As memórias e o desenho

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U S Í A D A

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I S B O A

Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura

As memórias e o desenho

Tiago de Sá da Bandeira Franco

Lisboa Julho 2011


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N I V E R S I D A D E

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U S Í A D A

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I S B O A

Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura

As memórias e o desenho

Tiago de Sá da Bandeira Franco

Lisboa Julho 2011


Tiago de Sá da Bandeira Franco

As memórias e o desenho

Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em Arquitectura.

Orientador:

Prof.

Doutor

Arqt.

Fernando

Manuel

Domingues Hipólito Assistente de orientação: Mestre Arqt. João Miguel Ferreira Couto Duarte

Lisboa Abril 2011


Ficha Técnica Autor Tiago de Sá da Bandeira Franco Orientador Prof. Doutor Arqt. Fernando Manuel Domingues Hipólito Assistente de Mestre Arqt. João Miguel Ferreira Couto Duarte orientação Título As memórias e o desenho Local Lisboa Ano 2011

Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação FRANCO, Tiago de Sá da Bandeira, 1987As memórias e o desenho / Tiago de Sá da Bandeira Franco ; orientado por Fernando Manuel Domingues Hipólito, João Miguel Ferreira Couto Duarte. - Lisboa : [s.n.], 2011. - Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa. I – HIPÓLITO, Fernando Manuel Domingues, 1964II - DUARTE, João Miguel Ferreira Couto, 1966LCSH 1. Desenho Arquitectónico 2. Desenho Arquitectónico - Aspectos Psicológicos 3. Memória 4. Consciência 5. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses 6. Teses – Portugal - Lisboa 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Architectural Drawing Architectural Drawing - Psychological Aspects Memory Conscience Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations Dissertations, Academic – Portugal - Lisbon

LCC - NA2700.F73 2011


Ă€ Sra. Maria Helena Von Hoffman de Abreu de Freitas Branco.


“Portanto, temos de percorrer o círculo. O que não é nem um expediente ante a dificuldade,

nem

uma

imperfeição.

Seguir este caminho é que é a força, e permanecer

nele

constitui

a festa

do

pensamento, admitindo que o pensamento é um ofício.”

HEIDEGGER, Martin (2007) – A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70. p. 12.


APRESENTAÇÃO

As memórias e o desenho

Tiago de Sá da Bandeira Franco O tema em estudo é a forma como os processos de memória influenciam o processo arquitectónico, mais em particular o desenho: da ideia à sua formulação e concretização em projecto. Nos dois capítulos iniciais são revistas recentes teorias sobre memória e consciência. O último capítulo aborda o desenho no processo arquitectónico, à luz dos modelos explicativos identificados nos capítulos anteriores. No primeiro capítulo, será explorado o tema da memória: primeiro, em linhas muito gerais, numa curta reflexão, as grandes linhas de pensamento filosófico como substracto da qual emergem as teorias sobre a memória da psicologia cognitiva: codificação, armazenamento, recuperação, recordação e os seus processos de imagem. O segundo capítulo pretende clarificar aspectos relacionados com o estado de consciência: a capacidade humana de reflectir e de conhecer a sua própria existência, percorrendo-se no tempo e no espaço. Por fim, em capítulo final, será feita primeiramente uma breve reflexão sobre o acto criativo, para, depois, se canalizar o olhar para o desenho. A abordagem ao desenho será executada por meio de reflexões pessoais, utilizando o método introspectivo e de identificação das memórias, para uma descoberta interior sobre o acto do desenho. Por fim, é feita uma aplicação ao trabalho de projecto executado no 5º ano do curso. Assim, os temas que ganham particular relevo ao longo da dissertação são as próprias relações que a memória e a consciência têm com o desenho, a importância da identidade autobiográfica relacionada com a memória pessoal e o confronto que existe entre esta, a memória e o espírito do lugar. Palavras-chave: imagem, consciência, ideia, linguagem, processo criativo, expressão.


PRESENTATION

The memories and the design

Tiago de Sรก da Bandeira Franco The subject under study is how memory processes influence the architectural process, more particularly the design: from the idea to the formulation and implementation of the project. In two initial chapters are reviewed recent theories of memory and consciousness. The last chapter discusses the architectural design process, in light of the explanatory models of previous chapters. The first chapter will explore the theme of memory: first, in very general terms, a short reflection, the main lines of philosophical thought from which emerge as a substrate on the theories of cognitive psychology memory: encoding, storage, retrieval, recall and their imaging processes. The second chapter seeks to clarify aspects of the state of consciousness: the human ability to think and know about their own existence, traveling in time and space. Then, in the final chapter, will be first made a brief reflection on the creative act, and then channeling our eye for design. The approach to design will be implemented through personal reflections, using the method of introspection and identification of memories, to an inner discovery about the act of drawing. Finally an application is made to the project work performed in the 5th year of the course. Thus, the themes that gain particular importance throughout the work are the very relations that have memory and consciousness with the design, the importance of identity-related autobiographical memory and personal confrontation between this, the memory and spirit of the place. Keywords: image, consciousness, idea, language, creative process, expression.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – “Borrão do tipo usado no Rorschach”, (Gleitman, Fridlund, Reisberg, 2007, Lisboa) ....................................................................................................................... 44 Ilustração 2 – “O Dragão” – Desenho de uma criança de 5 anos, Maria O’Neill (O’Neill, 2010, Lisboa) ....................................................................................................................... 67 Ilustração 3 – Desenho realizado com 12 anos de idade alusivo à procura de adaptação do desenho à realidade. (Ilustração nossa) ........................................................ 69 Ilustração 4 – Detalhe da figura 2 – “O Dragão”, Maria O’Neill (O’Neill, 2010, Lisboa) ......... 73 Ilustração 5 – “Study for Composition VII (Improvisation 3)”, Lenbachhaus Gallery, Munich. Wassily Kandinsky (Philips, imp. 1997, p. 39)......................................................... 75 Ilustração 6 – “Tête D’Homme”, Colecção particular. Alberto Giacometti (Giacometti, imp. 1994, p. 194) ................................................................................................................ 81 Ilustração 7 – Localização da área de intervenção. (Ilustração nossa) ................................ 83 Ilustração 8 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa).......................................................... 85 Ilustração 9 – Planta de Implantação. (Ilustração nossa) ..................................................... 85 Ilustração 10 – Planta do piso 0 à escala 1:500. (Ilustração nossa) ..................................... 86 Ilustração 11 – Corte A à escala 1:500. (Ilustração nossa) .................................................. 87 Ilustração 12 – Planta do piso 2 à escala 1:500. (Ilustração nossa) ..................................... 87 Ilustração 13 – Planta do piso 1 à escala 1:500. (Ilustração nossa) ..................................... 88 Ilustração 14 – Corte B à escala 1:500. (Ilustração nossa) .................................................. 88 Ilustração 15 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa)........................................................ 89 Ilustração 16 – Planta do piso -1 à escala 1.500. (Ilustração nossa) .................................... 90 Ilustração 17 – Planta do piso -2 à escala 1:500. (Ilustração nossa) .................................... 90 Ilustração 18 – Corte C à escala 1:500. (Ilustração nossa) .................................................. 91 Ilustração 19 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa)........................................................ 92


SUMÁRIO 1. Introdução .............................................................................................................. 15 2. A memória .............................................................................................................. 19 2.1. Duas tradições filosóficas ................................................................................ 19 2.2. O cognitivismo ................................................................................................. 21 2.3. Memória. Estrutura e processos ...................................................................... 23 2.4. Reconhecimento e recordação: Identificar ou criar? ........................................ 27 2.5. Memória e espaço imagético ........................................................................... 30 2.6. A memória em funcionamento ......................................................................... 33 3. A consciência.......................................................................................................... 35 3.1. A mente ........................................................................................................... 35 3.2. A estrutura do eu ............................................................................................. 39 3.2.1. Proto-eu.................................................................................................... 39 3.2.1. Eu-nuclear ................................................................................................ 41 3.2. A consciência .................................................................................................. 45 3.2. O eu autobiográfico e o tempo ........................................................................ 49 4. O desenho .............................................................................................................. 53 4.1. Alguns conceitos fundamentais ....................................................................... 54 4.2. Processo criativo ou em busca de consciência................................................ 58 4.3. O desenho como impulso homeostático:uma abordagem pessoal para uma descoberta interior do desenho ............................................................................... 65 4.3.1. Desenho: génese e evolução ................................................................... 66 4.3.2. O desenho como linguagem ..................................................................... 74 4.3.3. Desenho e processo arquitectónico .......................................................... 76 4.4. Caso de estudo – academia de teatro: as memórias e o desenho................... 82 5. Conclusão ............................................................................................................... 95


As memórias e o desenho

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho é motivado por questões que parecem naturais para aqueles que, ao utilizarem quase todos os dias o desenho como ferramenta para projectar arquitectura, pretendem compreender a sua origem e os processos de execução no tempo pessoal que existe em cada um de nós. O desenho vê a sua génese de modo particular em cada um. A sua semente pessoal brota de forma diferente em cada pessoa. O desenho, assim como qualquer forma de exteriorização do nosso eu, tem uma marca de pessoalidade. Cada segundo decorrido é manipulável em nós e por nós. Acreditamos, assim, que a única maneira de os objectivos deste trabalho não se limitarem a uma superficialidade, que gostaríamos de evitar, será a estabelecer um olhar para dentro, onde talvez possamos reconhecer a maneira como o nosso «interior» se manifesta fisicamente. Como tal, entendemos que, para atingir o grau de profundidade pretendido com esta dissertação, o objecto de estudo terá de se centrar naquele que é o percurso pessoal do seu próprio autor. Uma clara vantagem aparenta ser potenciada com esta decisão: permitir, ao autor, um confronto entre o seu desenho físico e toda a dimensão subjectiva que, através do tempo, lhe atribui. Desta maneira, talvez seja possível, por um lado identificar quais os processos e características de carácter pessoal, e por outro, sugerir um denominador comum a todos aqueles que praticam o acto do desenho em arquitectura. O desenho é uma linguagem universal. Nunca existiu a necessidade de tradução de um desenho. Pode existir, isso talvez, um certo treino no modo particular de o olhar que nos permita ver um pouco mais do que aquilo que são as primeiras percepções. Sugerimos que alguma técnica seja também desenvolvida pelas inúmeras vezes que aquele que o pratica ergue um lápis. Sabe-se que, seja a primeira ou a última vez que alguém o faça, cada intenção assumida em folha de papel fala por si, consiga o seu autor comunicar a mensagem pretendida ou não. Assim, talvez possamos tomar como verdadeira a premissa de que cada desenho tem identidade própria, singular e independente, que é, também, de alguma maneira, um prolongamento de nós. Origem e identidade apontam de maneira mais ou menos inevitável para a memória. Nesse sentido, a memória surge como condição essencial de existência humana, como a conhecemos, e, consequentemente, do acto do desenho: a memória como

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aquilo que somos e aquilo que projectamos num futuro poder vir a ser. A memória como um passado e um porvir do desenho e assim, também, a memória como elemento integrador da história desse mesmo desenho. A memória no sentido de compreender o processo sob o qual nasce cada traço feito em folha de papel. Será, então, a memória o primeiro grande tópico de abordagem do trabalho. Por sua vez, para que possamos identificar as memórias que assaltam cada desenho, é preciso que as encontremos, que tenhamos um conhecimento da sua existência, que tenhamos consciência do espaço que estas ocupam. Este será, então, o segundo conceito essencial a explorar nesta dissertação: a consciência humana. A consciência como conhecimento que temos de nós próprios e de tudo aquilo que nos rodeia, daquilo que são as nossas acções, o que estas representam para o mundo e assim para nós; a consciência como veículo incontornável de experimentação espacial e arquitectónica; a consciência como tempo presente, e assim o ponto de charneira, entre aquilo que já foi e o que estará por vir: memória passada e memória futura. Este parece ser um percurso que potenciará uma resposta à questão que queremos alcançar. Que passos dá cada fragmento de memória em direcção a cada folha de papel? Somos, ou não, conscientes das memórias que nos assaltam em actos presentes, nomeadamente no desenho? Ou seja, a distância que as nossas memórias percorrem

até

ao

desenho

passam

inevitavelmente

por

um

processo

de

consciencialização? Que dimensão existe entre tomada de consciência e execução do desenho? Acreditamos que uma abordagem a estas questões traga um outro conhecimento do desenho no acto arquitectónico, ajudando a desvelar alguns dos mistérios que nos separam do seu acto, potenciando uma maior intimidade entre o desenho e aquele que o pratica. Estes parecem ser o grandes objectivos deste trabalho: (1) permitir ao autor, por meio de um olhar distanciado após cinco anos de curso de arquitectura, uma nova forma de encarar o seu percurso de desenho, (2) sugerir a futuros leitores que encontrem, também, um novo olhar sobre o seu desenho, mais consistente, mais claro sobre os seus processos, mais consciente. O alvo que se pretende atingir é, portanto, o acto do desenho em arquitectura e será neste que iremos concentrar as nossas atenções. Contudo, sempre que acreditarmos que isso possa ser potenciador de descobertas sugestivas, fugiremos a esta regra.

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Uma pesquisa sobre os processos do desenho em arquitectura nesta forma de abordagem, para que esta seja o mais rigorosa possível, terá de se fundamentar em áreas que estão um pouco fora dos nossos domínios, mas necessários porque permitem dar um suporte científico e, portanto, de rigor ao trabalho. Como sabemos, a memória, assim como a consciência, são matérias que não têm um suporte de estudo rigoroso em arquitectura. Como áreas que necessitam de uma introspecção elevada na sua análise, parece termos de tender para áreas como a neurologia, psicologia, entre outras. Estas áreas podem dar-nos luzes sobre os processos biológicos do cérebro, da mente, e do corpo, pois, como sabemos, são estes que desenham. Assim, como metodologia e no sentido de manter uma organização que tende a imporse sobre este trabalho, existirão dois capítulos de enquadramento. ‘A Memória’ e ‘A Consciência’, respectivamente. Por fim, abordaremos o desenho em capítulo final, no qual estabeleceremos a ponte de ligação relacionada com as nossas questões iniciais: ‘percursos da memória ao desenho’. Por sua vez, o capítulo da memória e da consciência serão o mais isolados possível, sendo, no capítulo do desenho, que fundiremos todas as matérias. Crê-se que, assim, a dissertação, não só se tornará mais facilmente estruturada por parte do autor como também, transmitirá uma maior clareza para os leitores. Ao longo de toda a dissertação, todos os itálicos existentes entre aspas curvas são dos autores citados. As palavras em itálico que não estão entre aspas curvas referemse a palavras estrangeiras e/ou a palavras/expressões dos autores enunciados. As palavras em sentido figurado estão contidas entre aspas angulares. A omissão das datas de nascimento e/ou de morte em alguns autores, deve-se à impossibilidade de as ter encontrado. Há que referir ainda que nos dois primeiros capítulos de enquadramento, na revisão literária sobre temas que referem determinadas funções cognitivas, não iremos especificar as zonas cerebrais onde elas ocorrem, pois compreende-se não ser esse o objecto/foco de estudo desta dissertação. Nesses casos limitar-nos-emos a referir que são de zonas diferentes.

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2. A MEMÓRIA “A faculdade de se recordar é também a condição de toda a actividade criadora.” (Kierkegaard, 2002, p.38)

2.1. DUAS TRADIÇÕES FILOSÓFICAS Dois filósofos gregos, Platão1 (cerca de 428-348 a.C.) e Aristóteles2, seu discípulo (384 – 322 a.C.), influenciaram profundamente todo o pensamento moderno. Estes divergiam quanto à sua visão de natureza da realidade. Platão defendia a teoria das formas dualísticas e considerava que a realidade reside nas formas abstractas que os objectos representam, e não nos objectos concretos, por exemplo cadeiras ou mesas, de que somos conscientes através dos nossos sentidos corporais. Platão defendia que essas formas existem numa dimensão atemporal de puro pensamento abstracto. Nesse sentido, a realidade de um objecto específico, por exemplo ‘mesa’, não é inerente ao objecto em si, mas às ideias abstractas e eternas que existem nas nossas mentes. De acordo com o pensamento platónico, os objectos que os nossos corpos percebem são apenas cópias transitórias e imperfeitas das verdadeiras e puras formas abstractas. De acordo com Platão, a verdade é alcançada por intermédio do nosso pensamento, e não pelos nossos sentidos. Em oposição a Platão, Aristóteles acreditava que a realidade se situa apenas no mundo concreto dos objectos que os nossos órgãos sensoriais captam, sendo, desse modo, as formas intelectuais de Platão, por exemplo a mesa, apenas derivações daqueles objectos concretos. Estas duas concepções do mundo e de como aceder ao conhecimento deram origem a duas grandes linhas de orientação metodológica, isto é, como conhecer? Nesse sentido, Aristóteles e Platão discordavam não só relativamente ao que era a verdade, mas, também, sobre como encontrá-la. Aristóteles era empirista, significando isto que acreditava que o conhecimento era adquirido por meio da experiência e da observação. Para Platão, contrariamente a Aristóteles, os métodos empíricos tinham 1

Platão foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia de Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. 2 Aristóteles foi um filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande.

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pouco mérito, dado que a realidade, que a verdadeira realidade, se situa nas formas abstractas e não nas cópias imperfeitas da realidade que podemos observar num mundo que é externo às nossas mentes. Platão sugeria assim uma abordagem racionalista (cujo significado em latim é razão ou pensamento). O racionalismo estava assim de acordo com a sua visão dualista, da natureza corpo/mente: o conhecimento é obtido pelo uso da mente, da razão, e pela reflexão sobre o mundo das ideias, e não pelo mundo material, objectivo e concreto. Platão e Aristóteles divergiam também nas suas crenças relativamente à origem das ideias. Platão defendia que as ideias são inatas, necessitando apenas de serem resgatadas dos esconderijos da mente. Contrariamente, como consequência lógica de todo o seu pensamento, Aristóteles acreditava que as ideias eram adquiridas com base na experiência. No século XVII, o filósofo racionalista francês René Descartes3 (1596-1650) seguiu Platão e não Aristóteles, considerando a introspecção e o método reflexivo como forma superior de chegar ao conhecimento e à verdade, comparativamente aos métodos empíricos da observação. Seguindo a tradição Aristotélica, e em contraponto com Descartes vários empiristas britânicos, entre os quais John Locke4 (1632-1704), partilhavam a visão Aristotélica e a sua preferência pela observação empírica. Para Locke, os seres Humanos nasceriam sem conhecimento, ficando célebre a sua concepção de tabula rasa5, cujo significado em latim é quadro em branco. Neste sentido, são a experiência e a vida que inscrevem em nós o conhecimento. Assim, para Locke, a chave para a compreensão da mente humana é o estudo da aprendizagem. Os empiristas britânicos acreditavam, portanto, na inexistência de ideias absolutamente inatas. O século seguinte trouxe o início do processo de resolução da relação dialéctica entre essas duas visões do conhecimento e do pensamento. Discutindo se o conhecimento

3

René Descartes foi um filósofo, físico e matemático francês. John Locke foi um filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, sendo considerado o principal representante do empirismo britânico. 5 O filósofo inglês, considerado o protagonista do empirismo, detalhou a teoria da Tabula rasa no seu livro, Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690). Para Locke, todas as pessoas nascem sem saber absolutamente nada, sem impressões nenhumas, sem qualquer tipo de conhecimento. Então, todo o processo do conhecer, do saber e do agir é aprendido através da experiência, por tentativa e erro. Por sua vez, esta teoria da tabula rasa é considerada também como a fundação de outra corrente da filosofia e psicologia, o behaviorismo clássico. (Blackburn, 1997, p.421) 4

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é inato ou activamente adquirido através da experiência, o filósofo alemão Immanuel Kant6 (1724-1804) afirmou que racionalismo e empirismo se complementam na busca da verdade (Sternberg, 1996, p.23 a 25). O paradigma cognitivista defende igualmente uma síntese das duas grandes linhas de orientação filosófica que acima referimos e que estão na génese de todo o pensamento ocidental. Os cognitivistas baseiam as suas observações empíricas em modelos teóricos e abstractos. Esses modelos são, por sua vez, constantemente confrontados com realidades de prova concretas e observáveis. Esta dialéctica entre a visão racionalista e empirista como forma de aceder ao conhecimento, pode ser ilustrada pela célebre e histórica descoberta da teoria da gravidade por Sir Isaac Newton7 (1643-1727): Newton não foi certamente o primeiro homem na história da humanidade na cabeça de quem caiu um objecto ou maçã. Acreditamos que Newton já tinha em si a ideia abstracta de que algo atraía os objectos para a terra, mas foi a experiência vivida que comprovou a sua teoria e lhe deu corpo. Real ou não, esta metáfora exemplifica a relação de diálogo entre ideia e objecto sensorialmente captado, entre racionalismo e empirismo.

2.2. O COGNITIVISMO A data usualmente referida para marcar o início da psicologia como ciência é 1879, quando Wilhelm Wundt8 (1832-1920) estabeleceu o primeiro laboratório psicológico em Leipzig, na Alemanha. O método base era a introspecção e o pressuposto em que assentava o método era que os trabalhos da mente deveriam ser abertos à observação. Contrariamente a esta tradição germânica, a linha americana era determinada pelas doutrinas do pragmatismo, isto é, da acção e dos comportamentos visíveis, e do funcionalismo, ou seja, de como é que as coisas funcionam, porquê e para quê. Foi-se tornando claro que a introspecção não fornecia uma janela clara para os trabalhos da mente. Estes dois factores - a irrelevância do método introspectivo e

6

Immanuel Kant foi um filósofo prussiano, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, indiscutivelmente um dos pensadores mais influentes. 7 Sir Isaac Newton foi um cientista inglês, mais reconhecido como físico e matemático, embora tenha sido também astrónomo, alquimista, filósofo natural e teólogo. 8 Wilhelm Maximilian Wundt foi um médico, filósofo e psicólogo alemão. É considerado um dos fundadores da moderna psicologia experimental junto com Ernst Heinrich Weber (1795-1878) e Gustav Theodor Fechner (1801-1889).

