PRÓLOGO
1982
Na sua perspetiva, algumas famílias eram como parques bem cuidados, com bonitos canteiros de narcisos amarelos e grandes árvores que se espraiam e proporcionam repouso do sol estival.
Outras — e isto sabia ela por experiência própria — eram campos de batalha, sangrentos e sombrios, repletos de estilhaços e corpos desmembrados.
Poderia ter apenas dezassete anos, mas Jolene Larsen já sabia o que era a guerra. Crescera no meio de um casamento que era um eterno conflito.
O Dia de São Valentim era o pior. O estado de espírito em casa era sempre instável, mas, naquele dia, enquanto a televisão passava anúncios sobre flores e chocolates e corações vermelhos em papel lustroso, o amor era uma arma nas mãos negligentes dos seus pais. Começava com eles a beber, claro. Sempre. Copos cheios de bourbon, uns atrás dos outros. Isso era o começo. Depois surgiam os gritos e as lágrimas, o arremesso de objetos. Durante anos, Jolene perguntou à mãe porque não o abandonavam — ao pai simplesmente e fugiam, esgueirando-se durante a noite. A resposta
da mãe era sempre a mesma: Nãoposso. Amo-o. Às vezes chorava ao proferir as palavras terríveis, por vezes a sua amargura era palpável, mas, no final, pouco importava a maneira como soava a voz dela; o que importava era a verdade trágica do seu amor unilateral.
Lá em baixo alguém gritou.
Deveseramãe.
Depois ouviu-se um estrondo — alguma coisa grande fora arremessada de encontro à parede. Uma porta bateu com força ao fechar-se. Devia ser o pai.
Saíra de casa furioso (haveria alternativa?), batendo com a porta atrás de si. Estaria de volta no dia seguinte ou depois, quando o dinheiro lhe faltasse. Entraria com ar furtivo e embaraçado na cozinha, sóbrio e arrependido, tresandando a álcool e a cigarros. A mãe correria para ele e abraçá-lo-ia. Oh, Ralph… pregaste-me um susto… Desculpa,dá-memaisumaoportunidade,porfavor, tusabes oquantoteamo…
Jolene atravessava com cuidado o quarto com o teto bastante inclinado, curvando-se para não bater com a cabeça num dos sólidos e toscos barrotes de madeira. Só havia ali uma fonte de luz, uma lâmpada dependurada das vigas como se fosse o último dente na boca de um velho, frouxo e a abanar.
Abriu a porta, à escuta.
Já teria terminado?
Desceu devagar e com cuidado as escadas estreitas, ouvindo ranger os degraus sob o seu peso. Foi encontrar a mãe na sala de estar, sentada e arrasada no sofá, com um cigarro Camel aceso a pender-lhe da boca. A cinza ia caindo, salpicando-lhe o colo.
Espalhados pelo chão viam-se os vestígios da luta: garrafas, cinzeiros e pedaços de vidro.
Alguns anos antes, Jolene teria tentado fazer com que a mãe se sentisse melhor. Todavia, demasiadas noites como aquela haviam-na endurecido. Agora ficava impaciente com tudo aquilo, consumida pelo drama que era o casamento dos pais. Nada mudava, e era Jolene quem teria de limpar a confusão. Caminhou por entre os pedaços de vidro, prestando atenção onde punha os pés e ajoelhouse ao lado da mãe.
— Dá-me cá isso — disse com uma voz cansada, retirando-lhe o cigarro aceso da boca e colocando-o no cinzeiro colocado no chão ao seu lado.
A mãe ergueu os olhos, com uma expressão triste, as faces sulcadas pelas lágrimas.
— Como vou viver sem ele?
Como que em resposta, a porta das traseiras abriu-se com estrondo. O ar frio da noite varreu a sala, trazendo consigo o cheiro da chuva e dos pinheiros.
— Ele voltou!
A mãe empurrou Jolene para o lado e correu na direção da cozinha.
Amo-te,querido,desculpa,ouviua mãe dizer.
Jolene endireitou-se devagar e virou-se. Os pais estavam entrelaçados num daqueles abraços cinematográficos, do tipo reservado aos amantes que se reencontram depois de uma guerra. A mãe agarrava-se a ele com desespero, segurando-o pela camisa axadrezada de lã.
O pai cambaleava embriagado, como se estivesse amparado apenas por ela, mas isso era impossível. Era um homem alto e
corpulento, com mãos enormes; a mãe era frágil e branca como a cal. Fora dele que Jolene herdara a estatura.
— Não podes abandonar-me — soluçava a mãe, engolindo as palavras.
O pai desviou o olhar. Por uma fração de segundo, Jolene vislumbrou-lhe a dor nos olhos — dor e, pior ainda, vergonha, derrota e arrependimento.
— Preciso de uma bebida disse ele numa voz enrouquecida por anos contínuos a fumar cigarros sem filtro.
O pai pegou na mão da mãe e arrastou-a pela cozinha. Com um ar estupidificado, sorrindo como uma tola, a mãe caminhava aos tropeções atrás dele, alheia ao facto de se encontrar descalça.
Só quando o pai abriu a porta das traseiras é que Jolene percebeu.
— Não! — gritou, pondo-se de pé com dificuldade, correndo atrás deles.
