha em Vila Formosa por ‘vergonha e orgulho’, certificou-se que nenhum parente soubesse de sua situação, e na primeira noite dormiu no próprio Terminal Parque Dom Pedro, onde desembarcou. ¶Seguiu para o Largo do Paiçandu, onde conheceu pessoas com quem aprendeu as primeiras estratégias para sobreviver na rua. Passou a puxar carroça e coletar recicláveis. Visitava as ‘bocas de rango’ – locais onde se distribuem refeições para a população em situação de rua – e andava sempre com seu facão e o ‘chico-doce’ – seu porrete. ¶Conheceu também a cracolândia e virou um visitante frequente. Aprendeu a não ‘dar mole’, não compartilhar com desconhecidos, ser ‘bruto’ e ‘ignorante’, como o ‘sistema da rua’ exige. Viu que se deve falar pouco, evitar os conflitos para não ser caçado enquanto dormia. Se quisesse pertencer a algum grupo social, deveria conquistar a confiança e ‘inteirava’ a compra de pinga e algumas drogas. Sabia que não podia deixar de amarrar seu cobertor nos pulsos e prender com correntes sua carroça para evitar que os ‘nóias’ o roubassem nas noites. ¶Morou alguns poucos anos em uma maloca próxima ao Pacaembu, onde, com seus amigos, desencaparam fios removidos de bueiros públicos, ajudados pelas carroças que os protegiam. Ia para o cemitério do Araçá para tomar seus banhos e lá conheceu o Pinguim, que morava dentro de uma sepultura e vendia as velas usadas para um fabricante reutilizá-las. ¶Carlos presenciou muitas mudanças durante o tempo que esteve envolvido no circuito da rua. Conheceu a cracolândia quando ela se concentrava onde atualmente é o Terminal de ônibus Santa Cecília, e a viu seguindo para a rua Timbira, a rua dos Gusmões, e, mais recentemente, para a rua Dino Bueno, onde se encontra atualmente. Viu também como o uso do crack evoluiu, saindo do uso encoberto para os aglomerados a céu aberto – os ‘fluxos’ de usuários. Antes usava-se apenas um copo plástico para o consumo da pedra, mas logo descobriu-se o uso de latinhas de refrigerante e de peças automotivas e de eletrônicos. E ainda nota que a 40 anos, pouco se via pessoas que habitavam as ruas, com a exceção de alguns com deficiências físicas ou psicológicas. Hoje percebe como o fenômeno se proliferou para todos os setores da cidade expandindo-se também para municípios menos populosos, em um movimento silencioso e invisível. ¶Ele rememora com muita emoção um momento que conta lacrimejando. Quando recolhia latas na rua Augusta, um carro

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Na época da apresentação deste trabalho, Carlos havia deixado a instituição e voltado para as ruas. 2

estacionou um pouco adiante, e dois rapazes desceram para urinar. Ofereceram-lhe uma lata de cerveja, mas logo uma de suas amigas também desceu e os repreendeu, oferecendo vinte reais a Carlos e lhe dndo um abraço. Conta sobre o ocorrido para enfatizar algo que muitos na rua também comentam, que existe uma necessidade que está além da sobrevivência, e a ‘atenção’, a ‘compreensão’ parecem indicar-lhes este anseio. ¶A sua recuperação envolveu diversas reclusões e recaídas, mas agora compreende melhor a persistência que necessita para se equilibrar. Em 1998 conheceu a Federação Espírita que distribuía lanches em bairros do centro. Foi então direcionado para uma casa de recuperação em Campinas, passando 6 meses em uma fazenda e 3 meses em um processo de ressocialização. Após esse período, um membro da equipe o contratou em sua empresa, mas em 4 meses ele já voltaria para o uso de drogas. A rígida disciplina da qual fizera parte não fora suficiente para condicioná-lo a viver a autonomia que buscava. ¶Apenas em 2005 viria a conhecer um sargento da aeronáutica no ‘Bar dos Mendigos’ na avenida Angélica, que lhe indicou o centro de recuperação Efatá. Passou um ano no sítio em Santa Isabel, mas logo que voltou para São Paulo retomou o uso de psicoativos. Permaneceu nas ruas até 2008 quando, depois de uma das ‘rapas’ da Prefeitura – intervenções em que recolhem os pertences dos desabrigados – resolveu ligar para a filha. Ela o levou novamente para Santa Isabel, por onde ficaria por mais cinco anos. Acabou tornando-se ajudante do centro, era encarregado de organizar as reuniões e de levar aos hospitais quem precisasse. Saía até mesmo para alcançar usuários nas ruas que estivessem buscando tratamento. Mas em uma dessas saídas, seis anos depois do começo de seu próprio tratamento, conheceu uma usuária com quem se envolveu, voltando novamente ao uso de drogas. ¶Alguns meses de volta às ruas e decidiu por tentar pela terceira vez voltar para a Efatá, onde seis meses depois conheceria Rafael, que o levou para a Casa Transformação, focada em ressocialização. Reconhece especialmente a dignidade que encontra ali, em contraposição com a ‘humilhação’ que sofria nas casas de acolhimento da prefeitura que conheceu. Lembra-se da sujeira e por isso preferia dormir na rua. Na atual casa está encarregado de manter a disciplina dos internos uma vez que conhece muito bem as dificuldades da recuperação. Frequentou um curso técnico de enfermagem enquanto esteve em Santa Isabel, e precisa só de mais alguns créditos para concluir.2



Ernesto costumava cozinhar para os outros internos. Foto: Wilson Oh


Ernesto

Por razões éticas, a identidade dos entrevistados foi omitida e seus nomes alterados. 1

Entrevista cedida em 06.set.2015.

¶Sua família era simples, relata. Sua mãe fora a base religiosa em sua família e cuidava de seus oito filhos enquanto comandava um restaurante.1 O pai também era uma «excelente pessoa», mas que não falava muito, «se falasse três vezes em um mês, já era muito», conta. Ele, ao final, tornou-se um garoto que se via muito desobediente e reservado, e um tanto indisciplinado, como veria depois no uso de seu dinheiro. ¶Em 1987, Ercílio, aos seus vinte anos, decidira iniciar-se no mercado de trabalho em São Paulo, onde seu irmão já havia se estabelecido. Deixou o Ceará certo de que conseguiria seu desejado emprego mas ficou apenas três meses no primeiro que conseguiu, na construção civil. Logo seguiu para trabalhar como estoquista em uma loja na General Carneiro, próximo do Páteo do Collégio. Conforme percebia-se em um emprego promissor, conta que começou «a esbanjar» – crescia o desejo de expandir-se, conhecer o mundo, explorar. ¶Com as suas novas motivações, começou a beber no primeiro emprego e seguiu para bebidas cada vez mais fortes. Passou a buscar prostitutas até três vezes por semana e fala que ficou «muito afundado nesse negócio». Em meio a esses encontros viria a conhecer o crack, e a partir de então veria sua vida «desmoronar». ¶Estranhou, certa vez, que o quarto onde entrara tinha um ar espesso e esbranquiçado. A companhia que havia contratado o chamou para apresentar-lhe algo, uma espécie de cachimbo que estivera usando, e insistiu que experimentasse – até que não resistiu o terceiro pedimento. Foi nesse momento que viu o deixarem «todos os objetivos e todos os sonhos», e «ficaram ali». Ercílio compara esse momento com uma martelada em seu crânio. ¶Usando a «maldita» ainda buscava a recuperação – frequentava igrejas, foi internado por duas vezes mas sem sucesso. Continuou sempre a trabalhar, mas passou por treze empregos diferentes pois sempre se via na necessidade de descontinuar. Quanto mais dinheiro ganhava mais usava o crack, e via-se sem forças para conter a ansiedade e o desejo pelo uso. ¶Revela que não sabia fazer planos com seus ganhos, e comprava tudo o que sentia necessidade quando recebia seu salário. Logo quando liquidava com sua reserva, recorria à venda das suas recentes aquisições por preços irrisórios, e gastava ainda boa parte no consumo de substâncias. ¶Nunca casou nem quis envolver-se com ninguém, não pela falta de oportunidades mas por reconhecer sua difícil situação. Não queria levar ninguém a uma co-dependência. Em um de seus empregos, quase se envolveu com uma colega de trabalho mas optou por se afastar. Ela não conhecia sua condição, tendo

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seu patrão e outros dois colegas, únicos que conheciam suas dificuldades, ocultado o que sabiam de toda a equipe. Mas Ercílio hoje «agradece a Deus» por não ter se casado; percebe que não agregaria boas experiências com eventuais uniões. ¶Por muito tempo escondeu da família e de conhecidos, não queria que outros comparticipassem de seu sofrimento. Apenas para sua mãe compartilhou sua situação logo após a primeira experiência com a droga pois não desejava que ela recebesse a má notícia por outras fontes. Mas como ela ainda morava no Ceará, pouco pôde ajudar. E logo ele partiria para uma longa estadia no sistema público de assistência. ¶Foram quase dezoito anos experimentando quase todos as casas de acolhimento da cidade, evitando ao máximo passar as noites nas ruas, mesmo que em alguns momentos isso seria inevitável. Ainda assim, muito poucas vezes pernoitou nas ruas. Explica que mantinha-se sempre em alerta e não conseguia, dessa forma, descansar. ¶Pelo bom comportamento conseguia longas estadias em algumas casas. Permaneceu por mais de um ano tanto no Arsenal da Esperança, no Brás, quanto na Oficina Boracea, na Barra Funda, mas conheceu um colega que passara mesmo treze anos numa só instituição. Entretanto, apesar dessas permanências, identifica que se acomodou no estilo de vida apoiado no sistema público, embora ainda o sistema careça de ações pró-ativas para promover a ressocialização da população atendida. ¶Ercílio elogia o tratamento que recebia, e eram seus pares os causadores de seu desconforto, presenciando o uso de drogas dentro de quase todos os locais de pernoite pelos quais passou. Indignava-se com o desperdício da ajuda que recebiam, mas hoje sabe que não apenas responsáveis, mas também eram vítimas de muitas fatalidades. ¶Por duas vezes procurou a internação em uma instituição particular em Franco da Rocha, apoiado primeiro por um patrão e na segunda entrada, por um pastor que havia conhecido. Não conseguiu desligar-se totalmente das drogas, e manteve-se na mesma situação até junho deste ano, quando seguiu alguns colegas para um café da manhã no Bom Retiro. ¶A partir de sua convivência de infância com uma mãe religiosa e com a igreja que freqüentavam juntos, encontrou uma instituição com o qual percebeu uma afinidade – esta promovia o cuidado com a população em situação de rua e a reconexão com um fundamento espiritual, que se tornaria seu ponto de apoio para o início de sua reinserção social. Sentiu-se muito comovido com a liturgia, em especial com os hinos que ouvia, e


Ernesto também está atualmente de volta às ruas. 2

procurou ali ajuda para sua recuperação, além de café e roupas. Esteve desde então sóbrio e mora na casa de ressocialização da instituição, trabalhando na maior parte do tempo na cozinha, preparando refeições para o grupo ali instalado. Esteve participando de algumas entrevistas de emprego, e fala esperançoso dessas novas possibilidades e pontos fixos para estabelecer-se socialmente, enxergando como desta vez está mais próximo de estabelecer um novo rumo.2

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Foto p/Lucas

Foto: Wilson Oh


Lucas

Por razões éticas, a identidade dos entrevistados foi omitida e seus nomes alterados. 1

Entrevista cedida em 27.out.2015.

¶Quando jovem, Lucas mantinha-se sempre ativo, praticava diversos esportes e, junto a alguns amigos, formou uma banda.1 Sempre andou de skate, e competia nas modalidades downhill speed e street. Também jogava muito futebol, mas devido a sua personalidade explosiva, tornava-se muito agressivo e, por conta disso, não desenvolveu tanta afinidade com o jogo. Este traço de sua personalidade expressava-se também no estilo musical a que se dedicava com sua banda, tocando punk para diversos públicos. Cantava muitas letras de ódio e violência, mas relembra que gostava. E ainda apoiava a equipe de música da igreja que frequentava com sua família. ¶Dentro de casa esteve em muitos conflitos pois não gostava de receber conselhos e direções de seus pais nem do irmão. Com estes ainda adquiriu o hábito de consumir álcool desde muito cedo pois todos sempre o faziam abertamente, provando pela primeira vez ainda quando criança. Logo, em uma palestra na escola sobre o uso de drogas, decidiu que experimentaria todas as que conseguisse alcançar, elaborando uma lista de doze drogas às quais havia então sido apresentado. Hoje percebe que experimentou oito. ¶Aos 13 anos, pelo convite de um amigo, iniciou o uso de crack. Estava muito irritado no dia e aceitou a proposta do colega; conta que foi como um “amor à primeira vista”. Passou a constantemente usá-lo, e alternava com a cocaína. Consumia sempre em casa, trancado em seu quarto, e frequentemente terminava em meio a sentimentos depressivos. O uso sempre acompanhava a vergonha e desesperança, que sobretudo o impediam de pedir ajuda. «O que eu falo? Que estou precisando de ajuda? Não acreditava mais em mim. ‘Não tava nem aí’ (sic)» - retrata seus pensamentos à época. ¶Sua família não percebeu a gravidade de sua situação até a época de sua primeira internação, aos 26 anos. Da mesma forma, seus colegas da igreja nunca o identificaram como dependente químico, e este fato ele toma como um agravante para seu vício, uma vez que esta falta de atenção era uma de suas justificativas quando se encontrava sozinho em uso. ¶Apesar do uso constante de substâncias psicoativas, manteve-se estudando e trabalhando. Cursou o técnico de eletricista industrial, estudou inglês, trabalhou com o pai como vidraceiro e completou o segundo grau. As drogas dificultavam suas tarefas diárias, findaram alguns de seus percursos como nos esportes e na música, mas ele conseguiu a admissão na faculdade, em administração de empresas. Na noite em que fora comemorar a conquista, bebeu em excesso e, ao andar de skate, quebrou a clavícula. Fora isso o suficiente para desmotivá-lo a continuar

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os estudos e decidiu, assim, deixar o curso. Hoje relembra com arrependimento, pois dessa forma privou-se de possíveis oportunidades e de um futuro mais promissor. ¶Nesse período, sua família enfrentava algumas crises que o mexeram emocionalmente. Lucas descobriu a infidelidade de seu pai e o expulsou de casa. Dado um certo tempo conseguiu perdoá-lo e recebeu-o novamente, mas, em seguida, sua irmã, um ano mais nova e ainda menor de idade, havia engravidado. Ela decidiu casar-se com o pai de seu filho, porém ele, por uma briga levantada em um baile funk, envolveu-se em um delito e assassinou 2 amigos seus de infância. O casal, junto da mãe de Lucas, acabaram fugindo e deixaram-no sozinho com seu pai. ¶Seu uso de substâncias gradualmente tornou-se mais intenso, sendo frequente períodos que passava fora de casa em busca de drogas, ausentando-se por até uma semana. Usou por seis anos químicos alucinógenos como LSD, chás diversos e ácido, adquiridos por meio de um parente que distribuía drogas que menos comumente se encontram nas ruas. Resolveu interromper esse uso pois via como interferiam no seu trabalho, e passou a usar mais o álcool. Entrou então na prostituição, e assim financiava mais facilmente o uso de psicoativos. Enfrentou duas overdoses, uma delas no próprio aniversário, quando exagerou sua celebração. ¶Com 21 anos, Lucas casou-se pela primeira vez e relata que abrandou o uso de psicoativos com o novo relacionamento, mas, junto de sua ex-esposa, consumia muito álcool, e logo retornou ao uso que fazia de outras substâncias. Buscou uma estabilidade no casamento, mas, após o terceiro ano divorciaram-se, e ele continuou sem o apoio que esteve continuamente buscando para um tratamento. ¶Ao longo do ano passado, Lucas enfrentou um grande desequilíbrio emocional. Resolveu deixar seu emprego para buscar mudanças pois não aprovava sua própria atitude no ambiente de trabalho. Traficava drogas, levava ocasionalmente bebidas, não progredia profissionalmente, e percebe agora que seus companheiros também estimulavam seu estilo de vida. Somado à perda do casamento, o desemprego reforçava pensamentos de fracasso e desesperança. ¶Pensava muito sobre como não tinha perspectivas concretas para sua vida e sentia-se perdido sobre o rumo a tomar. Pesava-lhe a falta de posses, uma vez que havia vendido muitas coisas e já gastara seus últimos recursos. Tinha a certeza de sua morte iminente devido ao estilo de vida que não conseguia mais escapar. Porém ele pôde conhecer histórias de recuperação


Lucas também voltou para as ruas.

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bem-sucedidas que o estimularam a persistir em encontrar sua própria, apesar de diversas tentativas e insucessos passados. ¶Em seu facebook, uma antiga namorada o encontrou e queria revê-lo. Ela o convidou para frequentar a igreja onde recentemente tornara-se membra, e o pastor que lá conheceu direcionou-o para uma casa de recuperação onde iniciou seu processo de reinserção social. Apesar de ser criado em uma família católica, encontrou aceitação no meio protestante e ,logo, tanto a religião quanto sua amiga tornaram-se seus pontos de apoio para livrar-se de seus vícios. ¶Os dois começaram a namorar antes da entrada de Lucas na casa de recuperação, porém ela não conseguiu lidar com a pressão de amigos, que não o viam como uma boa influência, e assim decidiu pela separação. Hoje ainda mantêm contato, e estão avaliando se a união é viável. Lucas, em seguida, buscou a casa Efatá para deixar as drogas. Entretanto, relata que já alguns dias antes da internação, no funeral de um tio, seus desejos por psicotrópicos o deixaram, não conseguindo nem mesmo tomar uma garrafa de cachaça que levara para o enterro. Dessa forma, quando iniciou o processo de tratamento, não precisou enfrentar o período de desintoxicação, sendo recrutado de imediato para trabalhar dentro do centro. ¶Esteve na equipe de louvor e ajudou a muitos colegas a lidarem com o processo de recuperação, descobrindo nestas experiências um novo objetivo para sua vida, tornar-se pastor ou um missionário. Seu pai o questionava sobre como havia entrado para um meio tão destoante da realidade na qual crescera, mas Lucas não se percebe dessa maneira. Compreende que deseja compensar o mal que sente que praticou em sua juventude e quer impedir que outros garotos sigam pelo mesmo caminho que ele tomou, e está desenvolvendo-se para conseguir fazê-lo no futuro.2

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Pedro agora ĂŠ o lĂ­der dos internos. Foto: Wilson Oh


Pedro

Por razões éticas, a identidade dos entrevistados foi omitida e seus nomes alterados. 1

Entrevista cedida em 26.out.2015.

¶Pedro conheceu as drogas e a vida na rua com idade mais avançada que conhecidos seus.1 Com 34 anos teve o primeiro contato de sua vida com substâncias psicotrópicas, mas fora esse o suficiente para fisgá-lo à uma vida liminar. ¶Sua vida sempre foi muito normal, assim a descreve. Morou apenas com sua mãe e avó, já que seu pai deixara o ambiente familiar devido ao envolvimento com o álcool. Cursou o ensino médio e seguiu para um curso técnico no Senai, estudando tornearia mecânica. Trabalhou por quase quinze anos em uma grande empresa alimentícia e em seguida mais seis em outra grande empresa especializada na produção de colchões. Estabeleceu uma família, casou, teve uma filha. Comprou uma casa, um carro. ¶Porém, durante sua última contratação formal, buscou um emprego temporário em um hotel no litoral paulista e lá experimentaria pela primeira vez um psicotrópico. Muitos de seus colegas utilizavam a cocaína e ele terminou por acompanhá-los. Seguiu, pouco após essa experiência, para conhecer o crack. ¶Passou a usar descontroladamente, ficando nas ruas por até duas semanas, sem tomar banho, revirando lixos, procurando o que comer. Após certo tempo, procurou uma internação recomendada por seus irmãos, que firmemente o apoiavam. ¶Seu irmão mais velho tornou-se para ele um ponto de apoio constante, através de todas as suas instabilidades. Chamava-o para sua casa quando conseguia encontrá-lo nas ruas, oferecendo banho, roupas, comida. Mesmo frequentemente tendo suas coisas roubadas – seu celular, dinheiro, a bicicleta do filho, afirmava sempre que não o abandonaria naquela situação. E comprou-lhe um outro celular para não perder contato. ¶Quando saiu de sua primeira internação, sentia-se ainda perdido, não conseguia um emprego para se fixar. Pensamentos atravessavam sua mente pois não sabia o que lhe guardava o futuro, estava sem uma direção certa para seguir. Assim, seu abatimento o levou a rever seus antigos conhecidos das ruas, pois desejava mostrar-lhes sua recente transformação, como estava novamente fortalecido. Porém, terminou não resistindo à sedução do crack, intensificada por sua condição emocional. Então, após oito meses distante de substâncias, voltou para o circuito das drogas. ¶Sua mulher o apoiou para que seguisse uma segunda internação e voltou para o centro de recuperação por outros dez meses. Ao fim desse período, resolveu surpreender sua esposa com seu retorno, mas quando de volta em sua casa deparou-se com um bebê em um novo berço, descobrindo ser o recém-nascido filho de sua esposa com outro rapaz. Já no próximo dia, abalado com a notícia, voltou para a boca que frequentou e usou quase 500

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reais em crack para lidar com a situação e seus sentimentos. ¶Dessa vez começou a envolver-se no tráfico. Juntou-se a um vendedor de substâncias para ser seu ‘olheiro’ e vigiar a aproximação de policiais. Já após uma semana nessa função, foi confiado a vender drogas, e logo viria a gerenciar vendedores. Paralelamente iniciou uma pequena fabricação de lança-perfumes e dessa forma estabeleceu-se no sistema da rua, mas isto terminou lhe custando um de seus pulmões com a inoculação de alguns gases tóxicos. ¶Mas ocasionalmente revisitava suas memórias e relembrava de suas conquistas profissionais e familiares. Percebeu como havia perdido contato com todos os seus parentes e como desejava recobrar suas antigas funções. E os negócios das drogas envolvia uma violência à qual ele não se adaptaria. Cobranças, ameaças, conflitos e assassinatos não lhe eram fáceis de presenciar. ¶Após um caso com a polícia, em que dobraram o «acerto» para 10 mil reais, fugiu e procurou novamente uma internação, apoiado até mesmo por seus colegas visto sua inaptidão em lidar com a brutalidade do narcotráfico. Agora são quatro meses nesta última casa de ressocialização, depois de um certo período em um centro de recuperação. Conta como a abstinência lhe provoca desejos «muito loucos» - sonhos e até o gosto da droga em sua boca. ¶O que no momento está focado é no processo de ressocialização, mas não deixa de imaginar o que deseja fazer quando terminar. Sente a falta de estar trabalhando, gostava de rebaixar cabeçotes dos motores de carros. Pretende ainda fazer algum curso de reciclagem no Senai e continua pensando em um sonho que perdera de cursar engenharia civil.



Foto: Wilson Oh

¶Nasceu e viveu no Paraná até os seus 18 anos.1 Ele e sua irmã tinham pouco contato com seus pais pois eles trabalhavam por longos períodos. Viam a mãe apenas à noite, enquanto que o

Jorge


Por razões éticas, a identidade dos entrevistados foi omitida e seus nomes alterados. 1

Entrevista cedida em 27.out.2015. Jorge atualmente retornou às ruas.

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pai praticamente não encontravam pois este saía para o trabalho às 8 da manhã para retornar apenas às 3 da madrugada. Sentiam muito a falta do pai, conta, e, em meio a esta situação, ‘rebelou-se’ e, por motivos que preferiu não descrever, viu a necessidade de deixar sua cidade. Dois anos antes, havia casado e tivera um filho, mas devido às circunstâncias, viu-se obrigado a deixá-lo com seus pais e se separar de sua esposa. ¶As drogas estiveram presente desde seus 14 anos, e por muitos anos alternou entre tratamentos e recaídas, percorrendo diversas cidades e estados brasileiros, passando por diferentes instituições e também por muitos períodos na rua. Buscou tratamentos no Rio, em São Paulo, em Curitiba, mas também visitou o Mato Grosso do Sul, Foz do Iguaçu e o Paraguai. ¶Recentemente esteve no Ceará e conheceu a fundação Manassés, cujo tratamento introduziu-o em um processo de reintegração social com a qual se identificou. A desintoxicação envolvia terapia ocupacional e, após esse período, os pacientes participavam na divulgação da instituição e na arrecadação de fundos com a venda de canetas nos transportes públicos. Em um dia da semana, os paciente ganhavam os fundos arrecadados para si e assim Jorge conseguiu recursos para voltar ao Rio, onde tornou a morar por alguns meses, permanecendo até o início de 2015. ¶Trabalhava na praia, alugando guarda-sóis e vendendo cerveja. Manteve-se sem consumir substâncias psicotrópicas por um longo tempo até que um amigo o convidou para passarem o carnaval juntos, e assim teve uma recaída. Por algum tempo manteve-se novamente na drogadição, mas logo desejou voltar a um tratamento, ouvindo que em São Paulo ofereciam um sistema de assistência diferente daqueles que já havia conhecido. ¶Procurou o Arsenal da Esperança no bairro da Mooca, porém apenas por três pernoites conseguiu ficar pois os funcionários buscaram no fórum seus antecedentes criminais e não aceitavam pessoas com essas condições. Tentou a ajuda da defensoria pública mas preferiu não insistir. Estabeleceu-se na rua. ¶Conseguiu um carrinho de supermercado e com ele mantinha-se, recolhendo materiais recicláveis, entre latas de alumínio e papelão. Em um domingo, passou por uma igreja e teve curiosidade de conhecer o culto que viu em andamento. Lá o indicaram para um serviço da mesma igreja voltado especificamente para a população em situação de rua. Assim conseguiu acesso à casa de reintegração social que hoje frequenta, e agora espera por conseguir um emprego para recobrar a direção de sua vida.2

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Trabalho Final de Graduação | FAU USP | jul 2016 Prof. Orient.: Maria Cecília Loschiavo dos Santos Thiago Sang Hyun Lee

População de Rua e Projeto Urbano

VIVER A RUA


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Agradecimentos

À minha orientadora Maria Cecília pela extrema bondade e compreensão que me mostrou ao longo dessa longa caminhada. Sem esse apoio teria sido muito mais difícil. Aprendi muito, além do que esperava. À professora e minha orientadora metodológica Karina Leitão, por ter aceitado o convite para a banca, e também por ser muito compreensiva e atenciosa com todos os seus alunos. Essa atenção fez toda a diferença para o meu trabalho e tenho certeza que para muitos outros ex-alunos também. Ao Liandro Lindner por ter aceitado o convite para a banca. Aos professores Silvio Macedo e Silvio Oksman que de bom grado me ajudaram no início nebuloso do tfg. À minha família pela paciência e apoio. Ao Sopão e à Missão Transformando Vidas, especialmente à Luciana, Rafael, Elaine e Dida, pelo apoio sempre que nos falávamos. Às pessoas que conheci na Casa Transformação, que gentilmente cederam entrevistas para o início deste caderno e me ajudaram a compreender melhor quem eram as pessoas que eu estudava. Aos funcionários dos serviços sociais que me acompanharam em visitas e cederam entrevistas: Abel do Direitos Humanos no Viaduto; as funcionáras do Complexo Prates; Frei Gianfranco do Arsenal da Esperança; e funcionários do Boracea, Reviravolta, Recifran e das duas unidades do Autonomia em Foco. Aos amigos, que me influenciaram sem mesmo saber. E a Deus, que foi muito presente em todo o processo e me mostrou coisas incríveis.