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as suas aparentes contradições - deram origem à corrente behaviorista9 que retirava de todo o vocabulário explicativo do comportamento humano os termos subjectivos. Talvez a contribuição mais importante do behaviorismo tenha sido um conjunto de técnicas sofisticadas e rigorosas no campo da experimentação que viriam a ser utilizadas pela psicologia cognitiva (Sternberg, 1996, p.26 a 29). Os cognitivistas consideram que o facto de o método introspectivo não ser suficiente para desenvolver uma teoria da estrutura mental interna e do seu processo significa que outros métodos devem ser utilizados. Os defensores da introspecção detinham uma crença ingénua no poder da auto-observação. Ao contrário, os behavioristas estavam tão receosos das falácias da subjectividade que se recusavam a pensar sobre os seus próprios processos mentais. Numa entrevista à revista LER, de Novembro de 2010, António Damásio10 (nascido a 1944) «resolve» o problema: Para começar, o nosso eu - que é a nossa única oportunidade de saber aquilo que somos – pode muitas vezes enganar-nos. Ou pode pelo menos velar-nos a visão real. Por isso [Z] há uma situação quase paradoxal: por um lado, o eu, apesar de poder ser enganador, é a única oportunidade que temos [Z] de passagem para a observação [Z] e para a construção de teoria [Z]. De modo que diria que não há que ter grandes preocupações, desde que se perceba que aquilo que o eu nos diz, por exemplo na introspecção, pode não ser correcto. Desde que se perceba que podemos ter intuições enganadoras através das análises subjectivas mas que depois temos de as corrigir gradualmente com aquilo que nos vem da ciência [Z] (Damásio, 2010, p.32 e 33).

A abordagem do processamento de informação tornou-se dominante no paradigma cognitivista que utiliza na sua origem os sistemas cibernéticos como sistemas complexos de processamento de informação. Não podemos deixar de voltar a António Damásio quando afirma, na mesma entrevista: Passámos por um período excessivamente racionalista e cognitivista. Um período em que praticamente tudo o que contava no comportamento humano eram imagens, ideias. E em que havia uma tentativa de assemelhar o comportamento humano ao comportamento de computadores. O que me parece uma visão completamente errada. [Z] Apesar de ter um ponto de vista materialista [Z] tenho uma enorme rejeição pela 9

Behaviorismo significa psicologia do comportamento e representa simultaneamente uma teoria e um movimento cuja importância foi determinante no desenvolvimento da psicologia científica (Thines e Lempereur, 1984, p.116). 10 António Rosa Damásio é um médico neurologista, neurocientista português que trabalha no estudo do cérebro e das emoções humanas. Actualmente é professor de Neurociência na University of Southern California.

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redução do comportamento e do espírito humanos a um programa de software que uma pessoa possa implementar num hardware de um computador. A razão porque isso não é verdade é exactamente porque estamos implantados dentro de um corpo que tem a possibilidade de emoção e de sentimento (Damásio, 2010, p. 35).

2.3. MEMÓRIA. ESTRUTURA E PROCESSOS Começaremos por abordar a função memória do ponto de vista dos psicólogos cognitivistas para, de seguida, alargar os horizontes relativamente a dois aspectos que nos parecem da maior relevância para esta nossa dissertação: a recordação e a (re)criação de novos objectos. De acordo com Michael W. Eysenck11 (nascido a 1944) e Mark T. Keane12 (nascido a 1961), qualquer estudo adequado da memória humana deverá considerar a estrutura do sistema da memória e também os processos que funcionam dentro dessa estrutura. Quando se referem a estrutura, Keane e Eysenck falam do sistema segundo o qual a memória está organizada; quando se referem ao processo são analisadas as actividades que ocorrem dentro desse sistema. Além destas, existem, também, importantes

distinções entre

codificação,

armazenamento

e

recuperação.

A

codificação diz respeito aos eventos que ocorrem durante a apresentação da informação a ser lembrada. Assim, são os processos de codificação que determinam o que será armazenado dentro do sistema, determinando, por sua vez, de forma subsequente, que e de que forma as informações poderão ser recuperadas posteriormente (1994, p.118). Apesar da importância atribuída às distinções entre estrutura (mais estática) e processo (mais dinâmico) no sentido de uma maior inteligibilidade da função memória, os autores referem a impossibilidade de se ter uma estrutura de memória sem um processo ou uma recuperação, sem uma codificação e um armazenamento anteriores: “É apenas quando um processo age sobre as estrutura essencialmente passivas do sistema de memória que o sistema se torne activo e de alguma utilidade” (Eysenck e Keane, 1994, p.118). Entendemos que esse processo pode ter uma origem interna ou ser resultado de um estímulo exterior, isto é, esse processo pode ter origem numa recuperação ou recordação de um elemento mnésico alojado dentro de nós ou, pelo

11

Michael William Eysenck é um psicólogo Britânico e lecciona actualmente no departamento de psicologia da Royal holloway University. 12 Mark T. Keane é um cientista cognitivo autor de vários livros sobre a cognição humana.

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contrário, resultar de um estímulo externo que espoleta um novo pensamento ou reflexão. Relativamente às funções armazenagem e recuperação, Endel Tulving13 (nascido a 1927) refere que apenas pode ser recuperado aquilo que foi armazenado, e que a forma de recuperação depende de um prévio armazenamento (Eysenck e Keane, 1994, p.118). Utilizando uma metáfora espacial, as memórias são entendidas como objectos armazenados em localizações específicas dentro da mente, e o processo de recuperação enquadra uma busca na mente para que possam ser encontradas aquelas memórias específicas. Alguns pesquisadores de memória, como são exemplo Richard Atkinson14 (nascido a 1929) e Richard Shiffrin15 em 1968, referem três tipos de armazenadores: (1) os armazenadores sensoriais são específicos da modalidade sensorial, como, por exemplo a visão, audição, retendo a informação por um período de tempo muito breve; (2) um armazenador com capacidade bastante limitada; (3) um armazenador que pode reter informação ao longo de grandes períodos de tempo e com uma capacidade essencialmente ilimitada. As informações recebidas pelos armazenadores sensoriais são, como se disse, armazenadas por um breve período de tempo nesses armazenadores sendo depois parte delas transferida para um dos outros armazenadores. Atkinson e Shiffrin sugerem que o armazenamento de informações a longo prazo depende do treino e da intensidade do traço de memória. Parece óbvio que este modelo tem pontos de sobreposição entre a memória e a atenção. Por razões que se prendem com o objectivo deste trabalho, vamos focar-nos na função memória (Anderson, 2002, p.172). Sobre os armazenadores sensoriais, sabemos que são estimulados por uma enorme quantidade de informação ao longo do dia, sem que recebam qualquer atenção. Com base em experiências feitas, somos levados a acreditar que na maior parte das vezes estas percepções persistem por algum tempo após o fim da estimulação, facilitando a 13

Endel Tulving é um psicólogo experimental e neurocientista cognitivo Estónio. O seu pioneirismo em pesquisas sobre a memória humana influenciou gerações de psicólogos cientistas, neurocientistas e clínicos. 14 Richard Chatham Atkinson é um professor de psicologia e administrador académico Americano. É expresidente e regente da University of California e ex-chanceler da University of California San Diego. 15 Richard Shiffrin é professor de ciências cognitivas no Department of Psychological and Brain Sciences na Indiana University.

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tarefa de extracção dos aspectos mais importantes dessa estimulação para uma análise mais detalhada. George Sperling16 (nascido a 1934) demonstrou, em 1960, a existência de modalidades icónicas de armazenamento, sendo hoje aceite que a informação no interior do «armazém de ícones» se degrada aproximadamente em 0,5 segundos. Algumas pesquisas fizeram divergir a opinião relativamente à criação do ícone no fim do estímulo visual, ou antes deste. Max Coltheart17, em 1983, provou que os mecanismos responsáveis pela percepção visual agem sobre os ícones e não sobre o meio ambiente visual em si, convertendo dessa forma o armazém de ícones numa parte integral e activa da percepção visual, isto é, face a um estímulo visual, verifica-se um ajustamento entre o modelo interno e o objecto externo, que resulta de uma dinâmica entre a subjectividade e a objectividade (Eysenck e Keane, 1994, p.122). A este processo dinâmico que ocorre neste espaço entre sujeito observador e objecto observado, Donald Winnicott18 (1896-1971) chama fenómeno transicional (Winnicott, 2005). A distinção entre os armazenadores de curto e de longo prazo assenta no pressuposto teórico de William James19 (1842-1910) da existência de uma memória primária e de uma secundária. A primária refere-se aos conteúdos informativos que permanecem na consciência após ter sido percebida, compondo, assim, uma parte do presente psicológico. A memória secundária contém informações sobre acontecimentos que, tendo já saído da consciência, fazem assim parte do passado psicológico. Contrariamente à memória de curto prazo, que tem uma capacidade limitada, para o armazenador de longo prazo não se conhecem limites. A demonstração clara da enorme capacidade de armazenamento da memória de longo prazo é o facto de os indivíduos que têm uma maior quantidade de informação armazenada na memória de longo prazo terem uma capacidade ainda maior de apreenderam novos conteúdos que se relacionam com os conteúdos temáticos daqueles. Assim, o que se pode afirmar é que é a atribuição de significado que facilita a codificação e a recolha de informação,

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George Sperling é um psicólogo cognitivo norte-americano. É professor das cadeiras de Ciência Cognitiva e Neurobiologia e Comportamento na University of California. 17 Max Coltheart é professor de psicologia cognitiva na faculdade de ciências humanas Macquaire University, em Sydney, na Austrália. 18 Donald Woods Winnicott foi um pediatra e psicanalista inglês. 19 Willliam James foi um pioneiro psicólogo e filósofo norte-americano, com formação em medicina.

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sendo esta tanto mais forte quanto mais informação o sujeito tem relativamente a determinados temas ou matérias. Desenvolvimentos desta teoria indicam, não a existência de três armazenadores, mas sim, de múltiplos armazenadores. Experiências realizadas demonstraram que o esquecimento de elementos sensoriais recolhidos pelo sistema auditivo não era necessariamente acompanhado no mesmo sujeito pelo esquecimento de elementos sensoriais recolhidos pelo sistema visual. Esta constatação veio, mais uma vez, reforçar a importância do tipo e da forma do conteúdo como um elemento determinante para a sua retenção na memória, não apenas dependendo dos captadores sensoriais que lhe estão na origem, mas, também, no sentido e significado que lhe são atribuídos, em função de um conjunto de elementos mnésicos que já estão em nós (Eysenck e Keane, 1994, p.123 a 126). Esta perspectiva mais dinâmica dos processos de memória tem o seu exemplo clássico na experiência de Philip Hyde e William Jenkins - em 1973 -, em que ficou demonstrado que as funções de memória tinham diferentes níveis de resultado dependendo dos conteúdos que eram solicitados aos sujeitos, para serem recuperados, serem ou não relacionados entre si. Factores como o grau de agradabilidade das palavras, a frequência de utilização das palavras na linguagem corrente, a agregação de palavras referentes a um mesmo tema, revelaram-se determinantes para uma maior ou menor capacidade de recuperar e enumerar conteúdos recebidos anteriormente (Eysenck e Keane, 1994, p.132 e 133). Por exemplo, se forem enumerados a um número de pessoas as palavras ‘planta’, ‘corte’, ‘alçado’, etc, e se for pedido para que elas sejam ditas um minuto depois é altamente previsível que um estudante de Arquitectura as enumere mais facilmente do que um estudante de Direito. Estes conteúdos informativos têm uma relação evidente para um estudante de arquitectura que os lê como um todo informativo e significante. Nesta mesma linha de orientação teórica, em que a memória é perspectivada, não como um armazém passivo de recolha de informação, mas como uma função activa e interveniente, Kenneth Craik20 (1914-1945) e Jeffrey Lockart em 1972 referiram os processos de atenção e percepção como intervenientes no momento da recepção do estímulo e da aprendizagem. A ideia de profundidade proposta por estes investigadores é definida como estando em relação com a utilidade do que é extraído 20

Kenneth James Williams Craik foi um filósofo e psicólogo que estudou filosofia na University of Edinburgh, na Escócia e recebeu o seu doutoramento pela Cambridge University em 1940.

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do estímulo e não ao número de vezes que ele é repetido: “A profundidade define-se em relação à utilidade do que foi extraído do estímulo e não em relação ao número de análises em cima deste estímulo” (Eysenck e Keane, 1994, p.134). Mais uma vez, é relevado

uma

dinâmica

gestáltica

e

interactiva

entre

conteúdo/estimulo

e

receptor/significado. Uma questão relevante para o nosso estudo é o grau de permanência da memória: estarão as informações esquecidas armazenadas mas inacessíveis ou terão sido perdidas do sistema da memória? Muitos psicólogos eminentes, de Sigmund Freud21 (1856-1939) a Endel Tulving, têm favorecido a hipótese de um armazenamento permanente, tendo sido conduzida uma pesquisa de opinião por Elizabeth Loftus22 (nascida a 1944), em 1980, em que foi calculado que 84% de psicólogos concordavam com aquela declaração. Vários estudos têm procurado resposta para esta questão, por exemplo através da estimulação neuronal, recriando um trilho de conexões e, assim, recuperando informações esquecidas. Nestas experiências, as dúvidas que persistem são se as memórias foram recuperadas, ou reconstruídos eventos através da recriação de imagens (Eysenck e Keane, 1994, p.139).

2.4. RECONHECIMENTO E RECORDAÇÃO: IDENTIFICAR OU CRIAR? A psicologia experimental tende a defender uma maior facilidade de trazer ao presente acontecimentos ou experiências passados por meio de reconhecimento do que por meio de recordação. Entende-se por recordação um processo de busca de informação seguido de um processo de decisão que reconhece essa informação como adequada à situação em causa. O reconhecimento envolve apenas o segundo destes dois processos, isto é, a informação está disponível e é apenas confrontada com os conteúdos pretendidos. Muitas tentativas foram feitas no sentido de justificar esta maior simplicidade de ‘reconhecer’ em relação a ‘recordar’. Uma das teorias considerada de maior relevância

21

Sigismund Schlomo Freud, mais conhecido como Sigmund Freud, foi um médico neurologista judeuaustríaco, fundador da psicanálise. 22 Elizabeth F. Loftus é uma psicóloga norte-americana especialista em memória humana.

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é a teoria de dois processos de Howard Gardner23 (nascido a 1943). Desta existem várias versões. O que parece existir de comum em todas elas é que, no acto de recordar, existem dois passos referentes ao processo de procura e recuperação, ao qual se segue um modo de decisão, ou reconhecimento, apoiado na adequação da informação readquirida. O reconhecimento, por sua vez, apenas tem de executar o segundo destes dois processos (Eysenck e Keane, 1994, p.141). Concluímos, assim, que a facilidade de reconhecimento se sobrepõe à de recordação, pois o grau de falibilidade envolve apenas um estágio em vez de dois. Uma abordagem teórica que se afasta consideravelmente da teoria de dois processos foi apresentada por Endel Tulving por volta de 1982/83. Este considera importantes as diferenças entre recordar e reconhecer adicionando a relevância do factor contexto. O princípio de especificidade de codificação defende que uma memória será tanto mais fidedigna quanto maior for a aproximação entre a informação processada e a informação disponível no momento de recuperação. Pelas palavras de Tulving: Um item a ser lembrado (TBR) é codificado em relação ao contexto em que é estudado, produzindo um traço de memória único que incorpora informação tanto do alvo quanto do contexto. Para que um item TBR seja recuperado, a pista deve ser um par adequado ao traço do item no contexto (Eysenck e Keane, 1994, p.143).

Fundamentalmente, se a quantidade de sobreposição informacional, entre a informação contida no traço de memória e no meio ambiente de recuperação, é essencial para a recordação e para o reconhecimento, é necessária uma quantidade significativamente maior de sobreposição informacional para se obter uma recordação eficaz do que para se obter um reconhecimento bem-sucedido. A explicação para que isto aconteça é que a recordação envolve identificar um evento anterior, enquanto o reconhecimento envolve apenas uma decisão de afinidade. Abordagens posteriores (Gregory Jones, em 1982) atribuem um grau de complexidade maior ao processo de recordação considerando que a mesma pode ocorrer de duas formas distintas: a recordação directa, em que o estímulo permite um acesso directo à informação a ser lembrada, e a recordação indirecta, em que o estímulo conduz à

23

Howard Gardner é um psicólogo cognitivo e educacional americano, ligado à Harvard University e conhecido em especial pela sua teoria das inteligências múltiplas. É professor de Cognição e Educação na Harvard University, professor adjunto de neurologia na Boston University.

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recordação através da realização de inferências associativas e pela geração das possíveis respostas. Alguns autores (por exemplo Alan Baddeley) relevam a importância do contexto vivido como ponte entre o momento que acompanhou a origem da memória e o momento da sua recordação. Esta ideia de contexto muito associada à gestalt conduz-nos à ideia da criação de imagens mnésicas em contextos espaciais (semânticos ou visuais) mais alargados (Eysenck e Keane, 1994, p.144 a 146). Que «arquitectura» vem preencher este vazio delineado entre a «memória pura» e a recordação? Aparentemente, existe uma inevitabilidade de alguns componentes mnésicos se alterarem com o passar do tempo sendo, para uma maior permanência destes na nossa memória, não só importante o número de vezes que repetimos uma experiência mas, também, o grau de relevância que lhe atribuímos. É esta dinâmica entre permanência, ausência, reconfiguração que parece criar um espaço de reformulação e de recriação do passado e das experiências vividas. É neste interminável diálogo, entre a busca da semente original da «memória pura» e a descoberta da recordação construída, que se cria um espaço de (re)criação e de (re)formulação de uma imagem ou de uma narrativa. Em 1844, Søren Kierkegaard24 (1813 - 1855) escrevia: Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira alguma idênticos. [Z] A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: [Z] A memória pertence ao imediato e é socorrida pelo imediato, enquanto a recordação só o é pela reflexão (Kierkegaard, 2002, p.32 a 36).

O filósofo dinamarquês antecipou um campo de diálogo intrasubjectivo e criativo que se opõe a uma certa tendência mecanicista, ou, quase diríamos, computacional ou cibernética, em que a tradição cognitivista se alicerçou nos seus primórdios. Podemos então afirmar que somos selectivos em relação às memórias que queremos recordar. É então natural que surja a questão: a que critérios obedece esta selecção? Existe um provérbio popular português que diz. Quem conta um conto acrescenta um ponto. Se nos perguntarmos: para onde se direcciona esse ponto? Kierkegaard sugere: “A recordação é efectivamente idealidade, mas, como tal, implica uma responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente ao ideal” (2002, 24

Søren Aabye Kierkegaard foi um filósofo e teólogo dinamarquês.

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p.33). Nós orientamos o preenchimento destes vazios incontornavelmente para nós próprios, no sentido para onde a palavra idealidade aponta, para aquilo que só existe na ideia e que reúne toda a perfeição imaginável. É criação absoluta da nossa mente, que, com o decorrer do tempo, se tornará realidade. Daí a sua responsabilidade, responsabilidade de criação de uma verdade. “Por isso é que recordar é também uma arte” (Kierkegaard, 2002, p.36). O tempo, por sua vez, será o gestor de todo este processo. O seu decorrer será modelador do acto de recordar. A sua passagem, em sinergia connosco, trará novas imagens,

redimensionando-as,

transformando-as.

“[Z][M]emória

na mocidade,

recordação na velhice” (Kierkegaard, 2002, p.32).

2.5. MEMÓRIA E ESPAÇO IMAGÉTICO Imagética, ou imaginação mental, é definida por Robert Sternberg25 (nascido a 1949) como “[Z] a representação mental das coisas (objectos, eventos, ambientes, etc.) que presentemente não estão sendo percebidas pelos órgãos sensoriais” (Sternberg, 1996, p.153). Esta representação de objectos ausentes remete-nos, não só para a ideia de memória recordada ou reconhecida, mas, também, para a possibilidade de serem criadas imagens mentais de acontecimentos e fenómenos em espaços não vividos mas construídos imagéticamente. Imaginemos uma subida aos Himalaias. Independentemente de termos lá estado e vivido essa experiência, podemos recuperar memórias parciais (por exemplo de fotografias ou filmes observados), anexar memórias de nós próprios projectando-nos nessa possível experiência criando, assim, uma memória futura. Neste sentido, o espaço imagético é simultaneamente um registo de experiências vividas e de memórias (ou imagens) futuras, articulando categorias de memórias que resultam das nossas vivências, num reordenamento desses elementos (re)criando novos imaginários. A imaginação pode envolver representações mentais nas diversas modalidades sensoriais (paladar, audição, olfacto, etcZ). Contudo, a maiorias das pesquisas sobre imagética foca a imaginação visual provavelmente pelo facto de essa ser a forma da qual temos mais consciência. De facto, Stephen Kosslyn26 e colaboradores solicitaram, 25

Robert J. Sternberg é um psicólogo e psicometrista norte-americano, deão de Artes e Ciências da Tufts University. Foi professor de psicologia na Yale University e presidente da American Psychological Association. 26 Stephan Kosslyn é um psicólogo americano que se especializou em psicologia cognitiva e em neurociências.