Lá fora, a noite de fevereiro estava fria e escura. A chuva martelava no telhado e escorria em regatos por cima das caleiras. O camião alugado do pai para o transporte de madeira, a única coisa que lhe importava de verdade, estava parado como um inseto gigantesco e negro no caminho de acesso. Jolene correu até junto do alpendre de madeira, tropeçando numa motosserra e endireitando-se logo em seguida.
A mãe parou junto à porta aberta do camião, no lado do passageiro, e olhou para ela. A chuva empapava-lhe o cabelo, colando-o ao longo das faces encovadas, fazendo-lhe escorrer o rímel. Ergueu uma mão, pálida e trémula, e acenou.
— Sai da chuva, Karen — gritou-lhe o pai, e a mãe aquiesceu no mesmo instante. Num segundo, ambas as portas se fecharam com
estrondo. O camião fez marcha-atrás, virou para a estrada e afastouse.
E Jolene estava outra vez sozinha.
Quatro meses, pensou melancólica. Só mais quatro meses para acabar o secundário e poder sair de casa.
Casa. Oquequerqueissosignificasse.
Mas o que iria fazer? Para onde iria? Não havia dinheiro para a faculdade e, sempre que Jolene poupava dinheiro do seu salário, os pais acabavam por descobrir e «pediam-lho emprestado». Nem sequer tinha o suficiente para o primeiro mês de renda.
Não sabia dizer quanto tempo ali esteve de pé, a pensar, a preocupar-se, a observar a chuva transformar o acesso à casa num lamaçal; tudo o que sabia era que a dada altura tomou consciência de um inacreditável e sobrenatural clarão de cor na noite.
Vermelho. A cor do sangue, do fogo e da perda.
Quando o carro da polícia parou junto ao pátio de entrada da casa, Jolene não ficou surpreendida. O que a surpreendeu foi o que sentiu quando soube que os pais tinham morrido.
O que a surpreendeu foi a dificuldade que teve em chorar.
CAPÍTULO 1
Abrilde2005
No dia em que fez quarenta e um anos, tal como em qualquer outro dia, Jolene Zarkades acordou antes de amanhecer. Com cuidado para não incomodar o marido, saiu da cama, vestiu o fato de treino, apanhou o longo cabelo louro num rabo de cavalo e saiu de casa.
Estava um lindo dia de primavera com céu azul. As ameixoeiras que ladeavam o caminho de acesso à sua casa estavam em flor. Minúsculas flores cor de rosa flutuavam sobre o relvado de um verde intenso. Do outro lado da rua, o estreito apresentava um profundo e vibrante tom de azul. As montanhas Olympic cobertas de neve erguiam-se majestosas em direção ao céu.
Visibilidade perfeita.
Correu ao longo da estrada da praia durante praticamente cinco quilómetros e meio e depois regressou. Quando chegou ao caminho que levava à casa, estava afogueada e ofegante. No alpendre, contornou os móveis desemparelhados de madeira e verga e entrou em casa, onde o aroma tentador do café se misturava com o cheiro intenso a madeira queimada.
A primeira coisa que fez foi ligar a televisão na cozinha; já estava sintonizada na CNN. Enquanto servia o café, aguardava com impaciência pelas notícias sobre a Guerra do Iraque.
Não havia notícias de intensos combates naquela manhã. Nenhum soldado — ou amigo — fora morto durante a noite.
— Graças a Deus — disse.
Com a caneca de café na mão, subiu as escadas, passou pelos quartos das filhas e encaminhou-se para o seu. Ainda era cedo. Talvez acordasse Michael com um longo e demorado beijo. Um convite.
Quanto tempo se passara desde a última vez em que haviam feito amor pela manhã? Quanto tempo desde que haviam feito amor, para dizer a verdade? Não era capaz de se lembrar. O dia do seu aniversário parecia uma ocasião perfeita para mudar tudo isso. Abriu a porta.
— Michael?
A cama estava vazia. Por fazer. A t-shirt preta de Michael aquela com que dormia — jazia amarrotada no chão. Apanhou-a, dobrou-a e guardou-a.
— Michael? — chamou de novo, abrindo a porta da casa de banho.
O vapor saiu em borbotões, toldando-lhe a visão.
Tudo era branco — azulejos, sanita, tampos das bancadas. A porta de vidro da cabina do duche estava aberta, revelando o interior de azulejos vazio. Uma toalha húmida fora atirada para o chão. A humidade perlava o espelho por cima do lavatório.
O marido já devia estar lá em baixo, se calhar no escritório. Ou talvez estivesse a planear uma pequena surpresa de aniversário. Era o tipo de coisas que ele costumava fazer…
Depois de um duche rápido, escovou o comprido cabelo molhado, enrolou-o num coque e contemplou-se ao espelho. O seu rosto — a exemplo de tudo nela — era firme e ossudo: possuía maçãs do rosto salientes e grossas sobrancelhas castanhas que lhe acentuavam os olhos verdes afastados e uma boca um pouco grande demais. A maioria das mulheres da sua idade usava maquilhagem e pintava o cabelo, mas Jolene não tinha tempo para coisas desse género.
Sentia-se à vontade com o cabelo louro de um tom entre dourado e acinzentado, que escurecia um pouco todos os anos, e com a pequena coleção de rugas que tinham começado a franzir-lhe os cantos dos olhos.
Vestiu a farda de piloto e foi acordar as meninas, mas os quartos delas também estavam vazios.
Já se encontravam na cozinha. A filha de doze anos, Betsy, estava a ajudar a irmã de quatro anos, Lulu, a sentar-se direita à mesa. Jolene deu um beijo na bochecha rechonchuda e rosada de Lulu.
