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Glicério às margens


Instituto de Arquitetura e Urbanismo -USP Trabalho de Graduação Integrado I Tiffany Liu _ 7592230


INICIAÇÃO Se vens a uma terra estranha curva-te se este lugar é esquisito curva-te se o dia é todo estranheza submete-te — és infinitamente mais estranho. Orides Fontela


índice 1 2 3 4 5 6 7

Inquietações Homem e metrópole Homem e natureza Várzea do Carmo Glicério Drenagem Percurso

8 9

Moradores Caminhada






Inquietações

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ESTRANGEIRO As inquietações sobre o tema de TGI surgiram de modo a tentar externalizar sentimentos de deslocamento e não pertencimento dentro de uma sociedade. A busca pelo estrangeiro vem tanto de uma matriz pessoal, como também de inquietações no âmbito fenomenológico da arquitetura no que se diz aos sentimentos de desconforto e desnorteio dentro de uma cidade. Segundo as origens semânticas da palavra “estrangeiro”, esta possui as mesmas raízes do “estranho”, que por sua vez tem a mesma etimologia de “extra”: o que é de fora, que não pertence, que não compartilha. Sendo assim, uma maneira de entender o que é ser um estrangeiro vem da noção de não-pertencimento evoluído para o estranho. Pode se considerar estranho em relação à um grupo ou sociedade. Esse processo é evidenciado nos escritos de Clarice Lispector, sua condição como imigrante se reflete em sua literatura, onde ela distorce a compreensão do real. Em particular no livro Legião Estrangeira, o objeto é desbanalizado trazendo na

narrativa a singularização; o que nos permite ver o banal com outra lente. O livro apresenta uma atemporalidade em sua narrativa que infere uma generalidade e representatividade das personagens que nunca acham seu lugar, de uma multidão de estrangeiros: crianças, velhos, loucos, animais; elementos na sociedade que são o não pertencimento, o outro o externo de nós. Traz deste modo a perspectiva do outro, ampliando, trazendo o de fora para dentro, o de dentro para fora. Alargando assim o próprio horizonte e abraçando diferenças ao reconhecer que todos somos estranhos. (JAFFE, 2016)

estrangeiro = estranho = extra (fora)

De maneira a entender as diferentes maneiras em que se pode abordar o tema, os conceitos de teoria da arte do Formalismo Russo trazem questões importantes a serem consideradas. O conceito de ostranenie de Viktor Chklovsky em “A Arte como Procedimento” traz o estranhamento como ferramenta fundamental para a produção artística, um método que singulariza e traz nova luz ao objeto. Imagem: Hannah Hoch. Cut with the Kitchen Knife through the Beer-Belly of the Weimar Republic. 1919


À esquerda: Monumento à terceira internacional. V. Tatlin

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar cur to e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um simesmo. Individualmente ele não existe. Trecho de ”O ovo e a galinha” – A Legião Estrangeira, Clarice Lispector.


Para ele, o proposito da imagem não seria sua rápida assimilação, mas a criação de uma visão. Adquirindo assim uma nova perspectiva onde o estranhamento é essencial à produção artística, esse processo traz um novo olhar ao objeto: pela desbanalização, este consegue assim ser digerido de outra maneira, como se estivesse sendo visto pela primeira vez.

“O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a direção da percepção.” Viktor Chklovsky Sob o ponto de vista da psicanálise, o Unheimlich de Freud - que pode ser grosseiramente traduzido como “O estranho familiar” - traz para a questão estética uma nova categoria que expressa uma ruptura da realidade cotidiana. Questionando-a, o sujeito suscita uma sensação de angústia que alguns chamam de ‘sublime’, o fantástico inserido na realidade. Isso causando um desnorteio

nas noções previamente estabelecidas do indivíduo. Há, portanto, um processo de descolamento do que nos é cotidiano, uma externalização do que entendemos por “mundo organizado” de acordo com Fernando Fuão. Assim, podemos - através do desnorteio – trazer a singularização e desfamiliarização do anteriormente banal. Sob uma perspectiva da percepção espacial, que é evidenciada através das sensações, Merleau-Ponty traz estudos que abrangem a sensação como uma experiência, trazendo o corpo como norteador espacial. O espaço é compreendido não somente pelo corpo, mas também com a extensão deste, deste modo, o entendimento não é encontrado preexistente no mundo, mas é produto da atividade do corpo no mundo. Deste modo, um espaço só tem valor quando é vivenciado pelo indivíduo, por isso sua elasticidade de tempo e significado sob influencia do próprio sujeito.

Labirinto como a epítome do desnor teio espacial: ”O labirinto expressa o mundo existencial, simboliza o inconsciente, o erro, a errância e o distanciamento da origem da vida. A qualidade de perdido que determina a particular psicologia do paraíso relaciona-se com o sentimento geral de abandono e de queda que o existencialismo reconhece como estrutura essencial no humano, como afirmou Jean-Eduardo Cirlot. Para ele o tema de se perder e tornar a se encontrar.” Fernando Fuão


O estranhamento tem um papel impor tante nos questionamentos contemporâneos sobre arquitetura, paisagem e cidade, onde tensiona conceitos e estabelece paralelos entre a vivencia do indivíduo nas cidades e fatores socioeconômicos e históricos.