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numa experiência paradigmática (1990), aos seus alunos que mantivessem um diário de suas imagens mentais, tendo estes relatado muito mais imagens visuais do que auditivas, olfactivas, tácteis ou gustativas (Sternberg, 1996, p.154). De acordo com Damásio “ [a] característica mais distinta dos cérebros como aquele de que dispomos é a extraordinária capacidade de criar mapas” (2010, p.89), sendo esse mapeamento fundamental para o elevado grau de sofisticação com que nos autogerimos. Ainda de acordo com o mesmo autor “[Z] mapeamento e gestão da vida andam de mãos dadas [Z]” (2010, p.89). Esta actividade cerebral de criar mapas tem como função a auto-informação permitindo que esses conteúdos possam ser usados de forma mais ou menos conscientes na modulação do comportamento. A produção de mapas está intrinsecamente ligada à produção de imagens, sendo estas construídas através dos processos de interacção que estabelecemos com objectos, sejam eles uma pessoa, um edifício, uma rua, um local ou uma máquina. Esta ideia de interacção é fundamental porque nos recorda que na produção de mapas é essencial compreender essa produção num contexto de acção, isto é, os mapas e imagens que internamente construímos resultam de movimentos e de acções que fazem parte de um ciclo infindável, aquilo a que Rodolfo Llinás27 (nascido a 1934) denominou como “[Z] movimento organizado [Z]” (Damásio, 2010, p.90) da mente. Conforme vimos anteriormente, as recordações remetem para acontecimentos que são invocados e que podem ter origem na (re)apresentação de qualquer das partes que a compõem, isto é, o mais subtil fragmento de uma recordação é capaz de desencadear os mais variados elementos do contexto original. Outro factor determinante na função recordação é, ainda de acordo com Damásio, o grau de relevância emocional atribuído ao acontecimento a ser recordado (2010, p.168). A essa hierarquia emocional podemos atribuir duas dimensões: uma primeira em que, desse registo multimédia total que inclui imagens, sons, odores, sabores, etc, codificamos mais fortemente alguns desses elementos mnésicos; uma segunda que faz emergir na nossa história de vida acontecimentos que são os mais significativamente relembrados.

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Rodolfo R. Llinás é um neurocientista columbiano. É professor de neurociências na NYU School of Medicine, nos Estados-unidos, país onde reside actualmente.

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Damásio introduz à ideia de recordação e de memória as dimensões simultaneamente dinâmicas e temporais quando afirma: Desde que uma cena tenha algum valor, desde que na altura houvesse suficiente emoção, o cérebro apreende imagens [Z] e irá recuperá-los [os elementos que compõem essas imagens] na altura própria. Com o tempo, a recordação poderá desvanecer-se. Com o tempo, e com a imaginação de um fabulista, o material será embelezado, baralhado e voltará a ser ordenado num romance ou num argumento cinematográfico (Damásio, 2010, p.168).

É notável constatar a contemporaneidade do pensamento metafísico de Kierkegaard que antecedeu esta ideia cerca de 150 anos sem as condições tecnológicas que dispomos nos dias de hoje. A imagem metafórica geral da memória como um grande armazém prolonga-se em Damásio quando afirma “O cérebro cria registos [armazenamento] – da sua aparência e da forma como soam e agem [codificação] – e guarda-os para posterior recordação [recuperação] [Z]” (2010, p.170). Conforme referimos, aquilo que Damásio introduz nesta metáfora que ilustra o modelo da memória é dinâmica e interacção. “Ao invés de criar o registo da estrutura de uma entidade, o cérebro na realidade regista as múltiplas consequências das interacções do organismo com a entidade [Z]” (Damásio, 2010, p.170). Assim, aquilo que é normalmente referido como sendo a memória de um objecto é a multiplicidade de memórias sequenciais que resulta da diversidade de actividades motoras e sensoriais que se relacionam com aquela dinâmica interactiva entre o organismo e o objecto num determinado período de tempo. É por isso, por esse carácter diacrónico e dinâmico das funções de memória e recordação, que elas (as memórias) são regidas pelo conhecimento anterior de objectos ou situações comparáveis àquelas que estão, num dado momento, a ser vividas por nós. Os preconceitos, stricto sensu, isto é, as ideias que trazemos no nosso pensamento, afectam as nossas recordações, tendo estas em conta, naturalmente, as nossas crenças e a nossa história passada. É neste sentido que Damásio afirma que “[a] memória inteiramente fidedigna é um mito [Z]” (2010, p.171), indo mais longe ao afirmar que, quando retemos uma memória que tem a génese naquilo que aconteceu numa dada interacção, esta inclui, não apenas o nosso próprio passado, mas, também, o passado da nossa espécie biológica e da nossa cultura.

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Terá sido esse passado biológico que criou um conjunto de disposições (ainda não mapas) que equipava os cérebros mais arcaicos de forma a que esses organismos tivessem a capacidade de se adaptar em determinados ambientes. Arriscamos a sugerir que essas configurações genéricas, a que Damásio chama disposições, são o sucedâneo evolutivo das ideias platónicas das quais falamos no capítulo 1.1 e a que Carl Gustav Jung28 (1875-1961) se referiu como arquétipos29. O que Damásio afirma é que, do ponto de vista evolutivo, as disposições precedem os mapas não tendo no entanto sido substituídos por estes. Pelo contrário, “[Z] uniu-os e fê-los trabalhar em sinergia” (2010, p.173).

2.6. A MEMÓRIA EM FUNCIONAMENTO Podemos então considerar que existe uma divisão de trabalho entre dois subsistemas cerebrais de memória: um encarregado de mapas/imagens e outro encarregado de disposições. Do ponto de vista evolutivo, eles situam-se respectivamente em zonas cerebrais mais recentes ou mais arcaicas. Como vimos, Damásio propõe um modelo de funcionamento da memória que se baseia na dinâmica estabelecida entre dois grandes espaços: imagético e disposicional. É no espaço imagético que ocorrem imagens explícitas recebidas dos naipes sensoriais. Estas incluem, não apenas as que se tornam conscientes, mas também aquelas que se mantêm inconscientes. Estas funções ocorrem em vastas zonas cerebrais que o autor denomina como cérebro mapeador. O espaço disposicional é o lugar onde está armazenada a base de conhecimento bem como os dispositivos que o permitem reconstruir durante a recordação. São os dispositivos que alimentam as imagens do espaço imagético nos processo de imaginação e de raciocínio, tendo igualmente como função gerar movimento. Este espaço situa-se em lugares cerebrais que não estão ocupados pelo espaço imagético. Ainda de acordo com o modelo proposto por Damásio, pode afirmar-se que, enquanto os conteúdos expressos no espaço imagético são explícitos, os conteúdos exibidos no espaço disposicional são implícitos, isto é, de acordo com o mesmo autor, os últimos 28

Carl Gustav Jung foi um psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica. “Em metafísica, tipo supremo, modelo ideal das coisas sensíveis (Ideias de Platão), ou modelos divinos segundo os quais são criados os seres e as coisas [Z]. Na psicologia filosófica, os arquétipos designam ideias ou noções construídas pelo espírito para explicar dados imediatamente percebidos pelos sentidos. [Z] Jung [Z] fez dele um conceito fundamental [em que] os arquétipos interpretam-se como figuras dinâmicas de estrutura relativamente geral e [que] estão presentes no [Z] colectivo” (Thines e Lempereur, 1984, 86 e 87). 29

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são sempre inconscientes, contrariamente aos primeiros que são passíveis de serem tornados conscientes. Assim, os conteúdos implícitos são funções conversoras de informação que transformam os conteúdos em verdadeiras imagens mentais. De forma a tornar mais inteligível esta ideia, e sem querer reduzi-la excessivamente a um modelo computacional, o espaço disposicional são os programas, isto é, um conjunto de regras codificadas e processos capazes de operar informação. O espaço imagético é o produto final, a imagem mental. Em suma, os conteúdos explícitos (espaço imagético) são o produto final que resulta da estimulação sensorial internamente processada por um conjunto de codificadores, conversores e registos arcaicos (espaço disposicional) (Damásio, 2010, p.182 e 183). A nossa memória das coisas, das propriedades das coisas, de pessoas e locais, de acontecimentos e relações, de competências, e de processos de gestão vital – em resumo, toda a nossa memória, herdada da evolução e disponível à nascença ou adquirida através de uma aprendizagem ulterior – existe gravada no nosso cérebro mas de uma forma disposicional, a espera de se tornar imagem ou acção explícita. O nosso conhecimento base é implícito, velado e inconsciente (Damásio, 2010, p.184).

No limite acreditamos poder estabelecer uma analogia entre espaço disposicional e gramática da memória. O processo de imaginação - para o qual o termo imagética remete - consiste na recordação e subsequente manipulação de imagens: reordenamentos, reduções, ampliações ou cortes. Quanto usamos a imaginação, operamos com retratos (Damásio, 2010, p.190) ou a imaginação decorre e é consequência de descrições semelhantes às da linguagem? A proposta de Damásio para explicar a memória em funcionamento é a de que operamos com imagens, e que, quando percepcionamos objectos ou acontecimentos ou quando estes são recordados a partir da memória, as regiões cerebrais que são activadas são as mesmas, sendo depois as imagens reconstruídas durante o processo de recordação. Estas “[...] são aproximações e não réplicas, tentativas de regressar a uma realidade passada e, por isso mesmo, não tão nítidas ou precisas” (Damásio, 2010, p.190). No entanto, ainda assim, quer na percepção, quer na recordação, há uma manifesta correspondência entre as propriedades do mapa e o objecto.

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3. A CONSCIÊNCIA “Esta consciência estabelece uma espécie de ponte entre o mundo interior e o mundo exterior que, sem ela, ficariam separados por um abismo sem fundo; se ela desaparecesse, efectivamente, do primeiro restariam apenas objectos, simples aparências, completamente independentes de nós em todos os sentidos; e no segundo, apenas vontades estéreis, que permaneceriam em nós no estado de simples sentimentos. ” (Schopenhauer, 2002, p.24 e 25)

3.1. A MENTE António Damásio sugere a mente como uma consequência espectacular do incessante mapeamento e dinamismo cerebrais. Conforme já foi sugerido, as imagens são padrões mapeados que nós, seres conscientes, apreendemos como odores, texturas, sabores. Esses mapas instantâneos, que ocupam o nosso cérebro e que nos permitem cartografar a nossa interioridade e o mundo que nos rodeia, convertem-se em imagens e, depois, através das suas acções dinâmicas, em mente (2010, p.97). Quando falamos do dinamismo das imagens como a fonte que alimenta a mente, referimo-nos à capacidade de manipular aquelas imagens utilizando-as para representar relações espaciais e temporais entre objectos. É por isso, graças à nossa imaginação criadora, à capacidade que temos de montar e de desmontar sequências de imagens, que representamos os acontecimentos e os objectos, ou ainda abstracções, que são construídas em cima de novas imagens que ultrapassam aquelas que se baseiam directamente no corpo. De acordo com António Damásio: Podemos também fragmentar as imagens de base do corpo e recombinar os fragmentos, ou representar cada objecto e acontecimento com um símbolo inventado, tal como um número ou uma palavra, e tais símbolos podem ser combinados em equações ou frases. E é evidente que esses símbolos podem representar entidades e acontecimentos abstractos tal como representam entidades e acontecimentos concretos (2003, p.230).

É importante referir que estas ideias construtoras da mente e as representações cerebrais do corpo não são inscritas diariamente num quadro em branco, numa tabula

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rasa, como John Locke30 pretendia, mas, antes, são constituintes de um enorme reportório de sabedoria de que o cérebro está animado e que dá instruções relativamente à forma como o organismo e a vida devem ser geridas, como o organismo deve responder a determinados acontecimentos exteriores. Isto significa que o cérebro traz em si uma sabedoria inata que antecede e se antecipa aos sinais do corpo. Podemos então referir a existência de uma comunicação bidireccional: a mente existe porque existe um corpo que lhe fornece os seus conteúdos mais primários. No outro sentido, a mente desempenha variadíssimas tarefas que são de enorme utilidade para o corpo, como sejam o controlo da execução de respostas automáticas que visam atingir um determinado fim, ou, então, o planeamento ou a antecipação de novas respostas. No seu livro Ao Encontro de Espinosa, Damásio contesta o dualismo cartesiano (mente e corpo como duas entidades independentes) e defende a coexistência destas duas entidades como parte de uma unidade inseparável. Numa reinterpretação do pensamento de Bento de Espinosa31 (1632- 1677), que invocava mente e corpo como entidades que emergiam de uma mesma substância em perfeita equivalência, Damásio sugere que “[Z] Espinosa teria tido a intuição da organização anatómica e funcional que o corpo deve assumir para que a mente possa emergir com ele ou, mais precisamente, dentro dele” (2003, p.236). Em síntese, podemos então afirmar que os mapas cerebrais são a base das imagens mentais e que o cérebro, essa entidade criadora de mapas, tem o poder de introduzir o corpo como conteúdo no processo mental. É, por isso, graças ao cérebro, que o corpo se torna um tema natural da mente. Refira-se que sendo o corpo a entidade mapeada ele está em permanente contacto com a entidade que realiza o mapa, isto é, o cérebro. Corpo e cérebro, entidade mapeadora e entidade mapeada encontram-se, desde o nascimento até a morte do organismo, ligados um ao outro.32 Esta agregação representa uma situação singular: as imagens que o cérebro mapeia do corpo influenciam o próprio corpo ao contrário dos objectos e acontecimentos externos ao 30

Ver as notas de pé de página números 4 e 5 no capítulo de ‘A Memória’. Bento de Espinosa, nascido em Amestardão, foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz (1646-1716). 32 Terá sido na percepção desta ideia da inseparabilidade do corpo com a mente que Juvenal (poeta romano do fim do primeiro século e começo do segundo) afirmou na sua obra As Sátiras, a célebre frase “Mens Sana Corpore Sano”. No contexto, a frase é parte da resposta do autor à questão sobre o que as pessoas deveriam desejar na vida. 31

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corpo que são mapeados, mas sobre os quais não é exercida qualquer influência directa. Exemplifiquemos: quando o cérebro mapeia o meu corpo e, em particular, o meu braço a desenhar, esse mapeamento convertido em acção e movimento mobiliza o meu braço de acordo com o mapa por mim criado. Mas se eu observar um lápis pousado sobre uma mesa o mapeamento que eu faço do objecto não exerce qualquer influência directa sobre ele no sentido de lhe associar o movimento que eu possa imaginar criar nele. Relativamente a este ponto, Damásio adverte: “[Z] qualquer teoria sobre a consciência que não incorpore estes factos está destinada ao fracasso” (2010, p.120). Podemos novamente então falar em objecto interno e objecto externo no corpo e na sua representação mental, nos objectos externos e no mapeamento que deles fazemos. O mapeamento total e exaustivo que fazemos do corpo cobre, não apenas o corpo propriamente dito (órgãos internos, ambiente interno, sistema muscular, esqueleto), mas, também, os dispositivos especiais de percepção que estão localizados em lugares específicos do corpo, as mucosas olfactivas e do paladar, os olhos, os ouvidos e os elementos tácteis da pele. Damásio denomina-os sugestivamente como “[Z] os postos de espionagem do corpo” (2010, p.121). Estes dispositivos, tal como os órgãos internos, situam-se no corpo ocupando, no entanto, posições privilegiadas. Esses dispositivos são compostos por uma parte antiga (do ponto de vista da evolução) e outra moderna. Esta armadura, e a sonda neural que nela

está

encrustada

são

separadas

por

uma

fronteira

que

corresponde

simultaneamente à entrada do cérebro. Volta-se assim a dar relevo à dicotomia corpo/mente, mas de uma forma que os interpreta como dois que são um. O mundo exterior só pode ser representado no corpo através do cérebro que, por sua vez, sem um corpo que lhe adquira informação é totalmente inútil. Será também na compreensão da dimensão entre estes dois elementos que se complementam que podemos talvez entender aquele que é um dos temas centrais das nossas vidas: as emoções e os sentimentos, e a sua espontaneidade corporal (Damásio, 2010, p.122). Ao mapeamento concreto e real que o cérebro faz do corpo, há um acrescento de elementos ou sinais no interior do corpo que são da maior importância na formulação de sentimentos. À parte disto, as funções e estrutura do corpo estão totalmente identificadas nos circuitos cerebrais, criando uma padronização de acções repetidas.

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Ou seja, “ [Z] há sempre uma versão do corpo a ser recriada na actividade cerebral. A heterogeneidade do corpo é imitada no cérebro, sendo esta, uma das mais importantes característica da relação que o cérebro mantem com o corpo” (Damásio, 2010, p.124). Por fim, aquela característica fulcral que permite a um arquitecto percorrer o seu edifício muito antes de este estar construído: o cérebro tem a capacidade de manipular o mapeamento destes estados corporais, possibilitando a sua transformação ou mesmo simulando acções que nunca ocorreram. Embora exista uma interacção constante do cérebro/corpo,

é fundamental

compreender que não existe uma simetria na maneira como as suas funções decorrem. Os sinais que são enviados pelo corpo para o cérebro possibilitam uma vivência multimédia do corpo e a comunicação de mudanças que decorram no seu estado ou função. O meio interno corporal, órgãos, células, etc, enviam também a informação dos seus estados corporais. Por sua vez, no sentido inverso, o cérebro dá ordens ao corpo sobre as modificações que este deve fazer, ou seja, as adaptações que este deverá executar, o que fazer para encontrar um equilíbrio e, quando solicitado, também dirá o que fazer para criar um estado emocional (Damásio, 2010, p.124 e 125). A nossa posição corporal em relação ao espaço está em constante mudança o que, consequentemente, altera o mapa que este ilustra ao cérebro em função destas alterações. Portanto, o cérebro e o corpo estão em contínua dinâmica interactiva. É neste diálogo que o estado corporal varia sob as suas multifacetas de prazer ou dor, tensão ou descontracção, entusiasmo ou descontentamento, etc. Este aspecto qualitativo dos nossos estados corporais é composto por uma associação de vários factores que decorrem em simultâneo. Se o leitor, neste momento, se encontrar sentado num sofá, diante de uma lareira, com uma luz propícia para a actividade da leitura e eventualmente, sendo apreciador, disfrutando de um bom vinho, sentirá certamente muito maior prazer do que se o estiver a fazer na rua, em andamento, com uma temperatura ambiente de sete graus e atrasado para uma reunião. Podemos então extrair desta reflexão que os aspectos qualitativos dos nossos sentimentos dependem em muito de uma soma de vários factores, ou seja de um aspecto quantitativo dos seus componentes. A questão ainda pendente de como os nossos mapas perceptuais, indicadores do estado do nosso corpo, se transformam em sentimentos corporais e assim passam a

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ser vividos e sentidos, é um aspecto fundamental no entendimento da mente consciente. Seria impossível a explicação dos aspectos de subjectividade sem ter um pouco mais de informação sobre a génese destes sentimentos. Um dos aspectos fulcrais é a existência de sentimentos primordiais, “[Z] expressões espontâneas do estado do corpo vivo” (Damásio, 2010, p.132). Estes são os precursores de todos os sentimentos e são resultado exclusivo do corpo vivo em confronto com a engenharia de regulação vital.

3.2. A ESTRUTURA DO EU A proposta de António Damásio para a composição de uma identidade que possibilitará que a mente se torne consciente, assenta num eu que se desenvolve em diferentes fases. Damásio sugere-nos um primeiro estado relativo a várias imagens do organismo em equilíbrio e que resultam no sentimento espontâneo do corpo vivo, os já anteriormente referidos sentimentos primordiais. A fase seguinte é o resultado da interacção do organismo com qualquer objecto, conhecendo-o, experienciando-o. A sincronização dos dois estados anteriores é o resultado da terceira fase. O reconhecimento dos sentimentos primordiais em interacção com a percepção do corpo destaca, naquela que é a sequência natural de factos processados por nós, acontecimentos que são os mais importantes contributos para a delineação de um euautobiográfico que quer perdurar ao longo do tempo. No desenvolver do processo das três etapas, o espaço imagético terá o papel fundamental de palco para o desfile do encadeamento de imagens. As disposições, por sua vez, são essenciais como estrutura para que tal possa acontecer. Por sua vez, o factor memória, a memória de capacidade extraordinária que dispomos, será veículo para que o eu-autobiográfico possa ter lugar. É também esta fantástica memória que, em conjunto com os instrumentos de cultura, como são exemplo os livros, artefactos, suportes de conhecimentos, possibilitaram que o conhecimento humano perdure ao longo dos tempos.

3.2.1. PROTO-EU Damásio caracteriza o seu próprio termo sentimentos primordiais afirmando: [Z] o sentimento daquilo que acontece não esgota este tema. Existe um sentimento mais profundo que temos de imaginar e depois vir a encontrar nas profundezas da

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mente consciente. Trata-se do sentimento de que o meu corpo existe e está presente, independentemente de qualquer objecto com o qual interaja, afirmação sólida e silenciosa de que estou vivo (Damásio, 2010, p.233). O autor declara estes sentimentos de qualidade definidas algures entre o prazer e a dor, tornando-os assim ancestrais de todos os sentimentos emocionais e base de todos os sentimentos resultantes do confronto do organismo com os objectos (2010, p.233). O mesmo autor propõe-nos o exercício de meditação sobre as manifestações do nosso eu na consciência e aponta-nos quatro hipóteses: uma visão de perspectiva, o ponto de vista a partir do qual tomamos conhecimento dos outros objectos, mapeandoos; um sentimento de pertença, ou seja posse sobre os nossos pensamentos e a percepção de que estes são unicamente nossos; uma capacidade de acção que nos permite percorrer o espaço-tempo interagindo com aquilo que nos rodeia; por fim, um sentimento primordial que se apercebe da presença inabalável do nosso corpo vivo, independente de uma relação ou não com outros objectos (2010, p.233). Damásio define o primeiro estágio de estrutura do eu como: [Z] uma colecção integrada de padrões neurais separados que mapeiam, a cada momento, os aspectos mais estáveis da estrutura física do organismo. Os mapas do proto-eu criam não só meras imagens do corpo, mas também imagens sentidas do corpo (2010, p.239).