— Feliz aniversário, mãe — disseram as duas em uníssono.
Jolene sentiu um amor súbito e ardente por aquelas meninas e pela sua vida. Sabia como eram raros os momentos como esse. Porque não podia ter sido criada como elas? Virou-se para as filhas, a sorrir — radiante, para dizer a verdade.
— Obrigada, meninas. Está um lindo dia para se fazer quarenta e um anos.
— És tão velha— disse Lulu. — Tens a certeza de que és assim tão velha?
Rindo, Jolene abriu o frigorífico.
— Onde está o vosso pai?
— Já saiu — respondeu Betsy.
Jolene virou-se.
— A sério?
— A sério — respondeu Betsy, observando-a com atenção.
Jolene forçou um sorriso.
— O mais provável é que esteja a planear uma surpresa para depois do trabalho. Muito bem. Por mim, fazemos uma festa depois das aulas. Só nós as três. Com bolo e tudo. O que me dizem?
— Com bolo! — gritou Lulu, batendo palmas de contentamento.
Jolene até podia ficar zangada e perturbada com o esquecimento de Michael, mas de que adiantaria? A felicidade era uma escolha que ela sabia como fazer. Optara por não pensar nas coisas que a aborreciam; dessa maneira, elas desapareciam. Além do mais, a dedicação de Michael ao trabalho era uma das coisas que mais admirava nele.
— Mamã, mamã, depois do bolo brinca ao um-dó-li-tá! — gritou Lulu, bamboleando-se na cadeira.
Jolene lançou um olhar à filha mais nova.
— Há aqui alguém que adora a palavra «bolo».
Lulu levantou a mão.
— Sou eu. Sou eu!
Jolene sentou-se ao lado de Lulu e estendeu as mãos na direção dela. A filha encostou de imediato as palmas das suas mãos às da mãe.
— Um-dó-li-tá, cara de amendoá, um segredo colorido, quem está livre, livre…
Jolene fez uma pausa, observando a cara de Lulu iluminar-se de expectativa.
— Está! — disse Lulu.
— Pim, pam, pum. Cada bola mata um. Da galinha prò peru. Quem se livra é a minha Lu-lu.
Jolene deu uma última palmada nas mãos da filha e depois levantou-se para preparar o pequeno-almoço.
— Vai-te vestir, Betsy. Saímos dentro de meia hora.
À hora marcada, entrou no carro com as filhas. Levou Lulu ao jardim de infância, deixou-a à porta com um beijo afetuoso e depois seguiu até à escola situada no alto de uma enorme ladeira relvada. Entrando na faixa que conduzia à escola, abrandou e parou.
— Nãosaias do carro — ordenou-lhe Betsy de repente, num tom ríspido, das sombras do banco traseiro. — Estás com o teu uniforme.
— Parece que nem no meu aniversário tenho uma desculpa.
Lançou um olhar à filha pelo espelho retrovisor. Nos últimos meses, a sua adorável e dócil maria-rapaz transformara-se numa pré-adolescente para quem tudo constituía um potencial embaraço — em especial uma mãe que não era exatamente como as outras mães.
— Quarta-feira é o dia de atividades entre pais e filhos — lembrou Jolene.
Betsy gemeu.
— Tensmesmodeir?
— A tua professora convidou-me. Prometo que me comporto como uma pessoa civilizada.
— Não tem graça. Ninguém que é fixe tem a mãe na tropa. Não vais usar a farda de piloto, pois não?
— Esse é o meu trabalho, Betsy. Acho que tu…
— Tanto faz.
Betsy agarrou na sua pesada mochila — ao que parece, não a mais adequada; no dia anterior exigira uma nova — e saiu depressa
do carro, encaminhando-se para as duas raparigas que se encontravam junto ao pau de bandeira. Eram elas quem importava agora para Betsy, essas raparigas, Sierra e Zoe. Betsy ansiava desesperadamente por se integrar no grupo delas. Pelos vistos, uma mãe que pilota helicópteros para a Guarda Nacional, do Exército, era francamente embaraçoso.
Quando Betsy se aproximou das velhas amigas, estas ignoraramna de propósito, virando-lhe as costas como um cardume de peixes que se apressa a fugir do perigo.
Jolene agarrou-se com mais força ao volante do carro, praguejando entredentes.
Betsy pareceu ficar abatida, envergonhada. Os seus ombros descaíram, o queixo afundou-se no peito. Afastou-se à pressa, como se tentasse fingir que, na verdade, não tinha acabado de dar de caras com aquelas que considerava as suas melhores amigas. Sozinha, encaminhou-se para o edifício da escola.
Jolene ficou ali sentada durante tanto tempo que alguém acabou por buzinar-lhe. Sentia profundamente a dor da filha. Se havia alguma coisa que ela entendia, era a rejeição. Não tinha esperado uma eternidade para que os seus próprios pais a amassem? Precisava de ensinar Betsy a ser forte, a escolher a felicidade. Ninguém nos pode magoar se não o permitirmos. Um bom ataque era a melhor defesa.
Por fim, afastou-se com o carro. Evitando o tráfego matinal da cidade, foi pelas ruas secundárias para chegar a Liberty Bay. Cortou na via de acesso ao lado da sua e dirigiu-se à casa vizinha — uma pequena moradia branca pré-fabricada colada a uma oficina de automóveis — e buzinou.
