Além do gerencialismo: olhar crítico das Organizações de Serviços de Saúde no Mun. do Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E TURISMO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

NOME Thiago da Silva Ferreira TÍTULO Para além do gerencialismo: um olhar crítico acerca das Organizações de Serviços de Saúde (OSS) no Município do Rio de Janeiro

Professor Cláudio Gurgel

Niterói 2012


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RESUMO EM LÍNGUA VERNÁCULA O presente trabalho visa entender, à luz da ótica do gerencialismo, os impactos da adoção das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) ao nível do Município do Rio de Janeiro, na melhoria (ou não) da Saúde Pública na referida localidade. Com base em uma breve análise do gerencialismo pela ótica do New Public Management, contraposto e complementado pela teoria do Valor Público e das percepções em mídia e de especialistas do setor, buscamos averiguar preliminarmente o impacto desta política pública na melhoria (ou precarização) das condições de trabalho na Saúde Pública no referido Município. Palavras-chave: gerencialismo, New Public Management, Abordagem Neoclássica da Administração, Teoria do valor Público, Saúde Pública

RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA (ABSTRACT) This article is to understand, with the view of management, the impacts on the use of UPAs (Emergency Care Units) on the city of Rio de Janeiro, in the improvement (or not) of the Public Health in this location. With a brief analyze of the management under the view of the New Public Management movement, opposite and with the Public Value theory and the perception of media and experts, we wanted to verify in advance the impact of this public policy in the improve (or worsens) of the job conditions on the Public Health in this city. Keywords: management, New Public Management, Neoclassic Management, Public Value Theory, Public Health


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SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................................4 1.A Abordagem Neoclássica da Administração e seu contexto Histórico..................................6 2.New Public Management, e a reforma do Estado no Brasil....................................................7 3.Um olhar além do gerencialismo: A Teoria do valor Público...............................................10 4.A questão da saúde, e a ascensão das Organizações de Serviços de Saúde (OSS) no Município do Rio de Janeiro.....................................................................................................13 CONCLUSÃO..........................................................................................................................16 1.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................18 PESQUISA EM WEBSITES:...................................................................................................20


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INTRODUÇÃO O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é considerado um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Interessante ressaltar, salvo os óbvios problemas do atendimento e serviço em si, que se trata de um conceito inovador e avançado, ainda nos dias de hoje. Basta verificar que, nos EUA, apenas após muito debate e forte crítica, o presidente democrata Barack Obama conseguiu aprovar em 2012 um sistema de saúde gratuito neste país (antes disso, apenas os planos de saúde privados e empresariais serviam ao público, deixando descoberto um grande contingente populacional de assistência médica, os quais não tem recursos para financiá-lo). Porém, não sem razão, o SUS brasileiro carrega uma forte carga negativa; prolifera no imaginário popular filas quilométricas, atendimentos em condições sub humanas, salários irrisórios, greves, e pacientes morrendo nos corredores de hospitais sem nenhum atendimento. FLEURY, em reportagem ao jornal Estado de São Paulo, relata os principais problemas do SUS, citando análise do Programa de Estudos da Esfera Pública (PEEP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Seriam eles: “- A aceitação tácita de todos os agentes de que "serviço público é assim mesmo", ou a naturalização da precariedade, na ausência de parâmetros de qualidade explícitos; - A precariedade para o atendimento adequado permite o aumento do poder discricionário dos profissionais, resultando em situações de discriminação; - A cultura política brasileira, desde o primeiro escalão presidencial até o atendente hospitalar, privilegia o QI (quem indica) em detrimento da igualdade da cidadania; - A falta de responsabilidade do sistema com os pacientes provoca a "peregrinação" em busca do cuidado. Na ausência de garantia, o direito se transforma em contradireito, insegurança, sofrimento, humilhação;” Porém, cita também que: “- A perspectiva da classe média de que estaria salva com seu plano de saúde começa a ser desmascarada, pois, a precarização do atendimento privado é um sucedâneo do que ocorreu no SUS, já que quem dá o parâmetro da qualidade é sempre o setor público.”