O autor delimita ainda os principais contributos para a sua constituição: os mapas interoceptivos principais - do interior do nosso organismo que comunicam ao sistema nervoso central o seu estado; mapas principais do organismo - constante descrição do corpo parado ou em movimento através do espaço e adaptação ao seu desenvolvimento; e mapas das portadas sensoriais - já referidas anteriormente e que são relativos às estruturas sensoriais pelas quais temos sensações dos elementos que nos rodeiam e fundamentais no sentido em que são a perspectiva, ou melhor, o ponto de vista pelo qual percepcionamos o mundo. Este é o estágio do eu que é também responsável para que a qualquer momento sejam enviados sinais criadores de sentimentos primordiais. Quando fazemos mapas de objectos e de acontecimentos do mundo exterior, esses mapas objectos e acontecimentos permanecem no mundo exterior. Quando mapeamos

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os objectos e os acontecimentos do nosso corpo, eles encontram-se no interior do nosso organismo e não vão a mais lado nenhum. Agem sobre o cérebro, mas o cérebro pode agir sobre eles, a qualquer momento, criando um arco ressonante que origina algo de comparável a uma fusão corpo-mente. [Z] O proto-eu é um conjunto de mapas que permanecem ligados interactivamente à sua fonte, uma raiz profunda que não pode ser ignorada (Damásio, 2010, p.251).

3.2.2. EU-NUCLEAR Na sequência lógica do percurso que vimos a efectuar, ao sentimento puro de que somos e de que, através unicamente do nosso corpo, existimos, terá um protagonista de tomar acção na mente para que um eu possa emergir e dar início a todo o processo de subjectividade que tão bem conhecemos. Tem de existir uma identidade que se apodere do corpo e o accione em direcção ao exterior e assim interaja com os objectos exteriores. Um eu que se caracterize por ser o protagonista do momento, do corpo em acção. Assim, como não somos indiferentes a nenhum objecto que nos rodeie, todos nos falam33, o estado do nosso organismo altera-se com este confronto. Damásio sugere três passos de experimentação dos objectos, de confronto do protoeu para que este se torne o protagonista do momento. Um primeiro passo será de reconhecimento de um objecto que, de alguma maneira, nos comunica. A atenção que momentaneamente lhe atribuímos, e que irá destacar esse objecto em relação aos outros, é o segundo passo. Por fim, o eu-nuclear é o confronto e a modificação do proto-eu com um objecto que de alguma maneira nos comunique mais fortemente que os outros, que nos faça sentir algo a que queremos dar mais valor que do que se em contacto com qualquer outro objecto (2010, p.253 e 254). É no desenrolar destes acontecimentos, neste constante confronto eu-objecto/objectoeu que o protagonista desenvolve a sua narrativa, que cria um sentimento de relação com os objectos e potencia a percepção de que pode agir sobre, e assim possuir activamente determinado objecto. Voltamos a Winnicott, que nos dá um contributo adicional para a compreensão deste fenómeno em toda a sua amplitude. Desfocando o seu ponto de observação, do eu, ou do objecto, para o concentrar no espaço intermédio entre os dois - espaço transicional, 33

Segundo Friedrich Nietzsche (1844 – 1990) apud Pedro Janeiro: “[s]entimos prazer na compreensão imediata da forma; todas as formas nos falam, nenhuma nos é indiferente, nenhuma nos é inútil” (Janeiro, 2008, p.17)

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lugar onde ocorrem os fenómenos transicionais34 -, Winnicott tem uma abordagem sobre o acto criativo que, não sendo especificamente a que nós procuramos, permitenos abrir uma visão mais ampla sobre o eu e a consciência. Winnicott defende a criatividade como um jogo, como uma vontade aplicável a qualquer acção e essencial à vivência humana com salubridade. Pelas suas palavras, “It is in playing and only in playing the individual child or adult is able to be creative and to use the whole personality, and it is only being creative that the individual discoveres the self” (Winnicott, 2005, p.72 e 73). Assim, tentaremos peculiarmente extrair os conteúdos que acreditamos serem aplicáveis à nossa área, o aspecto criativo mais ligado às artes e fundamentalmente no acto do desenho em arquitectura. Winnicott desenvolve o termo fenómeno transicional para denominar o vazio interactivo que nos separa dos outros objectos. Trata-se da área de experimentação que não pode ser incluída como parte integrante do nosso corpo e que não é totalmente reconhecida como pertencente a essa realidade externa. É também o espaço que permite que as nossas incapacidades se tornem em crescente habilidade, capazes de reconhecer e de aceitar a realidade. Esta ideia é reforçada, quando o mesmo autor afirma que em cada pessoa sã há uma realidade interna ou mundo interior que se pode encontrar nos mais variados estados de espírito, em paz ou em pé-de-guerra. Como tal, se existe a possibilidade destes dois estados, tem de existir também uma terceira parte da vida humana, incontornável, uma área de experiência para a qual a realidade interior e a vida exterior ambas contribuem (Winnicott, 2005, p.3). Um conceito que o autor introduz como sendo fundamental é o de ilusão que é naturalmente permitida às crianças e que na vida adulta se manifesta das mais diversas maneiras, sobre os mais variados objectos ou espaços. Segundo o autor, na vida adulta, transpomos essas necessidades ilusórias para a religião, criatividade artística, rituais, etc. Aquilo a que correntemente chamamos de subjectividade tem uma dimensão que aparenta comportar uma grande importância para nós como arquitectos. De alguma maneira, queremos antecipar aquilo que as pessoas vão ilusoriamente projectar nos espaços por nós concebidos. Não estamos evidentemente a referir os aspectos ligados aos pensamentos mais pessoais da vida particular de

34

Ver nota de pé número 18 no capítulo ‘A Memória’.

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cada um, mas o conceito de atmosfera ou ambiência, que pode ser partilhado por vários observadores. O genius loci romano como o espírito do lugar tem aqui expressão máxima, como uma identidade externa, transcendental, à qual o lugar pertence. Para darmos exemplos mais dos nossos quotidianos, as conhecidas opiniões: aquele lugar transmite tristeza, paz, confusão, austeridade, frieza, etc. Aquilo que em arquitectura geralmente é chamado de poética do lugar. Neste sentido, o termo reality-testing pode ser chave. Este conceito é usualmente utilizado para saber se a subjectividade que atribuímos a determinado objecto é passível de ser partilhada ou não com outra pessoa, isto é, se existe a possibilidade de estabelecer comunicação no sentido de partilha de opinião de determinada ilusão. Para definir fortemente este conceito, o autor denota a importância da distinção entre percepção e a apercepção. A primeira é definida pelo acto ou efeito de perceber/reconhecer/interpretar um estímulo dado pelos órgãos sensoriais (Thines e Lempereur, 1984, p.699 e 700)35. Na segunda, tomamos uma percepção reflectida (Thines e Lempereur, 1984, p.79 e 80). Quando recebemos um estímulo de determinada objecto, grupo de objectos ou mesmo de um lugar, pode suscitar-se em nós uma percepção com grande grau de ilusão, relacionada com aquilo que são as nossas crenças, experiências, já para não falar do estado de espírito. Assim, será num repensar sobre este estímulo, e possivelmente na partilha com alguém que nos acompanhe, que fazemos um teste de realidade, e concluímos, ou não, que tal percepção é só e unicamente nossa, ou se é geral (Winnicott, 2005, p.3 e 4). Portanto, podemos afirmar que há a possibilidade de agrupar pessoas que partilham as mesmas experiências ilusórias, que, no fundo, partilham aproximações de significado do seu espaço interactivo ou transicional. De alguma maneira, encontram pontos de tangência no significado que atribuem a determinados objectos.

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Segundo os autores, percepção é, “[n]a generalidade, [a] função pela qual o nosso espírito forma uma representação dos objectos exteriores”.

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Ilustração 1 – “Borrão do tipo usado no Rorschach”. (Gleitman, Fridlund, Reisberg, 2007, Lisboa)

Winnicott denota que é também neste espaço experiencial que, juntamente com o factor tempo, está a raiz do simbolismo. É com o diacronismo que se desenvolve uma aceitação das diferenças e uma aproximação semântica que se pode estabelecer entre dois objectos: entre aquilo que realmente é e o que representa para a pessoa. Existe uma viagem desde o puramente subjectivo para a objectividade, o que faz com que determinado objecto tenha um valor maior do que aquele que ele vale só por si. Segundo o autor, não será possível compreender verdadeiramente o objecto transaccional sem se compreender verdadeiramente a natureza do simbolismo. Esta concepção de Winnicott sobre o acto criativo dá um excelente contributo para a compreensão da génese e do processo do acto criativo. Ele remete para todas as relações de intrasubjectividade, de objectividade e de comunicação entre os dois que criam esse espaço intermédio, entre sujeito/objecto que o autor chama de espaço transaccional. A nós interessa-nos compreender que outro processo complementar concretiza esta semente de criatividade em técnica, em representação física, em desenho. É esse rasto de especificidade que procuramos36.

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Como psicanalista, Winnicott reconhece na fase da vinculação aspectos que considera da maior importância e também a génese da criatividade humana. O autor recua aos mais remotos tempos da origem pessoal de cada individuo, sugerindo que existe um sentimento primário que, para cada criança, a mãe não é só um prolongamento nosso, mas sua parte integrante. Na fase de desamamentar, esta ideia será reforçada com um sentido de omnipotência que posterior, gradual e imperativamente ter de ser saudavelmente desmistificado. O que Winnicott sugere é que existe um paradoxo que fica para sempre implicitamente sentido, que é precisamente a ideia da pequena criança que perdeu o «jogo», e que a criatividade assume a busca eterna do outro pedaço do eu perdido. Assim, a primeira posse é substituída por brinquedos, mais tarde pela religião, arte, no fundo em interacção com qualquer objecto.

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Voltando então a dirigir o nosso foco para o eu e para o objecto, quando o eu exerce o reconhecimento sobre um objecto, regista todos os detalhes da nossa interacção com ele (movimento do nosso corpo, sensações, etc). Por sua vez, a recordação imaginária possibilita também uma alteração do estado do proto-eu consciente. Este parece ser o primeiro passo que a mente dá em direcção à consciência. A uma imagem que temos do organismo (alteração do proto-eu por confronto com um objecto), sobrepor-se-á uma imagem da reacção emocional que decorre da evidência que

esse

objecto,

a

determinado

momento,

tem.

Assim,

alguém

chega

incessantemente à mente com uma narrativa factual da mesma história: um todo coerente. Podemos assim considerar este eu momentâneo como estruturalmente principal no passo que a mente tem de dar para se tornar consciente.

3.3. A CONSCIÊNCIA No ano de 1841, o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) escreve, conjuntamente com o ensaio Über die Grundlage der Moral (Sobre as bases da moral, primeiramente escrito no ano de 1840), dois textos agrupados sob o título Die beiden Grundprobleme der Ethik (Os dois problemas de base da ética). Ambos eram respostas aos dois concursos lançados pela Academia Real Norueguesa de Drontheim e pela Sociedade Real de Copenhaga, respectivamente. O primeiro dos dois textos – Über die Freiheit des Willens (Sobre a liberdade da vontade) – foi premiado pelas reflexões em torno da questão proposta: “[Z] poderá o livre arbítrio ser demonstrado pelo testemunho da consciência de si?” (Schopenhauer, 2002, p.5). Neste texto, Schopenhauer propõe como resposta à sua própria pergunta: “O que se entende por consciência? [Z] É a percepção (directa e imediata) do eu, por oposição à percepção dos objectos exteriores, que é o objecto da faculdade dita percepção exterior” (Schopenhauer, 2002, p.14). Portanto, é no confronto que temos com a superfície exterior dos outros objectos que existe a percepção momentânea que nós somos. É pelos nossos sentidos que adquirimos informação de que existimos, assim como os elementos que nos rodeiam, e é através destes que nos podemos dizer conscientes. Sabemos também que, para que qualquer objecto ou sua percepção exterior possam desfilar no «palco» da existência física, as premissas essenciais para que tal seja possível são as intuições puras, espaço e tempo (Heidegger, 1987, p.191).

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A palavra consciência, sabemo-la de duplo sentido. Por razões que se prendem com o objectivo deste trabalho, afastar-nos-emos do seu significado intrinsecamente ligado à moral, não podendo deixar de tecer uma breve reflexão, no sentido em que a semântica da própria palavra moral nos remete para a ideia de memória. Assim, existe a possibilidade de alguma informação importante poder ser acrescentada. Portanto, consciência moral é uma ética que só pode ser desenvolvida depois da reflexão e da experiência, e, portanto, com a indelével passagem de um tempo. Ora, esse tempo, passado, como todos os tempos passados, já foi um presente, e, portanto, se presenciado por um ser humano, já foi, também, uma consciência imediata, aquela que Schopenhauer nos definiu há poucos instantes. A própria origem da palavra moral (do latim mores), que significa costumes, acentua aquilo que queremos mostrar: actos que foram praticados e assim tornados conscientes por alguém. Então, o que se define por consciência moral é, de alguma maneira, uma memória que consciências colectivas nos deixaram sendo que, por um confronto de poderes, as mais fortes prevaleceram. Isto é, a consciência moral que nos pesa, se roubarmos algo, pesa-nos porque no passado existiu um maior número de consciências momentâneas que, confrontadas com este acto, lhe atribuíram uma conotação negativa do que as que lhe conferiram um carácter positivo. O que queremos dizer é que a consciência moral é um reflexo de todas as consciências momentâneas em coro potenciadas pelo factor tempo. E assim a questão que nos pode interessar: exerce a consciência moral, ou, como já vimos, as consciências colectivas, algum peso sobre o acto arquitectónico e inerentemente sobre o desenho? Será realmente o argumento de Kant aplicável? “Podes porque deves” (Schopenhauer, 2002, p.15)37, no sentido em que questiona se os nossos actos são livres, ou a priori, encontram-se incondicionalmente influenciados por aquilo que foram as mais fortes consciências colectivas dos nossos antepassados? Esta reflexão tende a querer estabelecer uma ponte com a ideia das disposições que Damásio propõe, como a estrutura essencial herdada geneticamente que nos possibilita uma vivência através de imagens. Se pusermos a questão de outra maneira: São as nossas imagens livres? Tudo indica para que não. Existe um passado de costumes que exerce o seu poder sobre nós de maneira mais ou menos consciente.

37

Immanuel Kant apud Arthur Schopenhauer.

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Damásio define consciência como “[Z] um estado mental em que temos conhecimento da nossa própria existência e da existência daquilo que nos rodeia” (2010, p.199). Não havendo uma mente, nunca poderá existir consciência. A consciência é um estado mental singular proporcionado pela sensação de que o organismo, nosso pertencente, ocupa determinado espaço, em determinado momento, e que certa situação o rodeia. É uma noção de um presente vivido por um protagonista particular. “A consciência é um estado mental a que foi acrescentado o processo ser” (Damásio, 2010, p.199). Cada organismo humano é possuidor de uma mente consciente particular e inobservável por alguém que não o próprio. É uma experiência estritamente privada e é sempre provida de conteúdo, ou seja, nós, quando estamos conscientes, é de alguma coisa que o estamos, nem que seja, como já vimos, de nós próprios. Por sua vez, um dos aspectos importantes a ter em conta é a distinção de qualidades do estado consciente que experienciamos. Os sentimentos que nos abraçam a cada instante são os qualificadores desses momentos Por fim, apesar da existência paradoxal da sensação de vivência que o sonho proporciona, o estado consciente é particular da vigília. Apenas e unicamente acordados estamos conscientes, apesar da realidade que um sonho pode aparentar (Damásio, 2010, p.200). É a partir desta noção que podemos dar um sentido à conhecida frase de Quinto Horácio Flaco (65 a.C. / 8 a.C) “Carpe Diem” ou o sol é novo todos os dias. No sentido em que “ [Z] morremos todos os dias, e todos os dias nascemos. Continuamente nascemos e morremos” (Borges, 1978, p.87). Um estado mental consciente é sempre acompanhado por informação dada pelos órgãos sensoriais, transmitindo propriedades qualitativas para o corpo e assim tornando o estado consciente inevitavelmente sentido. Outro aspecto importante de salientar é o facto de existirem vários níveis de consciência conforme o desempenho que o organismo está a ter a determinado momento. Existe uma gradação do estado. Quando estamos sonolentos, os níveis de consciência estão baixos. Por sua vez, se nos encontramos interessados, em debate sobre determinado assunto, o grau de consciência será elevado. O reóstato é uma imagem que transmite a ideia mais aproximada. Os poucos segundos que por vezes demoramos para nos situarmos ao acordar são um exemplo de uma mente que ainda não se encontra com as características de uma mente consciente. As propriedades da

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mente certamente dispararão com mapas sentidos nas direcções mais variadas, mas o protagonista deverá tomar conta de organizar a casa e torná-la consciente. Assim, a consciência é o “ [Z] próprio sentimento de si” (Damásio, 2010, p.204). O eu, como deverá ser claro, não é um objecto, mas sim um processo dinâmico em níveis de maior ou menor estabilidade durante o período em que nos encontramos conscientes. Com o desenvolvimento destas ideias, podemos concluir que, num estado de vigília, ter uma mente e ter uma identidade são processos cerebrais diferentes que se completam no todo harmónico sob o qual experienciamos o mundo no nosso quotidiano. Evidentemente, a complexidade biológica que os caracteriza não lhes permite uma separação compartimentada, como quem divide duas salas com uma parede. De qualquer maneira, são distinguíveis. A consciência é um acrescento de uma função eu à mente. Essa função é dirigida para aquilo que são os pedidos do nosso organismo e assim nasce aquilo a que chamamos de subjectividade. O eu é uma identidade que será acrescida ao processo virtual a que chamamos de mente. Um protagonista da nossa imaginação (Damásio, 2010, p.208 a 210). Damásio dá-nos uma ideia de uma escala de intensidades da consciência de duplo sentido: por um lado, um que distingue a consciência vigilante da não vigilante, já referidas, por outro lado, como que varia entre uma visão mais ou menos distanciada que temos de nós próprios. Uma variação que encontra, ao centro, uma consciência resultante da percepção que temos do momento presente e que assim nos permite estabelecer uma analogia com a personalidade e o carácter, por «outros lados», em dois sentidos, um passado e um porvir, uma consciência alargada, de relação estreita com a memória e, assim, identidade, e que nos permite situar a existência algures na imensidão do tempo, um eu-autobiográfico. Por vezes, podemos ser tentados a acreditar que o nosso protagonista não está presente. Quando nos encontramos em acção, por exemplo no momento em que o leitor se encontra a ler estas palavras, somos levados ao engano. O eu, por vezes, pode ir bastante para o fundo do palco, quase onde não pode ser vislumbrado, dando espaço para o processamento de imagens do nosso cérebro. Mas se ele desaparecesse por completoZ Damásio propõe-nos a ideia de que “[Z] pareceríamos

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inconscientes” (Damásio, 2010, p.215). Se não existisse um proprietário, como um responsável por uma montagem cinematográfica que faça significar o impulso imagético mental, a mente ficaria desorientada, incapacitada de dar coerência ao pensamento. Por fim, sabemos a existência de selecção natural daquelas que são as imagens com maior valor, mecanismos de regulação vital biológicos, de onde emergem os factores emocionais. As imagens de maior valor serão destacadas e marcadas criando uma ponte relacional entre emoção e imagem. Essas imagens adquirem, portanto, um posto de marcador emocional (Damásio, 2010, p.219 e 220).

3.4. O EU AUTOBIOGRÁFICO E O TEMPO “O tempo tem dois rostos, [Z] ele tem duas dimensões, a extensão é ao ritmo do sol, a espessura ao ritmo das paixões” (Maalouf, 2009, p.34). Uma autobiografia é a “vida de uma pessoa escrita por ela própria” (Costa, Melo, 1998, p.186). Sobre essa totalidade de imagens armazenadas, experiências passadas e projectadas para o futuro, que temos a capacidade de reter na nossa memória e de as descrever com maior ou menor precisão, atribuímos a responsabilidade ao euautobiográfico. O eu-autobiográfico é o protagonista narrador dotado da capacidade de distanciamento de enorme alcance que conhecemos. Enquanto o nosso já conhecido eu-nuclear presencia o momento e trata da acção, o eu-autobiográfico tem duas dimensões distinguíveis. De um lado, apresenta-se explicitamente à mente consciente sob o modelo de imagens passadas ou futuras, aquilo a que chamamos de memórias. De outro, encontram-se arquivadas à espera de algum elemento que desperte a sua activação. É esse outro lado do eu-autobiográfico, velado, de desenvolvimento não consciente, que possivelmente permite que o nosso eu amadureça através da reformulação da memória. Voltamos incontornavelmente assim ao ponto discutido no capitulo 1.4, quando é afirmado que: [Z] as experiências vividas são reconstruídas e reapresentadas, quer numa reflexão consciente, quer num processamento não consciente, a sua essência é reavaliada e inevitavelmente reagrupada, modificada ao de leve ou em profundidade, no que

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respeite à sua composição factual e ao acompanhamento emocional (Damásio, 2010, p.264).