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1 Entrevistas _3

Introdução _31

História(s)

da população de rua _35

2 Origem(ns)

da população de rua _49


3 Percurso(s)

para o tratamento da população de rua _79

4 Projetos

Conclusão _127

Bibliografia _181



Introdução

O desenvolvimento deste trabalho envolveu a descoberta de uma nova problemática e de assuntos em áreas que não foram abordadas nos anos da minha faculdade. Assim, desde o início, estive pesquisando o conteúdo que seria exposto assim como a forma que as ideias seriam encadeadas, e ainda sem um escopo claro. O trabalho tomou uma forma mais definida conforme eu conseguia compreender os textos que lia e à medida em que eu escrevia os fichamentos e textos, tudo balizado pelo que podia conhecer com as minhas pesquisas de campo. Assim a produção deste trabalho é, fundamentalmente, a expressão do que aprendi ao longo deste tfg, que, no final, considerei de grande valia compartilhar. Por todo o processo, empenhei-me em tornar o conteúdo acessível àqueles que não possuem experiência ou leitura sobre a problemática apresentada, como se fizesse um trabalho para me direcionar quando estava me preparando para o tfg. Para aqueles que têm curiosidade sobre o assunto, busquei montar uma compilação introdutória para encaminhar a possíveis pesquisas posteriores. E acredito que, sobretudo, através de esforços assim, os preconceitos e estigmas contra a população de rua e aos marginalizados em geral podem ser mitigados. Por fim, os temas que descrevi com mais detalhes me levaram a pensar em abordagens de projeto diferenciadas que na conclusão do trabalho apresentei junto a referências na área da Arquitetura, Urbanismo e Design. Foram reunidos propostas e iniciativas que consideram conceitos elaborados nos capítulos anteriores, e apresentam caminhos alternativos para as formas que os tratamentos atualmente seguem. * O trabalho está dividido em cinco partes. As histórias coletadas na Casa Transformação iniciam o caderno. Esta instituição auxilia usuários de drogas a se reinserirem socialmente em uma comunidade terapêutica e é parte da Missão Transformando Vidas, que alcança esta mesma população com encontros semanais. E quanto à disposição dos relatos e fotos no começo do caderno, inspirei-me no livro montado pelo fotógrafo norte-americano Walker Evans e pelo jornalista James Agee, Elogiemos os homens ilustres, onde retratam a vida de lavradores pobres do Alabama após a Grande Depressão. As imagens iniciam o discurso sobre

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a temática antes de qualquer descrição escrita e criam um pano de fundo para a narrativa que as segue. No primeiro capítulo reúno a história da população de rua na Europa, Estados Unidos e no Brasil, seguindo um eixo temporal que remonta aos tempos antigos. O conteúdo apresentado não é muito extenso uma vez que as pesquisas nesta área não são ainda tão prolíficas. No segundo capítulo são apresentados fatores que duas pesquisas, uma norte-americana e uma brasileira, elaboram para justificar a perda de moradia por grande parcela da população. Concomitantemente, aspectos do mundo interno psicológico de muitos moradores de rua são descritos já que são fundamentais para os processos de desabrigamento, de perda do trabalho e da vida digna. O terceiro capítulo apresenta o desenvolvimento teórico realizado pela pesquisadora Magali Alvarez em sua pesquisa na Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela apresenta os elementos que observou serem essenciais para a restauração do mundo interno de moradores de rua que acompanhou. Psicóloga de formação, ela indica meios que são extensíveis a todas as áreas do conhecimento, inclusive à Arquitetura, Urbanismo e para ao Design. 32

No quarto capítulo faço a conclusão do trabalho e compilo diversos projetos que condizem com os valores construídos nos capítulos anteriores. São aplicações dos conceitos mas também referências para novas iniciativas. Como pude observar nas minhas perscrutações, o sistema de auxílio ao morador de rua no Brasil ainda possui muitas lacunas e potencialidades, e vi, nos projetos que apresento, percursos possíveis a serem tomados rumo à contenção da problemática da população em situação de rua.




1 História(s)

da população de rua



“A presença cada vez mais expressiva de pessoas que habitam em espaços públicos das grandes e das médias cidades brasileiras não é uma questão isolada dos problemas que ocorrem no plano internacional, nas duas últimas décadas, referentes às mudanças intensas no mundo do trabalho e no âmbito do Estado” (ROSA, 2005:29). * A população em situação de rua demonstra ser um fenômeno ubíquo por toda a história da humanidade. A sua situação acompanhou as mudanças econômico-sociais de cada período histórico, porém uma característica fundamental manteve-se constante – a sua presença deu-se principalmente em aglomerações humanas permanentes, sendo uma manifestação essencialmente urbana. Na Grécia e Roma Antigas, a expropriação de terras provocou grandes deslocamentos para a cidade pelos que perdiam suas propriedades, que juntamente com debilitados e vítimas de guerras compunham a população marginal da época. Na Idade Média, aparece a organização da mendicância profissional, cujos objetivos iam além do sustento, buscando-se também a formação de poupanças. A Igreja adota neste período uma postura ora de apoio ora de condenação sobre essa prática, estabelecendo sua posição por volta do século XVI, em fins dessa fase. A princípio apoiou a fundação de ordens mendicantes e idealizava a pobreza, porém passou a considerar essa atividade improdutiva e ameaçadora à ideologia do trabalho, em consonância com uma sociedade que passou a rejeitar as farsas e subterfúgios utilizados pelos pedintes. A partir do século XV, o continente europeu transita do modo de produção feudal para o capitalismo comercial, e o êxodo rural juntamente com o fortalecimento das ligas corporativas, que dificultavam o livre acesso a todas as profissões, geram condições para o crescimento das atividades de mendicância e de formas evoluídas de sua organização, como os gueux na França – grupos organizados de pedintes que se reuniam em pátios abandonados para discutir suas abordagens (Simões Jr., 1992).

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* Inicia-se, então, o processo da acumulação primitiva (Marx, 1988), quando o sistema de produção primordialmente de subsistência dá lugar a um outro no qual o comércio de mercadorias toma a frente, formando a gênese do capitalismo moderno. O fenômeno da população em situação de rua acompanharia o desenrolar dos paradigmas econômicos subsequentes num movimento semelhante às suas crises, crescendo conforme a escassez de autonomia de produção e de oportunidades de trabalho aumenta.

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À medida que a acumulação primitiva abre espaço para o capitalismo comercial, e logo para o capitalismo industrial no século XVIII e para o capitalismo financeiro no século XX, o aumento do número de pessoas habitando as ruas passaria a cada vez menos ser resultado do processo de perda da autonomia produtiva e cada vez mais dependente da oferta de empregos, e esta da situação econômica de cada nação, uma vez que a separação dos trabalhadores dos meios de produção, uma base para o capitalismo, já estaria consolidada em meio a uma grande parcela populacional. A população em situação de rua aumentaria conforme a falta de oportunidades oferecida pela economia, e o escasseamento de trabalho em cada momento de crise levaria mais pessoas à uma situação de vulnerabilidade, por sua vez aumentando a quantidade de pessoas atingidas por infortúnios que os dirigem a usar a rua como moradia e espaço privado. Início do capitalismo

***

A produção de mercadorias na sociedade feudal “se caracterizava pela repartição da terra pelo maior número possível de camponeses” (Marx, 1988, p.833), e cada camponês possuía uma habitação e um pedaço da terra para cultivar em meio ao feudo de seu senhor. Gradualmente a Igreja e o Estado perderiam suas terras para a produção comercial e, de maneira semelhante, as terras dos senhores feudais transformavam sua produção para se dedicarem em grande medida às necessidades das manufaturas que se desenvolviam, sendo exemplo a criação de ovelhas para produção de tecidos na


Inglaterra. O campo, antes usado para cultivar víveres para subsistência dos camponeses e dos senhores feudais, passou progressivamente a servir às necessidades dos donos das manufaturas. Estes, por sua vez, por meio de diversas ações legítimas e ilegítimas, iniciaram um processo de apoderamento do campo, ocasionando um êxodo rural desmedido. Esse contingente populacional passou a usar como meio de troca e sobrevivência o bem que lhe restava – sua força de trabalho – e de cultivadores tornaram-se assalariados. A indústria, entretanto, não conseguia absorver toda a cifra de trabalhadores agora disponíveis, seja por sua incapacidade de contratá-los ou pela dificuldade de adaptação repentina dos camponeses a um novo tipo de disciplina de trabalho. E, assim, o excesso subutilizado de mão-de-obra passava a compor a ‘superpopulação relativa’ ou o ‘exército industrial de reserva’. Esta parcela da população era formada por aqueles que, como os trabalhadores contratados, não detinham mais de meios de produção mas apenas de sua força de trabalho. Porém, por não estarem formalmente absorvidos pelos sistemas de produção, propiciavam a propagação de baixos salários e de condições precárias de trabalho, uma vez que a oferta de trabalhadores era em muito maior que a sua demanda. Dessa forma, com a insuficiência de postos de trabalho “muitos se transformaram em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias” (Marx, 1988, p.851). Foi o início do fenômeno do pauperismo, que se generalizou e atingiu toda a Europa Ocidental no último quartel do século XVIII. A população de rua, em paulatino crescimento e carente de meios formais de sustento, sofria ainda as punições de uma legislação bastante severa contra a inatividade que vigorou ainda no século XV e por todo o século XVI. O desemprego era criminalizado, e era punido com duras sentenças. ***

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Pauperismo nos Estados Unidos Snow e Anderson (1988) descrevem como o fenômeno da população em situação de rua entrou nos Estados Unidos desde a época das cidades pré-industriais europeias, para até períodos recentes, em pleno capitalismo financeiro. Relatam que durante os séculos XVII e XVIII muitas pessoas em situação de rua na Grã-Bretanha foram enviados às colônias americanas como trabalhadores e criados. Outros, por sua vez, com algumas habilidades ou posses embarcaram na emigração com esperança de uma vida melhor. Entretanto, encontravam nas terras americanas uma vida brutal e exaustiva, uma vez que faltavam trabalhadores e os empregadores sobrecarregavam aqueles que de fato empregavam, ainda assim restando muitos sem emprego.

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O auxílio prestado aos pobres era ativo nas colônias, e existia apoio para aqueles que eram incapazes de se sustentar. Existia um esforço para famílias serem mantidas unidas, porém exigia-se a comprovação de residência legal para se receber ajuda, assim criando uma dificuldade para novos imigrantes e trabalhadores itinerantes. Surgia, na mesma época, um tipo de trabalhador errante, que era enviado de uma comunidade a outra, e não encontrava acesso para se estabelecer pois lhe era negado esse direito; eram considerados “maus riscos”. Com a Guerra Civil americana, findada em 1865, e uma grande leva de imigrantes recém-chegados nas décadas posteriores, resultaram em um crescimento considerável do número de desabrigados. E este fator, em conjunto com a expansão ferroviária e a busca por trabalhadores móveis nas produções agrícolas, industriais e também na construção das ferrovias, influenciaram na origem, por volta da virada para o século XX, do andarilho americano sem abrigo (os “hobos”). Estes deixariam de existir na década de 1930, mas a Grande Depressão nesta década faria crescer o número de pessoas nas ruas rapidamente. Este número só viria a diminuir novamente com o início da Segunda Guerra Mundial, onde muitos foram recrutados pelos serviços armados ou pela indústria de guerra.


O término da Segunda Grande Guerra não ocasionou um aumento substancial no número de pessoas habitando as ruas devido a um esforço do governo nacional americano de assistir os veteranos na transição para retorno a uma vida civil e ao trabalho. A presença de pessoas em extrema pobreza pareceria diminuir até a década de 80, quando a situação se inverte novamente de maneira acelerada. As antigas zonas marginais, bairros em grandes cidades que historicamente abrigavam as pessoas das mais carentes classes sociais, passavam por um processo de renovação urbana e aburguesamento, e, assim, o fenômeno tomava novamente forma e propagou-se para novos territórios aumentando sua visibilidade e gerando crescente interesse, inúmeros estudos acadêmicos e debates públicos. Neste momento, três questões são apontadas como catalisadores do crescimento neste momento – a desinstitucionalização do atendimento a doentes mentais, que os levaram para um tratamento residencial que tentava ser mais humanizado, porém não obteve muito sucesso e por isso foi associado com o aumento de desabrigados; o declínio do estoque de moradia para a baixa renda, com os antigos setores que abrigava esta população dando espaço para empreendimentos para classes mais altas; e a inflação do custo da habitação em geral. Os autores observam que existiram outros fatores estruturais que igualmente contribuíram, e aponto dois principais – a desindustrialização, processo de crise no setor industrial, levando boa parte dos trabalhadores para o setor de serviços – com remunerações menores – e para empregos de meio-período; e a ausência de ações do governo para as classes de baixa renda, mantendo o mesmo salário mínimo por toda a década de 80 – aumentando o peso das necessidades básicas na renda da população – e cortando os gastos em programas de assistência, trazendo dificuldades para aqueles que delas dependiam. Como resultado houve um aumento da população de baixa renda, enquanto que a condição de rua é atribuído pelos autores à soma desta conjuntura à alguns determinantes biográficos como as deficiências e patologias, a falta do apoio familiar ou mesmo o encadeamento de infortúnios, situações que serão descritas no próximo capítulo deste trabalho. ***

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Uma breve história no Brasil No Brasil, não se tem conhecimento de estudos sobre a origem e o resgate histórico do fenômeno, mas os levantamentos que se iniciaram na década de 1990 e a ampliação das iniciativas de enfrentamento da problemática revelam a dimensão que o mesmo alcançou neste período recente, acompanhando as flutuações econômicas mundiais desde a crise da década de 1970. *

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Na década de 1970 iniciou-se um processo de remodelação da divisão internacional do trabalho e de reestruturação das relações econômicas mundiais e da visão de gestão urbana. Com a revolução da informática na década referida, a transnacionalização e financeirização do capital tomaram formas mais definidas e seguiram crescendo em grandes proporções e muito rapidamente nas décadas seguintes, e áreas estruturadoras da economia mundial foram significativamente influenciadas, como as comunicações, os transportes e o próprio processo produtivo. A financeirização do capital internacional atraiu muitos capitalistas para a especulação financeira, o que levou a uma fragilização do sistema econômico mundial, em especial nos países do Sul, cujas situações econômicas os tornaram por demais dependentes desses capitais “em nada comprometidos com eventuais políticas de construção nacional” (Whitaker, 2000). Paralelo a esse desenvolvimento, novos padrões tecnológicos e organizacionais romperam com as lógicas de produção fordista-taylorista e geraram um processo de desindustrialização e desemprego, a ver o processo norte-americano descrito por Snow e Anderson (1988). A robotização da indústria eleva a produção a níveis nunca antes vistos mas vê também o mercado consumidor diminuir, uma vez que se instaurava o processo de substituição da mão-de-obra pela máquina. Produzia-se cada vez mais empregando cada vez menos e, consequentemente, sem ter a quem vender. A escassez de mercado leva a busca de uma primeira alternativa com a formação de blocos econômicos, “protegendo e dinamizando


os mercados intrablocos, e aumentando o poder de inserção concorrencial interblocos” (Whitaker, 2000). A busca por mercados mais distantes continua uma vez que os mercados de cada bloco econômico se esgota e se acirra a guerra alfandegária entre eles. O alvo então volta-se para os países periféricos semi-industrializados, com alta concentração de renda e com uma minoria que possui alto potencial de consumo e capitalização. Os países centrais do capitalismo global então se utilizam de um forte aparato de imposição econômica, cultural e política que engloba a abertura compulsória dos mercados desses países para empresas do Norte, a desregulação das economias permitindo a aquisição de empresas pelas gigantes transnacionais, a privatização das infraestruturas em concorrências abertas a grandes grupos, entre outras medidas. Este processo foi facilitado por uma cooperação tácita das elites, uma vez que viam aí uma oportunidade de participar da moderna economia globalizada, como consumidores privilegiados e, eventualmente, como produtores secundários. No setor produtivo, a robotização e as novas possibilidades de comunicação e transporte, permitiram uma maior segmentação da cadeia produtiva internacionalmente, reduzindo também as plantas industriais. As fábricas foram dispersas pelo mundo, produzindo somente parte da produção em cada local, e a montagem passa a ser feita próxima aos locais de consumo. A mobilidade do capital financeiro permitiu que investimentos sejam feitos em diversas partes do planeta, e as comunicações já não parecem oferecer grandes barreiras para que todo o sistema seja administrado. Além da proximidade da matéria-prima, os novos locais de produção nos países periféricos ao capitalismo mundial, oferecem a possibilidade de baixas remunerações, além de legislações trabalhistas e ambientais menos rígidas. Com o declínio do sistema produtivo fordista e a desconcentração industrial, muitas cidades das nações centrais passaram por acelerado processo de degradação e abandono de outrora poderosos centros industriais fordistas, tido como exemplo a cidade de Detroit, cuja população alcançou um pico na década de 1950 e continuou a progressivamente declinar, sendo declarada sua falência em 2013. Apenas alguns

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centros industriais com certo know-how acumulado e com centros de pesquisa e universidades encontraram opções para reciclarem-se para as novas tecnologias de produção. Com a crise do consumo e o alto desemprego, muitas cidades europeias e norte-americanas entraram em estagnação e rápida degradação, levando muitos intelectuais a formularem caminhos a serem tomados neste contexto de crise econômica. Dessa forma, vários autores desenvolveram a ideia da “cidade-global” como a nova configuração urbana capaz de enfrentar o desafio tecnológico dos novos tempos. Seria a necessidade dos novos centros urbanos terem alta competitividade para atrair os importantes fluxos financeiros da economia globalizada, com atributos específicos que constituem insumos valorizados pelo capitalismo transnacional como parques industriais e tecnológicos e espaços para convenções e feiras. Através de parâmetros empresariais passou a se definir uma linha de planejamento urbano, a qual se denominou Planejamento Estratégico, que se encaixava no contexto liberal que pregava a competitividade, a desregulamentação e a liberdade das forças do mercado. 44

A cidade se torna mercadoria, fortalece-se pelo marketing urbano, e o planejamento urbano se volta para produzir uma cidade onde as atividades ligadas à economia globalizada pode se desenvolver. Entretanto, o diagnóstico teórico para elaborar tal planejamento tem como base cidades de países do Primeiro-Mundo, e o uso desse modelo em países do Terceiro-Mundo se mostra bastante questionável. Sobrepor este modelo em nações cuja desigualdade é extrema e a governança serve aos interesses de poucos demonstrou não contribuir para um desenvolvimento includente, no qual agrega-se as demandas pelo bem-estar do conjunto da população. Seria a priorização do crescimento econômico sobre o desenvolvimento de fato, deixando de atender às aspirações da coletividade e limitando-se a elevar indicadores. Ocorre um investimento exacerbado em certas regiões em detrimento de investimentos em locais periféricos onde faltam as infraestruturas básicas, além da expulsão da população de baixa renda de locais interessantes ao sistema do capital internacional, como foi o caso da região das avenidas Luís Carlos Berrini e Água Espraiada. Não ocorre a participação popular


na elaboração e gestão dos planos propostos, e as prioridades invertem-se, negligenciando-se necessidades mais evidentes em prol de um processo que não beneficia muitos. Os processos político-econômicos descritos afetaram diretamente o mundo do trabalho por todo o Brasil, de modo que as taxas de desemprego e subemprego tiveram significativas variações no período tratado, após um contínuo decrescimento devido à reestruturação produtiva. Entre as décadas de 1930 e 1970, a estrutura produtiva brasileira muda a centralidade da base agrário-exportadora para uma urbana-industrial, cuja renda superou a da agricultura na metade da década de 1950. Implantando o sistema fordista em larga escala, o Estado estimulou e apoiou esta nova base produtiva com investimentos voltados ao setor industrial e desinvestimentos no setor agrário, fazendo crescer o número de assalariados com carteira assinada e diminuir o desemprego. Os centros urbanos cresceram consideravelmente com o êxodo urbano consequente, porém a qualidade de vida dos trabalhadores não se desenvolvia na mesma proporção. A partir da década de 1980, com a robotização da indústria, grande parte dos empregados são dispensados e passam a buscar se fixar no setor de serviços, que não o comporta adequadamente, vendo-se dessa maneira crescer a informalidade e o emprego sem carteira assinada. O aumento da informalidade e do subemprego também decorre do esforço do sistema produtivo brasileiro em tornar-se competitivo frente ao mercado estrangeiro que se utilizava da abertura comercial que tomava forma. A redução dos custos de produção resulta em precarização das condições e relações de trabalho. Com a redução de vínculos formais de trabalho, mais e mais pessoas passaram a trabalhar sem ter acesso a um aparato de seguridade social, seja de previdência ou mesmo de assistência, no caso de desemprego. Muitos trabalhadores agora se deparam com situações de grande vulnerabilidade que podem terminar em ocasos mais drásticos como a situação de rua. “Deste modo, as mutações no processo produtivo e a reestruturação das empresas associadas à desregulamentação dos direitos relativos ao trabalho, ao profundo incremento tec-

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nológico na prestação dos serviços financeiros, ao arrefecimento do movimento sindical, a partir da década de 1990, e à redefinição do papel do Estado na reordenação do ciclo reprodutivo do capital, mediante intensa produção normativa restritiva de direitos, privatização de empresas estatais, incentivo às demissões de servidores públicos, enxugamento do aparelho do Estado, provocaram mudanças expressivas no mundo do trabalho, resultando numa profunda desestruturação do mercado de trabalho e expressivo crescimento da superpopulação relativa” (SILVA, 2006, p.68 – grifo meu).

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Números do IBGE mostram como a população desempregada se assemelha em características como idade ou sexo à população em situação de rua (SILVA, 2006, p.174). O aumento da pobreza e da desigualdade no Brasil sugere, então, uma relação direta com o aumento de pessoas habitando as ruas. Entretanto, como afirmam Snow e Anderson (1988, p.403), muitos tornam-se vulneráveis devido à conjuntura econômica, porém não são todos que acabam nas ruas. E uma possibilidade de se compreender a lacuna entre estas duas situações pode residir em fatores biográficos, que serão descritas no capítulo seguinte. É possível observar outro fator que influencia no aumento da população em situação de rua, que seriam as catástrofes naturais e as guerras. Porém, devido às limitações de tempo e de abrangência deste trabalho, não nos ateremos neste assunto.


Bibliografia

ESQUINCA, Michelle Marie Méndez. Os deslocamentos territoriais dos adultos moradores de rua nos bairros Sé e República. Dissertação – Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Departamento de História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. MARICATO, Ermínia. Globalização e política urbana na periferia do capitalismo. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz e SANTOS JR., Orlando Alves dos (orgs.). As metrópoles e a questão social brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan; Fase, 2007. V. 1, p.51-76. MARX, Karl. O Capital. Volume II. Tradução: Reginaldo Sant’anna. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A.. 1988. P. 583-932. SILVA, Maria Lucia Lopes da. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 19952005. Dissertação – Mestrado em Política Social. Departamento de Serviço Social. Universidade de Brasília, Brasília, 2008. SIMÕES JR., José Geraldo. Moradores de rua. São Paulo: Polis, 1992.
 SNOW, David e ANDERSON, Leon. Desafortunados: Um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis: Vozes, 1988. VIEIRA, Maria Antonieta da Costa et al. População de rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec, 2004. WHITAKER FERREIRA, João Sette. São Paulo metrópole subdesenvolvida: para que(m) serve a globalização? São Paulo: FAUUSP, 2000.



2 Origem(ns)

da população de rua



Neste capítulo esboçou-se um quadro dos percursos que possivelmente direcionam pessoas para a situação de rua a partir de duas pesquisas, a primeira desenvolvida por sociólogos americanos e a segunda por um psicólogo brasileiro. Na descrição de Snow e Anderson1 (1988) do quadro da população em situação de rua nos Estados Unidos, as opiniões correntes sobre as causas biográficas que empurram pessoas para habitar as ruas são reunidas em quatro classificações: o voluntarismo, afirmando-se que a própria pessoa decide que o melhor caminho seria morar na rua a ter uma residência fixa, equivocadamente responsabilizando-o totalmente por sua condição; as deficiências e patologias individuais, físicas ou mentais, que os privam de oportunidades de trabalho e de uma vida digna; a ausência do apoio familiar, que tanto indica uma contribuição para a entrada no circuito de rua como a falta de suporte àqueles que buscam escapar dessa situação; e o papel do azar, quando ocorrem uma sucessão de fatalidades que prevalecem sobre a capacidade de superação. Estes fatores sugeridos seriam dinâmicos, muitas vezes interagindo “de uma maneira espiralada” (Snow e Anderson, 1998, p.403).

David Snow e Leon Anderson são sociólogos e lecionam na Universidade da California, em Irvine, e na Universidade de Ohio, respectivamente. 1

Pesquisador formado em Engenharia Industrial Mecânica e Psicologia, obteve os títulos de Mestre e Doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, ambos os trabalhos versando sobre a população em situação de rua. 2

Já o psicólogo Walter Varanda2, em sua tese de Doutoramento, explora as questões biográficas da população em situação de rua sob um viés psicológico. Suas observações foram colhidas através de sua experiência profissional na gestão da política pública de assistência social da cidade de São Paulo para pessoas nesta situação e no contato direto através de uma pesquisa sobre a tuberculose nesta mesma população, além das perscrutações decorrentes de seus trabalhos acadêmicos que inclusive envolveram abordagens terapêuticas. Ele discorre sobre situações similares ao contexto estadunidense, entretanto chegando a diferentes apontamentos observáveis no cenário brasileiro, que, pelas considerações psicológicas, oferecem novos matizes ao entendimento da população desabrigada. Acredito que estes dois quadros oferecem uma percepção abrangente da população referida porém não se esgota uma suposta sistematização das causas biográficas. Os fatores descritos somam-se e intervêm uns sobre os outros, e histórias que não se encaixam nas análises feitas parecem sempre exis-

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tir embora muitas outras tornam-se compreensíveis através dos trabalhos consultados. Com as limitações apresentadas pelo prazo de realização deste trabalho, optei por estruturar este capítulo a partir das sistematizações apresentadas nas pesquisas estudadas. Assim, as observações pessoais e relações entre os diferentes contextos de cada fonte foram elaboradas por sobre os encadeamentos existentes. No caso do quadro apresentado por Varanda, utilizou-se algumas das divisões de seu texto porém reordenadas, de modo a permitir uma diferente leitura. ***

Uma perspectiva norte-americana3 As quatro categorias de opiniões reunidas por Snow e Anderson para as causas mais recorrentemente associadas à entrada no modo de vida na rua foram nesta seção explanadas e suplementadas. As pesquisas destes autores foram realizadas no estado do Texas, nos Estados Unidos, mas existem muitas similaridades entre o cenário norte-americano e o brasileiro e, neste capítulo, buscou-se trazer estas relações e apontar questões relevantes trazidas na pesquisa de Varanda (2009), além de acrescentar algumas observações de outros estudos.