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Em reportagem da Edição 703 da revista periódica Época, de novembro do ano de 2010, publicada pouco após de a aprovação da base legal para estabelecimento das chamadas Organizações de Serviços de Saúde no Estado do Rio de Janeiro1, podemos visualizar o seguinte quadro comparativo de “vantagens e desvantagens”, do que se declara como “SUS que fracassa” (o funcionalismo público) e o “SUS que funciona” (gerido pela figura das “OSS”): Tabela 01: O SUS que funciona x O SUS que fracassa

O SUS que funciona – detalhes que

O SUS que fracassa – problemas que

fazem a diferença O segredo dos hospitais geridos Algumas

comprometem das características

pelas organizações sociais de saúde recorrentes verificadas no serviço (OSS); por que esse serviço funciona

público

RECURSOS

dificuldades RECURSOS

As

instituições

dispõem

de

saúde,

que

enfrenta

de Os hospitais ficam lotados quando outra

equipamentos de ponta, medicamentos instituição próxima deixa de funcionar. modernos

e

instalações

limpas

e Falta

planejamento

para

prever

a

confortáveis

demanda habitual e se preparar para

PROFISSIONAIS

emergências PROFISSIONAIS

O corpo clínico, a enfermagem e os São funcionários públicos, em geral mal demais profissionais são contratados e remunerados, sem plano de carreira e avaliados de acordo com as leis de sem estímulo para produzir mais e mercado GESTÃO É

melhor. Greves são frequentes GESTÃO

administrada

por

uma

entidade As instituições não são obrigadas a

privada, sem fins lucrativos. Há um manter um contrato com orçamento e controle rígido dos gastos e dos serviços metas bem definidas prestados Fonte: Revista Época, Edição 703, outubro de 2011 (reportagem de capa)

Longe de uma análise simplista como a acima, em que baixa remuneração, falta de planejamento e ausência de metas desqualificariam o SUS em detrimento das OSS (quando é o Governo quem remunera e controla as OSS, por meio de 1 Vide capítulo 4


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contratos), vamos buscar nas teorias organizacionais, no gerencialismo e no estudo da Administração Pública e na teoria do Valor Público o cerne da referida questão.

1.

A Abordagem Neoclássica da Administração e seu

contexto Histórico No período após a Segunda Guerra Mundial, com a crescente polarização entre as 2 superpotências à época, União Soviética e Estados Unidos da América, ocorre a emergência desta última como grande vencedora do conflito, financiando a reconstrução dos países destruídos no conflito por meio do Plano Marshall. Ainda, com o acordo de Bretton Woods, foi imposta a nível mundial a primazia deste país, com a criação do Fundo Monetário Mundial (FMI) 2 e do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)3. Sobretudo após as eleições de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha (1979) e Ronald Reagan nos Estados Unidos da América (1980), passou a dominar o imaginário coletivo uma visão antagônica ao Welfare State4, e positiva ao workfare. Nas palavras de LUSTOSA (2010), De acordo com este ponto de vista, é preferível que os indivíduos tenham uma renda disponível mais elevada e possam consumir os serviços que lhe convierem, sem esperar do Estado. Ao invés de usar fundos públicos para pagar seguro-desemprego, convém reduzir impostos e estimular a livreiniciativa, geradora de oportunidades de trabalho. No lugar do welfare, devese viver no mundo do workfare.

Por volta deste período, e completamente alinhado a esta visão, ascendeu a Abordagem Neoclássica da Administração, origem da Administração Por Objetivos (APO), célebre pelos trabalhos do falecido guru da administração Peter Drucker, a qual consiste em um enfoque da administração em resultados, controle e acompanhamento de metas, objetivos e cronograma. Vale, ainda, ressaltar o movimento a nível mundial, com as eleições de Margareth Tachter (1979) e Ronald Reagan (1980) aos governos da Inglaterra e dos EUA, que marcaram a reforma do

2 Sigla para “Fundo Monetário Internacional”, um dos principais instrumentos do Consenso de Washington, que ministra crédito a nível mundial, a nações que sigam suas normas