Hélio Oiticica. Invenção da cor penetrável (1977)



Homem e metrรณpole

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A metrópole é um espaço onde se vivencia o desnorteio e o estranhamento de maneira intensa. De acordo com Ana F. Alessandri Carlos, o processo de reprodução do espaço na metrópole tende à destruição dos referenciais urbanos, onde existe uma constante atualização em busca de um ideal de “modernidade” que constrói cidades sobre cidades: a cidade palimpsesto, em constante transformação que nem sempre é acompanhada pelo indivíduo. As práticas urbanas acabam sendo diretamente afetadas e causam confusão e perda de identidade com o entorno no indivíduo, fragmentando essa noção de referenciais individuais, o espaço e simultaneamente, a fragmentação da identidade como memória social através desta perda de elementos nor teantes na cidade. O estranhamento se torna o resultado dessas mudanças quase que instantâneas na paisagem da cidade, e “produzem as possibilidades que atestam o empobrecimento das relações de vizinhança, a mudança das relações dos homens com os objetos que lhe são

próximos e o esfacelamento das relações familiares” (CARLOS, p. 13, 2007)

Cena do filme Metropolis (1920)

Assim, a relação entre cidade, sociedade e indivíduo sofre um processo de reprogramação para a vivencia na metrópole. Uma habitação marcada pelo desnorteio provocado pela ausência de referenciais que resistam à temporalidade da urbanidade contemporânea. Esse processo acaba gerando espaços amnésicos, vazios de uso e carentes de relações sociais na cidade. Deste modo, a interiorização da vida se reflete no constante movimento de introspecção dos espaços traz lugares de apropriação cada vez mais herméticos e segregados, onde o espaço interno é privilegiado em detrimento do urbano tornando o viver na cidade mais limitado e movimentos de apropriação cada vez mais raros. (DIAS, 2005) Quando visto de uma escala local, os trajetos e percursos traçados pelo indivíduo no seu cotidiano trazem em si uma apropriação marcada pelo corpo no espaço. Que se mostra uma apropriação de fato real e concreta.

O filme ‘Her’ se passa em uma Los Angeles utópica. O ambiente futurista exacerba algumas situações, porém, ele acaba levantando questionamentos existenciais sobre solidão e isolamento do personagem que na verdade são universais.

her

HOMEM E METRÓPOLE


Paola Berenstein Jacques questiona o processo de espetacularização das cidades contemporâneas através de uma “microresistência” que através do perder-se e se reorientar na cidade consegue enriquecer a experiência do indivíduo no contexto urbano. As errâncias implicam em um andar mais lento e observador pelos espaços, uma presença do corpo na cidade, uma “corpografia”. Esse território se modifica pelo uso e ocupação desses corpos nele.

”Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano.” (Paola Berenstein Jacques – Corpografias Urbanas) De acordo com Luciano B. da Costa: “Dessa maneira, a dimensão corpórea constitui-se na relação dialética com o percebido, que se faz corpo, estranhamento e reconhecimento daquilo que nos olha. A cidade pode ser compreendida como termo que nos olha, memória fracionada sempre perdida retomada pelo hábito e por um campo de imagens que a modela. Inquietar o ver é então romper seu confinamento em relação a essas condições já constituídas.”

A cidade mais vivida é aquela que não sofre influencia dessa espetacularização, mas sim do próprio indivíduo nela, uma domesticação do seu espaço. Na errância como prática de experiência urbana, tira-se desse experimento uma compreensão mais profunda da cidade que vai além de um traçado no mapa.

Esse processo pode ser visto através dos elementos que a autora chama de territorialização, desterritorialização e reterritorialização aplicados pelo sujeito errante. Esse sujeito tem mais interesse na prática de se perder, ou o desterritorializar. Essa transição entre territorializar e reterritorializar traz o realce de outros sentidos além da visão e traz uma percepção mais intensa. Esse processo pode se encontrar dentro dos outros elementos, sendo o desterritorializar intencional que traz realce à figura do errante que consegue constantemente refazer o processo de se perder e por consequência desbanalizar o ordinário, esse indivíduo possui padrões de deslocamento fora do caminhar intencional que fazem com que este tenha uma constante busca por referencias espaçotemporais, o que o leva à lentidão (JACQUES, 2008). O que isso traz é uma ruptura no andar rápido e alienado criando mudanças na própria noção de tempo e inserção no território. Como afirmado por Jacques, a corpografia como ato de resistência se põe como alternativa ao modo do indivíduo encarar sua vivencia na metrópole ditada pelo capital, uma experiência que se impõe nas relações sociais e prefencia o individualismo e a mercadoria, exacerbando o sentimento de solidão na cidade



Homem e natureza

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HOMEM E NATUREZA Em “Técnica Espaço Tempo – globalização e o meio científico informacional”, Milton Santos tensiona a relação dúbia que o sujeito possui com a natureza. Relação inicialmente simbiótica e que se torna cada vez mais hostil com o tempo. Causando uma transição da natureza amiga, aquela que nutre e dá os frutos para a sobrevivência até uma natureza hostil que se manifesta de maneira destrutiva dentro das cidades. Essa transição se dá a partir do momento em que o homem se torna transformador do espaço ao seu redor de maneira cada vez mais abrangente e intensiva, ou como diz Santos, “o homem se torna fator geológico, geomorfológico, climático”. As mudanças (quase) sempre planejadas no espaço vivido pelo homem entram em conflito com os modos da natureza que são imprevisíveis e momentâneos, os quais o homem sabe lidar gradativamente menos com a natureza. Dentro da lógica de produção, a necessidade da prática comercial atrelada ao uso de recursos, trouxe a o longo da história novas maneiras de se entender espaços, e uma revisão de desejos e

necessidades dentro de uma sociedade. Hoje, com a globalização as sociedades se encontram sujeitas a esse modelo que “se sobrepõe à multiplicidade de recursos naturais e humanos” (p. 6, SANTOS, 1990) Deste modo, a atual relação do homem com o território é conflituosa e distante. O indivíduo tem dificuldades de se relacionar com o ambiente ao redor, sente-se deslocado e o ambiente lhe é estranho. Cercado de afirmações e reafirmações midiáticas de preservação de algo distante que este não possui nenhuma familiaridade, o meio-ambiente tratado como espetáculo. A natureza continua assim se distanciando cada vez mais da nossa sociedade atual e reflete, segundo Milton Santos, a ausência de um sentido comum, de uma Moral.