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Voluntarismo

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“A explicação voluntarista sustenta que as pessoas estão nas ruas em grande parte por escolha. A situação de desabrigo é encarada como um estilo de vida que foi selecionado e não forçado sobre alguém. A questão de por que massas de indivíduos optariam pela vida nas ruas é evitada em favor da noção de que, exceto nas mais raras circunstâncias, as pessoas têm opções e são, portanto, parcialmente responsáveis pela situação em que se encontram. As informações nesta seção foram elaboradas a partir do livro Desafortunados, referenciado na bibliografia deste capítulo e ao final do caderno. 3

Esse raciocínio voluntarista muitas vezes tem vigência dentro da arena política, em parte porque exime os que tomam decisões políticas e as estruturas e tendências com as quais estão


associados da responsabilidade por alguns dos problemas que os confrontam” (Snow e Anderson, 1988, p. 404). Associar o desabrigo às escolhas pessoais, culpabilizando o morador de rua por suas condições de vida é uma perspectiva muito comum entre imperitos, políticos e autoridades policiais, e, de fato, é um discurso que existe nos meios de rua, porém com entrelinhas desconhecidas ou evitadas. Descrevem Snow e Anderson: “O desabrigo pode, de fato, ser uma questão da assim chamada “escolha” para algumas pessoas, mas talvez apenas quando as poucas alternativas disponíveis não são mais palatáveis que a vida nas ruas. Na medida em que isso é verdade, a escolha é dos males menores e assume um significado muito diferente do que se fosse feita diante de opções mais atraentes. Assim, atribuir o desabrigo à escolha sem uma compreensão do contexto no qual aquela escolha é feita é se envolver numa forma insidiosa de culpar a vítima” (Snow e Anderson, 1988, p.407). A culpabilização e a noção do voluntarismo pode dessa forma estar inscrita em uma análise incompleta que possivelmente desconsidera um contexto para tal escolha, escolha que muitas vezes é a solução mais esperada em certas situações. A falta de preparo psicológico, educacional, familiar, a falta de informação e conhecimento, de parâmetros éticos e morais, torna uma pessoa desarmada frente às injustiças com que se depara. Dessa forma, as experiências que esta acumula desde sua infância muitas vezes não a mune com valores e princípios que a direcione para decisões construtivas, agravando seu processo de perdas4. As memórias negativas podem minar sua representação da realidade, retardando uma reinserção social, e, eventualmente, abrindo o caminho para atitudes ilícitas.5 O segundo capítulo da tese de Doutoramento de Walter Varanda (2009; disponível em teses.usp.br) descreve com detalhes as experiências desestruturantes da população em situação de rua. Tento reproduzir algumas questões ali abordadas em alguns trechos deste capítulo. O livro Chasing the scream, de Johann Hari, também descreve com detalhes as (des)construções pessoais e a consequente vida de vícios e compensações. 5 Este processo será melhor detalhado mais adiante no capítulo. 4

O voluntarismo assume um outro significado frente às histórias pessoais, e estas podem nos mover para uma postura cada vez mais compreensiva, que permita uma abordagem mais receptiva e compassiva. Conscientemente alguns tomam a decisão de morar nas ruas, porém são diversos os fatores que os motivam a tal escolha, e, conforme a marginalização se estende no tempo, ela se enraíza no mundo interior e somente com uma assistência externa é possível uma reinserção em outros meios sociais. **

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Deficiências e patologias

Os autores norte-americanos levantaram informações de um grupo de pessoas em situação de rua na cidade de Austin, no Texas, para subsidiar suas pesquisas. A partir destas entrevistas, identificaram deficiências e patologias em comum nas diversas histórias e as classificaram como: “incapacidades físicas”, “doença mental”, “problemas com bebida”, “problemas com drogas” e “atividade criminosa”. Aqui vale ressaltar que apesar destes fatores terem sido agrupados, eles apresentam causas e tratamentos dessemelhantes, sendo fundamental essa diferenciação como entre questões físicas ou fisiológicas e questões mentais, ou também entre doenças mentais e as dificuldades em viver, como Szasz (1960) enfatiza. Entender as especificidades de cada desvantagem permite a abordagem do tratamento ser mais eficaz e igualmente complexa, evitando desserviços como a medicalização excessiva e desnecessária, em detrimento de cuidados melhor elaborados, caso este essencial de ser revisto para os tratamentos psicológicos. * 54

O psiquiatra Thomas Szasz6, contrapondo-se a uma definição generalizadora de ‘doenças mentais’, estabelece uma distinção entre as doenças neurológicas – como a sífilis cerebral ou delírios advindos de intoxicações – das dificuldades em viver7, que seriam os comportamentos que também fogem às regras predominantes de normalidade, sejam elas biológicas ou sócio-psicológicas, mas cujas causas adviriam das dificuldades em lidar com as relações sociais e as aspirações pessoais. Dessa forma, um criminoso teria maiores chances de encontrar as causas para seus impulsos em seu histórico relacional do que em uma má-formação ou disfunção físico-neurológica.

SZASZ, Thomas Stephen. The myth of mental illness. American Psychologist, EUA, n.15, p.113-118, 1960. Disponível em: http://psychclassics. yorku.ca/Szasz/myth.htm. Acesso em: 06 set 2015. 7 “problems in living” – SZASZ, 1960, p.10. 6

Seguindo este princípio, os ‘problemas com bebida’, ‘problemas com drogas’ e ‘atividade criminosa’ não seriam tidos como doenças, e teriam origens nas frustrações resultantes de experiências relacionais ao longo de uma vida. A partir desta perspectiva escapa-se de uma abordagem medicalizante do tratamento psiquiátrico para um direcionamento de se reeducar a como viver. Não seria abandonar o tratamento médico para as questões mentais uma vez que estas podem influenciar a fisiologia ou ser por ela induzidas, mas seria evi-


tar a generalização da medicação para estas condições que possuem raízes nos modos de vida, e, assim, a partir de uma diferente compreensão das causas. Szasz mesmo se refere ao trabalho do psiquiatra (e também pode-se falar do psicólogo) como aquele que trabalha as dificuldades em viver de um paciente8, reveladas em seus comportamentos desviantes das normas preponderantes. * Comparando os dados americanos com os censos da população em situação de rua promovidos pelo Governo Federal em 2008 e pela prefeitura de São Paulo em 2011, são percebidas similares proporções de respostas que caracterizam as ‘deficiências e patologias’ como uma das alavancas para a situação de rua. As informações referentes ao uso de substâncias químicas também mostraram-se semelhantes em diferentes pesquisas brasileiras9.

“A posição acima exposta que sustenta que psicoterapeutas contemporâneos lidam com dificuldades em viver, ao invés de com doenças mentais e suas curas, se opõe a corrente afirmação predominante, segundo a qual a doença mental é tão “real” e “objetiva” quanto as doenças corpóreas” – tradução minha. “The foregoing position which holds that contemporary psychotherapists deal with problems in living, rather than with mental illnesses and their cures, stands in opposition to a currently prevalent claim, according to which mental illness is just as “real” and “objective” as bodily illness.” 8

(SZASZ, 1960, p.6) 9 Cada pesquisa segue uma abordagem particular quanto as perguntas que fazem, e apresenta-se neste trabalho os dados que foram divulgados nos relatórios de cada levantamento, comparando-os quando possível. 10 48 municípios com mais de 300.000 habitantes e 23 capitais, sendo excluídas São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife por já possuírem censos municipais da população de rua.

Em São Paulo, os dados foram reunidos distinguindo a população abordada na rua daquela abordada nas casas de acolhida. Para a população abordada na rua cerca de 11% atribuiu a saída de sua moradia devido ao excesso no consumo de álcool seguido por um desentendimento familiar, e 9,75% atribuiu a saída ao consumo de substâncias psicoativas, também relacionado com conflitos com familiares. Quanto à população em casas de acolhida, 8,85% atribuiu sua saída às ruas ao alcoolismo, 6,75% ao uso de substâncias psicoativas, 0,72% a problemas psicológicos e 0,19% a doenças físicas, todos relacionados com conflitos com parentes. Entretanto, adiante no mesmo relatório é informado a estimativa de que aproximadamente 32,9% das motivações dadas neste grupo relacionam-se ao consumo de drogas, não deixando claro como este levantamento foi elaborado. Na pesquisa nacional10, 35,5% dos entrevistados afirmaram ser o alcoolismo e/ou as drogas um dos motivos ou a motivação principal para a saída de suas habitações originais, sendo possível nesta pesquisa a opção por mais de um fator, indicando correlações ou relações causais entre os diversos pontos levantados. Já a pesquisa dos autores americanos, apesar do momento histórico distante entre ela e as pesquisas brasileiras11, revela

55


uma presença do consumo de álcool em proporções similares. Cerca de 27% dos entrevistados atribuíram às ‘deficiências e patologias’ uma parte da responsabilidade para estarem habitando as ruas. 14,3% dos entrevistados percebeu o alcoolismo como parte do seu processo de ida às ruas, 3,2% identificou as drogas, quase 8% as doenças mentais e 4,8% as incapacidades físicas. A diferença entre o uso de drogas na pesquisa americana e os levantamentos brasileiros parece coincidir com a proliferação do uso do crack, que cresceu mais rapidamente no EUA somente na década de 1990 e no Brasil na década de 2000 (Kessler e Pechansky, 2008), sendo assim percebido apenas nas pesquisas brasileiras.

São Paulo / 2011

Centros de Acolhida

Brasil / 2008 56

Moradores de rua

EUA / 1988

Tabela 1: Motivos dados para sair da moradia original - Comparativo entre a população de São Paulo, a brasileira e a de Austin, Texas. Fontes: FESPSP, 2012; Meta, 2008; Snow e Anderson, 1988.

11 O livro americano foi publicado em 1988.

Total

Álcool Drogas 11

8,85 10

14,3

9,75

Usam alguma Prob. Prob. substância Psicológicos Físicos

6,75

32,9

8,15

35,5

3,2

17,5

0,72

0,19

8

4,8

* Aproximadamente um terço da população brasileira em situação de rua pesquisada percebe o uso de substâncias como decisivo na sua saída para a rua. Se analisado o uso de psicoativos nas ruas, observa-se certa semelhança na frequência do uso do álcool e do crack em algumas capitais brasileiras. No censo paulistano de 2015, cerca de 70% de uma amostra selecionada afirmou usar bebidas alcoólicas enquanto que 52% dos entrevistados afirmaram usar outras substâncias. Apenas 16% respondeu não usar álcool ou droga. No censo de Belo Horizonte realizado em 2014, o uso do álcool foi relatado por quase 70% dos recenseados. 32% afirmaram usar crack e 35%, a maconha, enquanto que 48,5% apontaram não usar drogas. Em Porto Alegre, no perfil traçado em 2011, por volta de 50% responderam possuir alguma dependência de psicoativos ou com álcool, sendo que 56% afirmaram consumir álcool, quase 34% usam maconha e 28%, o crack. Estas três


substâncias são as mais frequentes nestas pesquisas (tabela 2). Pode-se observar que a frequência do consumo de álcool gira em torno de dois terços das populações pesquisadas, enquanto que o crack é usado por cerca de um terço delas. O uso de substâncias psicotrópicas é uma realidade quase indissociável da situação de rua, mesmo existindo ainda uma São Paulo / 2015 São Paulo / 2009

Moradores de rua

Centros de Acolhida

Belo Horizonte / 2014 Porto Alegre / 2011

Tabela 2: Uso de substâncias psicoativas - Comparativo entre São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Fontes: Fipe 2015 e 2009; PBH, 2014; FASC, 2011.

Álcool Drogas 70,1

52,6

65,1

37,4

44,6 69,5 56,4

28,6

Usam alguma substância

Não usam

54,3

45,7

51,8

48,2

83,8 74,4

49,6

16,2

25,6

Crack Maconha 34,5

33,1

27,3

21

11,9 32

27,8

18,8 35

33,8

parcela que resiste ao seu uso. Autores consultados para este trabalho mostram como o vício, em especial o de substâncias químicas, possui relação com experiências negativas que se prolongaram por muito tempo. Situações familiares traumáticas, a ausência de uma estrutura familiar, a perda de um cônjuge, são todas situações que comumente aparecem entre usuários. Nas saídas para a entrega de sopa às quartas-feiras, pode-se notar como os jovens que cheiram a cola de sapateiro mostram indícios de rejeição e muita revolta, e o uso de drogas parece ajudá-los a lidar com esses sentimentos. Na tese de Varanda, a busca pelas drogas e, consequentemente, por estados dissonantes de consciência e alterações de humor é relacionado com as experiências desestruturantes que formaram uma personalidade. As substâncias são usadas, em alguns casos, como escapes para sentimentos confusos de lembranças desagradáveis. Também podem ser compreendidas como os locais onde são encontrados um suprimento paliativo do afeto que é desejado desde a infância. E muito da personalidade é marcada pelas experiências da infância e adolescência, sendo dessa forma mais perceptível a relação da falta do apoio familiar, material e emocional com o uso de psicoativos. E estes fatores, somados às dificuldades econômicas que afetam a empregabilidade e a renda, além de fatalidades eventuais, levam muitos a morarem nas ruas.

57


É interessante então notar que no censo realizado na cidade de São Paulo em 2011, as dificuldades com substâncias químicas são diretamente relacionadas com desarmonias familiares. O uso de psicoativos é incluído na classificação ‘desentendimento com familiares e/ou parentes’. Na pesquisa nacional ela possui relação com outras causas, entre elas o desemprego e desavenças com familiares, cujas frequências nas respostas dos entrevistados foram de quase 30% em ambos os fatores. E na pesquisa americana, dois terços dos entrevistados indicam que problemas familiares também fizeram parte do processo de desabrigo, e ainda pouco mais de dois terços identificam problemas estruturais como o desemprego contribuindo para a situação de rua. Diante desse quadro, Snow e Anderson afirmam que o papel das ‘deficiências’ como causa raramente é “o único empurrão para o caminho do desabrigo. Em vez disso, são caracteristicamente somadas a outros fatores” (Snow e Anderson, 1988, p.413), e particularmente se tem as questões estruturais como o desemprego e a pobreza e ainda a ausência do apoio familiar. * 58

“As perdas e rupturas no âmbito das relações familiares e sociais geram lacunas afetivas ou conduzem a perdas de vínculos trabalhistas que marcam igualmente a trajetória de vida por abalar a sustentação econômica do indivíduo. Vão delineando carências e um distanciamento da estrutura social.” (Varanda, 2009, p.20) Azar

**

Uma característica comum reportada pelos entrevistados foram os eventos que fugiam dos seus controles, e foram decisivos para sua situação de rua. A perda de um emprego como ajudante de pintor por um acidente de trabalho, a quebra de um carro quando procurava uma nova vida em outra cidade, eventos imprevisíveis que são seguidos por uma sucessão de fatalidades, induzem muitos para a perda dos meios de sobrevivência digna. “Azar como esse [a quebra do carro] unia as biografias de muitos de nossos informantes. Os particulares variavam –


um acidente de automóvel, objetos pessoais roubados, um acidente de trabalho, a quebra de um carro -, mas o resultado era sempre um empurrão inicial ou final para as ruas. Embora apenas 18% dos sessenta e três informantes com quem discutimos as razões de sua situação de desabrigo nos tivessem relatado esses infortúnios, suspeitamos que eles figuraram de modo destacado no processo pelo qual a maioria dos moradores de rua que ficamos conhecendo acabou nas ruas. Da mesma maneira que o déficit de moradias de baixa renda que paira sobre o desabrigo como uma enorme nuvem escura, os golpes de azar, suspeitamos, são tão comuns que geralmente são aceitos sem discussão e portanto não se fala sobre eles.” (Snow e Anderson, 1988, p.424-425) Esses eventos não seriam igualmente impactantes para algumas pessoas mas existem aqueles que não possuem as condições para se reerguerem após um nó inicial. A população em situação de rua que foi sujeita à força de uma série de fatalidades, que os autores americanos suspeitam ser razoável, são, na realidade, pessoas que já viviam uma situação de marginalidade socioeconômica. Essa população já carregava uma vulnerabilidade que permitiu que alguns problemas tomassem dimensões que rapidamente superariam suas competências e recursos. Dessa maneira, Walter Varanda sugere observar a situação de outra maneira. Na realidade o rompimento de vínculos entre os indivíduos e seus grupos sociais e o mundo do trabalho, com a consequente perda de status econômico e social seria percebido como um longo processo, ao invés de uma consequência de eventos catastróficos e isolados. A situação de vulnerabilidade já indica uma sucessão de fatores e possíveis eventos que promoveram a falta de recursos financeiros e emocionais, e uma fatalidade final viria abalar um equilíbrio que já se encontrava fragilizado (Varanda, 2009, p.56). Dessa forma, a compreensão do processo de vulnerabilização toma importância e compreende não somente questões estruturais mas também as que afetam a psique humana e sua sociabilidade. **

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Falta do apoio familiar

O contexto familiar revela indícios causais determinantes para a situação de desabrigo e os autores americanos apontam três hipóteses sobre como isso aparenta se desenvolver, levantadas através das opiniões dos profissionais da região e das histórias ouvidas. Um primeiro argumento seria de que as ‘deficiências’, na definição que generaliza as incapacitações físicas e mentais, trariam uma dificuldade para as famílias que eventualmente se esgotariam de recursos e paciência, levando a expulsão do familiar inconveniente de suas casas. Este perfil na realidade não se encaixaria em muitos casos, entretanto era uma opinião comum entre a população de rua. O morador é imaginado como um membro importuno de famílias relativamente saudáveis, mas a perspectiva pode diferir se a análise for aprofundada. Um segundo argumento olhava para a família e seus problemas, mais do que para um indivíduo com problemas. A família seria tão disfuncional e abusiva que o refúgio que alguns encontrariam estaria na rua, levando a uma desfiliação voluntária. Isso é perceptível na história de Tom, que com o abandono do seu pai aos seis anos e a mãe alcoólatra, deixou sua casa e foi para o exército buscando estabilidade e distanciamento de um ambiente familiar conturbado. Era frequentemente expulso de casa por sua mãe, que sempre demonstrava uma postura que o confundia pelo aparente arrependimento e afeto com que o buscava de volta12.

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História coletada por Snow e Anderson (1988): p.419. 13 Último ano antes de iniciar o ensino superior. 12

O terceiro argumento sustentaria que a razão principal para tornar alguns indivíduos mais vulneráveis que outros ao desabrigo seria a falta de apoio familiar, não porque este fora retirado, mas porque não havia nenhum desde o princípio. “Enquanto se considera que a maior parte das pessoas tem um sistema de apoio familiar que elas podem ativar em épocas de crise pessoal, aqueles que se tornam moradores de rua são vistos como não tendo tal amortecedor” (Snow e Anderson, 1988, p.414). Ron Whitaker deixou de ter qualquer resguardo familiar quando seus pais morreram em um acidente de carro quando terminava a escola secundária13, e decidiu não seguir para a adoção, terminou os estudos e entrou para


o exército. Foi dispensado três anos depois e terminou vagando pelas ruas de Denver sem ter família para voltar, indo para Austin assim que perdeu seu primeiro emprego14. Embora o caso de Ron ilustre exatamente a ausência do apoio familiar, os dois primeiros argumentos também desvelam a falta de uma rede que pudesse oferecer um amortecimento em momentos de crise. As famílias mostraram-se possuindo relacionamentos frágeis ou inexistentes, e “na melhor das hipóteses, altamente ambivalentes” (Snow e Anderson, 1998, p.422). Dessa forma, a diferença entre os desabrigados e domiciliados mostrou-se não ser apenas o sofrimento de forças estruturais ou de eventos inoportunos que os empurraram para as ruas, mas a eles também faltou o apoio familiar que a maioria das pessoas tem como certo em tempos de crise pessoal. * O apoio familiar está além do suporte financeiro ou material. A dificuldade na construção de um ambiente emocionalmente adequado para o desenvolvimento da criança e do adolescente promove uma maior vulnerabilização destes futuros adultos. Estes tornam-se mais passíveis de se envolverem com comportamentos desviantes numa busca pela ressignificação de experiências passadas, processos estes descritos a partir das pesquisas de Varanda e Hari neste e no próximo capítulo. As crises externas e internas interagem entre si para resultar na situação de rua. É difícil quantificar como a falta do apoio familiar é presente no processo de marginalização de pessoas em situação de rua. Apesar de existirem números que constatam aqueles que declaravam serem os processos familiares parte dos seus processos de marginalização, a falta do apoio familiar também pode ser um agravante para a vulnerabilidade daqueles que viram outros motivos para seus finais nas ruas. A percepção de cada indivíduo pode não ter se fixado nas relações familiares ou em sua ausência, porém elas possuem igual relevância.

História coletada por Snow e Anderson (1988): p.420-421. 14

Sabe-se que a família é o refúgio que naturalmente se busca em momentos de crise, sendo possível supor que aqueles que acabaram nas ruas não tiveram ou não quiseram acessá-los.

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Carlos15 morou nas ruas de São Paulo por mais de 15 anos. Ele possuía familiares próximos na cidade porém não os contatava pela “vergonha e pelo orgulho”. Com os pais morando em Botucatu, escolheu as ruas, mas como já era usuário de drogas, entrou para os redutos da cracolândia. Dessa forma, sem a proximidade daqueles que mais poderiam apoiá-lo, passou a buscar este ‘apoio’ nos circuitos da rua. ***

Uma perspectiva brasileira16 Nesta seção, tomo o trabalho de Walter Varanda como esteio, cuja pesquisa nota as especificidades que afetam o universo consciente e inconsciente da população em situação de rua. Através de intervenções terapêuticas ele consegue traçar alguns panoramas sobre o caminho para o desabrigo e permite uma diferente aproximação da problemática. **

Experiências desestruturantes17

62

As experiências desestruturantes são definidas como “as experiências individuais, que em vez de fortalecer os recursos pessoais que capacitam o indivíduo para enfrentar os desafios que a vida lhe oferece, minam seu potencial de organização interna, sua capacidade de articulação com o meio em que vive, sua autoimagem, autoestima e sua identidade dentro do grupo; esses eventos se inter-relacionam com as questões estruturais da sociedade” (Varanda e Adorno, 2004, p.62). Conforme o indivíduo vive a situação de rua, subjetivamente as suas experiências passadas são reeditadas e ganham novos significados de acordo com o que as novas experiências lhe transmitem. História descrita no início do caderno. 16 As informações nesta seção foram todas elaboradas a partir de trabalhos do psicólogo Walter Varanda, referenciados na bibliografia deste capítulo e ao final do caderno. 17 Capítulo 1 – tese de Doutoramento de W. Varanda (2009). 15

Os padrões reativos – observados em posturas diante de diversas relações como com o poder, com a disciplina ou com a afetividade – reproduzem as representações construídas em cada trajetória de vida. Dessa maneira, os vários tipos de violência infantil tomam relevância focando-se aqui no “encadeamento de situações que levam o adulto a se afastar das


configurações relacionais complexas e voltar-se aos pequenos grupos e para as relações de dependência com o conforto limitado proporcionado pela assistência social.” (Varanda, 2009, p.55) * Adiante os casos que Varanda mais frequentemente observava nas histórias que levantou. \A violência sexual incestuosa, perpetradas pelo pai, mãe, irmãos ou pessoas próximas, que costuma ser acobertada dentro da própria família, cristalizando as referências de menos valia e aviltamento que podem permanecer durante anos: Robson18, com mais de quarenta anos, busca a recuperação do vício de substâncias químicas, e reconhece o trauma que permanece por ter sido violentado duas vezes quando mais novo. Esta situação de abuso permeia todos os estratos sociais e Pizá e Barbosa (2004) identificam a presença de “afetos emparedados”: “incesto e morte estão muito próximos porque a criança é condenada a ficar no lugar do trágico, isolada da sociedade, sozinha, no escuro da casa-sepultura. É condenada a permanecer viva em uma relação ausente de amor com aqueles que deveriam ser suas referências amorosas fundamentais. Está emparedada entre afetos ambivalentes, destrutivos” (p.23). \O trabalho forçado, que muitas vezes não é reconhecido como negativo, apesar de insalubre ou inadequado para a idade infantil. Apesar de uma possível conotação positiva, as atribuições infantis não se realizam, levando a um crescimento com carências psicológicas. Roberto fala que trabalhava no ferro velho para ajudar na “mistura da marmita do pai”, que precisava estar bem alimentado para sustentar doze filhos. Odilene era forçada a pedir ajuda na vizinhança para complementar os mantimentos da família, tendo também passado por uma iniciação sexual precoce com o irmão mais velho19. História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.57. 19 Histórias coletadas por Varanda (2009); nomes fictícios: p.57. 18

\O uso abusivo de bebidas alcoólicas pelos pais é frequente, e é comumente associado com maus tratos na infância e com a violência doméstica, vitimando principalmente a mãe.

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\Crianças adotadas que terminam prestando serviços domésticos em troca da adoção. \Crianças separadas de irmãos precocemente, que transitaram entre casa de parentes ou abrigos institucionais sem criar referências permanentes. \Privações de comida impostas como castigo ou castigos que as privaram de contatos com outras crianças ou com os próprios pais. \Ausência constante de pais por motivos como relacionamentos extraconjugais, abandono da família ou excesso de trabalho. “A criança que passa por algum tipo de violência física ou emocional não tem a quem recorrer enquanto não tem consciência da vitimização” (Varanda, 2009, p.57), e assim, se não tratadas, as marcas permanecem por toda a vida adulta.

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Os padrões dos vínculos tidos desde a infância se relacionam e interagem com as trajetórias de vulnerabilização que perpassam outras fases de sua vida. Estas experiências podem ocorrer numa frequência grande, que supera a capacidade de suportá-las ou enfrentá-las. A vulnerabilidade a determinadas situações o fragilizam, deixando seus próprios recursos inoperantes e contribuindo para o desenvolvimento de uma autoimagem negativa. “O reflexo mais elementar da estrutura social é percebido em primeiro lugar na família ou contexto equivalente, enquanto núcleo elementar de sociabilidade” (Varanda, 2009, p.59). Sendo a vida familiar uma experiência negativa, ela mesma conduzirá a pessoa a transcendê-la, buscando uma aproximação de possibilidades de inserção em uma estrutura social onde a vida seja mais confortável e prazerosa, e ofereça condições de desenvolvimento pessoal através de uma dinâmica de auto-superação. “(...) a postura do sujeito reflete o aprendizado comportamental e as memórias de ambientação desestruturante de suas experiências. No processo de busca de novas experiências sociais, o sujeito vive o conflito identitário que o remete à constituição da personalidade no ambiente anterior e de quem almeja uma evolução com autonomia e autocontrole para reencontrar um novo sentido para a sua existência.