3 Sigla para “Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento”, o qual proporciona empréstimos e financiamento a nações com bons antecedentes de crédito

4 O Estado de bem-estar social (em inglês: Welfare State), também conhecido como Estado-providência, é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com o país em questão. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_de_bem-estar_social, consultado em 1/11/2012, às 14h


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Estado em resposta à crise fiscal anunciada, e a ascensão do gerencialismo, celebrado em obras como “Reinventando o Governo” (OSBORNE & GAEBLER). No âmbito desta pesquisa , porém, nos interessa mais sua obra “The Age of Discontinuity” (1969), considerada por alguns a origem e maior inspiração do New Public Management, célebre no Brasil pelo trabalho e obra do ex-ministro Bresser Pereira. Este movimento se enquadra no contexto maior do Consenso de Washington (1989), cujo significado maior é a imposição a nível mundial dos preceitos do FMI e do BIRD, consistindo em suma na austeridade e disciplina fiscal, redução dos gastos públicos e privatização das empresas Estatais, abertura comercial e incentivo ao investimento estrangeiro direto, desregulamentação (“flexibilização” das leis econômicas e trabalhistas), e ênfase no direito à propriedade (incluindo intelectual). Muitos destes preceitos foram fundamentais a nível nacional para a reforma gerencial do Estado nos anos 1990, e a ascensão do gerencialismo no Brasil.

2. New Public Management, e a reforma do Estado no Brasil No Brasil, a reforma do Estado se dá, sobretudo, a partir dos anos 1990, sob a liderança do professor e ministro de Estado Luiz Carlos Bresser-Pereira. BRESSER-PEREIRA, ex-ministro da Administração e Reforma do Estado no Brasil, assim como diversos teóricos a nível mundial, pregava que a reforma de Estado era um assunto pragmático, além de idealismos e opiniões; ou seja, um fato consumado, uma necessidade evidente por si só. Defendia-se o Estado Mínimo, pois acreditavam que o mesmo se encontrava em crise fiscal pelo “excessivo gasto social”, causando a necessidade de redução do investimento Estatal. Esta motivação até hoje é evocada para justificar as privatizações e redução do Estado do Bem-Estar Social a nível mundial. Retirados os méritos da disciplina fiscal de fato necessária em diversos casos (obviamente, análise esta que demanda contextualização específica, caso a caso), estas declarações são no mínimo contestáveis, quando observamos que:


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1. No Brasil, ocorreu e ocorre um “amplo envolvimento do BNDES e fundos de pensão (mecanismos de complementação a aposentadorias, neste caso sobretudo o uso de empresas públicas e Estatais)” nos leilões de privatização, assim como na participação acionária, fusões expansões nos últimos anos no Capitalismo brasileiro (LAZZARINI, 2011), a partir do governo FHC (1995 a 2002) e continuadamente, nos governos Lula (2003 a 2010) e Dilma (2011-); e 2. Durante a crise internacional de 2006, foi exatamente o aumento dos gatos

públicos,

na

lógica

keynesianista 5,

que

impediu

o

aprofundamento da crise econômica (como podemos exemplificar tanto pelo resgate de diversos bancos e da própria empresa automobilística General Motors por aportes do Governo dos EUA, quanto pela reação do Brasil sustentada no crescente consumo interno, ampliado com o aumento de renda das camadas populares e nos benefícios sociais da Bolsa Família). No bojo da citada crise fiscal do Estado, defendida até hoje com reduzida oposição ideológica, ocorreu a ascensão do gerencialismo, no movimento do New Public Management (NPM) pregando governo dito empreendedor, enfatizando valores como eficiência, eficácia e competitividade. As estratégias de reforma do Estado no Brasil, segundo LUSTOSA (2010) são: a institucionalização, a racionalização, a desestatização, a publicização e a flexibilização. Esta última consiste “na transferência para o setor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estado presta” (PEREIRA, 1997), para a “realização de determinados serviços públicos, que deixaria de ser público estatal para ser público não estatal” (LUSTOSA). Assim, haveria transferência de recursos (equipamento, patrimônio, capital e pessoal) para “organizações sociais, em áreas não exclusivas do Estado, como a saúde, a educação, a cultura e a produção científica” (BRESSER-PEREIRA). Genericamente, no Brasil, tem se celebrado o estabelecimento das Parcerias Público-Provadas (PPPs)6, com o propósito de captação de recursos e aumento da 5 A Escola Keynesiana ou Keynesianismo defende a intervenção do Estado na Economia, como forma de defender a mesma das crises cíclicas do capitalismo. 6 Lei nº 11.079 de 30 de dezembro de 2004, em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm


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eficiência dos serviços públicos e infraestrutura por meio do capital e expertise privados, se materializando por meio de ações conjuntas dos chamadas Primeiro, Segundo e Terceiro Setor (ou seja, Estado, iniciativa privada, e sociedade civil). Ou, nas palavras de LACOMBE (2004), para permitir que as decisões sejam tomadas próximas à execução das atividades, na ponta. OSBORNE e GAEBLER (1995), adeptos do NPM, ressaltam alguns pontos interessantes, como a participação dos cidadãos no momento da decisão (algo claramente raro, não só no Município do Rio de Janeiro, objeto deste estudo), determinação de um governo competitivo (pregando a competição entre setor público e privado, pela melhor prestação do serviço), empreendedor (que deve aumentar seus ganhos, com aplicações financeiras, por exemplo), orientado ao cliente, preventivo, orientado por missões e descentralizado. Porém, conforme SECCHI (2009): É importante lembrar que a presumida “mágica” das reformas administrativa deve ser cautelosa. (...) novos modelos organizacionais compartilham algumas características com o modelo burocrático weberiano: continuam a colocar ênfase na função controle e não se apresentam como modelos de ruptura. Outro cuidado que deve ser tomado é que as reformas da administração pública podem tornar-se facilmente políticas simbólicas de mero valor retórico (Gustaffson, 1983; March e Olsen, 1983; Battistelli, 2002). (...) Não são raros os esforços de reforma da administração pública que avançam mais em autopromoção e retórica do que em fatos concretos.

Assim, apesar da inegável contribuição de eficiência e eficácia às práticas organizacionais (esta 1ª, inclusive, já incorporada como princípio em nossa Carta Magna), há críticas também a este modelo, pois mesmo afirmando que governo não é empresa (“government can not be run like a business”, OSBORNE E GAEBLER), por vezes há enfoque em aspectos empresariais que por vezes alheios ao interesse público, na dificuldade em se adequar fatores como competição e interesse público (coletivo) às diretrizes da administração privada (empresarial)e cada vez mais individualista. Assim, novas abordagens devem ser analisadas, de forma complementar, para o pleno entendimento do fenômeno em questão.


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3. Um olhar além do gerencialismo: A Teoria do valor Público Partimos do pressuposto acima indicado, de que Governo não pode ser administrado como empresa, e cliente não necessariamente é cidadão, para analisar uma visão ampliada da Administração Pública. Inegável que eficiência e eficácia são fundamentais à gestão, mas há problemas na consideração do usuário do serviço público meramente como cliente. Este dilema pode ser detectado com uma breve análise do histórico simplificado da administração pública, em tradução do autor, extraído de um material do gabinete do governo do Reino unido, abaixo indicado. Tabela 02: Approaches to public management Teoria do Valor Gestão Pública Tradicional

Interesse Público

New Public

Público

Management Conjunção das

Preferências

Definido por políticos e

preferências

individuais e públicas /

especialistas

individuais,

coletivas (resultado de

demonstradas como

deliberação pública)

escolha do “cliente” Múltiplos objetivos: - Resultados em Objetivos de

Gestão de recursos

performance

Gestão de recursos e

serviços

resultados

- Satisfação - Resultados - Manutenção de confiança e

Modelo dominante de 7

“accountability”

Através de contratos

legitimidade Múltiplos:

de performance;

- Cidadãos como

Através dos

eventualmente por

vigilantes do governo

departamentos e entre

meio de mecanismos

- Consumidores como

eles e o Parlamento /

de mercado (avaliação

usuários

Congresso

do consumidor)