Water: Salinas #2, Cádiz, Espanha. Edward Burtyinsky Markarfljót River #1, Erosion Control, Islândia, 2012 Nickel Tailings, Sudbury, Ontario, 1996

As fotografias de Burtyinsky mostram espaços que foram modificados pelo homem de maneira drástica e muitas vezes irreversível, o tamanho dessas intervenções é assustador e levanta questionamentos sobre a cultura do consumo e a fragilidade dos recursos naturais O filme ‘Her’ se passa em uma Los Angeles utópica do futuro. Ele levanta alguns questionamentos existenciais sobre solidão e isolamento do personagem principal. mostrando paralelos entre seu passado e presente que revelam a relação entre homem e seu entorno.


"Cadê os pé dos imbuzêro qui florava todo ano nas baxada e nas vereda mana mia cadê os pé d'imbu meu mano adeus pé dos imbuzêro"... Fantasia leiga para um rio seco. Elomar Figueira Mello



Vรกrzea do Carmo

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Encarando a paisagem como construída e formada pelos anos de maneira coletiva, a cidade pode ser lida como uma montagem de tempos acumulados. Essa construção da cidade pela sociedade é constante e portanto sempre transformando-se. Os mapas mostrados a seguir são uma tentativa de cartografar de modo a evidenciar os processos sociais e de territorialização (BESSER, 2014) ocorridos no decorrer dos anos na Várzea do Carmo e, consequentemente em São Paulo. Notase um processo de urbanização rápido e violento (CARLOS, 2007) que consolida uma hierarquia social na cidade que se traduz em desigualdades espaciais e diferenças na paisagem de maneira brusca.

“Cidade não conta o seu passado, ela o contem como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras” Ítalo Calvino. Cidades Invisíveis



1700 - 1840


O território inicial do que veio a ser conhecido como São Paulo, ou São Paulo de Piratininga foi escolhido por se localizar em uma imensa clareira natural na floresta e por propiciar cursos de água abundantes na região, sendo as margens as áreas mais povoadas pelos índios, e posteriormente também pelos jesuítas. Desde o início, o rios tinham um papel importante na vida de seus moradores. O Tamanduateí e o Tiete sendo altamente navegáveis naquele tempo, eram utilizados para fins comerciais e de lazer, relatos sobre essa relação remontam ao século XVIII, onde o Tamanduateí é destacado como “o único recreio e divertimento do povo dessa cidade” (BRUNO, in: (SILVA, 2014, p. 29), onde marcava também o uso rotineiro dos moradores, através do uso para o banho e lavagem de roupas.

"Da Rua Glicério e de toda a encosta da colina central da cidade, desciam lavadeiras de tamancos, trazendo trouxas e tábuas de bater roupa. À beira da água, juntavam a parte traseira à dianteira da saia, por um nó no apanhado da saia, a qual tomava aspecto de bombacha. Sugavam-na pela parte superior, amarravam-na à cintura com barbante, de modo a encurtá-la até os joelhos ou pouco acima, tomando agora o aspecto de calção estofado. Deixavam os tamancos, entravam n'água e debruçavam-

se sobre o rio, sem perigo de serem mal vistas pelas costas.” (AMERICANO, 1957 in: SANTOS) Sobre esse uso, Carlos José Ferreira Santos, afirma em “Várzea do Carmo: lavadeiras, caipiras e pretos véios” que a várzea do Carmo se constitui como um espaço rico de manifestações socioculturais de camadas ostracizadas na cidade de São Paulo desde sua constituição. Aquela várzea era cenário de uma rica expressão dessas camadas, como viviam e como utilizavam a cidade, o que muitas vezes, ia de desacordo com as normas e códigos desejados, uma vivencia marginal. É importante ressaltar a qualidade cênica do rio. De acordo com Maria Luiza Ferreira de Oliveira, no que se concerne a produção artística da São Paulo no período do século XIX, a região da várzea do Carmo era repetidamente objeto de estudo, a cidade era “representada a partir de seus caminhos e rios” (OLIVEIRA, 2003). Isso se dava pela área resgatar um bucolismo retratado repetidamente em aquarelas e pinturas.


As vistas panorâmicas evidenciavam os cursos dos rios, em especial a Estrada para o Mar e a várzea do Carmo em primeiro plano. O tropeiro também foi representado, seu chapéu de aba larga, ponchos, e os animais. As mulheres, sempre lavadeiras, carregando cestos de roupa nas cabeças. São Paulo é retratada nessa época justamente por uma população que faziam questão de esconder, mas que evidenciavam o nítido contraste dos processos de urbanização da cidade. E que continuou sofrendo transformações ao longo do século, gradativamente, a atenção foi também se virando dos rios para mostrar uma São Paulo cada vez mais industrializada. Sob um ponto de vista econômico, o rio era de vital importância nos primeiros séculos. A sua navegabilidade trazia a conexão de São Paulo com o bandeirismo e era beneficiada pela proximidade com a nova capital no Rio de Janeiro. No século XVIII e XIX, o Tamanduateí já se estruturava como ponto nodal comercial por fomentar o comércio do principal porto da cidade, o Porto Geral. Comercializava-se mercadorias produzidas pelas populações ribeirinhas, produtos das olarias dos arredores. Ao