Neste sentido ele vive a liminaridade20 desta transição” (Varanda, 2009, p.59). Neste processo de transição, o indivíduo encontra-se vulnerável aos estigmas coletivos e, somado às referências de vida que consegue encontrar, assume identidades que reforçam sua marginalidade e sua posição de excedente social. **

Encanto e desencanto da rua21

A liminaridade é um conceito elaborado por Victor Turner (1974) que a define como um processo daquele que está nas margens, afastando um indivíduo de um grupo, seja de um ponto fixo anterior na estrutura social ou de um conjunto de condições culturais estabelecidas. É um momento de afastamento das regras de um momento anterior para uma futura reintegração, mas no caso da situação de rua o período intermediário não consegue ser superado e passa a ser institucionalizado. Nesta fase parte-se para o encontro da individualidade e de grupos que a afirmem, e da descoberta de um potencial inato. Tem origem no conceito de liminaridade apresentado por Arnold Van Gennep (1909), identificando-a na separação e reagregação dos ritos de passagens entre funções sociais, como os ‘ritos de puberdade’ (DaMatta, 2000). 21 Capítulos 1, 2 e 3 – tese de Doutoramento de W. Varanda (2009). 22 História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.38. 20

A partir de uma situação já marginal, em diversos casos existe uma ‘intenção’ de ir para as ruas. Assim como a observação de Snow sobre o voluntarismo dos desabrigados americanos, Varanda analisa que existem aqueles que percebem um encanto nas ruas, atraente por transmitir uma receptividade antes não recebida, além de ser um estilo alternativo “regado pelo uso de substâncias alteradoras de consciência” (Varanda, 2009, p.40). A rua convida ao lazer, ao aprendizado e a experiências dificilmente acessíveis com o confinamento em cortiços, favelas ou bairros pobres da periferia (Adorno, 1997/1998). Dessa maneira, existem aqueles que se sentem ‘atraídos’ pela vida nas ruas, em contraposição àqueles que na situação de rua encontram seu único recurso por não conseguirem entrar nem mesmo no mercado informal de habitação – favelas, cortiços ou ocupações dos movimentos de moradia. * Em diversos casos, o afastamento intencional de seus domicílios se relaciona com relações familiares frouxas ou hostis à criança. A hostilização familiar aparece quando um membro não segue regras de convivência ou disciplinas autoritariamente impostas, encontra incompatibilidades com outros membros ou não contribui para o orçamento doméstico – especialmente quando influenciado pelo uso de drogas e bebidas. A situação de rua oferece uma invisibilidade que pode ser um alívio e um escape da pressão familiar, como Marcelo que preferiu trocar uma configuração familiar comandada pelo padrasto por um grupo de trabalhadores itinerantes22. *

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O anonimato das ruas também traz certa segurança para aqueles que já não a tem em lugares onde são conhecidos, como os egressos do sistema penitenciário ou pessoas envolvidas em delinquências nos locais de origem. Alexandre buscou livrar-se do assédio do PCC e Tiago, da cobrança de dívidas e da acusação de roubos na vizinhança de familiares, os quais subsidiaram a compra de drogas23. * Algumas pessoas com transtornos psíquicos, deficiências físicas ou cognitivas encontram maior solidariedade nos circuitos da rua do que no ambiente doméstico. Elias, com déficit cognitivo e coordenação motora fina comprometida, encontrava intermitentemente mulheres que o adotavam ora como filho, ora como namorado, e o livravam do assédio de outros homens24. * Outro fator pouco referido é a expressão da sexualidade, que encontra na rua uma possibilidade de escape dos circuitos familiares e dos julgamentos externos. Os conflitos de identidade sexual tornam-se transtornos emocionais, podendo criar conflitos culpabilizantes internalizados cujo alívio está no afastamento das redes de relações antigas para as redes da rua. Francisco relata que dormiu com um amigo em sua cidade de origem mas não aguentou permanecer por lá depois que outras pessoas souberam do ocorrido pelo próprio colega. Iniciado no sexo com homens na infância por um rapaz mais velho, é uma prática que ele não aceita mas que não consegue conter25.

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*

Histórias coletadas por Varanda (2009); nomes fictícios: p.38. 24 História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.38. 25 Histórias coletadas por Varanda (2009); nomes fictícios: p.90-91. 23

Uma história recorrentemente lembrada pelos entrevistados é a da saída do filho pródigo, cuja busca pela expansão de si e por “ultrapassar os limites de contenção do ambiente familiar” (Varanda, 2009, p. 39), é marcado também pelo julgamento moral daqueles que ficam. Semelhantemente, para os moradores de rua, a vontade de amadurecimento, reequilibração emocional, superação da situação de liminaridade e satisfação de desejos são encobertos pela precariedade


característica com que se deparam. E a intolerância passa a ser parte de seu cotidiano, pela violência sofrida, mesmo pelos próprios pares, e pelas posturas higienistas generalizadas, como a rejeição simbolizada na arquitetura anti-mendigo26. As memórias individuais27

**

O percurso de vida de qualquer indivíduo pode ser percebido como uma sequência de vivências mais ou menos significativas conforme a intensidade de sensações, emoções ou desdobramentos que elas tenham provocado. Dessa maneira pode-se representar cada um destes elementos como vetores, positivos ou negativos, que compõem a estrutura da memória emocional do sujeito com reverberações em momentos sucessivos até o presente. Ao longo de sua trajetória, o indivíduo também recebe novas informações e elabora novos conceitos e referências que por um lado podem estimular seu desenvolvimento, ou por outro, contribuir para o “desenvolvimento de estigmas e transtornos de autoestima” (Varanda, 2009, p.78). O passado influencia o presente e as referências do presente servem para releituras sucessivas do passado, reforçando as memórias com novas significações para as experiências já vividas. “Conforme a quantidade de significados atribuídos a vivências passadas, estas experiências são superdimensionadas, a ponto de envolvê-lo” (p.78) podendo ser rememoradas continuamente, projetadas ou revividas nas vivências subsequentes.

Artefatos que impedem a pernoite de pessoas em situação de rua. Tubos de água para manter calçadas molhadas, pisos irregulares e ferragens pontiagudas, gradis cercando espaços desocupados sob marquises, superfícies inclinadas, além dos meios mais explícitos como guardas noturnos e ameaças diretas. (Varanda, 2009, p.40) 27 Capítulo 3 – tese de Doutoramento de W. Varanda (2009). 26

Com o estímulo à culpabilização advindas do meio externo ou já internalizadas, o sujeito se julga e se condena, justificando estes julgamentos com os próprios comportamentos e com as significações negativas a eles atribuídos. Estas ressignificações projetam novos vetores emocionais negativos, tornando-se equivalente aos gerados pelas experiências realmente vividas e “contribuindo para a somatória de informações, sentimentos, sensações e emoções que o constitui” (Varanda, 2009, p.79). Neste sentido, ocorre uma continuidade na trajetória de perdas que passa a ser uma referência contínua e comprometedora do equilíbrio entre “a esfera emocional e a percepção racional e objetiva de si mesmo e da realidade.

67


¶ Na medida em que transporta estas representações e distorções na percepção de si mesmo para a vida cotidiana, o sujeito se fragmenta, perdendo a noção do todo em sua personalidade e história” (p.79). * As memórias, por vezes, tornam-se registros de eventos e sensações que trazem alegrias, entusiasmo ou sentimentos irreparáveis que mantém o sujeito emocionalmente regredido em fases da vida que não podem ser recuperadas. Manoel28 permanecia em uma lacuna no real, relembrando que mexia com plantações e animais, que trabalhou com poços de elevadores, e lamentava não ter seguido carreira para se tornar engenheiro. Perdera não somente sua identidade como trabalhador, mas também um futuro que ansiou e não alcançou. Ademais, encontrava dificuldades de se inserir no mercado de trabalho por sua idade.

Estas memórias compõem-se *de dados objetivos de eventos ou processos vividos e impressões subjetivas correspondentes a estas vivências, e tornam-se tão significativos quanto as relações com personagens de referência de suas vidas como o pai, mãe, cônjuge e filhos, a ponto de explicarem a reprodução de padrões comportamentais, como relações de dependência e comprometimento da autonomia e autocontrole. A “recorrência a determinadas memórias se relaciona com a reprodução de sentimentos e posturas e até mesmo com a permanência na rua ‘sem precisar’” (Varanda, 2009, p.72). Estas memórias, em meio a situações econômicas e sociais específicas, desenvolvem e aprofundam o fenômeno da população em situação de rua.

68

História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.69-70. 28

Nestes casos a intervenção terapêutica auxilia no reencontro da autonomia, isolando ou ressignificando as experiências negativas e valorizando as positivas e outras qualificações. Sendo limitado ou inexistente o acesso a recursos terapêuticos por grande parcela das pessoas em situação de rua, estas se mantêm pelos próprios recursos e dificilmente saem do círculo vicioso de suas próprias memórias29.


O álcool é destacado por Edilson30, que o buscava para conseguir esquecer as memórias doloridas e para deixar de ouvir os “barulhos” em sua mente, desejando estar, muitas vezes, permanentemente alcoolizado. “No passado a bebida pode ter significado afirmação da masculinidade entre vaqueiros, consolo para relações amorosas não consolidadas, uma porta para o mundo, ou simplesmente um fator coadjuvante aos movimentos migratórios que trouxeram milhares de trabalhadores rurais do campo para a construção civil no meio urbano. No presente, atualizar os desejos e os projetos de vida exige esforços tão incompatíveis com as condições e circunstâncias do momento, quando a bebida, entre outras funções, permite o retorno a um passado mais estável e interessante, no nível imaginário, pelo menos” (Varanda, 2009, p.70). Os estados alterados desejáveis não se mantêm por muito tempo, logo passando para estados desconfortáveis conforme se alternam as memórias e os sentimentos atrelados à elas, dessa maneira iniciando períodos de constante uso.

Sendo comum as disfunções familiares em todos os estratos sociais e econômicos, são bem-recebidas as redes de apoio como clubes, associações, movimentos sociais, religiões ou círculos sociais secundários. Entretanto, como a operacionalização deste suporte exige respaldo financeiro, as camadas mais atingidas pela pobreza encontram apoio apenas nas redes de sociabilidade que encontram em suas trajetórias. Para os dependentes químicos e pessoas na situação de rua existem intervenções solidárias como os grupos de autoajuda, as missões religiosas e organizações da sociedade civil agindo como mecanismos reparadores, porém como o alcance é limitado, é uma minoria que utiliza desses serviços. 30 História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.74. 31 História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.39. 29

A perda de parentes próximos ou separações conjugais fragilizam profundamente alguns que não encontram uma maneira adequada para lidar com a situação e, consequentemente, atualizavam o desequilíbrio a cada rememoração. Marcelo31, anos após a perda do pai biológico, viu-se também perdendo o filho de um ano e desestabilizou emocionalmente. Passou a perambular pelas ruas em busca de instituições sociais, recorrendo a uma autoimagem de impotência e fragilidade emocional. Oscilava entre momentos de sobriedade e recaídas no álcool, que chegavam a durar semanas, onde passava permanentemente alcoolizado. * As drogas permitem um acesso a sensações do repertório do sujeito ativados por suas memórias e pelos anseios coletivos. Assim ele mergulha em bolhas emocionais que o mantém próximo ao passado rememorado, e a cada reativação e reedição dessas memórias, consolida-se realidades alternativas, deslocadas do presente, porém reais no universo construído internamente. “Estados alterados de consciência facilitam o acesso a estes conteúdos da memória emocional e a fixação regressiva em alguns destes conteúdos se relaciona à fixação do comportamento de uso, caracterizando-o como abusivo.”

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(Varanda, 2009, p.72) O exemplo de Gilberto mostra uma pendência emocional que se intensifica a cada alteração de estado pelo uso do álcool. Quando alcoolizado tinha vontade de escrever uma carta ao pai e buscava mostrar seu registro de identidade com um vazio no espaço para o seu nome. A rejeição paterna era uma bolha emocional na qual mergulhava junto a essas memórias. Quando sóbrio não manifestava esta situação; em seu estado alterado explicitava os conflitos que remoía32. O alcoolismo em relação a dramas passados pode significar processos não concluídos. No caso de Gilberto, a paternidade aparece inconclusa, mas que não significa necessariamente a ausência do pai. Pedro se recorda de seu pai apresentando comportamentos contraditórios de boa conduta em contraposição com descompensações emocionais violentas e injustas, e o levaram à dificuldade de estabelecer uma síntese de representações tão dissociadas, reeditando esta dissociação através de reações emocionais contraditórias similares às vividas no passado33. Varanda afirma: “A relação entre a paternidade negada e uso de bebidas nem sempre é tão óbvia, mas aparece em várias situações, podendo também estar relacionada à ausência do autocontrole em relação ao uso, como mecanismo de afirmação da própria masculinidade ou com o uso abusivo desenvolvido reativamente diante da ausência paterna” (Varanda, 2009, p.72).

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*

História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.72. 33 História coletada por Varanda (2009); nome fictício: p.73. 32

A oscilação entre a sobriedade e o estado alterado indica, em alguns casos, a alternância para sensações de tranquilidade, sossego, prazer e alegria. “As rodas de pinga proporcionam ambientes descontraídos de muita conversa, piadas, bom humor e música. Os casos contados revelam aventuras, conquistas, aquisições, períodos de prosperidade, parentes e amigos queridos. Aqueles que não acumularam muitas lembranças positivas ou não conseguem acessá-las costumam ficar mais quietos nestes momentos, parecendo embriagar-se também com as memórias dos outros” (Varanda, 2009, p.74). *


Memórias positivas também podem ser ativadas conscientemente através de objetos como fotografias, bilhetes, cartas, que podem sinalizar vínculos relevantes que ficaram congelados no tempo. A navegabilidade entre diferentes conteúdos de memória possibilitam regulações do humor e de sensações conforme as demandas emocionais. **

Estigmas e memórias coletivas34

“Ao trabalharmos com a realidade subjetiva do sujeito nos deparamos com contradições da seguinte natureza: o sujeito tem consciência do seu valor, de suas qualificações, suas habilidades profissionais e qualidades morais; por outro lado experimenta a incapacidade de se relacionar produtivamente e se inserir no contexto do trabalho. Percebe a rejeição de si mesmo ou do mundo. É levado a rever todo o seu passado na tentativa de corrigir sua trajetória. Entretanto o que encontra são decisões e percursos dos quais ele não se arrepende e nem sempre entende o que o fez sair da linha da segurança, autonomia e autocontrole e perder-se nos desdobramentos de certos eventos do passado. Lida com as próprias memórias e com as atitudes e comportamentos das outras pessoas que se orientam por memórias e pressupostos de menos valia que o próprio sujeito nem sempre entende, mas que se coaduna com sua história. A este conjunto de informações do qual ele não se apropria inteiramente, a não ser por fragmentos, denominamos memória coletiva.

Capítulos 2 e 3 – tese de Doutoramento de W. Varanda (2009). 34

O que outrora parecia ser um caminho seguro, como por exemplo, deixar de estudar para trabalhar e ganhar dinheiro, seguindo o aconselhamento e exemplo de amigos, como no caso do poceiro que queria ser engenheiro, pode se mostrar no fim das contas, um equívoco. Verificamos que a constatação destes equívocos nem sempre leva a mudanças. Nestes casos observamos matrizes de pensamento que o conduzem a autojulgamentos desfavoráveis a priori e sentimentos depreciativos que inviabilizam a síntese das experiências vividas.” (Varanda, 2009, p.80) *

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A situação de rua é entendida por Varanda como uma situação liminar, na qual se transita entre uma ordem social para outra, mas, no caso dos desabrigados, esta fase intermediária se institucionaliza e se estende no tempo. Este período condiciona-os a “reproduzir padrões de comportamento erroneamente assimilados ou indevidamente projetados sobre eles” (Varanda, 2009, p.46) uma vez que se encontram em um processo de autoconhecimento e de transformação e, portanto, mais vulneráveis às memórias coletivas sobre ele afirmadas ou reforçadas.

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As identidades que então assimilam, geram um universo interno muito particular, diferente daquele vivido através da autonomia em outros papéis sociais. \O processo comum de perdas – de patrimônio, de relações, de um futuro inalcançado – os fazem assumir a condição de perdedores e internalizar esta referência de si. \A criminalização generalizada de todos os marginalizados é a maneira que alguns relatam serem percebidos, de modo que assumem uma auto-percepção dupla como perigosos e inofensivos. \Muitos assumem também serem merecedores da situação que vivem, de modo a estagnarem sob a ótica da culpa. \Quando chega à rua, o indivíduo ocupa um papel social dado aos excedentes, montando sua morada com a bricolagem de materiais descartáveis (Loschiavo, 1999), revivendo a experiência de não-reconhecimento devido ao descarte social e se identifica como descartado. * Os estigmas permeiam todos os estratos sociais e os serviços que entram em maior contato com essa população acabam também os reproduzindo. Alguns serviços públicos perpetuam as diferenças sociais que restringem o desenvolvimento da autonomia e a preservação da individualidade. Existem os confinamentos além do limite legal de acolhimento, instalações precarizadas e relatos de desvios de verba. Varanda relembra o contraste da casa-grande frente a senzala quando observa a câmara municipal defronte a uma casa de acolhida sob um viaduto no bairro da República em São Paulo, ambas mantidas pelo mesmo governo. As memórias coletivas também são ativadas por ações como as remoções de áreas nobres


das subprefeituras e os tratamentos discriminatórios de alguns servidores e policiais. Estas situações tornam-se “parte do referencial que o indivíduo conta para construir o próprio sistema de representações” (Varanda, 2009, p.84). * “As posturas aprendidas o tornam sensível aos aspectos desestruturantes da sociedade que o envolve. (...) Os processos estigmatizantes reforçam as representações do que ele era, reativando a memória e a identidade social primária. Ele percebe a realidade excludente à sua volta pela destituição, dificuldade de acesso aos bens de consumo e limitações para utilização de seus potenciais de forma individual e socialmente produtiva. Desta forma sente-se fixado na liminaridade, sem poder recuperar o status perdido e sem perspectiva de alcançar um novo status. (...) A possibilidade de inserção em malocas ou comunidades solidárias ao «povo da rua» abre espaço para o que costuma ser referido como uma segunda família, às vezes mais significativa que a primeira.” (Varanda, 2009, p.59-60) * “(...) o impacto de violentas emoções atingindo-os como um raio; a vivência de situações existenciais extremas, o sentirem-se acuados face à opressão do mundo externo, ansiedade e humilhação por sentirem-se incapazes para assumir responsabilidades que lhes eram e são impostas, conflitos entre exigências sociais e pulsões internas; a tensão intrapsíquica originada pela ruminação de sentimentos de frustração, de terem sido preteridos por outros, bem assim o remoer de problemas que representem questões vitais para o indivíduo (...) a onda montante de afetos quando atinge o clímax intolerável, sobretudo quando irrompe em indivíduos profundamente feridos na imagem que fazem de si mesmos, acaba por provocar fenômenos de grave cisão psíquica” (Silveira, 1982, p.99). **

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Estados alterados de consciência35

“De maneira geral, as pessoas transitam por diferentes estados de percepção da realidade e de si mesmos, em diferentes momentos da vida, que podem ou não estar associados ao uso de substâncias aditivas, mas no caso da população de rua, este uso é inerente à situação em que vivem. Quando se liberam de compromissos familiares e obrigações sociais, podem vagar livremente no anonimato da rua e imergir em bolhas emocionais ou lembranças fixadas na memória, adotando posturas psicologicamente regredidas e padrões comportamentais alterados em relação ao contexto do presente.” (Varanda, 2009, p. 23) * Os estados alterados de consciência referem-se a alterações no estado mental de um indivíduo e podem ser acidentais, como alucinações provocadas por privações de sono, ou intencionais, como no caso de hipnoses ou uso de substâncias químicas. As experiências vinculadas ao contexto religioso, como por exemplo a possessão de espíritos, também entram neste conceito de análise. Quanto ao uso de substâncias psicoativas, “a alteração orgânica e comportamental e as alterações na percepção da realidade e das realidades internas acontecem em diferentes configurações conforme a droga utilizada” (Varanda, 2009, p.27). E também podem revelar aspectos da vida de um sujeito através dos sintomas como os delírios e alucinações.

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Estes estados permitem revisitar memórias e transformar representações da realidade e os significados que se carregará delas por toda a vida. Conteúdos de seu inconsciente podem ser acessados, sendo possível adentrar o universo pessoal que se constitui de memórias e representações de fatores externos internalizados através das relações familiares, de trabalho, relações de assistência, vínculos religiosos e outros contatos diretos ou indiretos com a sociedade.

Capítulo 1 – tese de Doutoramento de W. Varanda (2009). 35

Assim como rememorações positivas acontecem, lembranças desconfortáveis são recorrentes, aprofundando e atualizando os dramas inconclusos. A desarmonia dos conflitos existentes “tende a se instalar na percepção de si, na esfera pessoal do


sujeito. Neste caso, a bebida ou a droga pode se consolidar como um mecanismo para negar, suportar ou reparar o drama vivido”. Se, entretanto, for compreendido este mecanismo, o sujeito pode romper com o estigma e se emancipar da atribuição de papéis que o outro lhe impõe, percebendo sua vulnerabilidade como defeitos de personalidade, possíveis de serem corrigidos com esta consciência de si. Não o compreendendo na sua totalidade, pode estacionar no próprio drama, fixando-se na situação de crise (Varanda, 2009, p.67). Este seria o caso de muitos em situação de rua cujos únicos recursos para superar suas percepções desfavoráveis são limitados. A fixação na crise torna muitos a preferir os estados alterados aos estados ordinários de consciência.

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Bibliografia principal

FESPSP. Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo (2011). São Paulo, 2012. FIPE. Censo da população de moradores em situação de rua e caracterização socioeconômica da população adulta na cidade de São Paulo. São Paulo: 2009. FIPE. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo. São Paulo: 2015. KESSLER, Felix e PECHANSKY, Flavio. Uma visão psiquiátrica sobre o fenômeno do crack na atualidade. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Vol.30 n.2 Porto Alegre maio/agosto 2008. LOSCHIAVO, Maria Cecília. Cidades de plástico e papelão: o habitat informal dos moradores de rua em São Paulo, Los Angeles e Tóquio. São Paulo: FAU USP, 2003. [Tese de livre docência pela Universidade de São Paulo].

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META. Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua. São Paulo: 2008. PREFEITURA Municipal de Porto Alegre. Censo da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre - 2011. Porto Alegre: 2012. SNOW, David e ANDERSON, Leon. Desafortunados: Um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis: Vozes, 1988. SZASZ, Thomas Stephen. The myth of mental illness. American Psychologist, EUA, n.15, p.113-118, 1960. Disponível em: http://psychclassics.yorku.ca/Szasz/myth.htm. Acesso em: 06 set 2015. VARANDA, Walter; ADORNO, Rubens. Descartáveis Urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade V. 13, n. 1, p. 56-69. São Paulo: USP e APSP, 2004. VARANDA, Walter. Liminaridade, bebidas alcoólicas e outras drogas: funções e significados entre moradores de rua. Tese - Doutorado em Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.


Bibliografia referenciada

ADORNO, Rubens. Os imponderáveis Circuitos dos Vulneráveis Cidadãos: Trajetórias de Crianças e Jovens das Classes Populares. In: Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Cidadania, Verso e Reverso. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997/1998, p. 93-109. DAMATTA, R. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana 6 (1) 7-29, 2000. DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
 LOSCHIAVO, Maria Cecília. Discarded products design and homeless materials in global cities. In: City and culture, cultural process and urban sustainability. Ed. Louise Nystrom and Collin Rudge Karskrona. The environmental council, 1999, p.261-269. PIZÁ, G; BARBOSA, GF. A violência silenciosa do incesto. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
 SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1982. TURNER, Victor W. O processo ritual – estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. VELHO, G. Estilo de vida urbano e modernidade. Estudos Históricos, vol 8, no 16, pp. 227-234. Rio de Janeiro, 1995.

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3 Percurso(s)

para o tratamento da população de rua



Na tese de doutoramento de Magali Alvarez1 é desconstruído um fenômeno que ela identifica em sua pesquisa de campo – na qual acompanhou por cinco anos um agrupamento de moradores de rua no centro de São Paulo – e cujo resultado é a abertura de pessoas na situação de rua ao reencontro e reformulação de partes de suas psiques e personalidades que, por longo tempo, estiveram reprimidas e intocadas2. Ela denomina tal processo de encontro transformador, e este apenas se torna possível quando um outro sujeito em estado de devoção, disposto do amor ágape, torna-se disponível para a interação, e, a partir do relacionamento cultivado, para transformar e ser transformado.

Aparecida Magali de Souza Alvarez, psicóloga, realizou suas pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP, sendo parte de seu doutorado feito em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), e também realizou um pós-doutoramento na Universidade François-Rabelais, em Tours, França. Pesquisou sobre a formação e transformação do sujeito, o encontro transformador e o amor ágape, e em como a gestão pública pode estruturar uma atuação guiada por estes conceitos. 1

Este capítulo foi elaborado a partir da tese de Alvarez (2003), da obra de Winnicott (1975) e das referências listadas na bibliografia principal do capítulo. Algumas citações de outros autores foram retiradas da bibliografia principal, e estão discriminadas na bibliografia referenciada deste capítulo e ao final do caderno. 2

A condição de marginalidade e miséria aparentemente insuperável para muitos moradores de rua e dependentes químicos vê delineado no encontro transformador uma possibilidade de superação. A estrutura pública atual para recuperação de pessoas nestas condições caminha neste mesmo sentido, porém Alvarez destaca vias cruciais para permitir o acesso a partes do ser que são fundamentais para a reconstrução de um novo percurso de vida, como o amor ágape e a maternagem tardia. A reinserção social através de subsídios que facilitem o acesso a oportunidades de emprego, moradia, novos círculos sociais são ainda cruciais para uma reestruturação individual positiva, porém é igualmente essencial fortalecer os valores, conceituações e determinações internas – forças psicológicas que serão a base para qualquer decisão futura e a motivação por trás de qualquer caminho tomado. O encontro transformador ocorre neste espaço psicológico, e definirá a capacidade da pessoa em ser autônoma, de ser resiliente, e de ver-se capaz de superar os desafios específicos às suas condições pessoais. Muitos estão nas ruas pois passaram sucessivas privações materiais e imateriais acarretando-lhes dificuldades pessoais estranhas àqueles que apenas os observam. Dessa maneira, suas lacunas de aprendizado são em áreas que muitos assumem serem natural e facilmente adquiridos. São inúmeros conceitos, mas que apenas um relacionamento de verdadeira devoção – em um ambiente terapêutico ou fora dele – é capaz de restituir a possibilidade de criá-los, e que serão seus instrumentais para superarem os crescentes desafios.