A sua melhor amiga, Tami Flynn, saiu de casa, já fardada, com o longo cabelo preto enrolado num austero coque. Jolene era capaz de jurar que no rosto largo e cor de café de Tami não se via uma única ruga. Tami jurava que isso fazia parte da sua herança nativa americana.
Ela representava a irmã que Jolene nunca tivera. Eram adolescentes quando se conheceram — duas raparigas de dezoito anos que se alistaram no Exército porque não sabiam que outro rumo dar às suas vidas. Ambas tinham terminado o secundário e foram admitidas na escola de pilotagem, entrando para o programa de formação para pilotos de helicóptero.
A paixão por voar aproximara-as; uma perspetiva comum sobre a vida criara uma amizade tão forte que nunca vacilava. Passaram dez anos juntas no Exército e depois foram transferidas para a Guarda Nacional quando o casamento — e a maternidade — tornaram difícil o serviço no ativo. Quatro anos depois de Jolene e Michael se terem mudado para a casa em Liberty Bay, Tami e Carl compraram o terreno do lado.
Tami e Jolene haviam até engravidado ao mesmo tempo, partilhando aqueles nove meses mágicos, acautelando os receios uma da outra com mãos ternas. Os seus maridos não tinham nada em comum, por isso não se tornaram um desses casais de melhores amigos que viajavam juntos, mas isso não constituía um problema para Jolene. O que mais lhe importava era o facto de que ela e Tami sempre estariam ali para se ajudarem uma à outra. E estavam.
Estar na posição «seis horas à retaguarda» significa que um helicóptero está atrás de nós,. O que na verdade quer dizer: Estou aqui para o que precisares. Cubro a tua retaguarda. Foi isso que
Jolene encontrou no Exército, na Guarda Nacional e em Tami. Estou acobriratuaretaguarda.
A Guarda Nacional dera a ambas o melhor dos dois mundos — mães a tempo inteiro que continuavam a servir o país, permaneciam no Exército e pilotavam helicópteros. Voavam juntas pelo menos duas manhãs por semana, assim como durante os fins de semana de treino. Era o melhor emprego a tempo parcial do Planeta.
Tami entrou para o lugar do passageiro e fechou a porta com força.
— Feliz aniversário, menina aviadora.
— Obrigada — respondeu Jolene com um sorriso. — O meu dia, a minha música.
Aumentou o volume do som do leitor de CD e «Purple Rain» de Prince ressoou através dos altifalantes.
Foram a conversar durante todo o caminho até Tacoma, sobre tudo e sobre nada; quando não estavam a falar, estavam a entoar canções da sua juventude — Prince, Madonna, Michael Jackson. Passaram por Camp Murray, sede da Guarda Nacional, e dirigiram-se para Fort Lewis, onde eram recolhidos os aparelhos da corporação.
No vestiário, Jolene foi buscar o pesado saco de voo cheio de equipamento de sobrevivência. Colocando-o ao ombro, foi atrás de Tami até ao balcão de apresentação, confirmou o seu período adicional de voo de treino; inscreveu-se para receber o pagamento e depois dirigiu-se para a pista, colocando o capacete enquanto ia caminhando.
A tripulação já lá estava, preparando o BlackHawkpara o voo. O helicóptero parecia uma enorme ave de rapina em contraste com o límpido céu azul. Jolene fez um sinal com a cabeça para o comandante, efetuou uma rápida inspeção ao aparelho, deu as
instruções à tripulação e, logo em seguida, subiu para o lado esquerdo da cabina de pilotagem, ocupando o seu lugar. Tami entrou, subiu para o assento da direita e colocou o capacete.
— Painel de comandos e disjuntores, verificado — disse Jolene, pondo o helicóptero a trabalhar.
Os motores rugiram ganhando vida; as enormes pás do rotor começaram a movimentar-se, devagar a princípio e depois girando com rapidez, com um lamento agudo.
— Chefe de operações. Raptor oito-nove, autorização para descolagem — disse Jolene para o microfone. Em seguida, mudou as frequências. — Torre de Controlo. Raptor oito-nove, pronto para a partida.
Deu início ao sofisticado ato de equilíbrio que era necessário para fazer um helicóptero descolar. O aparelho elevou-se devagar. Jolene manuseava os comandos com perícia — as mãos e os pés em constante movimento. Subiram até ao céu azul e sem nuvens, onde o firmamento as rodeava por todos os lados. Bem lá em baixo, as árvores em flor exibiam uma espetacular paleta de cores. Um fluxo de pura adrenalina percorreu-a. Céus, como adorava aquilo lá em cima.
— Ouvi dizer que fazes anos, chefe — disse o comandante, através do intercomunicador.
— É verdade respondeu Tami, a sorrir. — Porque achas que é ela quem tem os comandos?
Jolene sorriu para a melhor amiga, adorando aquela sensação, precisando dela como precisava de ar para respirar. Não se importava de envelhecer, nem de ficar com rugas, nem de abrandar o ritmo.
— Quarenta e um anos. Não consigo imaginar melhor maneira de passar este dia.
A pequena cidade de Poulsbo, no estado de Washington, estendia-se ao longo das margens de Liberty Bay. Os primeiros colonos escolheram esta zona por lhes fazer lembrar a sua terra natal nórdica, com as suas frias águas azuis, altas montanhas e luxuriantes encostas verdes. Anos mais tarde, esses mesmos fundadores tinham começado a construir as suas lojas ao longo de Front Street, embelezando-as com toques escandinavos. Viam-se telhados com rebordos rendilhados e decorações com volutas por todo o lado.