- Contribuintes como financiadores Cardápio de alternativas

Sistema preferido de

Departamentalização

Setor privado ou

selecionado

hierárquica, com auto-

definido por agência

racionalmente

7 Nas teorias de administração, conceito relacionado à noção de responsabilidade, tranparência, e prestação de contas


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funcionamento

regulação

(órgãos) públicos

(agências do setor

consonância com o

público, companhias

mesmo

privadas, grupos comunitários e outros; como regra primordial a escolha do usuário) Nenhum setor tem

Ceticismo quanto ao

Monopólio, assim

Metodologia do

O setor público tem o

“ethos” do setor (pois

como nenhum “ethos”

“ethos” (costumes e

Monopólio dos

tende a causar

(público ou de

métodos) do serviço

serviços de interesse

ineficiência e “feudos”)

mercado) é sempre

público

público

– favorece o serviço ao

apropriado. Como um

cliente

recurso valioso, o serviço público deve ser cuidadosamente

Limitado a votar nas

Limitado – exceto pelo

gerido Crucial e múltipla

Regra para

eleições e pressionar

uso de pesquisas de

(consumidores,

participação pública

seus representantes

satisfação do cliente

cidadãos, públicos-

eleitos

chave) Responder às preferências do

Meta dos gestores

Responder ao

Em encontro a metas

cidadão / usuário,

direcionamento político

de performance

renovar mandato e confiança garantindo

serviços de qualidade Fonte: KELLY, Gavin; MULGAN, Geoff; MUERS, Stephen, em tradução livre

Os autores iniciam sua definição nos primórdios da Administração Pública, conceitualmente qualificada como Gestão Pública Tradicional. Neste momento, vemos um foco no Governo em si mesmo, ou seja, seu direcionamento se daria de acordo com o “chefe da vez” (candidato eleito ora em atuação), com um viés restrito e limitado de participação pública (o cidadão votaria e eventualmente exerceria pressão em seus candidatos, apenas). Já o New Public Management, caracterizado como gerencialismo, passa a se direcionar com foco no cliente, amplamente nos ditos “valores de mercado”, eficiência, eficácia e competitividade, otimização de custos e recursos, em busca de uma ótima performance. Trata-se assim, da individualização do trato ao “cliente


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público”. Nestas teorias, há forte valorização e “admiração” pela atuação privada na economia, visualizada como mais eficiente que a pública, sempre. Já na Teoria do valor Público o usuário é cidadão, ou seja, dotado de direitos e deveres. O mesmo deseja participar, não apenas nas eleições, não apenas em pesquisas pontuais de satisfação como cliente, mas sim como agente protagonista das decisões. Indivíduo crítico e inteligente, mas ao mesmo tempo ciente da coletividade e da pluralidade da sociedade. Nem o setor privado e nem o público são sempre a melhor resposta para os problemas. Ainda quanto ao valor público, GURGEL enumera as seguintes características distintivas do público/cidadão, em contraponto à visão do cidadão como cliente: • O público não define o preço pela pressão da sua demanda: ressalta-se, assim, que o público suplanta os “oportunismos de mercado”, de forma que sempre deve disponibilizar infraestrutura e serviços à população de acordo com a demanda, e não apenas conforme sua conveniência e interesses; • O público freqüentemente não tem serviços ou produtos substitutivos dos serviços públicos: muitos destes serviços são “monopólios naturais”, sendo que a mera idéia de alternativas ou concorrentes beira por vezes o absurdo (imagine um Departamento de Trânsito ou um Juiz concorrentes, ou seja, com opções de obter informações, pareceres ou serviços diferentes?); • O público não pode dispor de vantagens pela capacidade de pagar mais pelo serviço ou bem público: neste caso, ressaltam-se os direitos constitucionais da isonomia e equidade, ou seja, o acesso aos bens e serviços está disponível a todos, independente da condição socioeconômica do demandante; • O público é responsável pela administração, porque elege os dirigentes políticos: diferencialmente às empresas, a escolha dos representantes emana do próprio povo; • O público não paga apenas pelo que consome, e não consome apenas o que paga: os impostos, que subsidiam todo o serviço público, são pagos sempre e da mesma forma, independente se o cidadão é usuário de escolas ou hospitais públicos, por exemplo. Por outro lado, mesmo quem não tem recursos para o pagamento de um serviço usufrui do mesmo

(imagine,

por

exemplo,

um

procedimento cirúrgico de elevado custo, feito gratuitamente para a população carente, via SUS).