O que é novidade no percurso que decorremos até ao presente ponto é que não existe apenas uma propriedade do eu particular que permite esta dimensão autobiográfica remetendo para a recuperação de elementos mnésicos factuais, mas, para além disso, parece surgir uma ligação entre a idealidade38 (a introdução de elementos subjectivos não factuais «carregados» de sentimentos e emoções), e a não consciência, que Damásio nos sugere e sob a qual essa idealidade se desenvolve. Parece também ser algures nesta dimensão que surge a eterna batalha do tempo cronológico com o verdadeiro tempo que cada um vive. Esse tempo é uma sucessão de infinitos momentos. Cada pessoa experiencia-o como pode porque é também o tempo que não é passível de ser controlado. É o tempo que segue o sentimento, e, assim alterado pela percepção que dá de si próprio: o tempo não consciente, que nos projecta para fora do tempo. Esta ideia é reafirmada com a consciência, que é com estes subtis «cortes» e «recortes» que com o passar do tempo (re)criamos a nossa história. É assim que cada vez que olhamos um desenho, este, não só pode, como é provável que tenha um significado diferente daquele que tinha quando foi feito. Em termos neurológicos, esta tarefa de construção e reconstrução tem lugar em grande medida no processamento não consciente e, tanto quanto nos é dado a saber, pode mesmo ocorrer durante os sonhos, embora por vezes possa surgir na consciência (Damásio, 2010, p.264).

O mesmo autor incute a possibilidade deste processo funcionar através de mapeamentos que transformam o material codificado contido no espaço disposicional em imagens presentes no espaço imagético. Assim, na imensidão de imagens incomportável para a nossa memória, aquela que é a nossa história está mais ou menos sistematizada em pontos-chave que desencadeiam uma narrativa mais ou menos aproximada da realidade.

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No capítulo 1.4, sugerimos como sequência da caracterização do conceito de recordação por Kierkegaard a definição de idealidade como aquilo que só existe na ideia e que reúne toda a perfeição imaginável.

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As recordações biográficas estão de alguma maneira organizada pelo nosso cérebro. Assim, deverá existir uma estrutura sob a qual, para cada objecto, com os devidos marcadores emocionais associados, surjam as memórias associadas no tempo certo. Como é imaginável, isto exige uma coordenação particularmente bem gerida. Estes coordenadores são “[Z] organizadores espontâneos de um processo” (Damásio, 2010, p.267). Como já vimos anteriormente, as imagens sentidas que nos são comunicadas através dos órgãos sensoriais são qualitativamente marcadas automaticamente, tanto num processo disposicional biologicamente herdado, como num processo disposicional assente naquilo a que, em linguagem comum, geralmente chamamos de experiência de vida.

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4. O DESENHO Neste capítulo, iremos começar por reflectir sobre o significado do acto criativo. Iniciaremos esta reflexão com uma abordagem alargada, numa perspectiva o mais abrangente possível, para posteriormente orientaremos o nosso olhar especificamente para o acto do desenho: primeiro de uma forma mais geral, para depois nos concentrarmos na prática deste no processo arquitectónico. Faremos depois uma análise de um caso de estudo: a extensão de uma academia de teatro, trabalho executado em 2010, no âmbito da cadeira de projecto em programa Erasmus, em Varsóvia, na Polónia. Finalmente, visando o objectivo último deste trabalho, procuraremos clarificar como é que a(s) memória(s) se transforma(m) em desenhoacção e em desenho-executado. Ainda antes de iniciarmos a discussão destes temas, propomo-nos definir alguns conceitos chave que irão ser utilizados ao longo deste capítulo. Com esta conceptualização prévia, pretendemos delimitar as ideias subjacentes a cada um desses conceitos, de forma a que, quando os utilizarmos, seja criada uma consonância entre o significado que lhe atribuímos e aquele que sugerimos ao leitor. Consideramos esta definição prévia fundamental pelo facto de serem utilizados conceitos contíguos em que a linha de separação é muito ténue, o que nos obriga a um rigor conceptual que os delimite. Recupemos as palavras de Le Corbusier39 (1887-1965): Dessiner, c'est d'abord regarder avec ses yeux, observer, découvrir. Dessiner, c'est apprendre à voir naître, croître, s'épanouir, mourir les choses et les gens. Il faut dessiner pour pousser à l'intérieur ce qui a été vu et demeurera alors inscrit pour la vie dans notre mémoire. Dessiner c'est aussi inventer et créer. Le phénomène inventif ne surviendra qu'après l'observation. Le crayon découvre, puis dans l'action pour nous conduire bien au-delà de ce que vous avez sous les yeux. La biologie intervient alors nécessairement car toute l avie est biologie. Il faut pénétrer au cœur même des choses par la recherche et l’exploration (Le Corbusier, 1968, p.9).

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Charles-Edouard Jeanneret-Gris, geralmente mais conhecido pelo pseudónimo de Le Corbusier, foi um arquitecto, urbanista e pintor francês de origem suíça. É considerado um dos mais importantes arquitectos do século XX.

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Portanto, como parte integrante que somos da natureza, como natureza que também somos, será de alguma forma indispensável compreendermos que espaço ocupamos no seu meio. Compreendermos que somos, além de pessoas com a possibilidade de pensamento, organismos vivos, formados por células e, desta maneira, com a nossa vontade de alguma maneira condicionada, à partida, por forças que acreditamos deverem ser aceites e entendidas como naturais.

4.1. ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS Comecemos por definir o conceito de ‘homeostasia’. Esta palavra tem a sua origem epistemológica na língua grega – hómois, que significa semelhante, e stasis que quer dizer estabilidade –, sendo o conceito definido por ser “[a] capacidade de autoregulação

dos

organismos

vivos”

(Thines

e

Lempereur,

1984,

p.467).

Compreende-se, então, por análise à origem da palavra, que um mesmo equilíbrio – homogéneo – abrange todos os organismos vivos, e assim, possivelmente, tende também a equilibrar todo o ecossistema. Existem mecanismos de manutenção e de gestão biológica que podem existir em organismos com pequenos circuitos neurais, sem mente e sem consciência. Estes mecanismos encontram-se em células isoladas e estão codificados no seu genoma, sendo através destes transmitidos hereditariamente: A regulação da vida, um processo dinâmico conhecido como homeostase, tem início em criaturas vivas unicelulares, tal como uma célula bacteriana ou uma simples ameba, que não têm cérebro mas são capazes de um feroz e eficiente comportamento adaptativo (Damásio, 2010, p.64).

A ‘homeostasia’ é assim um princípio de equilíbrio natural de variedade básica que equipa todo um universo de vida, desde as mais simples células, até aos mais complexos organismos, promovendo, não só a sua sobrevivência, mas, também, a sua adaptação ao meio ambiente que os envolve. Estes princípios não são apenas directrizes. Definem, também, parâmetros limite que têm de ser mantidos a qualquer custo. “Este limite mágico é conhecido pelo termo homeostático e o processo através do qual se alcança esse estado equilibrado é chamado homeostase”40 (Damásio, 40

“Estas palavras não muito elegantes foram cunhadas no século XX pelo fisiológico Walter Cannon. Cannon expandiu as descobertas do biólogo francês do século XIX Claude Bernard, que cunhara o termo mais agradável «milieu intérieur» (meio interior), a sopa química onde a luta pela vida decorre sem interrupções mas longe da nossa vista” (Damásio, 2010, p.64).

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2010, p.64). Para darmos um exemplo do nosso quotidiano, se tentarmos suster a respiração, por muito que queiramos, não o conseguiremos fazer por tempo indefinido. O limite homeostático, mesmo que conscientemente o queiramos fazer, não permite que tal aconteça. Nos seres possuidores de cérebro, de mente e de consciência, estes parâmetros são os correspondentes aos níveis conscientes da dor e do prazer. Com o seu desenvolvimento, estes programas tenderam a atingir a complexidade que se traduz na motivação, drives e na capacidade de emoção. António Damásio clarifica-nos, neste sentido, “[Z] o aspecto que define os nossos sentimentos emocionais é a análise consciente dos estados corporais modificados pelas emoções, e é por esse motivo que os sentimentos podem servir de barómetros da gestão da vida” (Damásio, 2010, p.80). Assim, a ‘homeostase’ alarga-se a um nível biopsicosociológico, no sentido da procura do bem-estar, e, desenvolvendo-se por meios bastantes mais frágeis que o impulso natural biológico. Se, por um lado, a mais simples célula desprovida de qualquer capacidade de pensamento tem um inato comportamento adaptativo, por outro, o homem, com a sua capacidade de pensamento e de sentimento de si, eleva a um outro nível a exigência homeostática na busca de um bem-estar holístico, global. Contudo, as suas escolhas e decisões nem sempre se revelam as mais adequadas no sentido da felicidade e do bem-estar, na obtenção de um comportamento equilibrado do ponto de vista social e psicológico. Que relação entre esse impulso silencioso, inato, pura biologia, e este outro que introduz dimensões culturais e psicosociológicos que emergiram à medida que o homem, ele próprio, se tornou também um organismo biopsicossocial de elevado grau de complexidade? Cada célula no nosso corpo apresenta o tipo de atitude não consciente [Z] Será que o nosso desejo consciente de viver, tão humano, a nossa vontade de prevalecer, teve início numa agregação silenciosa dos desejos rudimentares de todas as nossas células do nosso corpo, uma voz colectiva libertada num canto de afirmação? (Damásio, 2010, p.57)

Esta sugestão de Damásio reforça fortemente a ideia de que o acto criativo tem, em si, uma dimensão biológica que não deve ser negligenciada (Pereira, 2008, p.25). Esta dimensão biológica, que se inscreve em nós de forma inata, é também génese da

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cultura artística, sendo esta, por isso, também uma sua extensão. Esta ideia tende a explicar, de certa forma, as origens do impulso criativo, a semente dessa tão forte vontade que se apodera do corpo humano, essa pulsão inata de o querer manter vivo, mesmo depois da morte, estendendo-o, prolongando-o, numa representação simbólica que o eterniza para lá dos limites da existência física. É como se, face à consciência da finitude da existência física, esta se unisse, num forte impulso homeostático, àquela pulsão inata para ultrapassar esse limite temporal que sempre configuramos em nós, quando nos limitamos a observar a nossa passagem material pela vida. Passemos agora à definição de um outro conceito - que propomos ter uma estreita ligação a esta ideia do acto criativo como prolongamento natural biológico – perspectivando-o mais especificamente no caso do desenho: expressão. Na sua forma mais espontânea, o desenho, aparenta ser uma resposta motora que o homem dá a estímulos do exterior. Nesta versão mais primária, o acto de desenhar tende a aproximar-se da nossa dimensão mais biológica. Claro que são acções motoras em que todo o corpo intervém – por isso também o cérebro, e a mente. – Mas esse gesto que expressa esse primeiro movimento como resposta a uma incontida pulsão interior, utilizando todo o corpo, serve-se da mão como ferramenta privilegiada, pois esta é a parte do corpo, por eleição, em que há uma maior sensibilidade para práticas manuais. Se pesquisarmos num dicionário qual a definição da palavra expressão, aparece qualquer coisa como: “acto ou efeito de exprimir, manifestação de sentimento ou manifestação pelos gestos ou pelo jogo da fisionomia” (Costa, Melo, Lisboa, 1998, p. 718). Esta é uma definição um pouco circular, acto ou efeito de exprimir; o que é exprimir? Arno Stern (nascido a 1924) define-nos expressão a partir de uma palavra que não aparece no dicionário: [Z] «estesigrama». (Z) a formulação de sensações gravadas no organismo e que não têm outra forma para se manifestar [Z] a escrita selvagem dos nossos corpos [Z] Porque nas imagens que elaboram compõem-se fórmulas nascidas do fluxo, dos impulsos, das tensões, dos desvarios do organismo e das suas funções, desde que é formado e memoriza sensações, desde que acumula desejos [Z] (Stern, 1974, pag.8 e 20).

Neste sentido, expressão é dar forma à sensação, a sensação que nós, seres vivos, captamos em bruto através dos nossos órgãos sensoriais e portanto de carácter

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fisiológico. Perguntamos então: onde está o carácter de pessoalidade, de expressão individual, se a fisiologia humana tende a responder de forma semelhante a estímulos iguais recebidos pelos nossos órgãos sensoriais? Se olharmos atentamente para a definição de Stern, compreenderemos que a resposta está implícita na forma como ele a define. Quando este afirma que nós formulamos a sensação no seu estado mais bruto, neste acto dinâmico, neste caminho em que a sensação nos percorre e através do nosso corpo se exprime, atribuímos uma forma, e portanto, também um significado. Formalizamos aquilo que percebemos, que percepcionamos da sensação. Portanto, expressão é também a percepção que temos das sensações que o nosso corpo recebe do exterior por meio dos órgãos sensoriais, porque, ao mesmo tempo que lhe atribuímos uma forma, também lhe damos um significado. E assim é possível compreender a marca pessoal que cada pessoa imprime quando se expressa, porque, de alguma maneira, expressão é também identidade. É a forma como o meu corpo e cérebro, “[Z] fonte absoluta [Z]” (Merleau-Ponty, 1999, p.3), o meu eu único e intransmissível, interpreta a sensação. Se a sensação é percebida pelo nosso corpo/cérebro, esse processo converte-a também em imagem. Tratam-se de imagens sentidas como são todas as imagens com que o nosso corpo/cérebro cartografa o exterior. Sintetizando, entender o processo expressivo como um percurso dinâmico, por meio do qual damos forma à sensação, convida-nos a entender a expressividade como um caminho que vai do fisiológico ao psicológico, da sensação à percepção, da recepção em bruto pelos órgãos sensoriais dos estímulos internos ou externos, ao significado que lhes atribuímos, da emoção ao sentimento. A expressão ocorre então num contínuo e, dependendo das ferramentas que utilizamos para a formular, estaremos mais perto do biológico ou do cultural. Acreditamos que a dança e toda a expressão corporal estão mais perto do biológico, e que a literatura, mais fortemente marcada pela intelectualidade, mais perto do cultural. O desenho, por sua vez, parece ter um carácter muito variável. Se, por um lado, o riscar pelo simples prazer do acto de riscar – a garatuja – parece ir mais ao encontro de um impulso biológico, o desenho técnico de arquitectura implica um conhecimento sócio-cultural. Neste sentido, o desenho parece acompanhar também aquele que é o desenvolvimento humano.

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Outros conceitos que muitas vezes são confundidos e cuja linha de separação é ténue são os de emoção e de sentimento. Em latim, affectus é uma palavra que se apropria para ambos os conceitos. Hoje são sugeridas algumas distinções entre eles. A neurobiologia contemporânea define emoção como: [Z] programas complexos, em grande medida automatizados, de acções modeladas pela evolução. As acções são completadas por um programa cognitivo que inclui certos conceitos e modos de cognição, mas o mundo das emoções é, sobretudo, um mundo de acções levadas a cabo pelo nosso corpo, desde expressões faciais e posições do corpo até às mudanças nas vísceras e meio interno. Os sentimentos de emoção, por outro lado, são percepções compostas daquilo que acontece no corpo e na mente quando sentimos emoções. No que respeita ao corpo, os sentimentos são imagens de acções e não acções em si; o mundo dos sentimentos é um mundo de percepções executadas em mapas cerebrais (Damásio, 2010, p.143).

No seu livro Ao Encontro de Espinosa, Damásio sintetiza: “As emoções desenrolam-se no teatro do corpo. Os sentimentos desenrolam-se no teatro da mente” (2003, p.44). As emoções representam a primeira resposta do corpo a um qualquer estímulo recebido pelos nossos captores sensoriais. São caracterizadas por terem marcadores somáticos que frequentemente as revelam ao exterior, por exemplo o rubor, a aceleração do ritmo cardíaco, a tensão facial, o aumento da dimensão pupilar, a agitação corpórea. O sentimento representa a elaboração que a mente projecta da emoção. Nesse sentido, a emoção «é» sensação e o sentimento «é» percepção. A sensação e a emoção estão mais perto da biologia; o sentimento e a percepção actuam nos ambientes psicológicos e de atribuição de significado.

4.2. PROCESSO CRIATIVO OU EM BUSCA DE CONSCIÊNCIA “Um rapaz disse-me um dia: se ao menos os quadros pudessem ser habitados!” (Stern,1974, p.41) Conforme anteriormente referido, numa abordagem muito ampla, o acto criativo pode ser interpretado como forma essencial de viver a vida com salubridade e, portanto, como atitude face à vida, como uma vontade, como relação, como querer inovar em

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cada movimento do nosso ser41, e não obrigatória e necessariamente no sentido de fazer nascer uma identidade, independente, com vida, e para a eternidade. Neste sentido, strictu sensu de criação de uma identidade, o acto criativo aponta para um caminho: esse que tem de ser percorrido até se atingir a obra idealizada. Trata-se da sucessão de infinitos momentos que nos leva a chegar ao momento em que dizemos: basta, estou satisfeito. E, nesse momento, morre aquilo que é o seu nascimento, aquilo que foi o desenvolvimento da sua criação em nós, para depois renascer, autónomo e livre. É nesta última direcção que queremos primeiramente olhar o que representa o acto criativo: como uma vontade de deixar uma marca indelével no tempo, de superar, ir mais longe, chegar aonde ainda não chegaram todos os nossos antepassados, os nossos próximos e, assim, também nós próprios. Portanto, antes de começarmos esta reflexão, parece exigir-se o esclarecimento de algumas ideias: em primeiro lugar, dissemos que o acto criativo bebe na fonte onde brota a água da vontade. Mas o que define realmente uma vontade? Ou, pondo a questão pelas palavras de Schopenhauer, “[q]uando um homem quer, quer também alguma coisa: o seu acto de vontade é sempre dirigido para um objecto, e só pode ser pensado em relação a esse objecto. Mas o que significa querer alguma coisa?” (Schopenhauer, 2002, p.19). Portanto, a vontade parece ser um impulso: saibamos ou não a sua origem, sabemos que a temos, porque esta se mostra como reacção que quer agir sobre um objecto. Ou seja, um objecto, seja ele externo, e por isso, tangível, ou interno e intangível, isto é, imaterial, mostra-se, e por alguma razão espoleta a nossa atenção. Existe uma “[Z] causa excitadora [...]” (Schopenhauer, 2002, p.19), e então, em resposta a este estímulo, no sentido de querer modificar algo nesse objecto, emerge o momento em que nos dizemos com vontade. Aceitemos então que o acto criativo é assim movido por uma vontade. Parece incontornável que uma força nos move. Surge neste ponto uma questão: que objecto é este que nos chama no sentido de criar? E se não conseguimos identificar que objecto é esse, perguntemos antes: para onde direccionamos nós essa vontade? 41

Esta ideia abordada no capítulo 2.2 – A Estrutura do Eu -, segue as linhas de orientação que é a própria área do autor: Winnicott, psicanalista, defende que “(Z) is creative apperception more than anything else that makes the individual feel that life is worth living (Z) living cratively is a healthy state (Z)”. p. 87 e 88.

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Antes de procurar respostas para estas questões, propomo-nos reflectir sobre outra questão: onde estão os limites da obra criativa? Como primeira impressão, somos tentados a afirmar: a imaginação é o limite. Aquelas que são as imagens que eu consigo visualizar, material ou conceptualmente dentro de mim, estabelecem esse limite. Chegamos aqui a uma nova pergunta: qual é o limite da imaginação? Para abordarmos esta pergunta, parece ter de existir um maior momento de reflexão antes de avançar, mas não podemos deixar de sugerir aquela que é a frase que tende a aproximar-se do ponto crucial, da questão para a qual queremos resposta: “L’imagination c’est notre liberté”42. Perguntemos então ao contrário, conforme nos interessa, qual é a liberdade da nossa imaginação? Ou até que ponto é a nossa imaginação livre? Não é aqui exactamente que o processo criativo se depara com o seu maior desafio, no momento em que a vontade encara a liberdade? Temos então duas perguntas que, confrontadas talvez nos dêem alguma luz: qual é o limite da liberdade da nossa imaginação? Para que «vulto» se dirige a vontade criadora? Comecemos então por testar o poder da nossa imaginação. Como vimos anteriormente, imaginação mental é a capacidade que o nosso cérebro tem de nos fazer aparecer na mente imagens, mesmo que estas não se encontrem presentes43. Sabemos que as imagens de que falamos não são unicamente visuais, mas também tácteis, olfactivas, enfim, aquelas que os nossos órgãos sensoriais permitem captar. Também tomamos como adquirido que é por meio das nossas memórias passadas que o nosso cérebro reorganiza, como um puzzle, da forma que lhe convém, e projecta imagens futuras, mundos imaginários, contos e fábulas. Imaginação criativa é, de certa maneira, isto: um cérebro que, como sabemos, é «viciado» em produzir imagens, que (re)organiza o puzzle ou cria mapas, de forma a criar novas imagens e assim estender esses mapas, passo a passo, cada vez mais, e mais longe, na forma de um conquistador. Este é o primeiro passo que a imaginação dá para a criação de novas imagens: esse trabalho mental de reorganização, de colagem e de separação, de corte de elementos parciais e de colagem a outros, num incessante trabalho de experimentação e, por si

42

Autor desconhecido. Esta frase esteve exposta num cartaz de rua de forma que não é possível identificarmos o seu autor. 43 No capítulo 1.5 - Memória e Espaço Imagético - abordamos a definição do conceito de imaginação.