lado do porto, foi construído um armazém para proteger tais mercadorias. São Paulo era um ponto de parada comum na província, provia aos viajantes hospedarias localizadas em chácaras na periferia imediata da cidade e transporte na forma de mulas descansadas e pastos. Até 1836, São Paulo ainda era uma cidade pequena de 22 mil pessoas, as mudanças se iniciam no século XIX, mas somente tomam força a partir do início do século XX. O crescimento urbano nesse período se configurou por construções no sentido da Igreja da Consolação, “na margem esquerda do Anhangabaú e nos bairros da Mooca e Ipiranga, na direção do caminho do Mar. “ ((SILVA, 2014). Caminho esse que os estudantes da faculdade de direito percorriam para retornar às suas cidades. Esse crescimento, apesar de comedido até então, traz a necessidade de urbanização dessas novas áreas, muitas delas que eram mais vulneráveis à natureza. Mostrando que, a relação com o rio e seus moradores sempre foi conflituosa, tem-se registros de solicitações por parte da população para resolução dos problemas das cheias do Tamanduateí.

Em 1810 realiza-se a primeira de muitas obras no rio com o intuito de melhoria da drenagem: a construção de uma vala para conter o espraiamento das aguas, sendo que a primeira discussão que se tem registrada sobre o rio é de 1821, as cheias do Tamanduateí foram discutidas, porem por falta de verbas, nada de imediato foi realizado, até 1841 quando estudos foram realizados sobre a retificação do rio, e em 1848, obras de canalização são feitas e a Rua 25 de Março é inaugurada às margens do Tamanduateí. Essas obras tiveram como consequência a perda da navegabilidade do rio.


Lavadeiras da Várzea.1900. Guilherme Gaensly. Sampa Histórica (2013) A Várzea do Carmo. Aquarela. A. J. Palliére. 1821 Entrada de São Paulo pelo caminho do Rio de Janeiro, 1827, aquarela sobre papel. Jean-Baptiste Debret.


1840 - 1900


Jacob Penteado narra sua infância no livro Belenzinho 1910, nesse trecho ele relata um passeio ao Marcado Municipal:

”Todas as semanas, eu e tia Romana íamos ao Mercado Municipal, antes Mercado Grande, na Rua 25 de Março, ao pé da Rua General Carneiro, antiga Ladeira João Alfredo. Ao seu lado, já nos terrenos da várzea, havia o chamado Mercado Caipira onde ficavam os vendedores de farinha de mandioca, milho, doces de frutas, aves domésticas, papagaios, araras, macacos, ouriços, ervas medicinais, etc. Defronte da Ladeira Porto Geral saía o trenzinho da Cantareira [...] Um belo passeio, pois atravessávamos a várzea inteirinha, então cheia de valetas, lagoas e mato bem alto.” O Mercado Caipira e o antigo mercado sobrevivem até 1890, sendo substituídos pelo Mercado Municipal. As

Benedito Caxlito, 1892 mostra-se as indústrias surgindo, assim como a linha do trem e, nas áreas de várzea a grande inundação

mudanças no final do século XIX começam diretamente ligados à ascensão da economia cafeeira no país. A época da “Metrópole do Café” se inicia com forte influencia do mercado internacional sobre a cidade. Investimentos de capital estrangeiro e uma forte onda imigratória no período de 1890 à 1914 (SILVA, 2014) são essenciais para a estruturação do que conhecemos por São Paulo dos dias de hoje. A relação da cidade nas ultimas décadas do século XIX com o rio vai continuar complicada. Os ideais sanitaristas foram deixadas de lado em favor à uma linha de pensamento desenvolvimentista que promove a construção de infraestruturas básicas para o crescimento da cidade, mas que também instaura de maneira forçosa a comercialização da água, que até então era feita por chafarizes públicos e nascentes.

Além disso, com uma descarga de água cada vez maior, e ameaçando o represamento das águas no canal do Tiete. Os problemas se agravavam à medida que a cidade ia crescendo e a questão das áreas de várzea são ignoradas, culminando em 1887 com a primeira das numerosas enchentes históricas na cidade. (idem) A construção da malha ferroviária para facilitar o escoamento do café produzido no interior do país para o porto de Santos foi uma ação pivotal para o estabelecimento da urbanização das áreas de várzea do Tamanduateí, já nas ultimas décadas do século XIX (MONTEIRO, p. 19) pela instalação de indústrias em sua extensão e logo em seguida de moradias de trabalhadores destas mesmas indústrias nas redondezas. A cidade tem seu primeiro grande surto urbanístico nesse período dobrando o número de habitantes.


1900-1950


”O aspecto do velho núcleo urbano modificava-se com a construção de casas de vários andares, a antiga cidade transformava-se num bairro de negócios que as grandes famílias deixavam aos poucos para construir em bairros novos. Após 1890 o impulso para oeste, [...] acentuou-se ainda mais quando Nothmann teve a idéia de lotear os terrenos situados no flanco da colina que desce docemente do espigão de 815 m. [...] esse loteamento de Higienópolis, [...] fez concorrência aos Campos Elíseos, onde a boa burguesia já apreciava menos a vizinhança das vias férreas, com suas estações e sua fumaça” (MONBEIG, 2004 in: SILVA). Os bondes elétricos são instalados na cidade em 1901, criando aglomerados urbanos que se estruturavam ao redor das estações (FRANCO, in: MONTEIRO) e de novo reafirmando o investimento de capital estrangeiro na cidade. Portanto, pode-se entender o crescimento na época por três vertentes: densificacao da área central, nas proximidades das estações, e no loteamento de áreas periféricas para uso rural da cidade que, segundo Monteiro, solidificou o padrão periférico de expansão da aglomeração urbana de São Paulo (p. 23), onde os espaços dos rios e paisagens submetem-se ao longo dos anos à lógica de valor que invisibiliza os processos naturais até então presentes na cidade.