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É sob esta ótica, assim como cumulativamente todos os conceitos e abordagens expostos até o momento, que nos direcionaremos ao nosso objeto de estudo, a ascensão das Organizações de Serviços de Saúde (OSS) no gerenciamento dos postos de pré-atendimento (UPAs) do Município do Rio de Janeiro.

4. A questão da saúde, e a ascensão das Organizações de Serviços de Saúde (OSS) no Município do Rio de Janeiro UPAs (unidades de Pronto Atendimento) são definidas como “unidades de saúde, pré-hospitalares, que não visam internações longas (...) atendimentos de urgência e emergência em clínica médica e odontologia 8”. Com uma breve pesquisa pôde-se visualizar no Município do Rio de Janeiro que as mesmas localizam-se nos bairros de Bangu, Botafogo, Campo Grande (I e II), Complexo do Alemão, Copacabana, engenho Novo, Ilha do Governador, Irajá, Jacarepaguá, Manguinhos, Maré, Marechal Hermes, Penha, Realengo, Ricardo de Albuquerque, Rocinha, Santa Cruz, Tijuca. Em geral, as UPAs são administradas pelas chamadas Organizações de Serviços de Saúde (OSS), cuja designação legal no Estado do Rio de Janeiro ocorre por meio da Lei nº 6.043, de 19 de setembro de 2011. Importante o repasse e interpretação de algumas de suas principais passagens: “Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organização social pessoas jurídicas de direito privado, sem fins econômicos ou lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas à saúde, incluindo a área da assistência, ensino e pesquisa, atendidos os requisitos previstos nesta Lei. Art. 2º Para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social, exige-se a comprovação do registro de seus atos constitutivos dispondo sobre: I - natureza social de seus objetivos relativos à área da saúde; II - finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades (...)” Ainda, quanto à sua composição:

8 http://www.saude.rj.gov.br/upas-24-horas.html - consulta em 9/11/2012, às 16h


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(...) Art. 6º O Conselho de Administração deve estar estruturado nos termos que dispuser o respectivo Estatuto, observados, para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos: I - ser composto por: a) 20 a 40% (vinte a quarenta por cento) de membros representantes do Poder Público, indicados pelo Governador ou por delegação pelo Secretário de Estado; b) 40 a 50 % (quarenta a cinquenta por cento) de membros da sociedade civil, de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral, na forma prevista no estatuto da entidade; c) 10 a 30% (dez a trinta por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do Conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral; (...) III - os membros do Conselho não poderão ser parentes consanguíneos ou afins até o 3º (terceiro) grau do Governador, Vice-Governador e Secretários de Estado, de Senadores, Deputados Federais, de Deputados Estaduais, de Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado e das Agências Reguladoras;” Importante a indicação explícita para a exclusão do nepotismo e da indicação de parentes para participação nos conselhos das OSS. Porém, notamos imediatamente que não menos que 30% a 70% dos cargos do Conselho poderão ser indicados por ingerência política, o que por si só garantiria que, legalmente, a alta direção desta organização fosse composta meramente por ingerência política. Este aspecto mereceria uma pesquisa posterior mais aprofundada. Ainda, quanto à sua contratação: “Art. 11. A Secretaria de Estado de Saúde deverá realizar processo seletivo para escolha da proposta de trabalho que melhor atenda aos interesses públicos perseguidos, bem como da observância dos princípios da legalidade, finalidade, moralidade administrativa, proporcionalidade, impessoalidade, economicidade, eficiência, transparência e publicidade. §1º Para a celebração de contrato de gestão com entidade qualificada como organização social, poderá ser dispensado o processo seletivo de que trata o caput deste artigo, devendo ser justificado nos autos do processo administrativo, especialmente quanto à eficiência, economicidade e impessoalidade da escolha.” Neste item, notamos que a própria legislação prevê a contratação direta, sem licitação. Isso, apesar de se tratar de serviço de natureza contínua, de forma que