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só, de criatividade. Podemos então, provavelmente, afirmar que existe a liberdade de orientação das infinitas maneiras de como podemos reagrupar, dispor e compor aquelas imagens que por nós foram inicialmente chamadas. Mas parece haver uma condição que devemos observar: sobre que estrutura base são essas imagens construídas? Voltemos então os nossos olhos para a fonte, para esses elementos base, para as origens de cada imagem que são também a nossa preciosa herança biológica. Tratase daquela a que Damásio chama de disposições44 e que é a estrutura imagética que nos permite ver aquilo que se apresenta, num dado momento, aos nossos órgãos sensoriais, e também aquilo que não se apresenta, porque já está em nós. São os instrumentos de orquestra, na sua versão base, o potencial ainda não expresso de ser um timbre, um som, seguramente ainda não a melodia, desenvolvidos com o passar dos anos, séculos, milénios que se convertem então em linha melódica e que se unem para compor a música, essa rica harmonia que é a nossa imaginação. São aqueles que têm as ideias abstractas, amórficas dentro de nós, à espera que a forma apareça para que se torne real. Serão a verdade atemporal dos objectos que Platão procurava? Os arquétipos de Jung? Que, sendo biologicamente herdadas, têm de ser também colectivas, universais: A ideia de sombra, A Grande Mãe, O Velho Sábio?45 (Doran e Parot, 2001, p. 83) Como já tínhamos visto, estas disposições não são substituídas por imagens, são, antes, a sua base, trabalhando em cooperação com elas. Vimos também que as nossas imagens podem representar elementos concretos ou elementos abstractos, como símbolos ou palavras. Estas disposições, ideias, não formas, conceitos, códigos, ou seja qual for o nome que lhes queiramos dar, não são imagens e portanto não nos ajudam, no sentido de ver mais longe, de alargar os horizontes na nossa capacidade de imaginar. Temos então, por um lado, a gramática. É dessa gramática, produto dos milhões e milhões de imagens acumuladas e desenvolvidas durante o passar dos séculos, convertidas em códigos, em matrizes na nossa memória colectiva, que estamos

44

No capítulo 1.5 - Memória e Espaço Imagético – definimos o conceito de disposição a partir dos dados que António Damásio nos dá, sendo que o autor define este conceito como a estrutura geneticamente herdade, a «gramática» da imaginação. 45 O conceito de arquétipo é claramente abordado neste dicionário como sendo ideias do colectivo, absolutamente universais e portanto que se inscrevem em nós de forma inata, não adquirida.

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dependentes para produzir imagens. Esta gramática pode sofrer alterações na sua estrutura base, mas parece não poder inverter radicalmente, no curto espaço da vida de um homem, aqueles que são os cânones biologicamente herdados. Além disso, as novas imagens que produzimos são constantes (re)formulações de outras imagens. Estas, livres na sua infinidade de maneiras de «reorganizar o puzzle», mas sustentadas na matriz disposicional em que se apoiam, nunca são totalmente livres dessa estrutura gramatical, que na sua longa duração tende a permanecer como um pano de fundo onde se inscreve a nossa imagética, a nossa capacidade de imaginar. Lancemos agora uma nova questão: que elementos essenciais são esses que tendem a estabelecer os limites da nossa capacidade de imaginar? Que linhas somos incapazes de transpor? As nossas intuições puras avançam de forma veemente: o tempo e o espaço46. Sem eles, parece não ser possível imaginar, assim como aparentemente não é possível imaginar a sua ausência. Estes apresentam-se como pano de fundo de qualquer imagem sobre os quais a nossa imaginação tende a ser incapaz de transpor. Será pela razão de estes serem também condição essencial para que possamos adquirir imagem? Assim, como resposta às questões acima colocadas, fundamentadas nas ideias a priori kantianas e no incontornável contributo de António Damásio para uma compreensão mais científica destas problemáticas, a nossa sugestão é que o número de imagens que conseguimos representar é livre dentro da gramática que incontornavelmente utilizamos quando imaginamos. Gostaríamos de clarificar que, na nossa opinião, esta gramática pode ser rompida; por exemplo, consideremos a simetria uma gramática. Não temos imagem, isto é, entendamos a simetria como uma ideia, uma regra que é aplicada a todas as formas; o que se mantém invariável é a simetria, é essa disposição, essa implicitude. Rompamos a simetria, que regra surge? Será concebível a total ausência de regras? Ou, assim que rompemos uma gramática, de imediato criamos outra, e outra? No limite, não será a ideia de ausência de regra uma regra? O que pretendemos dizer é que podemos reformular elementos da

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Na sua obra, Dissertação de 1770 (título latino De Mundi Sensibilis atque Intelligibilis Forma et Principiis), que foi também a primeira que Kant escreveu no sentido de instauração da sua corrente filosófica, a Filosofia Crítica, Kant defendeu neste trabalho que só podemos conhecer “(Z) a priori o espaço e o tempo porque estes são formas impostas à experiência pela nossa própria mente. O espaço é um «esquema, assegurando, por uma lei constante da natureza da mente, a coordenação de todo e qualquer sentido externo»” (Blackburn, 1997, p.241 e 242).

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gramática que compõem a nossa matriz disposicional, mas não é possível romper com toda a matriz genética que se inscreve na mente, numa rede de regras que não é apenas imagética mas, também, anatómica, isto é, é física e biológica47 (Damásio, 2010, p.183). Será que foi na eclosão desta necessidade de romper todas as gramáticas - mas de incontornavelmente partir de uma, para chegar a outra, e outra - que o poeta Álvaro de Campos48 nos deixou o seu testemunho, no seu modo singular de dizer tudo de todas as maneiras? Que também por isso, e dessa forma, procurava eternamente um novo porto, sem nunca se sentir em casa? Aceitando que a ideia que temos de liberdade é a de ausência de qualquer barreira ou obstáculo, sugerimos: a imaginação não é a nossa liberdade mas a nossa condição. A liberdade da imaginação é finita nos elementos base que a compõem. Sabendo que o acto criativo vem de nós, também deve estar incluído no círculo desta nossa condição. Assim, reformulemos a nossa primeira pergunta, como a anterior sequência de ideias nos tende a querer orientar: como encara a vontade, a nossa não liberdade? Voltemos agora a nossa atenção para a vontade. A questão que inicialmente formulámos foi: qual o sentido para o qual direccionamos a vontade criadora? Quando nos referimos ao acto criador que visa executar uma identidade externa ao seu criador, que objecto queremos nós alcançar quando criamos? Vimos anteriormente que a vontade se manifesta sob a forma de um impulso que tem a sua génese em nós, é presenciado pela mente consciente e quer agir sobre, no sentido de modificar, um objecto. Esse objecto tem aqui a dimensão de imagem ou de ideia e, portanto, claramente não tem de ser físico e/ou adquirido pelos nossos sentidos. Como sabemos, não basta actuar sobre uma ideia que temos na nossa

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Segundo o autor, o espaço imagético é situado “[Z] no cérebro mapeador, o vasto território formado pelo aglomerado de todos os córtices sensoriais iniciais, as regiões do córtex cerebral situadas no ponto de entrada cerebral, bem como em redor, dos sinais visuais, auditivos e outros sinais sensoriais. Inclui igualmente os territórios do núcleo do tracto solitário, do núcleo parabraquial e dos colículos superiores”. Por sua vez, o espaço disposicional encontra-se “[Z] nos córtices cerebrais que não estão ocupados pelo espaço imagético (os córtices de alta ordem e partes dos córtices límbicos) e em diversos núcleos subcorticais” (Damásio, 2010, p.183). 48 Álvaro de Campos foi um heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935), poeta com uma personalidade de carácter fragmentado que ao longo da sua carreira literária criou vários heterónimos, personagens de carácter muito definido, sendo hoje em dia até comum quando nos queremos referir ao autor em si, denominarmo-lo de ortónimo. Álvaro de Campos “[e]ra um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo”.

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mente para fazer existir obra. Para que criemos, temos de tornar essa ideia física e palpável, visível aos olhos dos outros. Essa vontade, que começa por ser mental, tem de se tornar física. De alguma maneira, o cérebro e o corpo, entidade una, prolongamse sobre o espaço/tempo e querem fazer existir aquela que é a sua idealização. E daqui surge um diálogo na nossa consciência. Ao mesmo tempo que executamos a nossa ideia e que a tornamos física, constantemente avaliamos e comparamos a sua aproximação à obra idealizada. Por um lado, temos um actor/espectador que ao mesmo tempo que executa, comunica os seus resultados, ou seja, experimenta ao mesmo tempo que vai comunicando as suas experiências, e, por outro, temos o espectador que confirma a aproximação, ou não, da obra concretizada à obra idealizada, e para tal, socorre-se inevitavelmente da memória. Coloquemos então a mão na consciência: existe um eu - o proto-eu - que interage com o espaço físico e os objectos nele contidos, que presencia o momento e experimenta o real. No entanto, sem uma posterior fase que nos permita distanciar, ponderar, julgar, e assim participar na decisão das nossas acções - o eu autobiográfico -, seríamos apenas uns meros elementos de passagem pela realidade física. Parece ser justamente aqui que surge, entre estas duas faces que nos definem como um eu, um diálogo constante, uma interacção com estreita ligação à nossa dita vontade. De um lado, este eu que actua sobre o mundo e presencia essas mesmas acções. Do outro, a constante capacidade que temos de nos avaliar, de nos distanciar, de, independentemente do local onde nos encontremos no momento, de olhos fechados ou mesmo abertos, viajarmos na imensidão das nossas memórias passadas. Ou então de prolongarmos aquelas que são as visões que temos do futuro, de questionarmos todas essas nossas acções reais ou imaginárias. Neste diálogo, convertido monólogo pela tomada de consciência de um eu único, pomo-nos à prova sob as eternas questões: até onde somos capazes de ir? Quais os limites da nossa capacidade de realização? A vontade de ir mais e mais longe, de ir até onde ninguém foi, de deixar a nossa marca indelével, imortal, de nos transcendermos. Chegamos aqui a um ponto de carácter muito peculiar. Por um lado, temos esta vontade insaciável de ir sempre mais alto, mais longe, onde nunca ninguém foi. Ao infinito? Por outro, como sugerimos anteriormente, temos a nossa condição humana que nos limita de alguma maneira o poder de conceber obra criativa, que não nos deixa transpor uma determinada barreira. E deste confronto o que resulta?

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De todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficaz. É também o assombro testemunho da única dignidade do homem: a revolta tenaz contra a sua condição, a perseverança num esforço tido por estéril. Exige um esforço quotidiano, o domínio de nós próprios, a apreciação exacta dos limites do verdadeiro, a medida e a força. [Z] Que a grande obra de arte tenha menos importância em si própria do que na provação que exige de um homem, e na ocasião que ela lhe fornece, de vencer os seus fantasmas e de se aproximar em pouco mais da sua realidade nua. (Pereira, 2008, p.107)

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Será esta a razão por que procuramos continuamente uma forma ou uma palavra, um espaço ou um tempo que nos acalme o espírito? E que, assim, todo o acto criativo é também uma busca incessante de consciência? Que é na dimensão entre o real e o criado que nos podemos encontrar, que nos podemos (re)conhecer? Conhecemos um poeta pastor, que criava e não se procurava. “Sou místico, mas só com o corpo. A minha alma é simples e não pensa. O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso” (Caeiro, 1958, p.53)50

4.3. O DESENHO COMO IMPULSO HOMEOSTÁTICO: REFLEXÕES PESSOAIS PARA UMA DESCOBERTA INTERIOR DO DESENHO

Neste capítulo, e no capítulo final – As memórias e o desenho – usaremos o tempo verbal da primeira pessoa do singular. Tal opção assenta no facto de considerarmos profícua uma pesquisa sobre qual foi a experiência pessoal do próprio autor. Considerando que o tema em si aconselha a utilização do método introspectivo como forma de aceder à interioridade, e às memórias e sentimentos que se lhes associam, é nossa convicção que esta escolha permitirá ao autor que recorde agora, com um certo

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Albert Camus apud Pedro Botelho Pereira Ver nota de pé de página número 47. Alberto Caeiro foi um heterónimo de Fernando Pessoa. A interpretação que aqui sugerimos é que Fernando Pessoa, alma desassossegada criou este heterónimo no sentido de se apaziguar da incessante procura se si. Não conseguindo cessar a procura do seu ser, criou uma personagem, Alberto Caeiro, o poeta pastor que tinha como principal característica simplesmente viver sem pensar em si, representando assim a concretização de um desejo do próprio poeta. 50

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espaço/tempo de intervalo, o seu percurso pessoal de desenho, após 5 anos de contacto com a linguagem arquitectónica. Como abordamos nas reflexões iniciais, todos os seres vivos têm uma tendência para o equilíbrio: inata, biológica, não reflectida. O Homem, animal racional provido da capacidade de pensamento e munido de consciência autobiográfica, busca, não apenas adaptabilidade básica, mas, também, bem-estar, numa variação mais sofisticada da pulsão básica de vida e de prazer comum a todos os seres vivos, numa versão mais consonante com a sua dimensão biopsicosociológico. Esse grau elevado de sofisticação, a complexidade de pensamento e de reflexão, e a multiplicidade de escolhas que se configuram na mais simples tomada de decisão, explica porque estas são falíveis e tantas vezes consideradas a posteriori como menos adequadas na obtenção dessa homeostasia lactu sensu.

4.3.1. DESENHO: GÉNESE E EVOLUÇÃO A génese do desenho em mim recua ainda antes de ter traçado qualquer linha em folha de papel. Na reconstrução arqueológica dessa semente recordada, esse momento embrionário terá provavelmente ocorrido a primeira vez que ergui um lápis, que senti a sua textura, o seu porte. Foi também o lugar que proporcionou tal acontecimento, que o estimulou, porque ainda antes da experiência do acto do desenho em si, há múltiplas imagens e ambiências que o meu corpo apreendeu, mapeou e registou, convertendo-se assim, elas também, na pré-história desse desenho. A essa não memória, a esse momento, esse momento agregador de infinitos momentos, a essas imagens que o meu corpo registou, estão associados sentimentos, tal como todas as imagens que o nosso corpo apreende do exterior. É natural que tenha tirado prazer desse primeiro desenho. De facto, muitos se seguiram. O desenho apareceu na minha vida muito cedo, nesse tempo que recordo repleto de actividades lúdicas e de puro prazer. Certamente, se não estivesse a tirar qualquer prazer do acto do desenho, essa actividade seria naturalmente substituída por qualquer outra que assegurasse entretenimento, diversão, prazer. Nesta altura, desenhar tinha o mesmo significado que tinha para todas as crianças, o mesmo sentido que a própria vida tem: um jogo, uma brincadeira. Assim, não tinha uma plena percepção da capacidade do seu poder, da possibilidade que o desenho dava de formular imagens do meu interior, das imagens que o meu interior confrontava com o

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mundo que me rodeava. Exteriorizava simplesmente o impulso inato de querer fazer acontecer. Os temas de desenho das crianças geralmente resultam da sua realidade, a sua verdade do mundo que as rodeia, aquilo que os seus sentidos captam da realidade. Ou então são produto da sua imaginação, essas imagens não presentes que, por meio de cada linha traçada, podem existir, e então existem, dão o passo que afirma a passagem do mundo criado para o real, do mundo imaginado transformado realidade, como são também os sonhos, imaginação tornada real, enquanto vivida. Todos temos a experiência de viver a nossa imaginação infantil como se fosse realidade, de tornar real a nossa imaginação.

Ilustração 2 – “O Dragão” – Desenho de uma criança de 5 anos, Maria O’Neill (O’Neill, 2010, Lisboa)

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Desta forma, os desenhos deste tempo reportam a despreocupação com que olhava o mundo. Os desenhos, neste seu carácter de entretenimento, traduziam-se numa grande liberdade de expressão. Havia uma ideia temática geral, à partida, mas as formas apareciam como seguimento de uma intuição, como impulso natural, aparentemente não controlado e de todo não premeditado. Não havia, à partida, uma intenção de querer controlar aquele que seria o fim do desenho. Durante tempos, ouve esta dinâmica: utilizava-me do acto do desenho para conhecer o mundo, exterior e interior. Assim, o cérebro foi tornando o desenho um tema natural do corpo, mapeando-o, sistematizando-o pela repetição de acções, pela experiência. É natural que a primeira vez que uma criança risque uma folha, descubra “[Z] com o espanto de um espectador, o produto de uma faculdade que ignorava” (Stern, 1974, p.41). Ainda não existe essa imagem, apenas possivelmente uma disposição, uma não-forma à espera que esta apareça e a torne real, como um batedor que abre um novo trilho no meio da selva virgem. Gradualmente, com a entrada no ensino básico e mais claramente no primário, fui desenvolvendo um gosto pela capacidade que o desenho tem de se aproximar da realidade, como se pudesse, através do desenho, alcançar essa realidade, como se fosse possível atingir, talvez, até a perfeição. Por sua vez, os temas repetiam-se; provavelmente por serem ideias que mais ou menos conscientemente tendiam a querer ocupar espaço na minha mente, os conteúdos temáticos eram então explorados até ao limite, incansavelmente. A insaciável vontade de aproximação à realidade fazia cruzar objectos reais com mundos ideais. Era como se, através desses desenhos, eu pudesse converter esse mundo criado, esse espaço ideal, em realidade observada. Trata-se de converter o imaginário em realidade e ajustar a realidade à fantasia. Começaram assim a aparecer imagens pré-concebidas e inevitavelmente um querer controlar, no início do desenho, aquilo que pretendia que fosse o seu fim.

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Ilustração 3 – Desenho realizado com 12 anos de idade alusivo à procura de adaptação do desenho à realidade. (Ilustração nossa)

Qual a razão para que tal tenha acontecido? É provável que haja várias: o despertar para interesses mais maduros que se aproximavam mais daquelas que eram as inquietações da vida real, concreta; a necessidade de confronto com o real e a assunção de uma maior seriedade (no sentido de já não exclusivamente lúdico) que a vida gradualmente começava a apresentar. Por influência, também, acredito; recordome de sermos recompensados na disciplina de artes visuais por conseguirmos aproximar os nossos desenhos da realidade; não me recordo de ter havido o exercício no sentido oposto, conseguir elaborar um desenho que fosse o mais oposto possível à realidade captada. O ensino escolar primário tendeu a querer educar a minha cultura visual no sentido de me tornar um copista, e poucas foram as experiências feitas no sentido de fomentar a criatividade e a liberdade de expressão. Este processo de reprodução e de aperfeiçoamento do real observado perdurou durante algum tempo. Desenhava imagens que já conhecia, inovando, ligeiramente, com a introdução de ligeiras subtilezas. Ou simplesmente não inovando, apenas repetindo. Umas e outras, imagens desenhadas e suaves pormenores de rigor conceptual, considerava-os, à partida, controladas. Sabia que eram parte de uma composição que funcionava, que tinha um equilíbrio harmónico composicional, que preenchiam algo em mim.

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A entrada no 10º ano foi decisiva no sentido de desconstrução destas imagens préfeitas. Com o inesquecível contributo da Professora Rosa Fazenda51, pude aprender o abecedário do desenho e o seu valor plástico. Foi a partir deste tempo que comecei a aprender a exercitar, e assim compreender, o valor de cada ponto, de cada linha, o valor da cor e das cores. Foi por esta altura que comecei a manipular a percepção visual através de exercícios. Desta maneira, aprendia, ao mesmo tempo, a iludir a racionalidade com que o nosso cérebro tende a querer tomar conta do mundo e, assim, de nós. A questionar, a por em causa, a sua tendencial e constante necessidade de ter de dar um nome às coisas, de querer representar aquilo que ele sabe que o objecto é, e não aquelas que são as percepções que o nosso corpo apreende desse objecto. O valor que cada elemento que compõe uma imagem tem, sem que para tal careça de representar uma realidade. Que conteúdos podemos extrair desta reflexão no sentido da memória e da consciência? Ao reflectir sobre este processo evolutivo, que ocorre num contínuo e não, obviamente, em fases estanques, identifico três estados que se caracterizam por um conjunto de características que os definem e, por isso, diferenciam de outros. A primeira fase é referente ao desenho entendido quase como um jogo, uma brincadeira. O desenho como instrumento de carácter lúdico e intuitivo. Esta fase caracteriza-se por uma ausência de premeditação, de um programa, de um plano. Uma segunda fase tendeu a ter um desenvolvimento no sentido, diria eu, quase oposto: crescentemente parecia emergir uma maior preocupação de aproximar o desenho à realidade, de exercer um controlo sobre o resultado final (que agora já era conhecido à partida: reproduzir a realidade observada), de reportar ideais pré-formulados, de reproduzir imagens que, à partida, já conhecia e controlava. A terceira fase, sob a orientação da Professora Rosa Fazenda, foi quase como uma viagem no tempo até à primeira fase, um regresso. Mas um regresso com uma consciência crescente dos processos mentais que executavam o «jogo do real», desconstruindo as imagens pré-feitas, préconcebidas, confrontando-as, evitando-as e potenciando assim uma maior liberdade de representação e uma maior criatividade. Além disso, era um regresso com as memórias do caminho percorrido mas com uma capacidade de observação mais

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Rosa Fazenda é licenciada em escultura desde 1974. Em 1986, leccionou na Escola de Artes e Ofícios Ricardo Espírito Santo. Foi professora de Oficina de Artes no ensino secundário desde 1990. Actualmente, dá aulas particulares de desenho e artes plásticas.

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madura que o meu crescimento entretanto permitia. Eu não era o mesmo, nem tão pouco «o rio onde me banhava»52. Por que será que as crianças têm tão livre e grande imaginação, se têm menos imagens armazenadas na sua memória? O cérebro humano tende, ao longo do seu processo evolutivo, a categorizar os objectos que experimenta/conhece, a criar e a reconhecer padrões. Porquê? Este é um fenómeno natural que o cérebro realiza no sentido de economizar recursos cognitivos e gerir os trabalhos de memória: armazenamento, codificação, recordação, reconhecimento e recuperação, ou seja, o nosso cérebro arruma e organiza as imagens dos mapas mentais em grandes categorias de objectos, adequando-os - e adequando-se - assim ao mundo observado. Por exemplo, quando evocamos a palavra casa, esta abarca a infinidade de imagens relacionadas com o conceito de casa que nos foram presentes aos órgãos sensoriais. No entanto, do ponto de vista da evolução dos processos cognitivos e da tendência de categorização, essa infinidade de imagens é simplificada numa imagem standard que assim constitui uma categoria, uma imagem que a representa. As imagens de casa tendem a organizar-se numa imagem de casa. Esta função é desenvolvida gradualmente pelas crianças a partir de certa idade. Antes de uma criança exercer essa função de classificação e de categorização dos objectos em modelos standard de representação mental, o cérebro tem, naturalmente, uma maior liberdade, e assim, na sua livre forma de representação, dispara «em todos os sentidos» o reduzido número de imagens que tem. Esta ideia tende a sugerir algumas relações com as nossas questões do desenho, com o seu processo de evolução pessoal. Aceitemos então que é a ausência de uma organização/categorização de imagens que permite à criança, por um lado, que as expresse livremente, e, por outro, que essas formas compreendam um todo significante, isto é, que o desenho faça sentido, que preencha alguma parte de si e que isso se converta num sentimento bom, de prazer - condição para a continuidade da acção. A ausência de um grande número de imagens mentais internas pode, por sua vez, ser a razão da ausência de preconceitos do desenho, a razão pela representação ser tão livre de forma. Assim, provavelmente, terá sido o desenvolvimento natural de organização mental, de conhecimento do mundo real 52

O duplo sentido da frase de Heraclito – que invoca a impossibilidade do Homem se poder banhar duas vezes na mesma água de um rio, porque nem o próprio nem a água são os mesmos, o tempo encarregou-se de os mudar – pode aqui ser reinterpretado sob a forma de um regresso que não é regresso, é caminho.