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O encontro transformador foi observado por Alvarez acompanhando, por alguns anos, o relacionamento de duas professoras com um grupo de moradores de uma maloca3 no centro de São Paulo. Ao perceber que os moradores de rua eram transformados e adquiriam características de resiliência, buscou extrair das relações que observava as qualidades que via essenciais para o desvelar deste processo. Serão apresentados a seguir alguns dos principais conceitos levantados, em uma breve tentativa de compreensão do fenômeno. ***

Aspectos do Pensamento Complexo | Edgar Morin

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Maloca: Ajuntamento de moradores de rua em algum ponto melhor abrigado de intempéries e transeuntes. 3

Edgar Morin (nascido em Julho de 1921, Paris) – pseudônimo de Edgar Nahoum – sociólogo e filósofo francês, é pesquisador emérito do CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique. Formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. É considerado um dos principais pensadores sobre a complexidade. 4

Para o entendimento do encontro transformador, faz-se necessário associar conceitos elaborados por Edgar Morin4 e sua teorização sobre o pensamento complexo. O autor elabora uma leitura dos incontáveis fatores e relações inerentes aos sistemas, que não se limitam a uma rede simples para sua organização, formando um complexus: um tecido constituído pelos diferentes fios que o compõem, que se transformam numa coisa só, ou seja, tudo se entrecruza, se entrelaça para formar a unidade da complexidade. Os fenômenos bio-psicossociais apresentam um número incalculável de interações e de inter-retroações, quantidade inacessível ao cálculo mesmo do mais potente computador, e formam uma unidade não-linear cuja totalidade não destrói a variedade das complexidades das partes que a tecem. Seria uma abordagem que considera o dinamismo do próprio ser humano – que age e interage continuamente – e sua natureza biológico-sociocultural, que torna os fenômenos sociais ao mesmo tempo econômicos, culturais, psicológicos – multidimensionais. Ao aspirar pela multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um princípio de incompletude e incerteza. A organização ou o sistema (definido por Morin como macro-conceito de sistema), possui ainda a característica de relações circulares, cuja causalidade gira em anel. A organização é recursiva, repetitiva, e cujos efeitos e produtos são necessários à sua própria causação e produção. Pode-se assim afirmar que a sociedade seria produzida pelas interações entre os indivíduos e essas interações engendram um todo organizador


que retroage sobre os indivíduos para co-produzi-los como indivíduos humanos, o que não seriam se não dispusessem de cultura, instrução e linguagem. Cada morador de rua pode também ser percebido como um sistema complexo em si mesmo, portador de uma organização singular, acontecendo e sendo reformulado pela sociedade da qual faz parte. E o encontro transformador, apresentado ao final deste capítulo, também possui a caraterística de um sistema complexo que transforma seus participantes e este são peças chave para a formulação e reformulação do encontro. * Propõe ainda o autor a impossibilidade de se trocar o singular e o local pelo universal, mas sim, deve-se uni-los. Os limites da abstração universalista que elimina a singularidade, a localidade e a temporalidade devem ser transgredidos, e para as pesquisas que envolvem populações marginalizadas como a população em situação de rua, as histórias de vida, suas trajetórias na rua, suas interações com certos segmentos sociais e suas singularidades, são todas relevantes, assim como suas articulações com as totalidades integradoras. * Na malha do complexus ainda pode ser redefinido o termo evolução, distanciando-o da ideia de progresso ascensional para aproximar da circularidade. Existe a coexistência da desordem e da ordem, de degradação e construção, dispersão e concentração, uma vez que a ruptura e a desintegração de uma forma antiga constituem o próprio processo constitutivo da nova forma, e são, seus vários processos, simultâneos. A organização e a ordem do mundo se edificam no e pelo desequilíbrio e a instabilidade. O caos é uma desintegração organizadora, e a ordem e a organização constituem-se no e pelo caos. Por final, a evolução passa a ser concebida na simultaneidade destes aspectos antagônicos e complementares, que se remetem uns aos outros, em um movimento percebido mais próximo ao circular. Dado esta composição da organização do complexus, as indicações de regressão e de progressão também se tornam relativos. Especialmente na constituição da vida psíquica, a progressão e a regressão são melhor compreendidas nos resultados da organização e conquista de formas, do transformar-se.

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* Com estes conceitos, busco dispor uma malha teórica onde as conceituações seguintes se apoiarão e serão, assim, expandidos. O todo teórico deste capítulo foi elaborado principalmente através das construções de Alvarez e Winnicott, e, juntamente com o capítulo anterior, tem como um objetivo mostrar como processos psíquicos da população de rua são fundamentais de serem compreendidos para direcionar a nossa abordagem da problemática e do indivíduo, sendo ainda possível a extensão dos conhecimentos aqui desvelados para fora dos limites desta população. Nas seções seguintes, as teorizações de Winnicott, Alvarez e Morin sobrepõem-se e se entrecruzam, somados a outros autores – à maneira que se antecipa dentro de um complexus como o encontro transformador – de modo a destrinchar o fenômeno. O espaço potencial 84

Donald Woods Winnicott (18961971), pediatra e psicanalista Britânico que ficou conhecido por teorizar sobre o desenvolvimento do self a partir das relações do ser com os pais e o ambiente externo. 5

Psicossomático: 1.que pertence ao mesmo tempo ao orgânico e ao psíquico. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009) 6

***

Winnicott5 (1975) descreve a existência de uma terceira área, ou ainda chamado por ele de espaço potencial, contrapondo-se às duas outras: a realidade psíquica pessoal – relacionado à parceria psicossomática6 – e o mundo real em que o indivíduo vive – realidade sempre constante apesar das variações do indivíduo observador. O referido espaço abarcaria a experiência entre o indivíduo e o ambiente, mas ainda não se define dentro do indivíduo ou no mundo da realidade compartilhada. Constitui uma área intermediária de experimentação, sobre a qual contribuem as duas outras áreas. É onde existe uma interação entre os objetos do mundo exterior, os quais não são controláveis pelo indivíduo, e seu mundo interno, que ele sempre carrega consigo. Ainda assim, não é externo ou interno, é reivindicado uma existência intermediária, tão relevante quanto as duas primeiras. Ocorre, nesta área, as representações que a criança cria de si e do mundo externo e, dependendo da correspondência dos outros a tais representações, pode o bebê construí-las de maneira saudável. O amor da mãe atua neste espaço e a sua devoção, sua correspondência às criações e desejos da criança, cria confiança nela, sendo isso fundamental para a passagem da dependên-


cia para a autonomia. A confiança possibilita a brincadeira – a expressão livre do conteúdo interno – acontecer com a ansiedade minimizada, o que permite a descoberta do próprio self em um ambiente sem cobranças. O espaço potencial é preenchido pelo brincar, e esta atividade é essencial para que o indivíduo se exponha, se descubra e desvele sua identidade. O fracasso da criação de confiança na mãe ou figura materna restringe a formação desse espaço intermediário e da capacidade lúdica. A relação mãe-bebê é assim fundamental de ser protegida para o amadurecimento da criança e sua capacidade de ser resiliente. O self adequadamente desvelado permite a formação de um adulto que consegue exercer sua autonomia. As falhas neste processo promovem o surgimento de diferentes graus de adversidades psicológicas debilitantes, e estas mostram-se intimamente ligadas às populações mais marginalizadas da sociedade contemporânea, ou mesmo de outras sociedades em nossa história. O espaço potencial varia para cada indivíduo de acordo, especialmente, com suas experiências quando bebê com sua figura materna (não necessariamente a mãe biológica), e fundamenta-se na confiança que este bebê cria na mãe. O conceito de espaço potencial, assim como a sua influência sobre a descoberta do self serão mais desenvolvidos adiante, junto aos conceitos de fenômenos transicionais e da mãe suficientemente boa. ***

A mãe suficientemente boa

O espaço potencial seria, dessa forma, uma área hipotética existente entre um indivíduo e um objeto – que pode ser animado ou inanimado – e, na primeira formação de tal área, o objeto para o bebê é a própria mãe ou parte dela. Neste primeiro contato com o espaço potencial, existe uma fase na qual o bebê funde-se ao objeto, acreditando serem os dois um só nesta área intermediária. Ele logo segue para o repúdio do objeto ‘não-eu’, alternando entre as duas percepções por certo período. *

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A princípio, a criança encontra (ou, em alguns casos, não encontra) um estado onde sente-se fundido com a mãe, quando esta devota-se ativamente às suas necessidades e o bebê sente que todos os seus desejos e criações internas são ‘magicamente’ satisfeitos, e, assim, parece-lhe ser um só com o objeto – praticamente onipotente. Cria, por exemplo, o seio da mãe através de sua necessidade ou da capacidade que tem de amar, mesmo sem ter consciência exata daquilo que cria, e a mãe, então, coloca seu próprio seio exatamente onde o filho consegue concebê-lo, e forma-se este objeto em sua área intermediária, alheio ao controle interno da criança, porém ainda não sendo a própria mãe.

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Em seguida, o bebê passa para um estágio onde separa a mãe do eu, conforme ela diminui o grau de sua adaptação ao filho e alterna entre ser o que o bebê tem a capacidade de encontrar e “ser ela própria, aguardando ser encontrada” (Winnicott, 1975, p.78). O objeto então torna-se repudiado pela criança, que logo o aceita novamente e passa a percebê-lo de maneira objetiva. Neste momento de superação inicia-se a formação de um fundamento do eu, quando a criança se percebe distinta do meio externo e torna-se ciente de que este exige dela adaptações. Para Winnicott, a mãe suficientemente boa permite que este processo ocorra com o mínimo de prejuízo para ambos. É um processo complexo e que depende desta mãe para participar e devolver o que foi abandonado, sendo mais facilmente desenvolvido pela mãe natural uma vez que a adaptação ativa exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos. Porém é algo que depende principalmente da devoção, portanto pode ser encontrado em outras figuras maternas. “A adaptação da mãe às necessidades do bebê gradativamente se desenvolve em personalidade e caráter, e essa adaptação concede-lhe certa medida de fidedignidade. A experiência que o bebê tem dessa fidedignidade, durante certo período de tempo, origina nele, e na criança que cresce, um sentimento de confiança. A confiança do bebê na fidedignidade da mãe e, portanto, na de outras pessoas e coisas, torna possível uma separação do não-eu a partir do eu. Ao mesmo tempo, contudo, pode-se dizer que a separação é evitada pelo preenchimento do espaço potencial com o brincar criativo, com o uso de símbolos e com tudo o que acaba por se somar a uma vida cultural.” (Winnicott, 1975, p.173)


Da dependência, a criança deve caminhar para uma autonomia, que é estimulada pela mãe suficientemente boa – a que consegue proporcionar o bom proveito para ambos. Através da experiência que a criança tem da realidade, e especificamente a que envolve a figura materna considerada boa, ele consegue desenvolver certo grau de confiança na fidedignidade da mãe, e começa a sentir que o interesse dela não se origina da necessidade de um dependente, mas de uma capacidade de se identificar, a partir de um sentimento do tipo “se eu estivesse em seu lugar...”. E estas mesmas características um terapeuta busca oferecer para alguém que não pôde experimentar este processo em sua infância. Assim, o amor da mãe ou do terapeuta não significaria apenas um atendimento às necessidades de dependência, mas é também a concessão de oportunidade à criança ou ao paciente de passar da dependência para a autonomia. Um manejo desamoroso ou impessoal ao bebê fracassa em torná-lo uma criança humana nova ou autônoma. Se para muitos existe uma pobreza de brincadeiras e de vida cultural, pode se ponderar a limitação do espaço potencial devido a um fracasso de confiança que restringiu a capacidade lúdica, além da falta de elementos culturais fornecidos adequadamente a cada fase do desenvolvimento da criança. ***

Ilusão e desilusão; fenômeno e objetos transicionais

No começo do desenvolvimento humano, o bebê, dentro do ambiente proporcionado pela mãe, é capaz de conceber a ideia de algo que atenderia à sua crescente necessidade originada de uma tensão instintual, como, por exemplo, sua necessidade de alimento. Não se pode dizer que ele saiba o que deve ser criado, mas a mãe logo se apresenta. A adaptação da mãe às necessidades do bebê lhe dá a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar. A mãe oferece, de início, uma adaptação quase completa, propiciando ao bebê a oportunidade para a ilusão de que o seu seio faz parte da criança, de que ele está sob o seu ‘controle mágico’. Para um observador, a criança percebe aquilo que a mãe de fato apresenta, porém, o bebê percebe

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o seio apenas na medida em que um seio poderia por ele ser criado ali e naquele momento. O bebê recebe de um seio que faz parte dele e a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma. O intercâmbio baseia-se numa ilusão para ambos, onde cada um percebe o outro em uma representação criada por eles mesmos. Pode-se dizer o mesmo em função do cuidado infantil em geral, nos momentos tranquilos entre as excitações. “A onipotência (...) [para o bebê torna-se] quase um fato da experiência” (Winnicott, 1975, p.25). Entretanto a ‘tarefa final’ da mãe ainda é de desiludir gradativamente o bebê, o que somente é possível após serem propiciadas oportunidades suficientes para a ilusão se criar. O seio é criado pelo bebê repetidas vezes, seja pela capacidade que possui de amar ou pela necessidade. Desenvolve-se nele um fenômeno subjetivo denominado de seio da mãe, e este pode ser estendido para além do seio físico, abarcando toda a técnica de maternagem7. A mãe coloca o seu seio exatamente onde o bebê pode criá-lo, e no exato momento. Conforme o tempo passa, a adaptação da mãe gradativamente diminui, e o bebê adquire uma capacidade crescente de lidar com o fracasso dela. Entre os meios que ele encontra para lidar com esse fracasso estão o recordar do passado – revivê-lo, fantasiá-lo –, o emprego de satisfações auto-eróticas como o sugar do punho ou do polegar e também os objetos transicionais.

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“Maternagem ou maternagem suficientemente boa são aqueles cuidados iniciais oferecidos pela mãe ou, ainda, pelo pai e demais familiares, essenciais à formação do indivíduo (Winnicott, 1988), que possibilitam a formação da “área do brincar”, do “lugar em que vivemos” e em que permanecemos a maior parte do tempo enquanto experimentamos a vida [a área intermediária da experiência, ou espaço potencial] (Winnicott, 1975).” (Alvarez, 2003, p. 45) 7

O seio da mãe torna-se a primeira possessão do bebê de um objeto não-eu, seu primeiro objeto transicional. O objeto transicional lhe serve, entre outros motivos, como alívio para sua ansiedade. Ele representa a transição entre o estado fundido com a mãe para a percepção dela como algo externo e separado. Se estabelece na área intermediária do bebê, e é fundamental para delinear seu relacionamento com o mundo exterior. A primeira possessão está relacionada retroativamente no tempo com os fenômenos auto-eróticos e, após o desenvolvimento da criança, aos seus primeiros brinquedos, macios ou


duros. Ela é o alicerce para os próximos objetos transicionais. Relaciona-se ao seio materno, objeto externo, e com o seio magicamente introjetado, interno, porém diferencia-se de ambos. Pertence ao domínio da ilusão, porém está na base do início da experiência. Estes fenômenos seguem até a vida adulta se transformando e chegando às expressões culturais. * Os objetos transicionais permanecem pela infância, alternando-se somente conforme as escolhas da própria criança, uma vez que somente ela pode mudar o objeto. Entretanto, com a primeira possessão ocorrem dois fenômenos peculiares a esta etapa, que contribuem para a formação do self e para o contato com a realidade, que seriam a desilusão e o desmame. Com a gradativa redução de adaptação da figura materna, o bebê enfrenta sua primeira desilusão sobre o seu contato com o meio externo e com o espaço intermediário, tornando-se esta um direcionamento fulcral para lidar com outras ilusões-desilusões. O desmame vem em seguida e possui uma natureza que vai além do término da alimentação ao seio. São um conjunto de fenômenos que podem ser reunidos em torno do termo desmame, e que fazem parte do desenvolvimento do processo de ilusão e desilusão gradativa. “Podemos perceber a extraordinária significação do desmame no caso da criança normal. Quando assistimos à complexa reação que é colocada em andamento em determinada criança pelo processo do desmame, sabemos que isso pode realizar-se nessa criança porque o processo de ilusão-desilusão está sendo levado a cabo tão bem, que podemos ignorá-lo enquanto se examina o desmame real.” (Winnicott, 1975, p.28) Dessa forma, correndo bem este processo de frustração do bebê, é-lhe permitido encontrar crescimento pois a adaptação incompleta às suas necessidades e a extensão deste processo por muito tempo torna-lhe reais os objetos. A adaptação exata se assemelharia à magia ao bebê, e o objeto que perfeitamente se comporta não seria melhor que uma alucinação. E neste momento o bebê encontra objetos que cumprem a mesma função da primeira possessão ao se instalarem neste local intermediário como um alívio às suas ansiedades. Estes objetos são também denominados de objetos transicio-

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nais, uma vez que permitem à criança atender à tensão de relacionar o mundo interno com o externo. São essenciais a continuidade no tempo destes objetos juntamente com uma continuidade do ambiente emocional externo oferecido pela mãe suficientemente boa. Nestas relações com os objetos transicionais que se seguem ao seio materno, o bebê passa do controle mágico onipotente para o controle pela manipulação, mas os objetos primeiro existem dentro do espaço potencial, de natureza nem externa nem interna, mas intermediária. E destas relações ele consegue seguir para o teste da realidade estabelecida.

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Objetos transicionais, como por exemplo a ponta de um cobertor, um brinquedo, podem simbolizar o seio materno ou o objeto da primeira relação. São principalmente uma formação no espaço intermediário do bebê, podendo ter as mais variadas formas conforme as experiências de cada criança. Esta o acaricia, ama, mutila, reconhece-lhe o nome pelas falas dos pais, e ainda pode compartilhar o uso deste com outras técnicas como as satisfações auto-eróticas. Este fenômeno abre-lhe o caminho para uma distinção mais clara entre o puramente subjetivo e a objetividade. * Os padrões de uso do objeto transicional na tenra infância podem permanecer por toda a infância propriamente dita, de modo que o objeto macio original se torna necessário para dormir, em momentos de solidão ou quando um humor depressivo ameaça manifestar-se. Entretanto, quando um indivíduo se desenvolve adequadamente, o âmbito de interesses se amplia e, por fim, ele se mantém sobre esse âmbito ampliado mesmo quando a ansiedade depressiva se aproxima. Mas a necessidade de um objeto específico ou de um padrão de comportamento que começou em data muito primitiva pode reaparecer numa idade posterior, quando a privação ameaça. Johann Hari (2015) descreve em seu livro um médico que em certos momentos tinha surtos depressivos e até mesmo suicidas, e que diversas vezes, para aliviar algumas tensões repentinas, comprava CDs compulsivamente, mesmo em ocasiões inoportunas como em meio a um parto, quando se viu deixando o hospital para saciar sua compulsão. Quando


bebê, sua mãe enfrentou atrozes dificuldades para mantê-lo vivo enquanto se escondia da perseguição nazista, e o único momento em que ela relaxava era quando ouvia música. Gabor acredita que trouxe este hábito desta fase de sua vida, vendo a tensão de sua mãe se dissipando por alguns instantes, criando ele a mesma associação de tranquilidade com a música e, por fim, desenvolvendo paulatinamente uma compulsão. O objeto transicional é gradativamente descatexizado8, o fenômeno se torna difuso e se espalha por todo o território intermediário, por todo o subsequente campo cultural. Pode então ser relacionado com o brincar, com a criatividade e apreciação artísticas, com o sentimento religioso, com o sonhar, e também com o fetichismo, com o mentir e o furtar, com a origem e a perda do sentimento afetuoso, com o vício em drogas, com o talismã dos rituais obsessivos, entre outros assuntos. * Em contrapartida, o objeto transicional pode ser usado pelo bebê somente enquanto o objeto interno está vivo, e “é real e suficientemente bom”. Tal objeto interno depende da existência, vitalidade e comportamento do objeto externo. O fracasso deste em alguma função essencial leva à morte ou a uma qualidade persecutória do objeto. Com a persistência da inadequação do objeto externo, o objeto interno deixa de ter sentido para o bebê, e então o objeto transicional também fica sem sentido, comprometendo a interação do indivíduo com o mundo exterior. (Winnicott, 1975, p.23)

Catexe: (terminologia da psicologia e psicanálise) ação de parar, ação de reter, de conservar. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009) 8

A ausência prolongada da mãe também pode comprometer a saúde do fenômeno transicional. Quando ela se ausenta, não há modificação imediata uma vez que o bebê possui uma lembrança ou representação interna dela. Mas se ela se afastar além de certo limite temporal pessoal, então esta lembrança esmaece. Gradativamente os fenômenos transicionais tornam-se sem sentido e o bebê não pode experimentá-los. O objeto se descatexiza8. Antes da perda pode ser percebido por vezes o exagero do uso de um objeto transicional como parte da negação de que haja ameaça de ele se tornar sem sentido, como no caso clínico apresentado por Winnicott de

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um menino que criou uma obsessão por cordas, simbolizando e expressando seu medo de perder sua mãe que sofria com depressão. Mais tarde viria a desenvolver diversas questões psicológicas e, dentre elas, o uso de entorpecentes. * A área intermediária de experiência constitui a maior parte da experiência do bebê e a tarefa de aceitação da realidade jamais é completada, assim ninguém está livre da tensão de relacionar a realidade interna e a externa. O alívio dessa tensão se encontra na própria área intermediária de experiência, quando ela é expressada de modo que não é, e nem deve, ser contestada, como nas artes, religião, no trabalho científico criador – em todo o viver imaginativo. Todas estas atividades são denominadas pelo autor dentro do termo cultural. Esses interesses culturais, conforme se desenvolvem, contribuem para a descatexização do objeto transicional. Eles são uma continuidade direta da área do brincar da criança, que se “perde” nela, e ainda contém a natureza ilusória que o bebê carrega pelo seu viver. 92

Se um adulto consegue extrair prazer de sua área intermediária pessoal sem fazer reivindicações sobre a objetividade de seus fenômenos subjetivos, poderemos reconhecer ali nossas próprias e correspondentes áreas intermediárias, sendo que nos apraz descobrir experiências comuns entre membros de grupos de arte, religião ou filosofia. A similaridade de nossas experiências ilusórias é uma raiz natural do agrupamento entre pessoas. O objeto transicional pode vir a se tornar um fetiche e permanecer como uma característica da vida sexual adulta. E se a reivindicação da credulidade dos outros sobre a própria subjetividade for presente na fase adulta, entende-se presentes marcas de loucura. ***


O brincar no espaço potencial

É no espaço potencial que ocorre o brincar, que o autor afirma ser a “própria da saúde [pois o] brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais”. Também é afirmado que “o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; [e] finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros” (Winnicott, 1975, p.63).

Winnicott descreve a criatividade em um capítulo posterior, e busca que ela não se perca na referência apenas da criação bem-sucedida ou aclamada, mas seja significada como um “colorido de toda a atitude com relação à realidade externa” (Winnicot, 1975, p.108). 9

O autor expõe esta teoria especialmente para indagar o local da experiência cultural, que conclui estar nesta terceira área e não nas outras duas áreas, que até a época eram os maiores focos dos estudos psicológicos. O brincar seria, então, o fundamento para as experiências culturais, pois seriam o desenvolvimento das expressões de interações ocorridas nesta área específica. Na cultura, ou mesmo na religião, haveria a mesma possibilidade de expressar-se sem contestação da realidade intermediária. O assunto é desenvolvido no capítulo A localização da experiência cultural do livro O brincar e a realidade, de 1975. 10

O uso do verbo substantivado brincar se diferencia do substantivo brincadeira de maneira significativa pois não é o conteúdo do brincar que importa, mas sim o estado de quase alheamento, que se aparenta à concentração de crianças mais velhas e dos adultos. Seria o adentrar no espaço potencial, não interno nem externo, e que não é facilmente abandonada ou invadida. A criança, ou o bebê, permite encontrar no espaço potencial a realidade interna com os objetos externos, e os veste com significados próprios de seu conteúdo mental. O brincar é natural e universal, necessário, pois “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo9 e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (Winnicott, 1975, p.89)10. Portanto, no brincar e nas subsequentes experiências culturais é possível a descoberta de si, assim como a separação do eu do não-eu, como quando há superposição da área de brincar do bebê com a da mãe ou de um paciente com a de seu analista ou terapeuta, e há interação de ambos no espaço potencial com mútua adaptação. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem (Winnicott, 1975, p.101). Estes processos serão desenvolvidos na próxima seção. ***

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O self11 A ideia de self de Winnicott baseia-se em um self central, como potencial herdado pela criança. Desde o início de sua vida este potencial, através de sua interação com o ambiente e com o favorecimento deste, estaria “experimentando um senso de continuidade de ser e adquirindo gradualmente, à sua maneira e em seu próprio ritmo, uma realidade psíquica e um corpo próprios. Esse período caracteriza-se pelo estabelecimento do self e do mundo subjetivo” (Safra, 1999). Já Safra12 estabelece a diferenciação do self com o ‘eu’. Ele compreende o self como “uma organização dinâmica que possibilita um indivíduo a ser uma pessoa e ser ele mesmo. Trata-se de uma organização que acontece dentro do processo maturacional com a facilitação de um meio ambiente humano. A cada etapa deste processo há uma integração13 cada vez mais ampla decorrente das novas experiências de vida” (Safra, 1999). O ‘eu’ seria definido como um campo representacional que proporciona ao indivíduo uma identidade nas dimensões do espaço e do tempo. 94

Jung, por sua vez, dá ao conceito de self uma abordagem distinta. Ele propôs que a personalidade global, que existe, mas que não pode ser captada em sua totalidade, fosse denominada self (si-mesmo). O ego está subordinado ao self, como qualquer parte está para o todo. Do self, visto como um centro organizador da psique, emana uma ação reguladora, como uma tendência reguladora ou direcional oculta que promove um processo de crescimento psíquico denominado de processo de individuação. Existe uma diferenciação conceitual do “self ” para o “eu”, conforme se segue a linha platônica ou aristotélica da concepção do ser. Entretanto esta distinção não é abordada neste trabalho. 11

Gilberto Safra é psicanalista formado na USP, com mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pela mesma instituição. Trabalha na perspectiva da Psicanálise inglesa (Winnicott, Milner) em diálogo com a filosofia e literatura russa.

Este núcleo e ponto central seria fundamentalmente uma fonte de energia, descrito por Jung em uma citação de Silveira (1982, p.100): “A energia do ponto central manifesta-se na compulsão quase irresistível para levar o indivíduo a tornar-se aquilo que ele é, do mesmo modo que todo o organismo é impulsionado a assumir a forma característica de sua natureza, sejam quais forem as circunstâncias”. O self impulsiona o processo de individuação.