Segundo a lenda da família Zarkades, as decorações atraíram a mãe de Michael de imediato, pois jurava que assim que desceu Front Street pela primeira vez soube logo ser ali que desejava morar.
Dezenas de lojas singulares — incluindo a que a sua mãe possuía vendiam aos turistas as mais belas bugigangas feitas à mão.
Situava-se a menos de dezasseis quilómetros do centro de Seattle, em linha reta, se bem que esses poucos quilómetros tivessem sofrido uma irritante mudança. Em determinada altura, durante os últimos anos, Michael deixara de ver o encanto norueguês da cidade e começara a reparar melhor no longo e sinuoso percurso de carro desde a sua casa até ao terminal do ferry em Bainbridge Island e no para-arranca típico do meio da semana.
Havia dois itinerários possíveis entre Poulsbo e Seattle — por terra e por água. A viagem de carro demorava duas horas. O trajeto de ferry era uma travessia de trinta e cinco minutos desde as margens de Bainbridge Island até ao terminal no cais de Seattle.
O problema com o ferry era o tempo de espera. Para conduzir o carro para bordo, era preciso ir para a fila bem cedo. No verão, muitas vezes ia de bicicleta para o emprego; em dias de chuva como aquele — que eram frequentes no Noroeste — ia de carro. E naquele ano o inverno fora particularmente longo e a primavera chuvosa. Dia cinzento após dia cinzento, ficava sentado dentro do seu Lexus no parque de estacionamento a contemplar a luz do dia arrastando-se ao longo da superfície ondulante do estreito. Depois, embarcava, estacionava o carro no ferrye subia ao convés superior.
Hoje, Michael estava sentado a uma pequena mesa de fórmica a bombordo do ferry, com o trabalho espalhado à sua frente; o depoimento de Woerner. Notas autocolantes estendiam-se como teclas de piano amarelas ao longo das margens, cada uma delas sublinhando um testemunho de veracidade questionável feito pelo seu cliente.
Mentiras. Michael suspirou só de pensar em reparar os estragos. O seu idealismo, em tempos tão vivo e intenso, fora perdendo o brilho e o fulgor devido aos anos passados a defender os culpados.
Noutros tempos, teria falado com o pai sobre o assunto, e o pai analisaria os prós e os contras, fazendo questão de recordar a Michael que o trabalho que ambos realizavam fazia a diferença.
Somos o último baluarte, Michael, sabes bem disso — os paladinos da liberdade. Não deixes que os maus te derrotem. Nós protegemos os inocentes protegendo os culpados. É assim que as coisasfuncionam.
Preferiaquemecalhassemmaisinocentes,pai. Não preferíamos todos? Todos ansiamos por isso. Por aquele caso, aquele que fará a diferença. Sabemos, melhor do que a maioriadaspessoas,qualéasensaçãodesalvar a vidadealguém.
De marcar a diferença. Éisso que fazemos, Michael. Nãopercas a fé.
Michael contemplou o lugar vazio à sua frente.
Já há onze meses que ia sozinho para o emprego. Lembrava-se do dia em que o pai estava ao seu lado, saudável, bem-disposto e a falar da lei que adorava. Depois adoeceu. Estava a morrer.
Ele e o pai tinham sido sócios durante quase vinte anos, trabalhando lado a lado, e o facto de o perder abalara Michael profundamente. Lamentava o tempo que não haviam aproveitado; acima de tudo, sentia-se sozinho de uma maneira que constituía uma novidade para ele. A perda também o obrigara a olhar para a sua própria vida e não gostara do que viu.
Até à morte do pai, Michael sempre se sentira afortunado, feliz; agora, não sentia nada disso.
Tinha vontade de falar com alguém sobre o assunto, partilhar a sua perda. Mas com quem? Não podia falar com a mulher. Não com Jolene, que acreditava que a felicidade era uma escolha que se fazia e que um sorriso era uma careta virada de pernas para o ar. A sua infância turbulenta e desagradável tinha-a deixado impaciente com as pessoas que não escolhiam ser felizes. Nos últimos tempos, isso enervava-o, todos os otimistas lugares-comuns de que «tudo vai melhorar». Por ter perdido os pais, Jolene julgava entender o que era o desgosto, mas não fazia a mínima ideia de como era alguém estar a ir-se abaixo. Como havia de saber? Era dura como uma pedra.
Michael tamborilou com a caneta em cima da mesa e lançou um olhar pela janela. O estreito apresentava hoje um tom cinzento plúmbeo, parecendo desolado, misterioso. Uma gaivota pairou sobre
uma corrente de ar invisível, numa animação aparentemente suspensa.
Não devia ter cedido perante Jolene, há tantos anos, quando ela implorara pela casa em Liberty Bay. Dissera-lhe que não queria morar tão longe da cidade — ou tão perto dos seus pais, mas no fim acabara por ceder, influenciado pelas lindas súplicas dela e pelo sólido argumento de que iriam precisar da ajuda da mãe dele para tomar conta das crianças. No entanto, se não tivesse cedido, se não tivesse perdido a contenda sobre onde-iremos-morar, não estaria ali sentado no ferry todos os dias, sentindo saudades do homem que costumava estar ali consigo…
Quando o ferry abrandou, Michael pôs-se de pé e recolheu os seus papéis, arrumando outra vez o depoimento na pasta preta de pele de cordeiro. Nem sequer olhara para os documentos.