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externo, que pressionou a que os temas de representação se começassem a querer adaptar à realidade, a ter de fazer sentido face a esse crescente conhecimento. A liberdade temática reduzia-se à medida que o cérebro ia organizando o mundo. Os objectos representados procuravam um compromisso entre representar o real observado e criar primeiro, reproduzir depois, uma imagem padrão, categórica, que assim permitia uma dupla função: aperfeiçoar o desenho, no sentido de o colar ao real, e criar uma representação mental e gráfica para uma categoria que assim se afirmava como capaz de o representar. Por fim, a última fase do desenho parece partir de um estudo, uma pesquisa que decompõe o desenho nos elementos que o constituem. Todos os traços, por mais pequenos e aparentemente irrelevantes que possam parecer, apesar de não terem um nome - no sentido em que por si só aparentemente não representam um objecto - têm um valor e um significado, porque são imagens e enquanto imagens são sempre sentidas. E enquanto imagens sentidas, têm um valor e um significado que lhes atribuo. O desenvolvimento do desenho tomou este sentido, o da experimentação, o desígnio sobre a forma e o sentimento que lhe é atribuído. É neste sentido que o desenho aparenta ser uma linguagem que se desenvolve para o infinito, em busca da expressão, em busca da identidade única, acompanhando o tempo e a incontornável mudança que este arrasta para - e em - cada um de nós. Assim, o desenho ainda hoje me acompanha, na minha evolução, no sentido de me trazer conhecimento do mundo, e, assim, de mim, permitindo-me e ajudando-me a elevar o meu nível de consciência de que existo, e de que existe um mundo à minha volta.

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Ilustração 4 – Detalhe da figura 2 – “O Dragão”, Maria O’Neill (O’Neill, 2010, Lisboa)

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4.3.2. O DESENHO COMO LINGUAGEM Compreendo o desenho como uma forma de linguagem. Uma linguagem com características que o distinguem de todas as outras. Pelo seu carácter universal e instintivo, não precisa de ser interpretada. Podemos explicar detalhes de determinado desenho afirmando: esta linha tem este significado; aquela foi feita com aquele propósito. Mas a maior força que o desenho provavelmente contém é essa capacidade de comunicar por si só. Sem tradução. Porque, de alguma maneira, no sentido em que é formulação de imagem, o desenho também é intuição. O desenho é representação de imagens do exterior ou do nosso interior e, desta maneira, permite àquele que o pratica aproximar-se dessas imagens, comunicar com elas, conhecê-las, ao mesmo tempo que muda também algo em si, na maneira como conhece esse objecto, como se reconhece nesse objecto e assim como se conhece a si mesmo. Existe uma tendência geral de querer interpretar cada traço feito numa folha de papel, de querer justificar a existência de cada linha traçada. Esta nunca precisará de tal opinião. Só pelo simples motivo de alguém ter ousado expressar-se, pela ínfima razão de ter existido uma vontade de falar sob a linguagem do desenho, esse acto vale por si. “Como se desenhar fosse por si só o modo natural de pensar, e que no seu incessante executar se pudesse ascender a uma outra consciência, iludindo o condicionalismo gerado pela formatação do seu ser, por parte da literacia ocidental” (Pereira, 2008, p.42)53. Não conseguimos compreender o que o desenho significa. Não importa. Provavelmente, não foi feito para ter significado mas apenas pelo mais puro prazer de riscar, de expressar formas, numa busca de nos conseguirmos surpreender. O desenho é feito dessa linguagem diferente: o seu alfabeto varia entre a linha mais ténue e a mais demarcada, a mais decidida ou nervosa, a que se socorre do carvão ou que utiliza a caneta. E cada opção é importante, porque cada um destes pormenores é sensação, é percepção, é imagem e, assim, também sentimento. Qual a intenção com que faço cada desenho? A procura, a compreensão, o desafio daquelas que são as minhas capacidades; ou então pelo mais puro prazer de riscar, de expressar formas, para me surpreender, depois, no seu resultado. É uma 53

Tende a ser inevitável concordar que a cultura ocidental fomenta uma forma de conhecimento que é exprimível por palavras, mais racionalizável, e que, assim, de algum modo, exerce pressão sobre a liberdade criativa individual.

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incontornável vontade de comunicar comigo e com o mundo, de partilhar, de dar resposta a essa característica tão humana de querer saber mais e mais, de compreender as mais profundas imagens que o meu ser concebe, de poder exterioriza-las, e trazê-las, assim, ao mundo real. De poder dar uma forma aos sentimentos, essas ideias amorfas, essas imagens que percepciono e que nunca me satisfazem plenamente com a forma que lhes dou. De me expressar, de corporizar os mais primitivos instintos do corpo e, assim, também, aproximar-me mais um pouco dele. De conseguir formular a linguagem selvagem com que o corpo apercebe do mundo, sem que passe pela intelectualização da palavra. Uma reacção fisicamente sentida do mundo e para o mundo. Quase como uma retribuição a este por me ter dado a dádiva de poder sentir, dando às imagens puras, que através dele apreendo, novas formas, novas imagens. Como um canto de celebração. É em todos estes sentidos que o desenho é memória. A memória de uma língua do tempo. Uma linguagem que nos permite uma outra forma de conhecer e uma outra consciência de nós. Uma consciência não-verbal que se utiliza da nossa imaginação para exteriorizar sentimentos, percepções, não-palavras.

Ilustração 5 – “Study for Composition VII (Improvisation 3)”, Lenbachhaus Gallery, Munich. Wassily Kandinsky (Philips, imp. 1997, p. 39)

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4.3.3. DESENHO E PROCESSO ARQUITECTÓNICO Todas as reflexões que desenvolvemos até ao momento, assentes numa relação entre um sujeito e um objecto, passam agora a ser entre um sujeito e um não-objecto, entre um eu e o espaço. Podemos sugerir, por isso, que damos aqui um passo para «o outro lado do espelho». Este «pormenor» modifica a geral relação que temos de localizar um objecto, alargando-a a uma envolvência total por parte desse não-objecto, a uma capacidade de percorrer esse não-objecto através do tempo, a uma omnipresença, pois o espaço, tal como o tempo, estão em todo o lado. Assim, o nosso não-objecto de estudo passa a ser o vazio interactivo, o espaço transicional potenciador de trocas, a zona de fenómeno de constante ajuste entre percepção e projecção. Por sua vez, este não-objecto é-nos perceptível por meio dos objectos que o compõem, que o definem. No sentido em que o espaço é identificado, nós atribuímoslhe uma identidade, nós temos uma ideia de cada espaço, por meio das formas que o definem. É por meio da forma que conhecemos, que tomamos consciência do espaço, pois, como sabemos, até que uma forma o divida, espaço há só um. Portanto, pensar espaço é também pensar forma, que, por sua vez – a forma – quando é pensada também ocupa um espaço. É natural notar que percorremos um círculo e foi justamente neste círculo que encontrei o primeiro desafio no primeiro ano do curso. O percurso que tinha vindo a desenvolver visava sempre um olhar sobre o espaço através da forma. A pergunta que surge então é: quais são as linhas que distinguem aquele que projecta formas daquele que projecta espaço? Arriscamo-nos o sugerir: aquele que pensa forma, olha a forma, sente a matéria; o espaço é definido e aparece em função da forma que concebe. Aquele que projecta espaço olha o vazio e as formas que este define têm um carácter secundário, vêm por arrasto, em função daquilo que são as decisões que temos em relação ao espaço. Aquele que pensa espaço olha o não-objecto, percorrivel, pensa no vazio e no seu potencial funcional. Sob o processo de aprendizagem arquitectónica, o vazio passa a ser o objecto foco de todas as atenções, passa a ser o protagonista do nosso pensamento.54 É como se fizesse a inversão de papéis que a nossa mente parece tomar como naturais:

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Recordamos, a propósito desta reflexão, a máxima de Louis Sullivan (1856-1924) – arquitecto americano, considerado o primeiro arquitecto modernista - “a forma segue a função”, que, numa reinterpretação, arriscamos a afirmar, que no processo arquitectónico, a forma segue o espaço. Espaço e função são simultâneos, pois o espaço arquitectónico é para ser vivido, é para funcionar.

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geralmente, quando pensamos numa imagem, ocorre-nos uma forma. Pensar espaço aparentemente é pensar o vazio de cada imagem que a nossa mente projecta. Sendo portanto a forma que caracteriza o espaço, é pelo seu carácter e composição que o espaço assume diferentes identidades. Como vimos, o nosso cérebro apreende através dos órgãos sensoriais do corpo a informação descritiva referente aos objectos que preenchem os espaços que nos rodeiam. Vimos também que o cérebro compreende sequências de imagens do nosso corpo em interacção com o espaço, sendo que os aspectos quantitativos caracterizadores das formas que definem esses espaços traduzem-se em nós em aspectos qualitativos.55 Compor espaços é, então, definir formas quantificáveis, exactas, por meio das quais sabemos que aqueles que vão percorrer esses espaços lhes vão atribuir determinada qualidade. É esta qualidade em cada um de nós, em cada estado de espírito, através do seu vazio interactivo, do seu espaço transicional, que apreende imagens sentidas desses espaços; e assim, cada eu, cria atmosfera, poética, vive arquitectura sentida. As paredes [Z] elevam[-se ao] céu [em uma] ordem tal que fico comovido. [Z] [Os] [m]eus olhos contemplam algo que enuncia um pensamento. Um pensamento que se ilumina sem palavras nem sons [Z] é belo quando a precisão da modelagem e a disposição dos traços revelam proporções que sentimos harmoniosas porque provocam no fundo de nós mesmos, além dos nossos sentidos, uma ressonância, espécie de mesa de harmonia que se põe a vibrar [Z] em perfeito acordo com a natureza e, provavelmente, o universo, esse eixo de organização que deve ser o mesmo sobre o qual se alinham todos os fenómenos ou todos os objectos da natureza; este eixo [Z] leva[-nos] a supor uma unidade de gestão do universo, a admitir uma vontade única na sua origem. [Z] A arquitectura existe quando há emoção poética (Le Corbusier, 1989, p.145 à 157).

O pensamento arquitectónico é, então, uma ideia que antecipa, uma previsão dos sentimentos daqueles que irão percorrer o espaço criado, para que este comporte um equilíbrio com o universo, para que este nos preencha como um todo. Para que um equilíbrio exterior nos preencha o interior. Para que o equilíbrio interior, que aquele que projecta sente na realização do seu trabalho, se transforme em espaço, e que este espaço preencha o outro, organize o seu eixo, e que, assim, o pensamento arquitectónico seja uma partilha de uma imagem, de uma ideia, de uma emoção.

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A recepção sensorial por parte do corpo/cérebro, entidade una, é um tema fortemente abordado no capítulo 2.1 - A Mente.

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Pediam-nos, então, que atribuíssemos uma identidade ao espaço. Identidade no sentido que a própria palavra indica: a ideia do ente, a ideia que temos de algo. Este era o segundo desafio. Ter uma ideia espacial, dar uma identidade ao espaço, para, depois, efectivamente o construir, ou imaginar a sua construção. Façamos uma breve reflexão, de forma muito geral e pragmática, sobre os passos que um projecto arquitectónico percorre: primeiro, o surgimento de uma vontade, de alterar algo num lugar; depois, o cumprimento dessa alteração, articulando este percurso com uma análise da forma como o arquitecto utiliza o desenho para projectar espaço. Há uma vontade de mudar um lugar, um sítio, e, em função das novas características que se querem atribuídas a esse lugar, é feito um programa. O programa define os pressupostos do projecto, as áreas que devem estar incluídas na sua realização no sentido da sua função. São quantidades de espaços necessárias para que este lugar desempenhe a sua nova função, para que essa nova arquitectura possa ser vivida. E é mais ou menos nesse formato que nos é posto o problema: existe um lugar e um programa que visa transformar esse lugar num novo. Cabe ao arquitecto conhecer o lugar e propor um novo lugar, que incorpore este programa. É nesta implantação, é neste novo olhar que visa um novo lugar que nos é pedido que tenhamos uma ideia espacial, arquitectónica, unitária, que dê um sentido, uma identidade ao todo, ao novo espaço projectado, ao mesmo tempo que resolve um problema prático. A ideia deve ser a solução do problema - humano (Tainha, 2006, p.125). É esta ideia que, construída, deverá dar um sentido, uma identidade, ao novo espaço proposto. Por sua vez, é desta ideia geral que hierarquicamente se vêm articulando novas ideias de espaço, particularizando gradualmente os espaços até ao pormenor. Assim, o projecto arquitectónico é uma ideia construída (Baeza, 2010) que parte de um sentido geral, de uma identidade abrangente, para a particularidade das diferentes identidades de cada espaço seu composto. Uma ideia é uma imagem, pois é a nossa imaginação que nos permite idear. Uma ideia nova é uma nova imagem, fruto da nossa capacidade de idear. Uma ideia arquitectónica é uma imagem de espaço proveniente da capacidade humana de imaginar. Ela visa a solução de um problema humano. A arquitectura é feita para o homem, é pensada para servir o homem: “[Z] a estrutura espacial dos actos, gestos, eventos e acontecimentos, desempenhados pelas pessoas é o assunto, o elemento chave de todo o projecto arquitectónico” (Tainha, 2006, p. 15).

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Assim, é deste modo, do homem e para o homem, que parece surgir o desenho. O desenho surge como ferramenta para pensar e projectar espaço, como formalização, corporização da ideia, da estrutura espacial. Surge como geometria, como veículo primordial de relação entre o homem e a arquitectura. O desenho permite ao homem a representação da realidade, da sua realidade, do seu mundo. Deste modo, existe uma dimensão, um barómetro, que aproxima ou afasta cada representação do seu objecto em vista, conforme a capacidade ou a intenção do seu autor. É também esta a linha que distingue a realidade da criação, da realidade criada. É nesta dimensão que nos parece ser dada também a possibilidade de identificar a expressão do desenho. A expressão como a compreensão da forma, da ideia, da imagem que a originou, do sentimento que lhe está subjacente, e, assim, talvez, alcançar a emoção do desenho. A expressão como dimensão que identifica, que situa, que é a linha da identidade, da ideia, da imagem, forma e espaço, da linguagem do desenho, que é ao mesmo tempo uma resposta a um impulso mais biológico ou mais cultural. É deste modo que o desenho parece ser também uma forma que encontramos para nos relacionar com o mundo, à procura de equilíbrio biopsicosociológico. Assim, gostaria de propor uma divisão do desenho arquitectónico em duas versões que, nesta linha de pensamento, parecem poder ser compreendidos como distintas, mas complementares, e que seguem a própria linha de pensamento do processo arquitectónico: o esquisso, desenho de carácter especulativo, de procura, que não afirma com exactidão geométrica a forma espacial que busca conhecer; o desenho técnico, rigoroso, que descreve milimetricamente a realidade pensada como é. Estas duas versões do desenho apontam para a evolução do desenho em si e para a evolução do processo arquitectónico. Desde a ideia geral – o conceito – para uma hierárquica descida piramidal construtiva de ideias até ao detalhe, o desenho percorre este caminho lado a lado com aquele que projecta. Formalizando as ideias, construindo-as, dando-lhes gradualmente uma medida cada vez mais próxima do nosso ideal, porque “[Z] pensar e desenhar são uma e a mesma coisa: pensa-se a desenhar, desenha-se a pensar, [o desenho é pensamento,] até tudo bater certo. E é neste exercício que se valida ou invalida um pensamento arquitectónico [Z]” (Tainha, 2006, p.70), que se vão tomando as decisões que queremos para o espaço no modo

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dos conhecidos versos do Cântico Negro de José Régio56 (1901-1969): “Não sei por onde vou, Não sei por onde vou – Sei que não vou por ai”. Neste sentido, o desenho é pensamento que avança, vai descobrindo o seu caminho, porque, como sabemos, a mão e o cérebro são um só. O desenho técnico final representa a realidade a ser construída. Este desenho é o produto da sucessão hierárquica de ideias e suas recorrentes experimentações que culmina na projecção da realidade criada. É o resultado da constante procura, das sucessivas camadas, das sucessivas ideias, imagens, dos sucessivos desenhos que o arquitecto vai fazendo para que a memória não o traia. O desenho é um querer manter consciente os cinco sentidos que o cérebro e o corpo experimentam por meio da realidade e da imaginação. É um experimentar a realidade imaginada. Por sua vez, é neste processo, neste caminho, que o esquisso, como sucessão de imagens postas em papel, potencia, por um processo hermenêutico, novas interpretações, a descoberta de novas ideias, de novas imagens. Se, por um lado, o esquisso é sedimentação, marcação de um ponto – no nosso mapa mental – que consideramos importante, por outro, por constante atribuição de significado, que, conforme já abordado, o nosso cérebro/corpo atribui a um ícone, a uma imagem, ainda antes da recepção de um estímulo, é potenciada a extensão desses mapas, criando novos mapas. Este parece ser o processo generativo do desenho (Duarte, 2004). O desenho é um catalisador de memórias que potencia novo conhecimento, que estende cada vez mais e mais longe o nosso mapa mental que é o processo arquitectónico. Assim, a obra arquitectónica é o resultado de uma viagem, de um mapa criado na nossa mente e o desenho é o registo, é a forma primordial desse caminho. Quais aparentam ser, de uma forma muito geral, as linhas orientadoras de um desenho que procura espaço? O desenho geométrico parece ser indiscutível quando nos referimos ao desenho rigoroso. A geometria parece assumir o papel de disciplina essencial, de veículo primordial do pensamento arquitectónico, como medida, como quantificação do espaço.

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José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, foi um escritor português que viveu grande parte da sua vida na cidade de Portalegre (de 1928 a 1967).

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Por sua vez, no esquisso, ou em todo o desenho de carácter mais livre, o desenho de estrutura parece assumir uma posição de prevalência. O espaço, como vazio, socorrese de um sentido, de uma direcção; a estrutura é a forma mais eficiente que aquele que projecta encontra para organizar o espaço. É a solução que resolve a ambiguidade entre o espaço e a forma. Acredito ter sido essa a razão deste ter sido tão fortemente debatido na disciplina de desenho do curso. O desenho que olha as linhas invisíveis, de construção de uma forma, porque cada forma tem uma estrutura que define e assim também um espaço que ocupa. Os desenhos do escultor Alberto Giacometti57 (1901-1966) são um excelente exemplo do que significa desenhar estrutura: formulação das linhas implícitas de composição de espaço/forma, conceitos inseparáveis.

Ilustração 6 – Tête D’Homme, Colecção particular, Alberto Giacometti (Giacometti, 1994)

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Alberto Giacometti foi um artista suíço que se distinguiu pelas suas esculturas e pinturas expressionistas.

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Por fim, a conceptualidade do desenho arquitectónico apresenta-se de compreensão fundamental, no sentido em que dá possibilidade ao arquitecto de poder formular a percepção dos seus cinco sentidos, de dizer a si próprio tudo de todas as maneiras, para que a imagem se torne signo, o signo em memória, e que a memória, enquanto for viva, possa trazer a imagem de volta, possa mantê-la consciente. Assim, a conceptualidade, remete para uma relação entre ideia e emoção, protagonizando estas, em conjunto, uma narrativa de espaço. Mas perguntamos agora: o que significa tornar o espaço protagonista? Como é que operamos esta formulação de uma ideia emocional em espaço? Que equilíbrio, que parte de mim, se transforma em espaço? Se formos ao encontro das questões deixadas em aberto no capítulo 4.2 – Processo criativo ou em busca de consciência? estas perguntavam: é todo o acto criativo uma busca incessante de consciência? Será na dimensão entre o real e o criado que nos procuramos, que nos queremos (re)conhecer? Considerando que o espaço é o elemento principal de criação arquitectónica, perguntamos: é todo o pensamento arquitectónico uma procura de conhecimento, de consciência da nossa identidade? E, se sim, de que forma é que nos reconhecemos em espaço? E que forma assume o desenho nesta procura? O desenho, como vimos, é a forma primordial do pensamento arquitectónico. Será ele o registo, a prova da constante e incansável busca deste eixo, ponto de equilíbrio que nos preenche, que nos faz sentir como pertencente a um todo?