13 Integrar: 3. unir-se, formando um todo harmonioso; completar-se, complementar-se. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009)

Nise da Silveira afirma que o processo de individuação descrito por Jung seria, em essência, a “tendência instintiva a

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realizar plenamente potencialidades inatas”, potencialidades existentes no ser. E seria este um processo longo e difícil devido à complexidade da psique humana (Silveira, 1992). Nesta concepção do self haveria o sentido de tendência de realização do que existe em potencial no ser, e, portanto, seria teleológica14, focada em um fim. Esta trajetória evolutiva convocada por e em busca do centro não seria linear, mas seria um movimento de circum-ambulação do self. O centro seria “a origem e a meta da alma”, denominada por ele como Deus, Tao, Self, entre outros símbolos, em torno do qual todos os lados da personalidade são envolvidos em um movimento em círculo, e também em um movimento de subordinação de tudo o que é periférico à ordem que vem do centro (Jung, 1992, p.41). * Winnicott, em sua concepção do self como realidade psíquica gradativamente desenvolvida junto de fatores ambientais, afirma que somente no brincar que um indivíduo consegue ser criativo e utilizar sua personalidade integral, e é somente sendo criativo que este descobre o eu, seu self. No brincar, a presença de fidedignidade é essencial uma vez que possibilitará ao sujeito seu relaxamento e a expressão sem defesas de seu conteúdo interno. Em terapia isso pode significar a livre expressão de conteúdos desconexos – como ideias, pensamentos, impulsos ou sensações sem ordem aparente – que não poderiam ser organizados sem que isso representasse uma autodefesa15.

Teleologia: qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade. Teleológico: que relaciona um fato com sua causa final (diz-se de argumento, explicação ou conhecimento). (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009) 14

A criatividade e a formação do self depende de condições específicas para acontecer. Dependendo da fidedignidade do ambiente, expressam-se as atividades intencionais e a alternativa de ser não-intencional, de ser espontâneo. Existe a possibilidade do relaxamento, o relaxamento próprio à confiança e à aceitação da fidedignidade, como do ambiente terapêutico (seja analítico, psicoterapêutico, de assistência social, etc) ou da mãe devotada com seu filho, e que permite uma livre expressão do conteúdo interno, mesmo que caóticas.

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A soma do relaxamento e da atividade criativa, física e mental, formam a base do sentimento do self. E esta soma depende de se o sujeito tiver refletida de volta a criação e comunicação indireta feita a um outro em quem confia (amigo, terapeuta, etc), que assim torna-se parte da sua personalidade individual organizada. Nestas condições, o indivíduo pode “reunir-se e existir como unidade” (Winnicott, 1975, p.93), como expressão de si mesmo e não como defesa contra a ansiedade. Neste posicionamento tudo é criativo.

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Safra descreve alguns fenômenos de fundamentação do self possibilitado pela presença do outro. Ele utiliza o termo experiência estética para abordar o fenômeno no qual o indivíduo cria formas imagéticas que veicule sentimentos, e estas imagens, quando atualizadas pela presença do outro significativo, permitem que a pessoa constitua fundamentos ou aspectos de seu self, podendo então existir no mundo15. Também é descrito o fenômeno do poético, que seria aquele que articula, em um único fenômeno, a capacidade criativa dos seres humanos que se encontram, dando origem à comunicação humana, ao existir. A presença do outro significativo também significa áreas do corpo de um indivíduo, o que acrescenta ao seu acontecer no mundo. * O brincar acaba por ser interrompido se existirem inibidores como a excitação corporal de zonas erógenas ou uma ansiedade excessiva e insuportável. Dessa maneira pode-se reiterar a indispensabilidade do relaxamento em condições de confiança baseada na experiência, que permite a atividade criativa, física e mental, manifestada na brincadeira. Algumas observações Winnicott ressalta. Muitos buscam o eu (self ) nos produtos de suas experiências criativas, para um trabalho clínico. Porém, é preciso conhecer sobre sua criatividade, é necessário um estudo em separado da criatividade “como aspecto da vida e do viver total”. Apesar desse tipo de busca criativa ser válida e bem compreendida, ela está fadada a ser interminável e malsucedida. O eu (self ) não pode realmente ser encontrado no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por mais valiosas que sejam elas em suas áreas de estudo, seja pela beleza, perícia ou impacto. “Se o artista através de qualquer forma de expressão está buscando o eu (self), então pode-se dizer que, com toda probabilidade, já existe um certo fracasso [ou ausência] para esse artista no campo do viver geral criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (self )”. Uma outra afirmação o autor acrescenta: “(...) aquele que procura nossa ajuda pode esperar sentir-se curado com nossas explicações. Poderia mesmo dizer: ‘Percebo o que quer dizer; eu sou eu mesmo quando me sinto criativo e quando executo um gesto criativo; a busca está terminada.’ Na prática, isso não acontece. Sabemos que nesse tipo de trabalho, mesmo a explicação correta é ineficaz. A pessoa a quem estamos tentando ajudar necessita de uma nova experiência, num ambiente especializado. A experiência é a de um estado não-intencional, uma espécie de tiquetaquear, digamos assim, da personalidade não integrada. Referi-me a isso como amorfia na descrição de um caso [em um capítulo anterior] (...)” (Winnicott, 1975, p. 90-91). 15


* “O buscar [do eu] só pode vir a partir do funcionamento amorfo16 e desconexo ou, talvez, do brincar rudimentar, como se numa zona neutra. E apenas aqui, nesse estado não integrado da personalidade, que o criativo, tal como o descrevemos, pode emergir. Refletido de volta, mas apenas nesse caso, torna-se parte da personalidade individual organizada e, no conjunto, acaba por fazer o indivíduo ser, ser encontrado, e acaba por permitir que postule a existência do eu (self ). (...) Não somos mais introvertidos ou extrovertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transacionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos.” (Winnicott, 1975, p.107) O (falso) self

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Safra relata que um indivíduo, quando vivenciando situações de adversidade, poderia desenvolver um falso self, que seria um aspecto do self que protege e oculta o self verdadeiro como reação às falhas de adaptação, e que se organizaria como “um padrão de conduta que corresponde à falha ambiental” (Safra, 1995). Protege o ser “frente à agonia impensável, decorrente da impossibilidade de criar um mundo ao qual pudesse pertencer” (Safra, 1999). Um exemplo da expressão do falso self pode ser observado quando um morador de rua cria ou previamente elabora uma história para proteger-se das inúmeras abordagens que recebe, onde buscam adentrar sua subjetividade, frustrando-o ao final.

Amorfia “é aquilo com que o material se assemelha, antes de ser moldado, cortado, ajeitado e agrupado”. (Winnicott, 1975, p.59). 17 Só conseguiu deixar as drogas anos depois com a ajuda de um amigo, com quem, tempos depois, fundou uma instituição para a assistência de menores infratores. 16

Em muitos casos, o falso self pode ser bastante bem-sucedido e permitir o ser a alcançar seus objetivos. Muitos da população de encarcerados, e mesmo moradores de rua, precisam incorporar um novo comportamento para garantir sua sobrevivência e uma convivência pacífica. Hari (2015) ainda relata a vida de um ex-traficante que, como seus pares, precisava se utilizar de agressividade e violência para garantir o respeito de seus colegas em sua gangue e também para manter o domínio da área onde vendia drogas. Em certo momento co-

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meçou a usar crack, seguindo os passos de sua mãe, também viciada na substância17. Apesar do sucesso exterior, a insatisfação interna e a procura de si não se extinguem – persiste a sensação de não se encontrar consigo mesmo. Existe a espera por poder ser, a espera pelo encontro humanizador que “lhe permitiria o acesso à existência humana em sua plenitude de desabrochar de possibilidades. E as possibilidades do ser apontam também para a sensibilidade, delicadezas, religiosidade, amor... (...) Inaugurar-se-ia uma existência humana de esperanças e projetos, possibilidades outras que não só o crime, a violência...” (Alvarez, 2003, p.249).

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Com o convívio na confiança em um ser devotado, o self verdadeiro se constitui, em um processo regressivo em sua busca. Figueiredo (2001), comentando Winnicott, aponta que “se o desenvolvimento normal implica na capacidade de freezing a failure situation (congelar uma situação de fracasso, tradução livre) e na capacidade de reter uma possibilidade de regredir à mesma situação, mas agora unfrozen (descongelado, tradução livre), para re-experienciá-la – na verdade, para experimentá-la pela primeira vez como possibilidade vital de avanço – o processo nada tem de linear e a noção de «progresso» não dá conta de todos estes meandros e repetições”. A redescoberta do self não se dá em um progresso com avanço linear. Este autor ainda afirma que deveria ser considerado normal e saudável para o indivíduo ser capaz de defender o self contra falhas ambientais específicas por um congelamento da situação de fracasso (falha, malogro, freezing of a failure situation). Paralelamente, haveria uma suposição inconsciente – podendo ser uma esperança consciente – de que ocorrerá mais tarde uma oportunidade para uma experiência renovada em que a situação de fracasso será descongelada e re-experienciada, com o indivíduo em estado regredido, em um ambiente que estará fazendo adaptações adequadas. Figueiredo considera como um fenômeno normal a regressão como parte de um processo de cura em uma pessoa saudável. Porém, em um caso extremo de uma pessoa muito doente, o terapeuta necessitaria ir ao paciente e ativamente apresentar uma boa maternagem, algo pelo qual o paciente não poderia esperar. Uma maternagem tardia, que permite o espaço potencial da confiança ser (re)criado, desconstrói as defesas do falso self que se instalaram frente à ameaça excessiva. As si-


tuações de fracasso são retomadas, revertidas em processos de vida, permitindo que o self verdadeiro acorde para o mundo e as potencialidades desabrochem. “É um caos! Bem dizer um caos! Uma vida que... a gente nem tem explicação porque a gente vive nela...” (Discurso de “Soviético”, morador da maloca pesquisada por Alvarez, falando de sua situação mergulhado em adversidades). * No livro de Johann Hari18, Chasing the Screams, é relatado sua pesquisa sobre a problemática da dependência química, no qual descreve uma história da guerra contras as drogas, as origens da dependência e enfrentamentos contra políticas correntes equivocadas. É possível observar, com seus levantamentos, como as condições adversas interferindo na formação do self podem ser em grande medida relacionadas à propensão de um indivíduo ao uso de substâncias viciantes.

Johann Hari é jornalista, nascido na Escócia, porém foi criado em Londres, e escreveu para grandes jornais e revistas como o The New York Times, Le Monde e The Guardian. Dedicou-se ao tema da dependência química por possuir e ter perdido amigos e familiares próximos para vícios. 18

Gabor Maté, nascido na Hungria, exerce medicina no Canadá. Trabalhou por 12 anos em uma instituição para dependentes químicos – Portland Hotel Society – no bairro mais afetado de Vancouver, e também serviu nos locais de injeção supervisionado de químicos substitutos, na mesma cidade. Escreveu livros sobre o vício, stress e déficit de atenção em crianças, e busca chamar atenção para a relação entre males psíquicos e físicos. 19

Adverse Childhood Experiences Study: www.acestudy.org. Acessado em: março, 2016. 20

O médico Gabor Maté19 conta como observou durante os 12 anos que trabalhou em uma instituição de assistência a dependentes químicos em Vancouver, Canadá, que existia um padrão sutil mas constante nos pacientes que conhecia. As histórias que ouvia eram de infâncias terrivelmente perturbadas, marcadas por violência e abusos. Em suas pesquisas, procurou compreender se as drogas não eram mais as causas de um fenômeno, mas a consequência de uma série de adversidades. A princípio encontrou uma publicação da Canadian Journal of Medicine, em uma edição no ano de 2006, que levantou as melhores pesquisas acadêmicas que analisavam pessoas que recebiam opiáceos após cirurgias. Constatou-se que não havia risco significativo de vício no uso dos narcóticos para o alívio da dor, afirmação comum a todas as pesquisas. Assim conjecturou que nenhuma substância ou comportamento (como os jogos de azar) é viciante em si mesmo, mas existe este potencial viciante que se combina com uma suscetibilidade individual. Na procura pelas especificidades da suscetibilidade ao vício, Gabor deparou-se com algumas pesquisas norte-americanas

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que delinearam a natureza dessa propensão. Um grupo de pesquisadores desenvolveu um estudo sobre as experiências adversas na infância (Adverse Childhood Experiences Study20 - ACE Study) com 17 mil entrevistados, membros da companhia de seguros Kaiser Permanente, e conduziu uma análise detalhada sobre os efeitos a longo prazo de traumas na tenra infância. Observou-se dez experiências negativas que uma criança pode sofrer, desde abuso físico até abuso sexual ou a morte de um dos pais, para compreender como isso poderia afetá-los posteriormente. Desvelou-se que para cada evento traumático que acontecia a uma criança, esta teria de duas a quatro vezes maior propensão a tornar-se um adulto viciado. Quase dois terços do uso de drogas injetáveis descobriu-se ser produto de traumas de infância. É uma correlação bastante forte permitindo a pesquisadores afirmarem ser de “uma ordem e magnitude raramente vista na epidemiologia ou saúde pública” (Dube, 2003). Significaria que os traumas e abusos contra crianças teria uma relação com o vício tão significativa como a obesidade teria com doenças no coração. 100

Outro estudo, publicado na American Psychologist (Shedler, 1990), acompanhou crianças da idade de 5 anos até completarem 18, de modo a constatar o quanto que a qualidade da maternagem ou paternagem na infância pode afetar o uso de substâncias químicas quando com mais idade. Quando ainda novas, os pesquisadores deram às crianças tarefas para completarem junto de seus pais, como montar blocos, e observavam quão bem os pais ajudavam e encorajavam seus filhos através de um espelho unidirecional. Anotavam quais pais eram amorosos e apoiavam, e quais estavam desengajados ou eram desagradáveis. O resultado mostrou que as crianças cujos pais eram indiferentes ou cruéis tinham uma tendência dramaticamente maior que as outras a usar drogas pesadas. Eles cresceram menos capazes de formar relacionamentos amorosos, e, dessa forma, sentiam mais raiva, angústia e impulsivos em muitos momentos. O problema do uso de drogas seria mais um sintoma, e não a causa, de um desajuste pessoal e social (Sullum, 2003, p.15). O médico Vincent Felitti, que acompanhou o ACE Study, concluiu que “a causa básica do vício é predominantemen-


te dependente da experiência durante a infância, e não dependente da substância. A concepção corrente do vício não está bem fundamentada” (Felitti, 2003, tradução livre), referindo-se à concepção que relaciona o vício com os ganchos químicos das substâncias entorpecentes, muito mais disseminada que qualquer outra hipótese21. Gabor buscou demonstrar que o centro do vício não estava no que se ingere ou injeta, mas na dor que é sentida em sua mente, a ver as dores debilitantes que Varanda relata que as memórias individuais geram sobre o viver no presente. E quanto maiores os traumas, mais extremo pode ser a expressão do vício. * Vale ressaltar que os químicos ainda exercem um importante papel no desenvolvimento do vício. Richard DeGrandpre (2006) relata um teste sobre o uso do adesivo de nicotina realizado na época de seu lançamento, no início da década de 1990. Averiguou-se a eficácia deste método, que era a melhor resposta para a teoria sobre o vício predominante na época. Com o agente químico viciante advindo do cigarro sendo substituído pelo o que o adesivo provia, buscava-se eliminar o hábito do fumo gradualmente. Porém foi constatado que somente em 17,7% dos usos de adesivos de fato afastou o vício, pois muitos ainda sentiam a necessidade da ação de fumar apesar do nível de nicotina no corpo se manter a mesma. Conjectura-se, portanto, a possibilidade de que, com relação aos vícios, uma proporção de casos aproximada a este número possa ser relacionada primeiramente aos ganchos químicos dos entorpecentes. Já para os outros 82,3%, pode-se supor que questões psicológicas tenham maior preponderância. *

Daniel Moerman (2004) afirma ainda que o trauma na infância pode bloquear o crescimento físico de uma criança, o qual pode ser revertido se colocados em um ambiente familiar amoroso. 21

As questões mentais que Hari coloca em seu livro que se relacionam com o vício passam pelos traumas de infância, mas ainda em seguida ele demonstra como a ausência de pontos de apoio e conexões significativas também podem influenciar no uso de substâncias. Entretanto, as experiências da infância podem ainda ser conectadas a este fator. Este assunto será relacionado com a necessidade de pontos fixos para o restabelecimento do self, descrito ao final deste capítulo.

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* Como visto no capítulo anterior, o vício em substâncias afeta a maior parte da população de rua, em São Paulo chegando a quase 70%. As falhas na construção do self podem afetar diretamente no consumo de psicotrópicos e no aumento desta população de risco, ou mesmo debilitando um sujeito, tornando-o vulnerável à adversidades e a uma vida marginal. Relato em seguida o ensejo de Alvarez para lidar com a questão do self a partir do contato social a qual denomina de encontro transformador. ***

O encontro transformador A resiliência

Iniciados em 199822, os contatos da autora com a pequena maloca no centro de São Paulo permitiram a documentação da trajetória de alguns moradores que progressivamente faziam uma transição para outro modo de vida, contrariando as expectativas comuns para tal população. Abandonaram o alcoolismo e reergueram-se das situações adversas em que viviam, empreendendo novas trajetórias. Estabeleceram novos vínculos afetivos, passaram a se interessar pelo trabalho, preocupando-se com um lugar melhor para morar, mesmo que em um barraco precário construído próximo à maloca onde viviam. Dessa maneira, ao final do trabalho estas pessoas podiam ser consideradas como resilientes, como “portadores da capacidade humana de fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecidos ou, inclusive, transformados” (Grotberg, 1996).

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Entre 1993 e 1998, a autora realizou sua primeira aproximação com o grupo de moradores que compunham uma maloca na Bela Vista, para elaboração de sua dissertação de mestrado sobre a temática da resiliência. Na pesquisa de doutorado, esses primeiros moradores se dispersaram, e, a partir do final de 1998, iniciou-se a análise no mesmo recinto, mas com diferentes moradores. A partir deste último grupo foi elaborada a tese do encontro transformador. 22

Desses contatos e das entrevistas, pôde-se observar os conceitos heurísticos associados à resiliência como explicitado por Grotberg (1996). Sendo um conceito amplo e com definições variadas para diversos autores, Grotberg cita o ponto fixo, o sentido da existência e a busca de sentido, características que Alvarez notou serem criadas na vida mental dos moradores que analisou, e que delinearam os seus diálogos com as circunstâncias e pessoas em suas vidas, com as adversidades, com o inóspito morar na rua. Foram, portanto, contribui-


ções progressivas do encontro transformador, contribuindo para o re-acontecer de seus selves no mundo. * Critelli (1996) desenvolveu uma ideia heideggeriana do sentido da existência – o rumo – a respeito da experiência humana da vida que seria, originariamente, a experiência da fluidez constante, da mutabilidade, da liberdade e da angústia – uma experiência da inospitalidade do mundo quando o sentido que se fazia se evade, manifestando-se o mundo nessa sua inospitalidade. Assim, em meio a um mundo intrinsicamente litigioso, o sentido da vida e o desejo por ele seria não apenas uma genuína manifestação de humanidade do homem como também um plausível indício de saúde mental, afirmando Frankl (1989) que o ser humano deve sempre estar endereçado, apontando para qualquer coisa ou qualquer um diverso dele próprio, com um sentido a realizar, ou para outro ser humano a encontrar, para uma causa a consagrar-se ou uma pessoa a quem amar. Somente na medida em que consegue viver essa auto-transcendência da existência humana alguém é autenticamente homem e autenticamente “si próprio”. A criação de sentido estaria ancorada em uma capacidade de ter iniciativa, que por sua vez precisa de um poder ir e ter para onde ir, ou seja, um rumo. Estes atributos teriam origem na paternagem, como o que aponta o caminho, o fator educativo, o que mostra, pelo exemplo, o caminho. Pode este ser o contexto mais amplo no qual a criança se encontra: se vivendo em uma instituição, esta, em seu funcionamento, possibilita à criança vivenciar a tomada de decisões, de responsabilidades, de mutualidade responsiva. Torna possível que ela siga o oposto de uma posição de vitimização, posição de dependência passiva e exigente, e permite à criança experienciar o poder, pequeno, que ela tem dentro da estrutura onde vive. * A respeito do ponto fixo, Damergian (1988) sugere que o bebê necessita de um ponto fixo para construir um universo, seu mundo interno, sua identidade. O ponto fixo seria o objeto bom que lhe deve ser oferecido pelo meio (figura

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materna). Sem isto, não haveria a estruturação do núcleo do ego, a personalidade não se desenvolveria, a identidade não se construiria. O objeto bom ou o ponto fixo também é aquele oferecido pela mãe-sociedade a seus filhos-membros.

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O ponto fixo seria algum marco de referência que permanece no interior ao longo de toda a vida do sujeito, podendo ser uma pessoa, presente ou ausente, real ou fantasiada, uma coisa, um lugar. Bowlby (1989 e 1990) refere-se à uma base segura como um ponto central de comportamento de cuidados e, também, a um modelo positivo de comportamento a ser oferecido ao bebê, como base para um desenvolvimento psicológico saudável da criança, contribuindo para a formação de uma personalidade resiliente, que é capaz de continuar assim, mesmo em circunstâncias adversas. Seria a partir de sua provisão à criança ou ao adolescente – pelos pais ou outros que fizessem parte do “entorno”, das “circunstâncias de suas vidas” – que eles poderiam “explorar o mundo exterior e retornar a ele, certos de que serão bem-vindos, nutridos física e emocionalmente, confortados se houver um sofrimento e encorajados se estiveram amedrontados. Essencialmente, é estar disponível, pronto para responder quando solicitado, para encorajar” (Bowlby, 1989). Aqui vale notar a relação que estes conceitos mostram ter com Winnicott, quando referia-se à necessidade de um espaço de confiança entre o filho e sua figura materna para um saudável desenvolvimento de seu self, e o posicionamento e discurso de Johann Hari, que reuniu pesquisas que revelavam a relação dos traumas e adversidades na infância com as dificuldades sociais na vida adulta e uma maior propensão ao uso de substâncias químicas. Acerca do ponto fixo e sua relação com a resiliência na vida adulta de um indivíduo, Bowlby relata: “Em conclusão, quero esboçar o quadro proposto do desenvolvimento da personalidade. A experiência de uma criança pequena de uma mãe estimulante, que dá apoio e é cooperativa, e um pouco mais tarde o pai, dá-lhe um senso de dignidade, uma crença na utilidade dos outros, e um modelo favorável para formar futuros relacionamentos. Além disso, permitindo-lhe explorar seu ambiente com confiança e lidar com ele eficazmente, essa experiência também promove seu senso de competência. Daí por diante, desde que os relacionamentos da família


continuem favoráveis, não só estes padrões iniciais de pensamento, sentimento e comportamento persistem, como a personalidade se torna cada vez mais estruturada para operar de maneira moderadamente controlada e resiliente, e cada vez mais capaz de continuar assim mesmo em circunstâncias adversas. Outros tipos na primeira infância e mais tarde têm efeitos de outras espécies, levando habitualmente a estruturas de personalidade de menor resiliência e controle deficiente, estruturas vulneráveis que também tendem a persistir. Então, a maneira pela qual a pessoa responde a eventos adversos subsequentes, entre os quais rejeições, separações e perdas são alguns dos mais importantes, depende da forma como sua personalidade se estrutura” (Bowlby, 1990, grifos meus). Grotberg (1996) também faz referência à capacidade que possuem os pais, ou figuras correspondentes, de promover ou não promover a resiliência em suas crianças, através do tipo de cuidados dispensados a elas, da maneira em que as ajudam a responder às situações adversas da vida. * As observações efetuadas na investigação de Alvarez revelaram a resiliência surgindo em meio aos moradores de rua analisados, e, numa busca das causas dessa transformação, foram analisadas as relações entre os integrantes da maloca e as pessoas com quem estabeleciam contato, que carregavam o objetivo de ampará-los em suas necessidades e na retomada do rumo. Haviam os pontos fixos provenientes do entorno, das pessoas que os auxiliaram; também alguns traziam pontos fixos internos, introjetado na infância distante, representados por modelos saudáveis como o pai, a mãe, avó ou algum outro cuidador; e ainda outros reconheceram, já quando adultos, novos pontos fixos, através de pessoas carregadas de um amor específico, que permitia um processo de maternagem tardia. Através destes apoios eles puderam empreender uma jornada na direção de uma existência mais plena, mas ainda restavam questionamentos sobre o contato que se desenvolvera. Tal contato e o estabelecimento dos pontos fixos e da resiliência tornaram-se possíveis pela permeação de um conceito que se revelou por todo o processo: o ágape. **

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Justiça, quatro amores e o ágape

A característica da devoção da mãe suficientemente boa e da boa maternagem descrita por Winnicott pode ser associado a uma forma de amor que Luc Boltanski23 resgata em sua obra L’amour et la Justice comme compétences. E este amor foi fundamental na maternagem tardia que os moradores de rua observados por Alvarez puderam experimentar. Para descrever este amor – o ágape – é preciso compará-lo aos outros tipos de amor e ao conceito de justiça. * Boltanski traz a noção de equivalência, afirmando que para que os indivíduos possam escapar do jugo dos interesses particulares, da indiferença ou da guerra e constituir-se em corpo político, é necessário que seja dado a possibilidade de identificar-se com uma referência a um princípio de ordem. Existe a necessidade de se definir um bem comum que lhes seja superior e que possa fazer entre eles equivalência. Apoiando-se sobre essa equivalência é que poderá estabelecer-se o caráter justo ou injusto das relações entretecidas uns com os outros, e ela dará uma grandeza acessível que não seja arbitrária e possa ser, a partir disso, qualificada como justa.

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Na definição de justiça está implícito a ideia de ser uma alternativa à violência quando cada um dos envolvidos no processo reconhecer a equivalência geral e constatar que o outro também a reconhece. As disputas passariam da violência à justiça, e esta trataria a disputa reportando-a à equivalência geral e submetendo as partes a uma prova definida pela referência a tal equivalência.

Luc Boltanski (nascido em janeiro de 1940, França) é sociólogo, professor na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) de Paris. Fundou o Grupo de Sociologia política e moral, e é um dos principais representantes da escola pragmática da sociologia francesa, também chamada de teoria das economias da grandeza ou sociologia dos regimes de ação. Seu trabalho influenciou significativamente a sociologia, a economia política e a história social e econômica. 23

No entanto, “na medida em que existem vários princípios de equivalência legítimos, a prova pode sempre ser relançada apoiando-se sobre uma outra equivalência, igualmente afetada de uma validade universal. A disputa em justiça estaria assim reativada e até disseminada. Com efeito, nesse processo, as pessoas vão procurar sem parar novos objetos, novos argumentos, novas testemunhas para sustentá-las, apoiar sua causa. É a razão pela qual a justiça é sempre, em si mesma, insuficiente. Ela pode, por um tempo, canalizar a disputa, submetendo-a à sua ordem. É-lhe impossível detê-la” (Boltanski, 1990, p.137).