Embrenhando-se no meio da multidão, Michael desceu as escadas até ao convés dos automóveis. Em poucos minutos, encontrou-se ao volante do carro saindo do ferry e chegando à Smith Tower, em tempos o edifício mais alto a oeste de Nova Iorque e agora uma nota de rodapé velha e gótica numa cidade em ascensão.
Na Zarkades, Antham e Zarkades, no nono andar, tudo era velho — soalhos, janelas a precisar de reparação, demasiadas demãos de tinta —, mas, a exemplo do próprio edifício, havia aqui uma história e também beleza. Uma parede de janelas com vista para Elliott Bay e os enormes guindastes cor de laranja que carregavam contentores para dentro de cargueiros. Alguns dos maiores e mais importantes processos criminais dos últimos vinte anos tinham sido defendidos por Theo Zarkades, a partir daqueles escritórios. Em reuniões da Ordem, outros advogados ainda comentavam a capacidade do seu
pai em persuadir um júri de uma maneira muito próxima da reverência.
— Olá, Michael — disse a rececionista, sorrindo-lhe.
Michael acenou com a mão e continuou a andar, passou pelos estagiários com ar sério, pelas fatigadas secretárias jurídicas e pelos ambiciosos e jovens juristas associados. Toda a gente lhe sorriu, e ele retribuiu-lhes os sorrisos. No gabinete de canto — que antes pertencera ao pai e agora era o seu — parou para dar uma palavra à secretária.
— Bom dia, Ann.
— Bom dia, Michael. Bill Antham queria falar consigo.
— Está bem. Diga-lhe que já cheguei.
— Quer café?
— Sim, obrigado.
Dirigiu-se para o seu gabinete, o maior do escritório. Uma enorme janela dava para a Elliott Bay; essa era na verdade a protagonista da sala: a vista. Fora isso, o gabinete era comum estantes repletas de livros de Direito, um soalho de madeira manchado por décadas de uso, um par de confortáveis poltronas estofadas, um sofá de camurça preta. Uma única fotografia familiar repousava ao lado do computador; o único toque pessoal do espaço.
Atirou a pasta para cima da secretária e encaminhou-se na direção da janela, contemplando a cidade que o seu pai tanto amara. Refletida no vidro viu uma imagem fantasmagórica de si próprio — cabelo preto ondulado, maxilar forte e quadrado, olhos escuros. A imagem do pai mais jovem. Mas ter-se-ia o pai alguma vez sentido assim, tão cansado e esgotado?
Ouviu bater na porta atrás de si, e depois esta abriu-se. Na sala entrou Bill Antham, o único sócio da firma além dele e em tempos o
melhor amigo do seu pai. Nos meses que haviam passado desde a morte do pai, Bill também envelhecera. Talvez isso tivesse acontecido a todos.
— Olá, Michael — saudou, entrando e caminhando com dificuldade, lembrando a Michael a cada passo que dava que a idade da reforma já passara há muito.
Só no último ano fora operado aos dois joelhos.
— Sente-se, Bill — disse Michael, indicando a cadeira mais próxima da secretária.
— Obrigado — disse ele, sentando-se. — Preciso de um favor. Michael voltou para a sua secretária.
— Claro, Bill. O que posso fazer por si?
— Estive ontem em tribunal, e calhou-me o juiz Runyon. Michael suspirou e sentou-se. Era bastante comum o tribunal atribuir casos aos advogados de defesa criminal. Fazia jus à velha máxima de caso necessite de um advogado e nãopuderpagar. Os juízes muitas vezes atribuíam um determinado caso a qualquer advogado que calhasse estar presente quando surgia a ocasião.
— Qual é o caso?
— Um homem que matou a mulher. Alegadamente. Barricou-se dentro de casa e matou-a com um tiro na cabeça. A equipa de operações especiais arrastou-o para fora à força antes de ele ter oportunidade de se suicidar. A televisão filmou a maior parte do ocorrido.
Um cliente culpado que fora filmado pela televisão. Perfeito.
— E quer que me ocupe do caso no seu lugar.
— Não te pediria… mas a Nancy e eu partimos para o México dentro de duas semanas.
— Claro — retorquiu Michael. — Não há problema.
O olhar de Bill passeou-se pela sala.
— Ainda estou à espera de encontrá-lo aqui — murmurou.
— Pois — disse Michael.
Olharam um para o outro durante uns momentos, recordando-se do homem que tanto impacto causara nas suas vidas. Bill levantouse, voltou a agradecer a Michael e saiu da sala.
Depois disso, Michael mergulhou de cabeça no trabalho, deixando que este o consumisse. Passou horas soterrado em depoimentos, relatórios da polícia e testemunhos. Sempre fora um homem com uma forte ética profissional e um sentido do dever ainda mais forte. Na maré ascendente do desgosto, o trabalho tornara-se a sua tábua de salvação.
Às três horas, Ann chamou-o pelo intercomunicador.
— Michael? Tem a Jolene na linha um.
— Obrigado, Ann.
— Lembrou-se de que hoje é o aniversário dela, não lembrou?
Merda.
Afastou a cadeira da secretária e pegou no telefone.
— Olá, Jo. Feliz aniversário.