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bastaria um simples planejamento para realizar o certame (licitação) em tempo hábil, o que garantiria a isonomia e a oportunidade de acesso a qualquer prestador de serviço qualificado, aumentando assim a competitividade e consequentemente melhorando o serviço prestado à população. Neste

momento,

nos

remeteremos

à

análise

na

mídia

do

tema.

Primeiramente, na mídia oficial: “Implementadas a partir de 2007, as UPAs representam um modelo de sucesso na saúde pública estadual do Rio de Janeiro, ajudando a reduzir o fluxo nas grandes emergências, uma vez que a taxa de resolução dos casos ultrapassa 99,5%. Até o último dia 08 de julho, as UPAs tinham realizado 13.447.584 atendimentos e 9.439.314 exames laboratoriais, além de mais de 96.196.160 medicamentos distribuídos. O modelo foi adotado pelo Governo Federal em todo o país e pela Argentina, que importou a ideia.” 9 Por outro lado, diversos veículos tradicionais da imprensa tratam de recorrentes problemas em sua implementação e rotina. O Globo, em reportagem de julho de 2011, acusa no próprio título que “UPAs feitas com contêineres ou pré-moldados custam 25% mais que hospitais de alvenaria”, além de acusar falta de funcionários, e atrasos que por vezes causam o absurdo de levar as UPAs, construídas por containeres e pré-moldados, muitas vezes demorarem mais a funcionar que as estruturas de hospitais de alvenaria. Já a revista semanal Veja, em abril de 2012, indica que o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) e o Tribunal de Contas do Município (TCM) analisam no estabelecimento e gestão das UPAs a ocorrência de sobrepreços, notas fiscais duplicadas e uma série de irregularidades e corrupção. Jorge Darze, presidente do sindicato dos médicos, afirma ainda que “As UPAs não têm efeito resolutivo, apenas empurram o paciente para um outro médico ou hospital. A atual estrutura de medicina preventiva da região metropolitana do Rio só atende a 6% da população. Ou seja, pratica-se muito pouca medicina preventiva no Estado, o que é um absurdo.” Isso demonstra que o tema, como seria de se esperar, é envolto em polêmica e controvérsias.

9 http://www.saude.rj.gov.br/imprensa/20-imprensa-destaque/12922-inauguracao-da-upa-de-mesquita-beneficia-780-mil-habitantes.html, consultado em 01/11/2012, às12h


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CONCLUSÃO Após uma visita às teorias do gerencialismo e seu contexto histórico, analisamos que muito além do mesmo, o valor público se dá não pela individualização do cidadão e pela resposta única (o melhor é o setor privado), mas sim pela escolha racional e considerando-se os mais diversos públicos, usuários, cidadãos e pontos de vista possíveis. Afinal, o serviço público não pode se pautar apenas pela lógica de mercado, do cliente, mas sim do cidadão-usuário, que tem constitucionalmente garantido os direitos de participação e atendimento pro serviços de saúde. Sobre este assunto, se posiciona SONIA FLURY (2012): (...) A naturalização da relação público-privada nos serviços de saúde procura obscurecer o caráter público da construção desse mercado, do qual o SUS se tornou pioneiro. (...) A segunda premissa sustenta-se na inevitabilidade da convivência e nas vantagens da redução do Estado, delegando a prestação a um ente privado, com mais agilidade no trato de pessoal e liberdade para compras e investimentos sem licitações. (grifo nosso)