* Boltanski examina textos que falam de amizade e de amor pois aí encontraria outra alternativa à violência, e que não recorreriam ao princípio de equivalência, possivelmente falho. No amor haveria uma maneira própria de contrapor-se à violência, diferentemente da justiça que a resolve substituindo uma comparação entre oponentes por uma referência a uma equivalência universal. O amor não compara e ignora as equivalências, e assim não seria apenas uma alternativa à violência, mas também à justiça. * Buscando distanciar-se dos lugares comuns e até dos “usos desonrosos” que o conceito do amor adquiriu pelo tempo, Boltanski busca uma aproximação de construções da tradição, que permitem a utilização do conceito para a análise das capacidades cognitivas humanas para se entrar em relações de paz. Hoje o termo evoca uma confusa mistura de caprichos, paixões, apegos, apetites, repetidos por romances e canções de amor. O autor, procurando uma antropologia das capacidades cognitivas, percebe que deve recorrer à tradição teológica, uma vez que a filosofia política clássica, que visa o estabelecimento da justiça no quadro de um Estado, ignora a relação, tão fortemente presente na consciência do mundo antigo, entre amizade, ou amor, e justiça. “É uma outra tradição que devemos invocar (...) No curso deste trabalho, nós seremos levados a conceder uma importância particular a uma noção de amor designada, na maioria das vezes, por um termo do jargão cristão, o Ágape, que os teólogos têm sido praticamente os únicos a estudar e, por vezes, a tomar a sério.” (Boltanski, 1990, p.153) Como um sociólogo, o autor busca separar o amor ágape de sua dimensão sobrenatural para interessar-se pela maneira como ela pode regular a relação entre os homens e, sobretudo, para buscar desenvolver em um modelo a concepção que cada um de nós teria da intuição. Não se inscreveria em uma teoria sociológica da religião, mas seria uma pura decisão de método, buscando a reapropriação do conhecimento religioso pela antropologia, que desde o estabelecimento das Ciências Sociais no século XIX, tem sido criticada e substituída.

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* Na procura de conhecer, na tradição, as formas de laço social construídas sobre a base do amor, Boltanski resgata a compreensão grega, citando Spicq (1955), e relata que para o nosso único vocábulo, o grego compreende quatro formas lexicais. . Um dos tipos de amor não possui seu nome descrito, porém exprimiria o apego naquilo que ele tem de espontâneo, de natural e quase instintivo. Seria principalmente utilizado para designar o amor familiar, como o da mãe pelos filhos, ou ainda o apego dos animais pelos seus pequenos. No encontro transformador, este amor e o ágape se sobrepõem, e assim ampliam o conceito de amor que ocorre entre os protagonistas da relação transformadora.

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.. Um segundo tipo de amor seria a philia, e é fundamentada sobre o reconhecimento de méritos recíprocos. Para que a amizade se instale, é necessário que ambos os parceiros sejam dignos de ser amados, para que ambos retirem as mesmas vantagens um do outro e se desejem os mesmos bens reciprocamente. Seria onde, ainda, ambos podem trocar uma coisa por outra, como o prazer contra o proveito. A amizade assim supõe não só uma medida comum que permite a avaliação dos méritos, mas também uma regra de igualdade dentro de um comércio mútuo. A amizade objetiva uma espera do outro, um retorno equivalente àquilo que ele mesmo lhe deu. Assim, ela se desenvolve melhor entre pessoas “virtuosas”, muito pelo fato de que cada parte recebe da outra as mesmas vantagens ou vantagens parecidas. ... Para caracterizar o amor eros, trazendo o entendimento de Platão sobre o termo, Boltanski afirma que este é uma substituição do apego singular por um ser particular pelo amor daquilo que faz a equivalência entre os seres, pelo próprio princípio superior comum, o que aproxima esta concepção de amor à teoria política da justiça. Seria “o desejo de elevar-se do inferior ao superior[.] (...) para se realizar plenamente


deve desligar-se do objeto imediato para buscar as ideias gerais que sustentam, na realidade, o desejo” (Boltanski, 1990, p.165). O desejo do eros pode manifestar-se como um desejo de possessão, o qual submete o eros terrestre, ou ainda como um desejo de transcendência, que orienta o eros celeste. E seu despertar depende fundamentalmente do valor de seu objeto pois tal valor possui prioridade maior sobre os “belos corpos”, buscando remontar, no caso, ao princípio de toda beleza. .... Contrapondo-se às características referidas do eros e da philia, particularmente suas relações com a justiça ao reclamarem uma equivalência geral para avaliar o mérito do objeto amado, o ágape possui um percurso teórico diferente. Torna-se relevante à inúmeras outras áreas do conhecimento por permitir pautar novas abordagens e apontar para desenvolvimentos promissores. A acepção de ágape abordada por Boltanski refere-se ao amor às outras pessoas humanas, definido como o amor ao próximo. Possui vocação para manifestar-se em presença de qualquer pessoa. Em oposição ao eros, o ágape não se eleva àquele que é superior e não possui a ideia de desejo, independe dele. Ele é inteiramente construído sobre a noção de doação e não depende do valor ou do mérito do objeto ao qual ele se endereça, assim se qualifica como gratuito. Enquanto a philia apoia-se sobre a noção de reciprocidade – “um dos conceitos fundamentais das Ciências Sociais modernas, particularmente da Antropologia” (Alvarez, 2003, p. 42) – o ágape, definido pela doação e pela devoção, não espera retorno, nem sob a forma de objetos, nem mesmo pelo amor em retorno. A doação do ágape ignora a contra-doação. Alvarez cita Boltanski: “cada um dos atores em estado de Ágape não modela sua conduta sobre a representação que ele faz da resposta que o outro dará a seu ato. Não incorpora em seu ato a resposta antecipada daquele ao qual se dirige e não concebe, então – à diferença de teorias modernas da ação – a relação com o outro sob a forma de uma sequência de golpes

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e contra-golpes. É principalmente a recusa da equivalência que afasta o ágape tanto de eros quanto da philia” (Boltanski, 1990, p.173). No ágape, ignora-se o cálculo, uma vez que não se acumula mais que para o dia presente e não se preocupa com o amanhã. Esta inaptidão ao cálculo que, com a insuficiência das antecipações, inibe a espera de um retorno, e também suprime toda dívida. Eventualmente, esta atitude repercute nos recipientes da devoção, que rendem-se a ela e tendem a reproduzir os mesmos atos com outros, respondendo a doação pela doação (Boltanski, 1990, p.189). Embora não haja a expectativa da retribuição, o próximo eventualmente responde o ágape com o ágape.

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A pessoa em estado de ágape não se detém nem em ofensas sofridas, nem naquilo que realizou, assim carrega a faculdade de perdoar e dar gratuitamente. No ágape não se carrega nenhuma estrutura para reter os benefícios e malefícios, nenhum instrumento para calculá-los e guardá-los na memória, tornando o perdão, o esquecimento de ofensas, uma qualidade predominante. O amor ágape pressupõe a ausência de uma regra de equivalência, que, por sua vez, traz a carência de um ponto de indicação que permita discernir a necessidade daquele com o qual se cruza e de ir ao seu encontro. Para trazer este ponto de direção, a referência a si e às próprias necessidades (aquilo necessário no presente, e não em uma especulação futura, como no desejo) permitem que se estabeleça uma relação em ágape. É a referência a si que constitui um dos critérios que permite distinguir a compaixão da piedade. Ou então, como Brown (2012) sugere, empatia e simpatia. Seria a referência a si que estabelece, na dinâmica da compaixão e empatia, a capacidade de conceber a angústia, a miséria e o engajamento nas ações para socorrê-las. Carl Rogers fala sobre a empatia como “captar o mundo particular do cliente como se fosse o seu próprio mundo, mas sem nunca esquecer esse caráter de «como se»” (Rogers, 1991, p.262). No caso da piedade ou simpatia, a miséria é considerada exterior, sem fazer re-


ferência a si. A empatia e a compaixão são necessárias para se estabelecer a confiança e a liberdade de ser a si mesmo, que permitem a transformação acontecer. Em um encontro, pode-se dissolver o peso condenatório e culpabilizante – e a memória coletiva conforme Varanda – de sobre um sujeito que sente a pressão negativa de um julgamento internalizado. Citando Kierkegaard (1980), Boltanski relata que o ágape não conhece a preferência e não conhece o favoritismo. Ele se endereça às pessoas que encontra em seu caminho e com as quais cruza o olhar. Tem como alvo o homem que se vê, quer descubra-se nele perfeições ou imperfeições, não sendo estes seus alvos. Neste amar, trata-se de não fazer intervir uma ideia imaginária sobre a maneira que se crê que o próximo deva ser ou que se quer que ele seja. Se assim for, não se está amando a quem se vê, mas a algo invisível, sua própria ideia ou alguma “outra fantasia”. Acolhe-se o próximo da maneira que ele se apresenta, sem que se ignore a sua realidade, promovendo a liberdade para que ele se mostre do jeito que é, iniciando seu processo de auto-desvelamento. 111

Boltanski também relata a opção pelo presente que existe neste tipo de amor: “A orientação temporal do ágape é diferente daquela que a justiça ou o eros carregam, ele se mantém no presente. Enquanto que a justiça possui um espaço de cálculo voltado para o passado, já que os atos a serem julgado já aconteceram, o eros, na incompletude de seu desejo, se volta para aquele momento sempre retardado na sua realização, para o futuro. É a opção pelo presente que assegura a consistência entre as principais características que definem o ágape” (Boltanski, 1990, p179). Este amor também carrega uma disposição permanente de doar-se. Não seria uma concepção estática, mas um amor em movimento, inclinado à ação, devoção, doação – gratuita, ignorando a contra-doação – dando àqueles com quem cruza o olhar, sem preferências. Esta característica também contribui para que a aceitação incondicional seja transmitida. O sujeito alvo da aceitação pode então se colocar no espaço de confiança e abrir-se para o inventário de seus próprios atos (Alvarez, 2003, p.218).


O amor ágape, em todas as suas características, pode definir o sucesso em contatos rápidos como aqueles que assistentes sociais buscam quando alcançam moradores de rua para encaminhar-lhes apoio. Demonstrar uma doação de si que não seja puramente profissional e impessoal é essencial para que os pacientes sintam-se confortáveis e mais disponíveis para qualquer atividade. Mesmo em contatos rápidos, como os que tive a oportunidade de fazer com o Sopão24 ou nas entrevistas para este trabalho, a abordagem que construo com o interlocutor pode definir uma resposta defensiva e superficial, definida por um falso self já consolidado, ou uma resposta aberta e disposta a ouvir e responder com sinceridade, carregado de si mesmo. O autor, em seu livro, busca também definir como seria a contribuição do ágape no campo da sociologia e afirma que este “possui características singulares como a preferência pelo presente, a recusa da comparação e da equivalência, o silêncio dos desejos ou ainda a ausência de antecipações na interação, que o afastam dos modelos sobre os quais as disciplinas como a economia, sociologia ou psicologia social habitualmente se apoiam” (Boltanski, 1990, p.223), diferentemente dos outros tipos de amor anteriormente apresentados, que já teriam contribuído largamente às diferentes ciências sociais.

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Pude ter um contato direto com esta população através de projetos de alcance nos bairros do Bom Retiro e Sé, junto a Missão Bálsamo e o Sopão no Páteo do Collégio, ambas realizando atividades semanais, e que, no caso do Sopão, frequentei entre os anos de 2013 e 2015. 24

Nesta tentativa de medir a utilização do ágape pelas ciências sociais e de descobrir a natureza das ações sobre as quais ela poderia trazer uma contribuição, o autor propõe um exercício teórico ao imaginar quais características teria uma sociedade tomada pelo ágape. Ele observa que, neste mundo onde as pessoas afastam delas o desejo e ignoram a justiça ou a grandeza, cada um é, por sua vez e de maneira circular, protetor daquele que ele encontra. E para que isso aconteça, com este amor se realizando com aquele que se vê, o dinamismo e a busca ativa pela doação tornam-se inerentes, de modo a permitir colocar-se em presença do seu próximo para além do círculo de relacionamentos antigos. Para que tal situação se mantenha, é necessário que todos estejam tomados pelo mesmo desinteresse pelo cálculo, inibindo-se as capacidades calculadoras. Ninguém mede, calcula ou antecipas as possibilidades do outro. O estado seria de


confiança, que propicia a formação do espaço potencial em e entre ambos, tornando-se este um espaço de transformação. O amor ágape, a resiliência e o pensamento complexo foram aspectos destacados por Alvarez para descrever o encontro que observou se desenvolver na maloca que conheceu, e que foi alvo do alcance de duas professoras interessadas na reestruturação dos seus indivíduos. A resiliência e autonomia tornam-se os alvos a serem perseguidos, o amor ágape o meio, e o pensamento complexo estrutura a compreensão do fenômeno. Sua descrição será complementada no próximo segmento. O encontro

*

A existência de uma interação específica entre indivíduos que, pela sua especificidade, possibilitaria a transformação dos envolvidos, fora antes um pressuposto de Alvarez ao realizar sua pesquisa de mestrado. A partir de cinco anos acompanhando o trabalho investido por duas professoras em uma maloca na Bela Vista, Alvarez constatou os detalhes deste encontro que possibilita o despertar da sabedoria humana, de suas potencialidades, e que permite, sobretudo, a retomada da existência, do sentido da vida, possibilitando a criação do amor em si. * Os moradores de rua contatados revelavam através de suas falas a presença do sentimento de desconfiança (Erikson, 1976). Desconfiavam da uniformidade e continuidade dos provedores externos e da própria capacidade para enfrentar suas necessidades e desejos urgentes. Estava instalada a falta, a carência do sentimento positivo de confiança. Sentiam-se no fundo do poço, e dentro de uma prisão nas ruas, difícil de sair. O restabelecimento do sentimento positivo de confiança era necessário para que os sujeitos, cujos sentidos de vida se romperam, pudessem novamente olhar a si mesmos, e reconhecerem-se como sujeitos desejantes. Sentiam a carência de confiança e esperavam alguém para poder dar-lhes um ponto de apoio.

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Associou-se, então, à questão do encontro a noção de espaço potencial, a área de desenvolvimento e experiências do ser humano, também denominada por Winnicott como área do brincar. O brincar, local onde acontece uma relação criativa com o mundo, instaura-se em presença de um estado de confiança, eliciado entre os envolvidos no encontro. A confiança se instala através de um comportamento específico, e Winnicott a descreve a partir do contato do bebê com sua mãe, em que o bebê manifesta uma dependência quase absoluta de sua mãe, e esta carrega uma função adaptativa ativa, que é tomada como certa pela criança. A mãe suficientemente boa surge como aquela que, através de sua devoção, oferece na maternagem os cuidados essenciais à formação do indivíduo e que possibilita a formação da área do brincar. Esta devoção pode se aprofundar a partir do conceito do ágape, compreendido como o amor ao próximo, uma vez que suas características como a doação sem esperar contra-doação ou o seu dinamismo na busca ativa do outro promovem no amado a confiança naquele que se doa. Esta doação promove a correspondência com a doação, mas, principalmente, permite ao indivíduo receptor da doação explorar-se na área intermediária de experimentação, em seu espaço potencial, onde interagem o mundo interno e o externo, e onde ocorre o brincar criativo. Nesse entregar-se ao relacionamento existe a abertura para a experiência estética e o fenômeno do poético, quando constitui os fundamentos e aspectos de seu self. * Damergian (1988) sugere ainda que o bebê necessita de um ponto fixo para construir seu mundo interno, sua identidade. Refere-se a um ambiente facilitador como uma das condições para que a personalidade cresça de maneira saudável, como, por exemplo, a mãe suficientemente boa, que é capaz de oferecer um ponto fixo, um “porto seguro”, que permita estruturar a identidade. Alvarez também usa o termo ponto de apoio, de modo a refletir o dinamismo do acontecer do self no mundo. Alguns indivíduos estudados por Alvarez mostraram possuir modelos favoráveis trazidos de suas infâncias, como a mãe, pai ou algum cuidador na terra natal, e que haviam sido introjetados, permitindo um processo ativo de comunicação


interna na fase adulta com estes próximos devotados. Marcos, um dos moradores observados na pesquisa, referia-se à sua característica de evitar conflitos na busca de cultivar o respeito como um valor trazido de sua infância. Mas não são todos que trazem esta bagagem do passado, sendo comum a ausência tanto de uma maternagem e de um espaço de confiança, como da paternagem com o revelar do rumo. A ausência de um ponto de apoio na infância e juventude de uma parcela da população de rua os encaminha a construírem suas identidades a partir do mundo que lhes é apresentado nos meios de sobrevivência e de aceitação que encontram. Forjam selves que se adaptam aos ambientes que encontram e, para alguns, a criminalidade e as drogas tornam-se inexoráveis. Neste ponto, novamente pode-se fazer relações com a pesquisa de Varanda (2009), quando este se refere às memórias individuais negativas, que influenciam o viver no presente. Traumas e experiências negativas especialmente na infância, mas também na adolescência, podem formar memórias cuja dor de suas rememorações e projeções nas representações no presente são constantemente atualizadas e impossibilitam um viver satisfatório e pleno. A formação do self se dificulta ainda mais com o aumento do sentimento de desconfiança originado nos relacionamentos do início da vida. E as conceituações internas a serem desconstruídas e reconstruídas a partir de um próximo devotado aumentam conforme o tempo. Hari (2015) também aponta na mesma direção, mostrando como em diversas pesquisas, associa-se os traumas e carências na infância com a propensão à dependência química e aos vícios. Em seguida destaca os experimentos de Bruce Alexander, psicólogo e professor na Simon Fraser University, em British Columbia no Canadá, nos quais buscou confirmar a origem do vício mais nas condições ambientais do que apenas na dinâmica bioquímica. Bruce, ao perceber que as pesquisas que conhecia utilizavam somente ratos em gaiolas isoladas, propôs a confecção de gaiolas com mais opções do que apenas um bebedouro com morfina. Acrescentou rodas, bolas coloridas, melhor comida e outros ratos e comparou o uso de drogas pelos ratos nas duas condições. Constatou que o uso de químicos era cinco vezes menor na gaiola melhor estruturada, em comparação com ratos em gaiolas que

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somente dispunham de água com morfina. Uma dinâmica semelhante pôde ser observada com o fim da Guerra do Vietnã, o que permitiu uma comprovação do experimento. 20% dos soldados americanos tornaram-se viciados em heroína no período da guerra, e no seu retorno apenas 5% deste número continuou usando a droga passado um ano do fim da guerra. O vício pode ser visto como uma adaptação e dependeria do meio em que se está inserido.

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Os pontos de apoio, além dos familiares, estendem-se para pessoas que dispõem do ágape e podem suprir um indivíduo de carências afetivas e permiti-lo ser ele mesmo em um espaço potencial e de confiança. Entretanto existe também a necessidade de pontos de apoio como o trabalho, a moradia fixa e o lazer. A gaiola bem estruturada criada por Bruce permite uma analogia a estas condições. O censo da população de rua da cidade de São Paulo (Fipe, 2015) mostra a vontade por estes pontos de apoio nos recenseados. Para a indagação “O que ajudaria a sair da situação de rua”, o maior número de respostas enquadrou-se na busca por uma moradia permanente (37% dos acolhidos e 30% dos moradores de rua), seguido pelo anseio por um emprego fixo (36% dos acolhidos e 26% dos moradores de rua). A terceira resposta mais frequente fora a superação da dependência de álcool e drogas (8% dos acolhidos e 14% dos moradores de rua). Os pontos de apoio e próximos devotados podem auxiliar indivíduos a se afastarem de um viver precário, em meio aos vícios, criminalidade, informalidade, permitindo o re-acontecer do self no mundo. Isto foi comprovado em Portugal, onde se aplica uma política de descriminalização e apoio ao usuário de drogas. Com o uso regulado pelo Estado e as doses de substâncias ditadas pelo próprio usuário, além de subsídios para sua contratação pelo mercado e a oferta de tratamentos eficazes, permitiu-se que o próprio indivíduo tenha controle sobre o uso que faz, e em pesquisas comprovou-se que, com o tempo, as doses usadas diminuíam, uma vez que alcançava-se novos pontos de apoio (Hari, 2015). As professoras Silvia e Lucinha, em suas aulas de alfabetização e nos outros contatos periódicos com os moradores da maloca, demonstravam uma busca ativa e devotada pelos alunos, que por sua vez entregavam-se aos seus movimentos de


aceitação incondicional. Os moradores partiam de uma existência com áreas de seus corpos emocionais que não foram significadas pela presença do outro, um outro significativo em estado de devoção. Áreas de seus selves eram apenas potências que não aconteceram, não se atualizaram, e estavam à espera de um próximo devotado. Nos relacionamentos presenciados por Alvarez, o encontro que os moradores ansiavam se desvelava. Entre cada morador e as professoras-mãe criou-se uma superposição de duas áreas de brincar, fundamentada na confiança. Os moradores permitiam-se renascer e experimentar a afirmação de suas áreas intermediárias através do amor ágape recebido. O amor e a aceitação eram gradativamente criados ou recriados em si mesmos, combinados aos conteúdos esparsos de suas identidades, antes forjadas no crime, no desespero, na exclusão, e agora em momento de desarticulação para ser novamente articulado a partir de novos eixos. Essa desarticulação, esse desmontar-se, abria brechas entre os fragmentos da personalidade só possível no playground que os envolvidos ajudavam a criar, e a brincadeira permitia experienciar o controle de sensações novas, não vivenciadas na infância e adolescência, quando foram ausentes modelos saudáveis. Criava-se delicadezas, afetuosidade, poesia, oração, valores morais (Alvarez, 2003). * Em muitos moradores de rua, o sentimento de Deus funciona como um ponto de apoio em suas psiques, trazendo, a presença da religiosidade, um alavancar de seus projetos de estar no mundo, sustentando-os com um sentido de vida, apontando um rumo para suas vidas atormentadas que não a violência, morte ou cisão psíquica, favorecendo-lhes a resiliência. Em momentos de perturbação e desalento, a busca pela esperança em uma figura divina mostrou ser algo fortemente presente no mundo interno dos moradores abordados. A religião, dessa maneira, pode ser observada a partir de Jung, que a considerava como uma função natural, inerente à psique, associado à saúde mental – afirmava ser a atitude religiosa de suma importância para cada ser humano. Com suas experiências na psicoterapia, ressaltava a necessidade que muitas pessoas têm de certas convicções religiosas não funda-

117


das na razão, necessidade de algo que “lhes toque o coração”, proporcionando um sentido na vida, de modo que alguns de seus pacientes conseguiram ser curados somente após o reencontro com suas raízes religiosas (Jung, 1991). * A partir do pensamento complexo proposto por Morin, pode-se compreender sob outros aspectos o complexus do encontro. Seus conceitos da Complexidade e da Sistêmica não intentam “dissolver o ser, a existência e a vida no sistema, mas compreender o ser, a existência e a vida com a ajuda também do sistema”. A teoria do sistema “ganha vida onde há vida”. E o seu maior interesse teórico surge em nível das sociedades humanas, que por sua vez, nunca pode ser reduzida à noção de sistema (Morin, 1997).

118

Em muito moradores de rua é formulado um falso self que lida com o ambiente inóspito em que vive. Podem ser bem-sucedidos e favorecer-lhes a sobrevivência em meio à intensas ameaças, agressões, exclusão e criminalidade. A organização criada – o falso self – se torna um “dispositivo de ação adaptativa, ágil e móvel”, porém ainda é também um “dispositivo de congelamento” (Figueiredo, 2001). “(...) [o falso self ] traz em si as marcas da “frozen situation”, daí sua rigidez, apesar de sua evidente operatividade. O indivíduo é mantido ao mesmo tempo excessivamente acordado – impossibilitado, portanto, de dormir, de sonhar e brincar em serviço – e com partes suas totalmente amortecidas, dormentes, congeladas, em estado de dissociação. Será preciso desconstruir as boas defesas do falso self oferecendo uma condição, já não mais sonhada nem desejada, de confiança no ambiente e na possibilidade de retomar a situação de fracasso para descongelá-la e convertê-la em possibilidade de vida (grifos acrescentados ao texto)” (Figueiredo, 2001). Instalada a confiança no ambiente, proporcionado pelo ser que primeiro carrega o amor ágape, é permitido ao morador de rua, ou ao ser amado, iniciar seu processo de desconstrução da antiga forma de sua psique, seu falso self. Existe a capacidade latente para a regressão e para a auto-cura que precisa ser reanimada com as devidas condições de modo que


permita o sujeito restaurar sua saúde mental – na qual se inclui o (re-)acontecer de seu self no mundo. O próximo significativo que entrega o ágape em suas diversas características, transmite estes conceitos identificando a necessidade do outro que lhe é demonstrado pela convivência. Estes conteúdos surgem inicialmente como ruído – perturbação aleatória – ao sistema psíquico do recipiente, e atua em seu processo de comunicação interna, promovendo a desorganização desse sistema. O ágape só lhe terá significado quando ele puder criá-lo. A organização complexa e ativa do falso self inicia um processo de catástrofe, uma ruptura de sua forma, ocasionando uma mudança, esta pela associação da ruptura da forma com a criação de forma. É um movimento de flexibilização, de desconstrução de suas defesas no processo regressivo, instaurado no espaço potencial desenvolvido junto ao próximo significativo. Nesse momento, sua psique permite o rever-se, com seus conteúdos congelados (como, por exemplo, suas memórias) soltando-se, dançando em movimentos brownianos25, deixando-se reconhecer pelo próprio sujeito mergulhado no ágape do outro significativo. Nesta “dança dos conteúdos esparsos da psique”, estão presentes também os conteúdos do ágape que – a princípio ruídos – em um dado instante começam a fazer sentido para aquele que é alvo da devoção, criando-se o amor. Existe a sobreposição entre a oferta daquele que dá, e o que pode conceber aquele que recebe. Assim, pode-se afirmar que os elementos do ágape são percebidos apenas na medida em que o ágape pode ser criado exatamente ali e naquele então (Alvarez, 2003). *

Esta ilustração faz uma analogia aos movimentos das partículas em suspensão em um fluido – caótico, multidirecional e com imprevisíveis colisões – descrito pela primeira vez pelo botânico inglês Robert Brown em 1827. 25

Nesta etapa do processo, Soviético, um dos moradores da maloca acompanhado por Alvarez, expressava uma comunicação ativa com seus novos conteúdos internos, uma nova configuração emergia em sua psique, e se encaminhava para transformação, resistindo ao convite do crime. Porém, não bastou apenas o apoio recebido pelas professoras que o acompanhavam para que assumisse uma estabilidade na resiliência. Estando ignorado pelo sistema social mais amplo, faltava-lhe ainda os pontos de apoio do trabalho, do reconhecimento de seus direitos de cidadão, de poder ter uma moradia fixa – onde poderia manter-se e fortalecer-se nos propósitos de uma nova vida e em não reincidir na delinquência.

119


“Mas eu acho que uma hora eu ainda acabo voltando porque essa vida de rua é muito triste, muita humilhação! Nego passa e fala: «Pô, aquele cara é forte pra caramba, pode arrumar um serviço, pode arrumar um emprego! Mas, não sabe o que está correndo por trás dessa pessoa. Não sabe do sofrimento, não sabe o que ele já passou... a cadeia que ele já tirou... Então tem muitas coisas em volta disso aí” (declaração de Soviético, para Alvarez, 2003).