— Obrigada.
Jolene não o repreendeu por se ter esquecido, muito embora soubesse que realmente se havia esquecido. Ela era das pessoas que conhecia quem melhor controlava as emoções e nunca se permitia ficar furiosa. Michael por vezes interrogava-se se uma boa discussão não poderia ajudar o seu casamento, mas eram precisos dois para discutir.
— Vou compensar-te pelo esquecimento. Que tal um jantar naquele restaurante sobre a marina? Aquele novo?
Antes de Jolene poder oferecer algum tipo de resistência (coisa que fazia sempre se havia algo que não lhe agradava), Michael acrescentou:
— A Betsy já tem idade suficiente para tomar conta da Lulu durante duas horas. Só estaremos a cerca de quilómetro e meio de distância de casa.
Era uma disputa que durava há quase um ano. Michael achava que uma menina de doze anos já tinha idade para ser baby-sitter. Jolene discordava. À semelhança de tudo o resto na vida de ambos, era o voto dela que contava. Michael estava habituado. E farto disso.
— Sei o quanto andas ocupado com o caso Woerner — disse Jolene. — E que tal se eu servisse o jantar às meninas mais cedo e as pusesse no quarto a ver um filme e depois preparasse um belo jantar para nós dois? Ou então podia ir buscar qualquer coisa ao bistrô; adoramos a comida deles.
— Tens a certeza?
— O mais importante é estarmos juntos — limitou-se Jolene a responder.
— Está bem — disse Michael. — Chego a casa por volta das oito.
Antes de desligar o telefone, ele já estava a pensar noutra coisa.
CAPÍTULO 2
Nessa noite, Jolene escolheu a roupa com todo o cuidado. Ela e Michael não iam jantar fora, só os dois, há uma eternidade, e queria que essa noite fosse perfeita. Romântica. Depois de servir o jantar às meninas, tomou um banho com água perfumada, depilou-se, massajou a pele com uma loção com aroma de limão e vestiu umas calças de ganga confortáveis e uma camisola preta com decote.
Foi encontrar Betsy lá em baixo sentada junto à mesinha de café da sala, a fazer os trabalhos de casa, enquanto Lulu estava no sofá, embrulhada na sua mantinha amarela favorita, a ver A Pequena Sereia. Ainda havia resquícios da sua festa de aniversário improvisada em cima da mesa da sala de jantar — o bolo, com os respetivos buracos das velas; o diário cor de rosa que Betsy oferecera a Jolene; o gancho faiscante de cabelo que fora o presente de Lulu, uma pilha de papel amarrotado e laços prontos para irem para o lixo.
— Ela não manda em mim — disse Lulu quando Jolene entrou na sala.
— Manda-a calar-se, mãe. Estou a tentar fazer os trabalhos de casa — respondeu Betsy. — Ela está a cantar demasiado alto.
E começou tudo de novo. As vozes sobrepuseram-se uma à outra, subindo de volume.
— Ela não manda em mim — voltou Lulu a dizer, em tom mais duro e intransigente. — Diz-lhe.
Betsy revirou os olhos e saiu da sala, subindo as escadas a bater com os pés.
Jolene sentiu uma vaga de exaustão. Não lhe passara pela cabeça até que ponto podia tornar-se cansativo ser mãe de uma pré-adolescente. Quantas vezes poderia uma rapariga revirar os olhos sem se fartar? Se Jolene alguma vez tivesse experimentado a gracinha, o pai tê-la-ia expulsado da sala à chapada.
Lulu correu até ao baú dos brinquedos no canto da sala e fartouse de remexer lá dentro. Depois de encontrar a bandolete com orelhas de gato que fizera parte da máscara do Halloween do ano anterior, pô-la na cabeça e virou-se.
Jolene não conseguiu reprimir um sorriso. Ali estava a sua filha de quatro anos, usando orelhas cinzentas de gato que começavam a ter um ar puído em certos sítios, com as mãos nas ancas. Os pequenos triângulos pontiagudos emolduravam o rosto corado de Lulu e davam-lhe um ar ainda mais traquinas do que o costume. Por qualquer razão que ninguém era capaz de explicar, Lulu achava que ficava invisível quando usava aquela bandolete. Emitiu o som de um miado.
Jolene franziu a testa com ar dramático e olhou em volta.
— Oh, não. O que terá acontecido à minha Lucy Lou? Para onde foi ela?
Armou um grande circo procurando por toda a sala, atrás da televisão, debaixo do cadeirão estofado amarelo, atrás da porta.
— Estou aqui, mamã! — disse Lulu com espalhafato, soltando uma risadinha.
— Cá estás tu — disse Jolene com um suspiro. — Estava preocupada.
Pegou na filha ao colo e levou-a pelas escadas acima. Lulu demorou uma eternidade a lavar os dentes e a vestir o pijama, e Jolene esperou com toda a paciência, sabendo que ela era dotada de um carácter forte e independente. Quando a filha ficou finalmente pronta, Jolene subiu para a cama para junto dela, puxoua para si e procurou o livro O Sítio das Coisas Selvagens. Quando proferiu a palavra «fim», Lulu já estava quase a dormir.
Beijou Lulu na face.
— Boa noite, gatinha.
— Boa noite, mamã — murmurou Lulu sonolenta.
Em seguida, Jolene percorreu o corredor até ao quarto de Betsy, bateu à porta e entrou.