Segundo Silva, em 1905 a região da várzea do Carmo já apresentava leito regularizado e margens tratadas. As reformas sobre o rio Tamanduateí se estendem por vinte anos. Em 1911, a avenida que o margeia é nomeada Avenida do Estado, em 1914 a canalização do rio já se estendia desde sua foz no rio Tiete até o bairro do Cambuci; e em 1916 se inaugura o leito artificializado do Tamanduateí. O projeto do Parque Dom Pedro II é feito por Joseph Bouvard e o parque concluído em 1922, este reflete os desejos de uma São Paulo de aparência “europeia” (SILVA, 2014. p. 42) que refletisse a “Metrópole do Café”. Assim, há uma europeização nas reformas urbanísticas e a criação de bairros voltados para a burguesia cafeeira, enquanto se estabelece a moradia de operários nas proximidades das indústrias, que por sua vez preferenciavam uma localização vantajosa na questão do transporte ferroviário. Tem-se, portanto, uma urbanização pautada pela ferrovia, a especulação imobiliária e a industrialização. (idem, p. 47)

São Paulo 1947 - Dimitri Kessel


A Crise de 1929 reduziu as atividades rurais e intensificou a industrialização, o que trouxe mais visibilidade para a cidade, além de acelerar os processos migratórios de mão-de-obra para a região sudeste do pais. Os processos já em vigor trouxeram anos depois em 1930 o início da implementação do Plano Prestes Maia, plano radialperimetral planejado para toda a área central e a canalização e instalação de avenidas nas margens dos rios e parkways. Este trouxe mudanças bruscas em particular para o rio Tamanduateí, que segundo Silva modificou não só a paisagem, mas também seu significado social. O início das obras do Plano se iniciam em 1940 e marcam o início de uma nova relação do rio com a cidade de São Paulo.

Área ocupada do Tamanduateí hoje ocupada pelo Parque Dom Pedro II.



1900-1950


As intervenções urbanísticas também se deram de tal modo que influenciaram o estabelecimento das atividades terciárias para a região sudoeste, segundo Rolnik. O vetor oeste de urbanização da elite se solidifica e expande em direção à marginal pinheiros (HIRATA, 2008) e no processo, abandona a região central, simultaneamente, a região do vale do Anhangabaú sofre reformas de modo a se tornar a mais nova imagem da cidade. Outras intervenções urbanas são realizadas na região central, como a reforma da praça da sé e do largo São Bento como tentativas de manter a valorização imobiliária na região. Enquanto isso, a moradia popular segue na porção Leste de São Paulo, e é notada pela verticalização na produção de quitinetes na região do Glicério. De acordo com Fátima Guedes, quando analisando os perfis de ocupação de Santo André, nota-se que as áreas com proximidade com o Tamanduateí não possuíam apelo imobiliário das classes mais altas por serem sujeitas às enchentes constantes e das barreiras físicas formadas pelo rio e pela ferrovia, estabelecendo um vetor de crescimento sentido sul.

O período pós segunda guerra foi marcado pelo fortalecimento da indústria nacional. Em são Paulo isso acarretou na expansão populacional, o que dinamizou o mercado imobiliário, principalmente em áreas atreladas à mobilidade: nas ferrovias, linhas de bonde, e mais recentemente, de ônibus. E em 1950 São Paulo atinge a uma população de mais de 2 milhões de habitantes, sendo que no período de 40 à 50 há um crescimento de 65% (SILVA, p.51). Uma nova onda de migração ocorre na década de 60 influenciada pela construção da nova capital e toda uma rede de infraestrutura viária para conectar o país. Isso traz como consequência para São Paulo além da expansão populacional, a necessidade de infraestruturas que conectassem a malha urbana. Nos anos 70, a cidade, juntamente com outros municípios do entorno eleva-se à condição de metrópole, chegando a mais de 8 milhões de habitantes.

A região do Parque Dom Pedro II em 1970. Fonte: PMSP/SMC/AHSP (2013).


A urbanização nessa época foi pautada pelo Plano Urbanístico Básico (PUB), que realizou obras como o Elevado Costa e Silva (Minhocão) em 1971, a radial LesteOeste, com os viadutos Alcântara Machado, Glicério e 21 de Março. Essas iniciativas se provaram ter um efeito de fragmentação da área da várzea do Carmo. O parque Dom Pedro II “foi retalhado e ilhado por um complexo de viadutos” (BARTALINI in: SILVA, p. 54) Nos anos 80, a população continua crescendo, e a promulgação da Nova Constituição Federal de 1988 traz o início de uma prática de politicas urbanas em âmbito nacional que obriga todas as cidades com mais de 20 mil habitantes a possuírem um Plano Diretor indica a transição do país para uma realidade urbana sobre a rural. Sob uma perspectiva mais pontual, São Paulo se submete ao modo de produção das metrópoles globais, e destina a maior parte de seus recursos públicos à investimentos econômicos, deixando de lado investimentos sociais.