Notamos que diversas das críticas ao SUS, que realmente tem os seus problemas fartamente conhecidos, residem nas precárias condições de trabalho dos seus funcionários; ou seja, se podem ser bem-remunerados e ter condições dignas no ambiente de trabalho da UPA, financiado pelo Estado e por ele organizado, por que esta experiência não pode ser transferida para os hospitais do SUS? Em outras palavras, por que sucatear o servidor, enquanto se beneficia o ente privado, ou organização dita de interesse social? Em análise a publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)10, comemorando (e criticando) os 20 anos do SUS (1988-2008), podemos destacar alguns itens, considerados “inaceitáveis” pela classe: “1. Que ainda não exista uma fonte estável para o financiamento do SUS; 2. Que o gasto público em saúde ainda seja de menos de R$ 1 por habitante/dia, muito aquém de países menos ricos na América Latina; 3. Que permaneçam as condições precárias de atendimento nos serviços do SUS. O SUS pode e deve prestar serviços dignos aos cidadãos. A população tem o direito de saber em que condições será atendida, quanto tempo tardará o atendimento e como proceder em caso de expectativas não cumpridas; 10 Fonte: CEBES, Revista Saúde em Debate, v.33, nº 31, jan/abr 2009


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4. Que serviços do SUS ainda não funcionem como uma rede integrada, com porta de entrada única, jogando ao usuário a responsabilidade de buscar, por conta própria, os serviços de que necessita; 5. Que ainda não tenham sido implementados, em todo o território nacional, mecanismos elementares de gestão de filas que eliminem o sofrimento diário dos usuários; 6. Que na reorganização da atenção seja dada prioridade às UPAs e AMAs, modelos ultrapassados e imediatistas de instalação focada de unidades, e que a atenção básica não seja até hoje o eixo estruturante de todo o sistema;(...) 13.

Que

hospitais

lucrativos

continuem

sendo

considerados

como

filantrópicos e recebendo subsídios públicos; 14. Que se mantenha a dupla porta de entrada nos hospitais públicos e contratados; 15. Que os profissionais de saúde sejam desvalorizados e tenham suas condições de trabalho e salariais aviltadas; 16. Que o SUS continue sem uma política nacional de formação e capacitação de recursos humanos; 17. Que, a título de redução do gasto público, se mantenha a farsa dos vínculos precários de trabalho, dependendo de convênios e contratos temporários;(...)” Assim, muito mais que decisões e procedimentos simplistas, cabe ao Administrador Público uma análise rigorosa e racional dos reais custos e benefícios das políticas públicas na área de saúde, assim como dos interesses advindos das escolhas realizadas pelo governo, de forma a se distinguir, caso a caso, o que realmente funciona da mera farsa midiática e eleitoral. Caberia, por fim, uma análise mais detalhada, com pesquisas com os médicos e pacientes de ambos, SUS e UPAs, para captar de fato o que predomina, a visão de que as UPAs realmente funcionam, patrocinada e defendida pelo governo que a implementou, ou as diversas acusações de precarização do trabalho, super faturamento, e falta de transparência, que proliferam na mídia e nos sindicatos de médicos. Assim como dos modelos de atuação e resultados efetivas das UPAs já implementadas, as quais dispõem de forma crescente de recursos disponibilizados.


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1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, CEBES. Revista Saúde em Debate, nº 81, Vinte anos do SUS: celebrar o conquistado, repudiar o inaceitável, 2008; DRUCKER, Peter. The Age of Discontinuity, Editora Heinemann, 1969; GURGEL, Cláudio. Estado/Empresa, Cliente/Cidadão: Ensaio sobre distinções fundamentais, Revista do CES (Centro de Estudos Sociais Aplicados), UFF; KELLY, Gavin; MULGAN, Geoff; MUERS, Stephen. Creating Public Value: An analytical framework for public service reform, Strategy Unit, Cabinet Office, www.strategy.gov.uk, consulta em 18/10/2012, às 16h; LACOMBE, Franciso J.M.; HEILBORN, José Masset. Administração: princípios e tendências, Editora Saraiva, 2009; MONTANÕ, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social – Crítica ao padrão emergente de intervenção social, Cortez Editora, 2008; OSBORNE, David & GAEBLER, Ted. Reinventando o Governo, como o espírito empreendedor

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