A filha mais velha estava sentada em cima da cama, com o livro de História aberto no colo. O seu cabelo louro, claro e sedoso, tombava-lhe em espirais de caracóis ao longo dos braços nus e magros. Um dia, Betsy iria dar valor à sua pele de porcelana, ao cabelo louro e aos olhos castanhos, mas não agora, quando o cabelo liso estava na moda e as borbulhas se haviam espalhado pelo seu rosto.
Jolene dirigiu-se à cama da filha e sentou-se na beira.
— Podias ser mais simpática com a tua irmã.
— Ela é uma chata.
— Tu também és — disse Jolene reparando como os olhos de Betsy se arregalaram, e sorrindo-lhe depois com carinho. — E eu
também sou. As famílias são assim mesmo. E, além disso, sei exatamente qual é a razão para estares assim.
— Sabes?
— Vi a maneira como a Sierra e a Zoe te trataram esta manhã na escola.
— Andas sempre a espiar-me — disse Betsy, mas a sua voz fraquejou.
— Estava a ver-te entrar na escola. Não é bem o que se pode chamar «espiar». Vocês as três eram as melhores amigas no ano passado. O que foi que aconteceu?
— Nada — respondeu Betsy com teimosia, apertando os lábios, a ocultar o aparelho dos dentes.
— Posso ajudar-te, se quiseres. Também já tive doze anos aqui há uns tempos.
Betsy lançou-lhe aquele olhar de deves-estar-doida que se tornara familiar durante o último ano.
— Duvido muito.
— Talvez devesses sair com o Seth depois das aulas amanhã. Lembras-te do quanto vocês costumavam divertir-se?
— O Seth é esquisito. Toda a gente acha isso.
— Elizabeth Andrea, não te atrevas a portares-te como uma menina má. Seth Flynn não é esquisito. É o filho da minha melhor amiga. Qual é o problema se ele gosta de usar o cabelo comprido e se é… calado? É teu amigo. Não deves esquecer-te disso. Um dia podes vir a precisar dele.
— Logo se vê.
Jolene suspirou. Já vira este filme antes; por mais vezes que perguntasse, Betsy recusar-se-ia a dizer mais qualquer coisa. Logo sevêera sinónimo de pontofinal.
— Muito bem — disse, debruçando-se e beijando a filha na testa.
— Adoro-te até ao infinito.
As palavras constituíam a divisa desta família, cujo amor se concentrava numa única frase. Retribuiomeucarinho,Bets.
Jolene esperou um momento mais longo do que tencionava e ficou de imediato furiosa consigo própria por sentir uma réstia de esperança. Mais uma vez. A maternidade nos anos da préadolescência era uma série de desilusões exasperantes.
— Muito bem — disse por fim, pondo-se de pé.
— Porque é que o papá ainda não chegou? É o teu aniversário.
— Já deve estar a chegar. Sabes bem como ele anda ocupado agora.
— Achas que ele vem aqui dizer-me boa noite?
— Claro que sim.
Betsy abanou a cabeça e voltou para a sua leitura. Quando Jolene chegou à porta, disse:
— Feliz aniversário, mãe.
Jolene sorriu.
— Obrigada, Bets. Adorei o diário que me deste. É perfeito.
Betsy chegou mesmo a sorrir.
Já no andar de baixo, Jolene entrou na cozinha e tirou o último dos pratos. O seu jantar — um requintado e delicioso prato de entrecosto de vitela estufado em vinho tinto, alho e tomilho borbulhava em lume brando no fogão, perfumando a casa inteira. As filhas não tinham gostado muito, mas era o prato preferido de Michael.
Cobrindo os ombros com uma macia manta cor de rosa, ele serviu-se de um copo de água gaseificada e foi até lá fora. Sentouse numa das velhas cadeiras de verga do alpendre e pousou os pés
descalços em cima da mesinha de apoio já gasta, contemplando a paisagem familiar.
Lar.
Começara quando conheceu Michael. Recordava-se de tudo com toda a clareza.
Durante vários dias após a morte dos pais, esperara que alguém fosse ajudá-la. Polícia, terapeutas, professores. Não levou muito tempo a perceber que, com a morte dos pais, assim como enquanto foram vivos, se encontrava sozinha. Numa quarta-feira de manhã em que nevava, acordou cedo, ignorando o frio que se infiltrava através das finas paredes do quarto, vestiu as suas melhores roupas — uma saia axadrezada de lã, uma camisola delã, meias até aos joelhos — e calçou uns mocassins. Uma fita larga e azul impedia que o cabelo lhe caísse para os olhos.
Pegou no que restava do dinheiro que ganhara como baby-sitter e dirigiu-se para a Baixa de Seattle. Conheceu Michael no escritório de apoio jurídico.
O seu ar atraente de homem moreno e o sorriso fácil deixaramna literalmente sem fôlego. Acompanhou-o até um gabinete modesto e pequeno e contou-lhe o seu problema.
— Tenho dezassete anos; faço dezoito daqui a dois meses. Os meus pais morreram esta semana. Acidente de carro. Uma assistente social foi lá a casa e disse que tinha de ir para uma casa de acolhimento até completar dezoito anos. Só que eu não preciso de ninguém. E muito menos de uma família falsa. Posso muito bem morar na minha própria casa até junho, quando o banco tomar posse dela, e depois também já terei terminado o secundário e posso fazer… qualquer coisa. Consegue impedir que eu vá para uma família de acolhimento?