Glicério

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1842-1900


1900-1950


1950-2017


A região da baixada do Glicério é uma área compreendida pela porção sul da várzea do Carmo inserida na subprefeitura da Sé, entre os distritos da Liberdade e Sé. Ela se destaca na paisagem e no desenho da região central de São Paulo pela sua historicidade. A designação como Zona Especial de Interesse Social na década de 70, trouxe uma paisagem quase estática ao longo dos anos e um deslocamento da região da lógica geral da metrópole. Espacialmente isso se traduz por um bairro de baixo gabarito predominantemente residencial inserido em um contexto urbano adensado. Isso não significa que a área passou intocada, mas de certo modo, marginalizada. A instalação agressiva da Radial Leste – Oeste, trouxe descontinuidade da malha urbana, produziu vazios. Enquanto o movimento da mudança das indústrias para a periferia e cidades do entorno descaracterizou um bairro majoritariamente composto pelos trabalhadores fabris, cujos edifícios sofrem um processo gradativo de encortizamento, além de pressões de gentrificação das áreas do entorno. Segundo Andre Luis Canton, o processo de valorização

imobiliária que vem ocorrendo na área nos últimos anos tem se caracterizado pela demolição das Vilas já em processo de degradação e liberação do terreno para novas edificações, atrelado a um processo de mudança no uso e ocupação do espaço, no modelo similar aos processos em ação na região da Luz. O autor denomina as ações de preservação da área contraditórias já que acabaram por realizar o contrario ao agravar o processo de degradação dos edifícios. Especula-se a possibilidade de congelamento para futura valorização imobiliária.




Drenagem

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Uso do Solo Resid. horizontal baixo padrão Resid. Horizontal médio/alto padrão Resid. Vertical baixo padrão Resid. Vertical médio/alto padrão Comércio e serviços Indústria e armazéns Residencial e comércio/serviços Residencial e indústria/armazéns Comércios/serviços e indústria/armazéns

Densidade (hab/ha) Garagens Equipamentos públicos Escolas Terrenos vagos Outros Sem predominancias

Até 92 92-146 146-207 207-351 351-30346


IPVS (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social) mais vulnerável – menos vulnerável

Linhas de Onibus (com as paradas) Ciclovias Metro

FONTE: Geosampa, http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx


Via Arterial

Via Coletora

Via local


Bacia hidrogáfica do Moringuinho e a área do Glicério assinalada. Fonte: Geosampa

Vimos através do processo histórico de ocupação de São Paulo que a cidade passou por um processo de formação que tirou o espaço das águas e o tornou espaço do carro.

aumentar a permeabilidade do solo, e assim, uma maior infiltracao das águas em éoicas chuvosas, fazendo com que haja um escoamento menor em direção ao Rio Tamanduateí.

Durante as chuvas, a água volta a tomar o seu lugar, comprovando o que Milton Sontos afirma como produto da urbanização.

Considera-se a presença do Córrego Moringuinho que passa canalizado pela Rua dos Estudantes. O córrego escoa aproximadamente 10% da vazão do Córrego Itororó, e teve suas galerias aumentadas em 2007 para poder acomodar o maior fluxo de água. Deste modo, é uma estrutura impor tante para a drenagem da área.

Pode-se observar que a relação da cidade com seus rios é conflituosa e torna a relação entre homem e natureza ainda mais fragilizada. As medidas que vêm sendo tomadas atualmente , principalmente se considerando os piscinoes, continuam invisibilizando os rios e são agressivas no sentido de ocuparem espaços que se tornam subutilizados na cidade. A região central de São Paulo é pouco arborizada e possui um solo em grande parte impermeabilizado. Propõe-se uma série de medidas na área que tem como objetivo tornar os efeitos das chuvas menos danosos , além de reconhecer e identificar os processos naturais no ambiente. Aplicam-se essas medidas sob princípios de

As diretrizes consideram intervenções que buscam reter, dispersar e absorver as águas-cinza. Focam na retenção de água nas áreas mais altas, procurando assegurar um escoamento robusto e flexível nas áreas baixas, e a garantir o escoamento de água em areas secundarias de escala local. Propoe-se áreas de retenção que deem visibilidade aos processos naturais e diferentes perfis viários que tem como objetivo não somente a drenagem, mas também procurando garantir áreas maiores para o pedestre.


Para as vias arteriais, tem como exemplo a Rua Conselheiro Furtado. Retira-se as vagas de estacionamento, utilizado do espaço livre para alargar as calçadas e instalar biotrincheiras em sua extensão. Dependendo da situação da via, estrangulamentos no perfil carroçavel podem ser feitos, encurtando a travessia do pedestre e o espaço podendo ser utilizado como jardim alagável. Para as coletoras, a intervençao seria na forma de ocupar algumas vagas de estacionamento ao longo da via para implantar jardins alagáveis e melhoria da arborizacao, se necessário. Para as vias locais, o projeto visa adequar à situaçao local, implantando arborizacao e jardins alagáveis em ruas com maiores perfis. Todas as calçadas seriam padronizadas de modo a apresentarem piso intertravado e adequação da faixa livre. As areas de retenção serão detalhadas posteriormente.

Referencia: Cloudburst Copenhagen, 2011.



Percurso

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Chego na Liberdade em um sábado num começo de tarde. É um lugar que conheço bem, apesar de não ter crescido em São Paulo e faz parte das minhas memórias de infância. Ao longo dos anos já perdi a conta das vezes que andei pela praça. Recém chegada da rodoviária, a mochila pesa nas costas e recebo uma mensagem do meu irmão: “Estou vindo, vamos tomar bubble tea?”. É a mais nova febre lá, uma mistura de chá preto, leite condensado e sagu. Compramos um copo e nos sentamos no andar de cima da loja. Ao nosso lado duas moças com bebês no colo botam o papo em dia, elas falam em chinês, mas com aquele tipo de entonação na conversa que dispensa tradução. Consigo identificar algumas palavras e penso novamente em retomar as aulas de mandarim. Meus pais chegam um tempo depois para almoçar e vamos ao mesmo restaurante que temos ido há anos. No entanto, hoje é um dia especial: meu pai convidou a família para comemorar seu aniversário. A comida não muda muito, mas é sempre saborosa. Meu irmão tem que voltar para o apartamento e meus pais vão junto. Decido ficar e dar uma volta pelo Glicério. Começo pela Rua Conde de Sarzedas e me