120

Alvarez relata que a superação da marginalidade e da criminalidade não são consequências tidas como certas com os novos pontos de apoio descritos. Seria a forma interna, porém, um “produto das catástrofes flexibilizadoras das defesas de um falso self, de movimentos regressivos e progressivos, das inter-relações/interações entre os antigos e novos elementos – conteúdos da psique em estado de ebulição, de organização interna mas também das pressões e imposições do meio”. Dessa forma, esta nova forma-organização que se afasta do crime ou supera a exclusão, pode “surgir como ocorrência num fundo de improbabilidade difusa e abstrata, uma probabilidade concentrada local temporária e concreta” (Alvarez, 2003, p.238). Sobretudo, observou-se nos moradores a transformação consequente do conhecimento e criação do amor em si. Novos elementos, significados passaram a fazer parte do universo psíquico de cada morador, que iniciou um intenso processo de comunicação interna com as novas nuances de sentimentos que descobriam neles. O crime, em alguns, não acontecia livre e solto, sem filtros. É um processo que demanda tempo, para alguns são contínuas batalhas contra valores internos arraigados por suas vidas, outros superam com maior tranquilidade. O sentimento de Deus e os pontos fixos internalizados da infância fortemente influenciam nos processos individuais. Mas ainda que todo o processo de transformação e reorganização se efetue, a falta do apoio do sistema social será sentida, tornando difícil manter-se a constância das novas formas configuradas. Em meio ao ambiente de agressões e violências constantes, existir com dignidade exige dos indivíduos e da sociedade ampla por novas configurações de ação, fomentadas por uma ativa dedicação.


Bibliografia principal

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123



4 Projetos

ConclusĂŁo



Modos de morar na rua

No caderno de pesquisa do LAP 26 (Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação, sediado na FAU USP) escrito pelas professoras Suzana Pasternak, urbanista, e Elaine Rabinovich, psicóloga, foram elaboradas cinco categorias dos modos de morar da população de rua, baseados nas características dos locais de dormida e nos seus modos de vida. Os nômades seriam caracterizados pela ausência de um local fixo para pernoitar, e pouquíssimos recursos para passar as noites confortavelmente, muitas vezes dispondo-se apenas de papelões ou cobertores doados. Foram denominados neo-nômades aqueles que não possuem local de pernoite fixo, porém carregam suas camas consigo, como o fazem os carrinheiros que fazem de suas próprias carroças suas moradias. Os selvagens possuem local de pernoite fixo, porém as estruturas em que se abrigam não o são. Apenas apropriam-se de estruturas existentes sobre espaços excedentes. Diferentemente fazem os assentados e aqueles que moram em cavernas, pois estes buscam locais onde possam permanecer indefinidamente, criando estruturas próprias e que tenham maior durabilidade ou então abrindo buracos sob viadutos ou onde encontrem estruturas com espaços vazios não utilizados. Desta observação e categorização pode-se compreender com mais clareza as diferentes maneiras e possibilidades de apropriação do espaço público realizadas pela população de rua. As semelhanças e diferenças revelam diferentes modos de sobrevivência que retratam ainda diferentes tipos de personalidades e visões de mundo. Assim como os carrinheiros que conseguiram uma fonte de renda mais segura e estável, aqueles que habitam as cavernas ou os assentados demonstram terem conseguido estabelecer-se em algum tipo de fonte de renda que os permitiu “estabelecerem-se”. Alguns moradores demonstram preferir o convívio constante de outros moradores, ajuntando-se em malocas, procurando amizades ou apenas mais segurança, outros buscam uma vida mais solitária, seja pela desconfiança ou por conveniência. O que podemos perceber é que estas também podem ser consideradas como expressões de um mundo interno que é construído de maneira única a cada indivíduo. De acordo com as marcas do passado de cada sujeito, seja este passado marcado por mais apoio, fortalecimento, empoderamento, instrumentalização,

127


ou então pelo sofrimento, carências, culpabilizações, inferiorizações, maus-tratos, o passado gera forças ou fraquezas internas que capacitam ou são impeditivas de uma vida diligente. Em cada tipo de modo de pernoite poderia se observar um maior ou menor grau de traumas e dificuldades no passado que resultaram no self que consegue buscar acontecer no mundo ou constantemente precisa se defender dos outros e dos julgamentos internalizados.

128


NĂ´mades e neo-nĂ´mades

129


“Selvagens”

130


Morador de rua e sua caverna

131


“Assentados”

132




Territorialidade da população de rua Remediação

Ao ler os censos paulistanos da população de rua, o que causava o maior incômodo era o desalinhamento entre as vagas de pernoite oferecidas pelos centros de acolhidas conveniados à Prefeitura e a localidade preferida pelos próprios moradores de rua, que há pelo menos 16 anos optam pelos distritos centrais, em especial a República e a Sé. Diversas hipóteses ocorriam-me, apoiadas apenas por relatos esparsos colhidos em algumas conversas e entrevistas. Em grandes eventos urbanos como na vinda do Papa a São Paulo, quando existe grande publicidade na mídia nacional ou internacional sobre a cidade, alguns moradores e assistentes sociais relatam suas experiências ou histórias que conhecem sobre afrontas policiais violentas e abusivas contra malocas, para afugentar, dispersar e higienizar as áreas mais visíveis (algo que se tem suspeitas de terem acontecido também na Coréia do Sul, China e África do Sul, nos preparativos para os eventos esportivos internacionais, quando possivelmente muitos moradores de ruas e habitante de moradias informais foram deslocados forçosamente1). E, aparentemente, mais vagas de pernoite têm sido criadas nas regiões mais afastadas do Centro, onde a concentração de pessoas nas ruas é razoavelmente menor, nos permitindo conjecturar sobre a vontade política de dispersar a população de rua por toda a cidade, tornando a problemática menos visível, portanto menos discutida, e, consequentemente, tornando-a menos exigente.

http://edition.cnn. com/2016/04/19/opinions/ preventing-heroin-overdose-u-n-drugs-dreifuss/ | Acesso em jun.2016 1

Todavia, sabe-se que a questão da reconquista social do Centro não é simples, a ver as dificuldades constantes que a luta por moradia vem enfrentando para re-habitar esta região, que possui uma quantidade de lotes vazios em um volume que poderiam sanar a carência de habitação paulistana, que é significativa. A questão habitacional não passa somente pela especulação imobiliária que retém lotes vazios em regiões que prometem futuras valorizações, mas existem muitos imbróglios legais que impedem quase a mesma medida de terrenos de conseguirem um proprietário que reative sua função. A partir disso não se pode afirmar sem uma devida pesquisa quais as motivações para a política contraditória do poder público para a assistência a população de rua, mas percebe-se que algo que pode ser fundamental para isso é o encaminhamento de soluções para lotes que não cumprem sua função social.

135


A questão do descumprimento da função social do terreno nas áreas centrais pode ser ampliada e ir além da busca por habitação, mas também seguir pela ampliação do serviço de assistência social próximo daqueles que mais necessitam dela. E, visto as taxas de crescimento da população de rua, esta necessidade será cada vez mais premente.

136

Concentrações da população de rua em 2000, por ponto


Concentrações da população de rua em 2000 e 2003

137


População morando nas ruas - por região

Sul: 2,3% | 167 Leste 1: 2,6% | 188

Noroeste 1,9% | 141

Leste 2: 2,8% | 209 Centro Sul: 6,6% | 485

Nordeste: 7% | 516

Centro: 52,7% | 3.863 Oeste: 9,3% | 682

138

Sudeste: 14,8% | 1.084

Centro :

52,7%

(3.863)

Centro Sul :

6,6%

(485)

Sudeste:

14,8%

(1.084)

Leste 2 :

2,8%

(209)

Oeste :

9,3%

(682)

Leste 1 :

2,6%

(188)

7%

(516)

Sul :

2,3%

(167)

Noroeste :

1,9%

(141)

Nordeste :

Total: 7.335 recenseados

População morando na rua - por região


População de rua acolhida - por região

Leste 2: 1,5% | 129 Leste 1: 4,3% | 369

Sul: 1,1% | 95

Centro Sul: 4,9% | 416

Sudeste: 35,6% | 3.050

Nordeste: 11,9% | 1.024

Oeste: 12,2% | 1.048

139

Centro: 28,5% | 2.439

Centro: 28,5%

Sudeste :

35,6%

(3.050)

Centro Sul :

4,9%

(416)

Centro :

28,5%

(2.439)

Leste 1 :

4,3%

(369)

Oeste :

12,2%

(1.048)

Leste 2 :

1,5%

(129)

Nordeste :

11,9%

(1.024)

Sul :

1,1%

(95)

Total: 8.570 recenseados

População de rua acolhida - por região


População morando nas ruas distritos com maiores concentrações

1º Sé : 17,9% | 1.311

5º Santana : 3,3% | 239 2º Sta. Cecília : 13,9% | 1.019

3º República : 9,8% | 718

140 9º Tatuapé : 2,3% | 169 7º Mooca : 2,4% | 175

6º Bela Vista : 2,8% | 206 8º Bom Retiro : 2,3% | 172

4º Brás : 4,6% | 339

10º Consolação: 2,2% | 165

1º_

17,9%

1.311

Centro

272

Outros distritos

Centro

2º_

13,9%

1.019

Santa Cecília

Centro

401

Outros distritos

Sudeste

3º_

9,8%

718

República

Centro

682

-

4º_

4,6%

339

Brás

Sudeste

277

Outros distritos

Nordeste

5º_

3,3%

239

Santana

Nordeste

485

-

Centro Sul

6º_

2,8%

206

Bela Vista

Centro

209

-

Leste 2

7º_

2,4%

175

Mooca

Sudeste

188

-

Leste 1

8º_

2,3%

172

Bom Retiro

Centro

167

-

Sul

9º_

2,3%

169

Tatuapé

Sudeste

141

-

Noroeste

10º_

2,2%*

165

Consolação

Centro

Total: 7.335 recenseados

*a frequência acumulada de 61,5%com maiores concentrações População morando na rua -édistritos *A frequência acumulada é de 61.5%.

Oeste


População de rua acolhida distritos com maiores concentrações 1º Mooca : 13,8% | 1.184

9º Santo Amaro: 2,8% | 241

1º Mooca : 13,8% | 1.184

9º Santo Amaro: 2,8% | 241

3º Pari : 9,9% | 847 3º Pari : 9,9% | 847

5º Vila Guilherme : 8,3% | 709 5º Vila Guilherme : 8,3% | 709

8º Brás : 4,6% | 394 8º Brás : 4,6% | 394 2º Barra Funda : 10,2% | 878 2º Barra Funda : 10,2% | 878 17º e 30º Sé e Liberdade : 1,6+0,2% | 137+15

141

17º e 30º Sé e Liberdade :

10º República | 205 1,6+0,2%: 2,4% | 137+15

4º Santa Cecília : 9,4% | 809

10º República : 2,4% | 205 7º Bom Retiro : 6,7% | 570

4º Santa Cecília : 9,4% | 809 6º Bela Vista : 8,2% | 703

7º Bom Retiro : 6,7% | 570

6º Bela Sudeste Vista : 8,2% | 703 Outros distritos

1º_

Sudeste

Mooca

13,8%

1.184

2º_ 1º_

Oeste Sudeste

Barra Funda Mooca

10,2% 13,8%

878 1.184

Centro Sudeste

3º_ 2º_

Sudeste Oeste

Pari Funda Barra

9,9% 10,2%

847 878

Oeste Centro

4º_ 3º_

Centro Sudeste

Santa Pari Cecília

9,4% 9,9%

809 847

5º_ 4º_

Nordeste Centro

Vila Guilherme Santa Cecília

8,3% 9,4%

6º_ 5º_

Centro Nordeste

Bela Vista Vila Guilherme

7º_ 6º_

Centro Centro

Bom Retiro Bela Vista

8º_ 7º_

Sudeste Centro

9º_ 8º_

7,3%

625

Outros distritos distritos Outros

1,8% 7,3%

152 625

Outros distritos distritos Outros

2% 1,8%

170 152

Nordeste Oeste

Outros Outros distritos distritos

3,7% 2%

315 170

709 809

Centro Sul Nordeste

Outros Outros distritos distritos

2% 3,7%

175 315

8,2% 8,3%

703 709

Leste Centro1 Sul

Outros -distritos

4,3% 2%

369 175

6,7% 8,2%

570 703

Leste 12 Leste

--

1,5% 4,3%

129 369

Brás Retiro Bom

4,6% 6,7%

394 570

Sul Leste 2

--

1,1% 1,5%

95 129

Centro Sul Sudeste

Santo Brás Amaro

2,8% 4,6%

241 394

Total: Sul 7.335 recenseados -

1,1%

95

10º_ 9º_

Centro Centro Sul

República Santo Amaro

2,4%* 2,8%

205 241

Total: 7.335 recenseados

10º_

Centro

República

2,4%*

205

*a frequência acumulada de 76,3%é de 76,3%. *A frequênciaéacumulada *A frequência acumulada é de 76,3%.

População de rua acolhida - distritos com maiores concentrações População de rua acolhida - distritos com maiores concentrações


Número total da população em situação de rua

16000

15.905 14.478

14000 13.666

12000

10000 8.570

8000

8.706

7.713 7.079 7.335

142

6000

6.587

6.765

2009

2011

5.013

4000 3.696

2000

2000

2015

Moradores de Rua Acolhidos Pessoas em Situação de Rua

Número Total da População em Situação de Rua (Modificado)


Taxas de crescimento anual - períodos intercensitários

Ac: 7,5%

MR: 3,08 %

MR: 3,08 % MR: 3,08 %

Ac: 7,5%

Ac: 7,5%

MR: 1,34%

Ac: 4,38%

Ac: 4,38% Ac: 4,38% MR: 1,34% MR: 1,34% PSR: 2,93%

PSR: 5,14% PSR: 2,93% PSR: 2,93% PSR: 5,14% PSR: 5,14%

2009/2011

2000/2009 2009/2011 2009/2011 2000/20092000/2009

MR: 2,04 %

Ac: 2,67%

Ac: % 2,67% Ac: 2,67% MR: 2,04 % MR: 2,04

MR: 2,57%

Ac: 5,77%

Ac: 5,77% Ac: 5,77% MR: 2,57% MR: 2,57%

PSR: 2,38% PSR: 4,1%

SP: 0,7%

PSR: 2,38% PSR: 2,38% SP: 0,7% PSR: 4,1% PSR: 4,1% 2011/2015 2000/2015 2011/2015 2011/2015 Taxas de crescimento anual - períodos intercensitários Moradores de Rua

2000/2015 2000/2015

Taxas de crescimento Taxas de crescimento anual - períodos anualintercensitários - períodos intercensitários Acolhidos

População em Situação de Rua Moradores de Moradores Rua de Rua População da Cidade de São Paulo Acolhidos Acolhidos População em População Situação em de Rua Situação de Rua População daPopulação Cidade deda São Cidade Paulode São Paulo

SP: 0,7%

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Assistência Social pública Remediação

Através de visitas a algumas instituições públicas de atendimento ao morador de rua e entrevistas com alguns dos funcionários, pude observar alguns problemas e alguns êxitos nos diferentes centros. Não conseguiria indicar um panorama dos atendimentos na cidade, porém o sistema atual de convênios que a prefeitura utiliza não está suficientemente elaborado uma vez que existem discrepâncias grandes na qualidade dos atendimentos. As piores condições que pude presenciar foram dentro dos edifícios do recente programa Autonomia em Foco. Provavelmente devido à sua origem – criada após uma “superlotação” de barracos improvisados no terreno da tenda da estação Dom Pedro – este serviço possui um propósito que, aparentemente, nunca foi intencionado a ser cumprido. Pensado para ser a porta de saída das ruas para o retorno à vida em sociedade, o projeto Autonomia em Foco, com poucos meses de atuação, já abrigava uma grande parcela de pessoas que não haviam passado por nenhum processo de tratamento. Muitos outros centros constantemente faziam pedidos para transferirem moradores abrigados para o local, sem que houvesse nenhuma devida seleção. Isto apresenta-se como um problema pois as regras da instituição busca promover o desenvolvimento da autonomia de cada usuário. Dessa maneira cada um recebe um quarto com cama, armário e televisão, e possui total autonomia para cuidar dele, além dos usuários serem os encarregados da limpeza das dependências comuns. Assim, a cozinha já não possuía móveis nem geladeira, apenas fogões cobertos de limo preto. As geladeiras foram levadas para uma sala onde fora instalada uma tranca para evitar o consumo de produtos alheios. As paredes dos corredores tinham muitas manchas e, em algumas partes, haviam buracos resultantes de brigas, que eram constantes. Quando visitei a primeira unidade, haviam policiais no local separando duas pessoas na recepção. A visita de policiais já havia acontecido outras vezes, uma vez para tentar identificar os pontos de tráfico de drogas, presente em diversas instituições de assistência, porém mais intensamente nesta pela segurança que o quarto oferece para estas atividades.

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Os princípios para auxiliar no desenvolvimento da autonomia funcionariam se não houvesse questões que subjugam estas diretrizes. Existe uma constante transferência de usuários entre os serviços conveniados à Prefeitura, seja pela própria vontade ou pela vontade de funcionários que os consideram problemáticos, e esta situação transmite a sensação de que sempre está faltando vagas. E o Autonomia em Foco aparenta ter sido elaborado para absorver pessoas que se acumulavam nas tendas da Prefeitura. Deste modo, parece que este serviço foi criado para ser mais um instrumento para favorecer a higienização do Centro. Os outros centros visitados possuíam uma rotina já melhor estabelecidas e, assim, não demonstravam dificuldades urgentes. O Complexo Prates, cujo centro de acolhida se localiza junto a uma Unidade Básica de Saúde, no bairro do Bom Retiro, apresentava problemas em suas instalações, em parte porque algumas haviam sido construídas quase como “puxadinhos”. Em alguns quartos também já foram flagradas pessoas traficando entorpecentes. 146

A instituição que percebi possuir as melhores instalações é o Arsenal da Esperança, no Brás. Apesar dos mais de 1.500 internos, a conservação do local era muito satisfatória, o funcionamento e as estruturas para as oficinas de panificação e construção civil eram bem equipadas, e é oferecido um ambiente receptivo e tranquilo por todo o terreno. Este, talvez, seja o modelo a que os outros centros buscam alcançar, mas que para isso, se faz necessário seguir diretrizes próprias e não tanto as fornecidas pelo governo, conforme o relato do frei que me acompanhou.


Autonomia em Foco

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Arsenal da Esperanรงa e Complexo Prates

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Arsenal da Esperanรงa

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Habitação

Remediação

Devido à sua presença marcada em quase todas as grandes metrópoles do mundo, muitos trabalhos foram encontrados que buscavam ajudar essa população de alguma forma, dentro das capacidades de cada agente. A importância de ações emergenciais surge pela complexidade do enfrentamento da problemática e a insuficiência do poder público em encontrar soluções adequadas. O que se busca é aliviar as preocupações internas dos moradores de rua com algum tipo de segurança, relevante para aqueles que todo dia precisam encontrar meios novos para sobreviver. E cada agente contribui através dos conhecimentos que dispõe, sendo perceptível, em muito dos casos, a influência do contexto cultural sobre o projeto. No caso da habitação emergencial, busca-se uma solução temporária que abranda a pressão da busca diária por um local seguro para pernoitar, levando em consideração fatores como: a proteção contra intempéries (chuva, água no piso, vento, frio); privacidade (essencial para a sanidade mental); segurança contra fogo e ataques noturnos; armazenamento e transporte dos pertences; consideração pelo tipo de deslocamento que vai suportar; segurança contra roubos. São fatores difíceis de serem conciliados em um só projeto, então foram bastante diversas as soluções encontradas, cada qual servindo melhor à um tipo de estilo de sobrevivência. Projetos podem se adequar àqueles que se estabelecem em locais menos ou mais visíveis, e que tenham ou não de se deslocar todos os dias. Além disso, o processo de produção é um campo para oportunidades de trabalho e recomeços, opção tomada pelos projetos que estão sendo produzidos em grande escala. Para alguns, estes objetos tornam-se uma oportunidade para deixarem as ruas, como no caso das trabalhadoras do casaco do The Empowerment Plan – ex-moradoras-de-rua que recomeçaram suas vidas com o trabalho na instituição. Mas para tantos outros, ainda se faz necessário uma assistência pública bem-direcionada.

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Abrigo de papelĂŁo desenvolvido por estudante da California

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Abrigo sobre rodas desenvolvido em Los Angeles.

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Tenda criada para a população de rua australiana

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Casaco que se torna um saco de dormir. A produção gera empregos para moradoras de rua de Detroit

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Projeto desenvolvido para concurso internacional de estudantes cujo escopo era um abrigo para a população de rua. Desenvolvido dentro de disciplina na FAU, orientado pela prof. Loschiavo.

Azul Vivó - UPM/ESP Jose Churruca - UPM Josué Moon - USP Thiago Lee - USP Uriel Jaén - IPN/MEX

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Adaptação de ônibus fora de linha no Hawaii

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Participante de concurso de ideias para moradias em pequenas dimensĂľes

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Abrigo sobre rodas feito de materias descartados. E vila de micro-residências com instalações comunitárias para ex-moradores de rua nos Estados Unidos

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Existem diversas opções de abrigos móveis desenvolvidos para camping, que são adaptada para pessoas desfavorecidas

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Outros projetos

Remediação

Como as soluções de moradia emergencial, estes próximos projetos encontraram meios de oferecer auxílio, mas através de diferentes oportunidades com os recursos que dispunham. Em cada um deles, além do senso de dignidade e autonomia que afirmam nos usuários, oferecem oportunidades de relacionamentos que são chaves para a descoberta do self. Contatos de curta duração não são capazes de remediar os traumas de infância, porém deixam marcas positivas para fortalecer um indivíduo descobrindo seu eu.

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Readequação de ônibus fora de linha para oferecer banhos gratuitos à população de rua de São Francisco

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Biblioteca móvel destinada àqueles que não têm acesso às bibliotecas. Em Portland

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Grupo que redistribui as sobras de restaurante de Nova York. Os donos de estabelecimentos entram em contato com os voluntรกrios por uma app em seus smartphones

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Habitação Prevenção

Os movimentos de moradia já há muito descobriram que existe um grande potencial na região central para alivio do déficit de habitações. As ocupações são sinalizadoras e voltam atenções para este assunto. Se não existem habitações decentes, o ambiente familiar e a consciência de si não se desenvolvem adequadamente, e pessoas menos capacitadas para lidarem com a própria vida resultam dessa situação. O self não encontra espaço adequado para seu desenvolvimento, estando à mercê de ambientes repletos de miséria e carências. Carências materiais e carências de conhecimento. A questão da habitação, portanto, também pode ser considerada uma ação preventiva para abrandar o crescimento da população em situação de rua.

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Ocupações no centro de São Paulo



Espaços públicos

Prevenção

Os espaços públicos são onde podemos conviver com outras pessoas e explorar a sobreposição das áreas de brincar. Também, coletivamente, pode-se explorar o campo cultural individual e desenvolvê-lo a partir da afirmação de um próximo significativo. Assim, a diversidade e a pluralidade de espaços livres de qualidade pode ser um fator que contribui para a prevenção do crescimento da população de rua. Os projetos do Centro Aberto para o Largo São Francisco e o Largo Paissandu mostram como a cidade anseia por mais espaços de qualidade. O sucesso de uso nas atividades infantis, culturais e mesmo nas atividades cotidianas – como o almoço de trabalhadores da região – podem indicar isso.

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Intervenções promovidas pela Prefeitura de São Paulo nos Largos São Francisco e Paissandu. Pesquisas mostraram o crescimento do uso dessas áreas

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b Bibliografia



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Créditos das imagens

p. 3, 8, 12, 16, 20 | Wilson Oh, 2015 p. 56-7 | Imagens do autor p. 131.1 | Wilson Oh, 2015 p.131.2 | Elaine Pedreira Rabinovich. Em Tachner (1998). p.132 | Fotos do autor p.133 | Tiago Queiroz, para o Estado de São Paulo, 9.ago.2015. p.134 | Elaine Pedreira Rabinovich. Em Tachner (1998). p.138 | do livro Vieira (2004). p.139 | Fipe, 2003. p.140-45 | Imagens do autor p.149-51 | Fotos do autor p. 154 | Autor desconhecido. Conseguido no site: http://www.cardborigami.org. Acesso em mai.2016.

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p.155 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: edar.org . Acesso em mai.2016. p.156 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: swag.org.au . Acesso em mai.2016. p.157.1-4 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: empowermentplan.org . Acesso em mai.2016. p.157.5 | Screenshot de reportagem da AlJazeera sobre o projeto. Link: https://vimeo.com/73965759. Acesso em mai.2016 p.158-59 | Imagens do trabalho para concurso da reThinking Competitions (Homeless Cover) p.160-61 | Projeto do escritório de arquitetura Group 70 International. Autor desconhecido. p.162 | Participantes do concurso organizado pela Building Trust International. p.163.1 | Gregory Kloehn


p.163.2 | Leah Nash, 2015. p.164 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: widepathcamper.com . Acesso em mai.2016. p.168-69 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: lavamae.org . Acesso em mai.2016. p.170 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: streetbooks.org . Acesso em mai.2016. p.171 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: rescuingleftovercuisine.org . Acesso em mai.2016. p.174-75 | Fotos do autor p.177-79 | Imagens institucionais. Autor desconhecido. Site: gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br . Acesso em mai.2016. p.195 | No site: http://artfrontgallery.com/en/artists/Todo.html Acesso em: jul.2016 188

p.196 | No site: http://tsugi.de/kintsugi-beispiele-1.html Acesso em: jul.2016.



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aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa “Aquele olhar direto espetava impiedosamente o cerne de seu coração. O que ele estava fazendo era injustificável. Ao mesmo tempo, ela não o condenava e tampouco o desprezava. Em certo sentido, aqueles lindos olhos o perdoavam. (...) Ao saber que a conduta de Ushikawa era impura, ela sentiu compaixão. Isso tudo aconteceu num curto espaco de tempo. (...) O tempo parou e novamente continuou a fluir. (...) Nesse pequeno intervalo de tempo, ela conseguiu enxergar a alma de Ushikawa e, após separar a sujeira e o desprezo ali existentes, enviou-lhe silenciosamente o seu sentimento de compaixão (...) (...) a transparente compaixão que aqueles olhos espontaneamente lhe mostravam penetrou no âmago de seu coracão.”

1Q84 - Haruki Murakami


Berlin Wall 205 (h) x 120 (l) x 50 (l) mm pedaรงo do Muro de Berlim, vidro Ramon Todo


Cerâmica reconstituída através da técnica Kintsugi O objeto reconstruído carrega maior valor que o original uma vez que transmite novos valores além do estético - como a resiliência


aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa “A compaixão é o que nos torna verdadeiramente humanos” Anatole France, Escritor francês


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