4.4. CASO DE ESTUDO: ACADEMIA DE TEATRO Este capítulo visa atingir o objectivo último do trabalho: procurar uma verificação prática de como as memórias operam sobre o desenho como forma de pensamento arquitectónico. Para tal, utilizaremos como objecto de estudo o trabalho de 5º ano na disciplina de projecto: uma extensão de uma Academia de Teatro, trabalho executado em regime de programa Erasmus, na Universidade Politécnica de Varsóvia – Politechnika Warszawska – na Polónia, no ano lectivo de 2009-2010. O objectivo é, portanto, clarificar como funciona a relação, os processos, sob os quais a mente consciente, ou seja, cérebro e corpo entidade una (com o conhecimento que têm de si e dos objectos que o rodeiam), se utilizam da capacidade de um eu

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autobiográfico; de se deslocarem através das experiências passadas ou projectadas para o futuro, para desenhar, para desenvolvimento do pensamento arquitectónico. A área de intervenção, localizada no centro da cidade, compreendia um espaço, uma praceta ou pátio público, delimitada por dois edifícios de uma escola de música, em lados opostos em relação à praceta: um edifício de habitação, de um lado, e a academia de teatro, edifício que deveria servir de base para a concretização do projecto, e que deveria ter acesso directo garantido, do lado oposto. Assim, o terreno era delimitado por quatro edifícios: quatro frentes e quatro alçados, o que confere à área de intervenção uma forma quadrilateral.

Ilustração 7 – Localização da área de intervenção. Vista por baixo das arcadas de um dos edifícios da escola de música com o outro edifício no lado oposto, a actual academia de teatro, do lado direito, e o edifício de habitação de fachada cega, do lado esquerdo. (Ilustração nossa)

O tema do trabalho era a criação de uma área multidisciplinar que devia estabelecer uma relação entre a fachada cega do edifício de habitação presente e o edifício da

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academia de Teatro. Esta área multidisciplinar deveria incorporar uma sala de espectáculos com lugar para trezentas pessoas, o dobro das cento e cinquenta pessoas que o edifício de teatro existente tinha. Uma entrada para zonas técnicas – assim como para o backstage – teria de ser assegurada. Uma garagem subterrânea deveria ser também incluída. Além da evidente zona de acesso principal do edifício, deveria ser garantido um acesso directo à antiga academia. O programa dividia-se deste modo em três sectores principais: os espaços públicos (sala de espectáculos, hall, bengaleiro, sala de ensaios, bar, ginásio); zonas de apoio ao palco (armazém de material, side ou backstage, guarda-roupa com casas de banho e uma sala de descanso); áreas de educação (sala de gravações, sala de professores, secretaria, gabinete médico, salas de workshop e áreas técnicas). A área de intervenção era uma praceta, de pequena escala, humana, na zona antiga da cidade. Varsóvia, construída praticamente toda de raiz após a II guerra mundial, apresenta um estilo imperial fortemente marcado por avenidas muito largas e extensas, e por praças de escala excessivamente grandes (o exemplo máximo é a praça do palácio da cultura com uma área de aproximadamente 300 000m2, 450 x 650m). Apenas a zona mais antiga da cidade foi reconstruída de forma totalmente fidedigna à época anterior ao bombardeamento durante a guerra, de forma a preservar a memória da zona antiga da cidade. Contrariamente à fórmula geral, esta praça tinha uma dimensão acolhedora, mas apresentava-se vazia, sem movimento. Era mais uma das inúmeras pracetas que conhecemos, descaracterizada, um «resto» da cidade. Neste seguimento de ideias, emergiu uma primeira intenção: manter o carácter de praça no lugar, reabilitando-a, procurando dar-lhe uma nova dimensão mais dinâmica. A ideia surgiu cedo na concepção do projecto. Na primeira visita ao terreno, a minha mente formulou a imagem de um edifício suspenso no ar, libertando o piso do rés-dochão. Esta ideia permitia ir ao encontro das intenções que eu tinha para o espaço: manter a permeabilidade visual e preservar o carácter de pequena praça do lugar. As arcadas de presença assinalada podiam ser também uma referência de fortalecimento de relação com o sítio.

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Ilustração 8 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa)

Ilustração 9 – Planta de Implantação. (Ilustração nossa)

O primeiro volume, a primeira ideia de espaço, surgiu como ligação directa entre as duas fachadas que tinham de ser relacionadas, deixando o rés-do-chão e o primeiro andar em vazio, suspensos por meio de fortes pilares ligados por arcos. Um dos

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pilares centrais seria de um diâmetro suficiente para permitir criar um espaço central de comunicação com a praça Três principais dificuldades intercediam na aceitação desta forma geométrica para a concretização de todo o programa: (1) a ideia de manter uma zona de acessos central foi rapidamente abandonada pois entrava em confronto com a possibilidade de a enquadrar com o espaço da sala de espectáculos a um nível acima do chão; (2) um segundo problema impossibilitava a utilização única deste volume e a concretização das zonas técnicas de acesso directo ao palco - a necessidade de incluir um side ou backstage; (3) por análise ao cumprimento das áreas do programa, foi também desde cedo evidente que, ou o volume inicial era alterado, ou teria de estender a zona de implantação para pisos subterrâneos. Como resposta ao primeiro dos três principais problemas, a zona principal de acesso ao edifício passou a ser numa extremidade. No lado oposto, existiria um elevador de cargas com comunicação directa para as áreas técnicas e ao palco, side e backstage

Ilustração 10 – Planta do piso 0 à escala 1:500. (1) Hall_70 m2. (Ilustração nossa)

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Ilustração 11 – Corte A à escala 1:500. (Ilustração nossa)

O segundo problema foi resolvido através do enquadramento de um volume lateral ao corpo do edifício principal.

Ilustração 12 – Planta do 2º piso à escala 1:500. (1) Palco_100m2 (2) Side stage_100m2 (3) Sala de espectáculos_300m2 (4) Zona técnica_70m2. (Ilustração nossa)

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Ilustração 13 – Planta do 1º piso à escala 1.500. (1) Hall_300m2 (2) Sub stage_100m2 (3) Zona técnica_70m2 (4) Hall_60m2 (5 e 9) W.C._2x15m2 (6 a 12) Vestiários_6x10m2. (Ilustração nossa)

Ilustração 14 – Corte C à escala 1:500. (Ilustração nossa)

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Por fim, a definição de dois pisos subterrâneos com acessos por meio de um pátio central, projecção horizontal da forma do edifício no plano do chão, surgiram como resposta ao terceiro problema. Desta maneira, foi possível organizar os espaços com as áreas necessárias para o cumprimento do programa: nos pisos superiores, ficariam a sala de espectáculos, com o palco e todas as áreas técnicas e de produção que esta implica. O pátio, por sua vez, distribuiria as restantes áreas, tanto de carácter mais comum, como técnico e educacional: o bar, ginásio, sala de ensaio e sala de professores. Assim, garantiria que o pátio seria uma zona dinâmica, de forma a integrar todos os aspectos funcionais do edifício.

Ilustração 15 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa)

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Ilustração 16 – Planta do piso -1 à escala 1:500. (1) Sala de ensaios_130m2 (2) Sala de professores_70m2 (3) Cozinha_24m2 (4) WC_10m2 (5 e 6) WC_2x20m2 (7 e 11) Zonas técnicas_60m2 (8) Ginásio_40m2 (9 e 10) Salas de workshop_75m2 (Ilustração nossa)

Ilustração 17 – Planta do piso -2 à escala 1:500. (1) Sala de ensaios_130m2 (2) Gabinete mádico_35m2 (3) WC_10m2 (4 a 6) Escritórios e arquivo_3x20m2 (7 e 8) WC_2x20m2 (9 e 13) Zonas técnicas_60m2 (10) Ginásio_40m2 (11) Sala de descanso_45m2 (12) Sala de workshop_30m2 (14) Pátio_450m2 (Ilustração nossa)

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Ilustração 18 – Corte B à escala 1:500. (Ilustração nossa)

Enquanto materialidade, o branco parecia querer permanecer como predominante. Deste modo, poderia sugerir uma relação de unidade funcional com o edifício préexistente da escola de música. Talvez assim pudessem ser lidos como um todo. Neste mesmo sentido, a cobertura seria em chapa metálica escura. Havia ainda a questão dos arcos: como reinterpretá-los sem cair num revivalismo ao modo de Eugène Viollet-le-Duc58 (1814-1879)? Será que a solução técnica de simulação dos arcos por meio da utilização de uma malha metálica de densidade suficiente para permitir ver, através dela, a estrutura metálica em I’s de aço, é suficiente para sugerir aos espaços que envolvem uma nova leitura arquitectónica? Não é uma cópia, mas uma reinterpretação? E persistia um problema que o professor Jakub Wacławek59 (nascido a 1951) – o professor de projecto – levantava mais ou menos deste modo: “[Z] esta questão dos pátios exteriores, muito ao modo do sul, mas nós estamos na Polónia, e se este pátio 58

Eugène Emannuel Viollet-le-Duc foi um arquitecto ligado à arquitectura revivalista do século XIX e um dos primeiros teóricos da preservação do património histórico. Pode ser considerado um precursor teórico da arquitectura moderna. 59 Jakub Wacławek é um arquitecto polaco. Em 1991 fundou o seu atelier de arquitectura com o nome de ARE que ainda se mantêm activo actualmente. É presidente da associação de arquitectos polaca.

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for utilizado 6 meses do ano é porque foi climatericamente um ano excepcionalmente quente”. Portanto, havia que garantir que este pátio não fosse exterior mas, sim, interior. E foi também assim que emergiu a ideia de que a própria malha metálica que simulava os arcos se poderia tornar na cobertura do pátio, convertendo-o num pátio interior por meio de um preenchimento desta malha em vidro. Sendo este pátio direccionado para fins recreativos, de carácter dinâmico, seria oportuno utilizar cor nos vidros que definem a cobertura?

Ilustração 19 – Desenho de estudo. (Ilustração nossa)

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Que reflexões podemos extrair em relação às memórias por trás de cada desenho executado ao longo do projecto? Ou então: que memórias estão por trás de cada ideia, de cada intenção de espaço, de cada desenho que, como sabemos, é uma forma de pensamento arquitectónico? Talvez mais importante do que falar das memórias explícitas que nos ocorrem na mente quando estamos a projectar e que estabelecem uma referência evidente, actuando assim, activamente, no acto do desenho, forma do pensamento arquitectónico, parecem existir umas outras memórias que se diluem pelos nossos mapas mentais. Uma infinidade de memórias que, mesmo que não sejam passiveis de serem recordadas, foram vividas, experienciadas e fazem parte do nosso armazém de imagens sentidas. Deste modo, as memórias que alimentam constantemente a nossa estrutura autobiográfica são também o reflexo da nossa identidade. Estas memórias «perdidas», apesar de não estabelecerem uma referência explícita no processo projectual, parecem estabelecer directrizes. São categorias de imagens sentidas que, de algum modo, definem a ideia que temos de nós, da nossa identidade, dos espaços em que nos reconhecemos. Parece existir essa tendência natural, quando temos de reflectir sobre determinada coisa, de nos socorrermos das coisas que lhe são semelhantes, que estão na mesma categoria, das coisas, com as quais, estabelecemos uma associação mnésica. Será que a intenção de reconverter aquela praceta, de reabilitá-la e assim torna-la num lugar dinâmico, com vida, é consequência do valor que este género, esta categoria de espaços, teve no meu desenvolvimento pessoal autobiográfico? Será que esta manifestação da intenção de requalificar o valor de praça do lugar é resposta de pensamentos e de emoções, imagens sentidas que eu tive em lugares com os quais, de algum modo, posso estabelecer uma analogia com este? Que estas memórias de determinado momento dão o passo determinado que diz: estas são as intenções que eu tenho para este espaço? E se o ambiente é simultaneamente educacional e público, que recuperação ou recordação mnésica de contextos socioculturais análogos? Quando eu quero para este espaço vida, movimento, pessoas e as imagens sentidas que estas trazem consigo, quero-os a partir de momentos mentalmente experienciados, de memórias de espaços, de imagens que mesmo que eu não tenho conhecimento, não as recorde no momento em que a minha intenção se

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manifesta têm um papel activo nas decisões projectuais. Mas esta é ainda uma intenção e não uma ideia formulada. A ideia parece concretizar-se quando eu imagino uma forma, quando idealizo um volume que permite que a minha intenção se materialize. Este volume aparecia sob a orientação das linhas dos dois edifícios que tinham de ser relacionados. Na minha mente, formulava-se como seguimento natural dos edifícios envolventes: um volume que resultava simplesmente da união das superfícies definidas pelas fachadas, libertando o piso térreo. Mantendo os telhados de duas águas, permitia que o meu edifício fosse quase como um prolongamento natural do edifício de habitação existente. Voltamos a recuperar a questão que deixamos em aberto no capítulo 3.3. A consciência: “[p]odes porque deves?” (Schopenhauer, 2002, p.15) Pergunta-nos Kant. A questão pode ser interpretada no sentido de questionar de que forma é que pesa a memória colectiva no processo arquitectónico. De que forma é que essa memória colectiva, que alimenta o espírito do lugar, deve ser consagrada? A questão também pode ser interpretada no sentido de questionar de que forma é que pesa a memória pessoal no processo arquitectónico. De que forma é que essa memória pessoal, no sentido de uma estética e de uma ética, deve também ser consagrada? De que forma é possível conciliar essas duas dimensões, essas duas sementes de memória, sem corromper a sua essencia? Eu queria manter a forma geral dos edifícios para preservar ou para contrariar as memórias passadas que compreendo? E que memória futura queria alterar à memória subjacente ao espírito daquele lugar antes da intervenção proposta? Qual a referência a criar? Respeitar? Transgredir? É nesta dialética, nesta ténue linha, que emerge o justo? Portanto, naquele momento, a minha memória pessoal em confronto com aquele que era o espírito do lugar que eu percebia decidiu projectar uma memória futura que enquadrava as linhas gerais dos edifícios existentes. O mesmo aconteceu com a reinterpretação das arcadas que mostravam influência evidente, momentânea das arcadas existentes no sítio. Era este o seu peso também. Sabia que se não as reformulasse cairia numa cópia, num revivalismo que nada traria de novo, que não era criativo.

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5. CONCLUSÃO Parece ser num misto de equilíbrio de vontade, intenção e preenchimento do eu, de emoção e do permanente confronto com a funcionalidade, isto é, com as obrigações de função de objectivo específico, que a arquitectura nasce como criação do Homem e para o Homem. A memória intervém então como elemento criativo: nós somos, em grande parte, aquilo que experienciamos e experienciámos. Assim, o nosso eu parece alimentar-se da nossa memória, aceitando-a ou rejeitando-a, num jogo de constante auto-desafio, num diálogo consciente entre eu-passado, eu-presente e eu-imagino-ofuturo que compõe a nossa autobiografia. Acreditamos que é deste modo que o arquitecto Peter Zumthor refere em entrevista: “Apercebi-me que sou proveniente de um lugar, que estou em determinado lugar, e que olho o mundo a partir desse lugar” (Zumthor, 2003). E que assim a arquitectura parte sempre de uma referência que é a consciência daquele que projecta. Esta consciência identitária é uma ideia construída, a capacidade de a erguer na articulação de um conjunto de imagens que cada ser humano tem de si e do mundo à sua volta, ainda que não suportada unicamente por memórias «vivas». É também o lugar a que este ser humano pertence, a que sente e pensa que pertence, são os espaços em que se (re)conhece. Neste sentido, na constante procura e (re)conhecimento, a identidade pessoal, a construção da consciência, parece estar em constante ajuste. Nos novos objectos, na nova arquitectura ou nos novos espaços em que nos (re)conhecemos, estamos constantemente a descobrir, a tomar consciência de novas imagens que nos preencham, que nos façam sentir um equilíbrio biopsicosocial. A identidade pessoal do ser humano, a consciência individual e colectiva, atravessa neste momento evoluções inevitáveis fortemente marcadas pela época de globalização. Acreditamos que a arquitectura, como criação humana, segui-la-á. Por sua vez, a expressão toma o papel fundamental de representar na nossa mente as imagens que temos do nosso eu, do percurso dinâmico através do qual as nossas sensações e emoções são percebidas, são compreendidas. É nesta formulação, é neste tornar-imagem-percebida, que a mente consciente identifica, vai criando a sua identidade que, em acto de desenho, se traduz numa sequência de imagens formuladas que são a ideia, as imagens que cada um tem da sua expressão desenhada. São também estas imagens que distinguem a realidade do objecto-

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sensorialmente-captado, do objecto-compreendido/criado. Assim, expressão é a identidade do desenho, a marca que distingue o real do criado. O processo criativo, a (re)organização das memórias, imagens recordadadas em confronto com as imagens presentes, possibilita que a nossa mente, com a sua capacidade de imaginar – projectar imagens que não estão presentes aos órgãos sensoriais – crie novas imagens, novos espaços. Deste modo, é que parece ser importante

alimentarmos

constantemente

o

nosso

armazém

de

memórias

arquitectónicas “[Z] segundo uma ordem de referências dirigidas à nossa experiência, às nossas vivências [Z] à Memória, que como sabe[mos] é ela própria um elemento activo de criação” (Tainha, 2006, p.119). Por sua vez, ao constante «bombardeamento» de “[Z] imagens de forma associativa, selvagem, livre, ordenada e sistemática, em imagens arquitectónicas, espaciais, coloridas e sensuais [Z]” (Zumthor, 2005, p.56) a que estamos sujeitos por parte da nossa mente, temos de associar um protagonista, de fazer existir um eu que decida, que, na mente, construa a consciência, que se identifique, que tome conta destas memórias, destas imagens passadas e futuras, e que, a determinado momento, se emocione com uma ideia, com uma momentânea forma de organização das peças, dos fragmentos de memórias, de imagens. Parece ser aqui que o desenho tem também o seu papel fundamental: na sua acção, na sua composição, no seu pensamento, o desenho permite-nos que, ao mesmo tempo que o vamos concretizando, observemos a construção de imagens pelos seus vários elementos compósitos, pelos vários pedaços, fragmentos de imagens que o compõem, que, por sua vez, são também imagem, e são também memória, e desta forma podem-nos trazer novas imagens e novas memórias. O desenho surge como possibilidade de compreender a construção de todas as linhas implícitas, resultado de um percurso mental, que estão por trás de cada desenho final, de cada obra construída. É também através da memória e da consciência que, ao experimentarmos cada imagem, esta nos equilibra, esta nos preenche, ou, por outro lado, é rejeitada. É por meio da biologia e pela necessidade de adaptação ao mundo social, é pela nossa capacidade de converter emoções em imagens, em sentimentos e em pensamento, que nos vamos expressando, criando uma ideia que, fruto do constante jogo de projecção e percepção, de ilusão e desilusão, unifica e dá significado a uma infinidade

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de imagens. Esse «produto» final, valida-se como um conjunto capaz de representar a imagem que temos de nós. Assim, através do espaço, vamos criando o nosso mundo, a nossa arquitectura, o nosso desenho, à nossa imagem. Estamos, portanto, também, perante um fenómeno de evolução natural: a mente consciente, através do tempo, com uma memória que se encarrega de nos mudar a cada instante e de garantir que, daqui a um minuto, eu já não seja o mesmo que era nesse instante, trata de assegurar a evolução do pensamento arquitectónico, isto é, é possível que, amanhã, eu tenha uma decisão diferente de hoje, em relação a determinada questão de projecto. E por isso talvez possamos dizer que a arquitectura tem o seu tempo, e que, provavelmente, aí reside também um dos seus maiores desafios: o de criar uma obra intemporal cuja ideia consiga emocionar aquele que a visita, que a revisita passados anos, emocionar aqueles que possivelmente a visitarão na «eternidade». Não é este o limite que distingue a má, da boa e possivelmente da arquitectura com rasgos de genialidade? Que esta última é feita sob bases de “[Z] ideias [que] são indestrutíveis [Z] [c]om o aroma da eternidade” (Baeza, 2011, p. 25 e 31)? Será possível que esta seja também a linha que separa a obra construída da obra de arte? O facto de estas nos transportarem através do tempo, para fora do tempo, iludindo o tempo cronológico e sugerindo a realidade do tempo sentido? Que a emoção com que foi feita ganhe autonomia e permaneça para o infinito? Mas, como vimos, o processo arquitectónico não vive de uma ideia mas do encadeamento de várias ideias. Hierarquicamente. Da ideia para o espaço, que define a forma da realidade. Há, portanto, um espaço e há um objectivo. A partir de um sentimento que criamos com estes, nasce uma, ou um grupo de intenções, para o espaço. Então «pedimos» à mente que crie uma imagem futura, uma nova forma que solucione o problema humano. E então o cérebro identifica uma ideia, emociona-se com uma forma. Portanto, há um movimento, uma dinâmica, que estabelece uma ponte entre sentimento: de uma intenção amórfica - no caso do projecto da academia de teatro era querer manter o carácter da praceta - para uma ideia formal - um volume que se suspende e permite que a intenção se realize. É nesta dinâmica, manifestação, acto criativo por si só, que parece ser inevitável que nos socorramos de formas, ideias, imagens sentimentos que tenhamos experienciado. E de forma sucessiva e encadeada, todas as ideias que se seguem até à obra erigida, parecem seguir esse movimento que é o processo arquitectónico e o desenho como seu registo: de intenções, manifestações dos nossos sentimentos, memórias vividas,

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para criação de novos espaços, novas ideias sentidas que se socorrem da memória para criar. Será que, quando criamos um espaço, quando olhamos para o futuro, trazemos sempre ao presente um espaço sentido que outrora fomos? Da amorfia de um sentimento, que se transforma em intenção, e esta através de um isomorfismo na criação de uma ideia? E que assim na busca da nova arquitectura nos socorremos sempre da arquitectura perdida (Zumthor, 2005, p.9)? “[Z] [D]e modo a que nada que façamos é totalmente novo” (Siza, 1998, p.139)? “Não fazemos senão reconhecer a realidade que transportamos connosco durante todo o tempo, mas em que não havíamos pensado porque nos encontrávamos prisioneiros das realidades manifestas ” (Jaspers, 1965, p.42). E posteriormente vem o teste da realidade: só o tempo parece poder dizer se a obra cumpre, se ela vinga a sua intenção, se os outros se iludem com o mesmo com que nós nos iludimos.

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