surpreendo pela rua movimentada e com o som dos alto-falantes saídos das lojas. Uma me chama a atenção por empilhar um número impressionante de Bíblias Sagradas, pilhas e pilhas com volumes de todas as cores. Logo em seguida entro em uma galeria, e a primeira loja é uma colagem curiosa e opulenta de cálices, candelabros, gaviões, correntes, estrelas de Davi, de todos os tamanhos imagináveis, prateados e dourados. A loja seguinte tem mais bíblias, a terceira CDs, e a última, fantasias bíblicas. Atordoada, saio de lá e continuo descendo a rua. De longe avisto uma capelinha na rua acima, decido ir lá. A Rua Tabatingueira, tem um movimento bem menor de carros e de pessoas, a igrejinha fica logo no começo. É pequeníssima, a pintura das paredes está descascando, e consigo ver as inúmeras camadas de tinta aplicadas ao longo dos anos. Uma senhorinha sai de lá, pára na entrada, e pergunta à outra o horário da missa de hoje. Às 7 da noite. Decido continuar a caminhada, a descida na rua é cada vez mais acentuada, e a pessoas vão rareando. Chego no fim da rua e viro à direita e sou arrastada pelo fluxo dos transeuntes. Insegura, sigo o passo junto à um grupo de adolescentes.


Os ambulantes disputam o pequeno espaço da calçada e vendem todo o tipo de coisa. Os adolescentes me levam à um miolo de quadra que tem como centro uma pequena praça triangular. Lá, as crianças são donas do lugar, além do playground, brincam com os equipamentos de ginástica, bancos, o que for possível e as vezes até o impossível. Os pais e outras pessoas ficam sentados, alguns observando, mas a maioria nos celulares. Também checo o meu e me levanto, sigo para a Rua Helena Zerrener que tem vários mercadinhos, um açougue, um caminhão de hortifrúti, e um velhinho vendendo hortaliças na calçada. Logo depois, chego à Rua dos Estudantes e adentro a Vila Suíça, uma família está fazendo um churrasco e algumas me olham, aceno com a cabeça e dou uma olhada no entorno: as casas estão todas coloridas, pintadas pelas crianças durante a intervenção do Cria Cidade do ano anterior. Voltando, avisto alguns metros à frente um bar com música alta, a calçada não é suficientemente larga e as pessoas ficam em pé ou se sentam em cadeiras de plástico na rua. Decido virar à esquerda e acompanhar o viaduto pela Rua Dr. Lund. Caio na pracinha dos lençóis. Hoje não tem muitos: um par de roupas estendidas e

algumas pessoas sentadas. Mais à frente um velhinho observa a minha chegada, mas quando passo ao seu lado, não diz nada. Subo a rua e percebo uma família jogando futebol, sem se impor tar com os carros eles chutam a bola entre si enquanto o resto da família assiste da janela do andar de cima. Chego na parte de cima do viaduto, minha última parada, decido, será na rua São Paulo. Chego lá e, fora a presença de alguns moradores de rua que estenderam seus colchões na calçada e conversam animadamente, a rua está praticamente deserta, incerta, volto, subo a Rua Conselheiro Furtado e no viaduto, me sento para descansar em meio à multidão de turistas. Observo a atividade dos ambulantes no outro lado da rua. Os dois vendem calças de malha da Nike, um para adultos e o outro, julgando pelo tamanho, para crianças; eles dobram e redobram a mercadoria. De fundo, consigo avistar a radial Leste-Oeste, o fluxo de carros a essa hora é intenso, 5 da tarde. Decido desenhar o lugar, o sol queima a minha nuca, mas a vista é bonita.


Rua Conde Sarzedas


Rua Francisco Glícério


Rua Dr. Lund


Rua São Paulo


LUGARES

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estacionamentos รกreas livres

ESPAร OS

alagamentos

Foram mapeados os estacionamentos da รกrea, demarcados em vermelho, as praรงas e lotes vazios de verde, e a area mais propensa a alagamentos pela topografia em azul



Moradores

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A região do Glicério é rica no que concerne grupos sociais. Apresenta segundas, terceiras gerações dos processos migratórios ocorridos nas ultimas décadas, assim como um novo afluxo de imigrantes, em sua maioria vindos do Haiti. O território na porção norte apresenta moradores de médio padrão em sua maioria e é extremamente densificada, tanto devido ao conjunto de quitinetes construídas nos anos 50 mas também por uma nova onda de edifícios que ocupam principalmente a Rua Glicério. Essa área norte também possui um número maior de serviços e comércios. A porção sul congelada pelos processos de preservação já apresenta uma ocupação menos densa, mas também diversa pelos grupos sociais e usos. Uma coisa particular do Glicério é também sua mobilização social. Para a população em situação de rua, existem projetos populares como o Albergue São Francisco, A Associação Minha Rua Minha Casa, A Casa Cor da Rua, que auxiliam os indivíduos com moradias temporárias, quando não conseguem lugar, geralmente se concentram nos baixios do viaduto, na Rua Lavapés e na Praça Nina Rodrigues.

Os catadores de recicláveis possuem uma presença forte na área, cuja origem remonta à dos moradores em situacao de rua, durante os movimentos sociais dos anos 80 e que coincidade com a popularização dos conceitos de sustentabilidade pós Eco-92. Existem Instituições sociais com uma presença muito marcante na área, caso da Missão da Paz, a OAF (Organização Auxílio Fraterno), e a Província Franciscana da Imaculada Conceiçao. Atualmente, ainda possui vínculos fortes com a área, com locais de coleta estabelecidos, e muitos permanecem no local há anos:

”O seu Romeu coleta há mais de 35 anos no mesmo lugar, o Dinho coleta há mais de 20 anos no mesmo lugar, eu coleto há uns 15 anos no mesmo lugar, então a prefeitu- ra não precisa implantar uma logística, nós já sabemos como se faz a logística.” (Bispo) – HIRATA, 2014 A seguir serão evidenciados mais dois grupos de habitantes do Glicério de maneira mais pontual:



Crianças

A ONG Cria Cidade realizou um projeto durante dois anos com as crianças em parceria com as escolas da área. Dentro desse projeto, muitas ações foram tomadas.

juntamente com as crianças realizaram um projeto para a praça José Luis de Mello Malheiro, o resultado final se encontra na imagem abaixo.

As crianças foram incitadas a desenharem mapas mentais para procurar entender seus referenciais dentro do Glicério. A partir desse levantamento foi produzido uma mapa afetivo coletivo do lugar em que são destacados, o Duque (EMEF), CCA, a Rua Lins, brinquedão, Boxe, coxinha do Seu Valdomiro, Rua São Paulo, Igreja da Paz e Viaduto. (MOURA, 2016)

As crianças também participaram de uma intervenção nas ruas Anita Ferraz, Sininbu e na Vila Suíça em que pintaram as residências e as ruas. A escolha dessas localidades indica uma maior apropriação por esse grupo, e a intervenção acaba servindo de catalisadora para o uso renovado nestes espaços.

Outro projeto relevante realizado pela ONG foi uma parceria com a faculdade de Arquitetura da Belas Artes. Os alunos,

Além dessas iniciativas mais recentes, há a Comunidade Esportiva Novo Glicério, que proporciona atividades fícicas para as crianças da região.


Imigrantes O Brasil se tornou nos últimos anos um centro de acolhimento de refugiados e imigrantes pela sua facilidade de conseguir visto e acesso relativamente fácil ao país. Pela barreira da língua, falta de papéis ou dificuldades de encontrar um emprego formal, essas pessoas acabam iniciando no comércio informal como meio de subsistencia. É comum ver pelas ruas mais movimentadas do Glicério ambulantes conversando entre si em outras línguas. Na Missão da Paz, localizada na Rua Glicério, os imigrantes tem lá um abrigo temporário que também fornece aulas de portugues, assistencia jurídica, dentre outros serviços. A visibilidade da sua situação é facilitada pelas redes sociais, porém, encontram dificuldades de se inserirem na sociedade muitas vezes proveniente do preconceito e da atual situação economica no país. Fotos: Antônio Emygdio https://www.vice.com/pt_br/article/de-bar-em-bar-ede-foto-em-foto-6-mostra-sp-de-fotografia





Caminho

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”[...] Apenas reconhecemos o fato de que o homem é parte integral do ambiente e que ele somente contribui para a alienação e ruptura do ambiente quando se esquece disso. Pertencer a um lugar quer dizer ter uma base de apoio existencial em um sentido cotidiano concreto.” (NORBERGSCHULZ, p. 459) Francesco Careri, em Walkscapes, desconstrui a prática do caminhar e o encara como uma prática estética que se configura arquitetura da paisagem. Para o autor, a prática do caminhar a esmo é teorizada através do que ele definiu como transurbâncias que exploram os “espaços do entre”. Esses espaços são as zonas cinza onde não se define interior, exterior; público, privado, tornando possível a transição de não-lugares* para possíveis lugares, exemplificado por de Certeau da seguinte maneira: “O terreno é baldio, mas no momento que decidimos fazer um piquenique ali ele se torna menos baldio”. O que se conecta diretamente com a presença do corpo e sua modificação no espaço de Jacques, Careri define esse ato “o grande jogo do brincar” (homo ludens) aferindo à característica lúdica desta prática, onde se resgata o

romantismo inerente em cada um em busca da “cidade nômade dentro da cidade sedentária”, onde a cidade nômade são os espaços do ir, do percurso e considerados vazios; e a cidade sedentária os espaços do estar. Compreende-se o percurso como “construção simbólica do território”, ou seja com valor estético tão grande quanto os espaços definidos como sedentários. Alia-se a esse conceito a paisagem como indutora de uma narrativa, argumento defendido por Anne Spirn. Compreende-se que ao recuperar e renovar a linguagem da paisagem descobre-se e imagina metáforas, além de contar novas estórias e criar novas paisagens. A paisagem natural por si só já carrega em si uma significância inerente, de acordo com Pallasmaa: “A paisagem natural nunca expressa solidão da mesma maneira que um edifício. A natureza não precisa do homem para explicar a si mesma, mas um edifício representa seu construtor e proclama a ausência dele.” Portanto, trago os dois elementos como guias aplicados no contexto da metrópole. O percurso se dá como parte do projeto, o

conector entre espaços feito de maneira a incitar a curiosidade no indivíduo. pensados de maneira a levantar a questão do ambiente e sujeito e tensionar essas experiências, desbanalizando assim o ordinário. Na página seguinte, tem-se as tentativas de estruturar um caminho pelo Glicério. A escolha foi baseada tanto na eleição de algumas áreas assim como as rotas já realizadas pelas crianças e identificando as características desse caminho que começou a tomar forma. Identifica-se pelas diferentes cores duas movimentaçoes distintas , a primeira mais reta e rápida relaciona-se com as rotas de maior comércio formal e informal pela área, o que atrai um número significativo de pessoas. A segunda rota é mais desimpedida e foi feita tendo em vista os dados coletados no trabalho juntamente com a questao de continuidade e fragmentacao dos espaços e maneiras de ligá-los.


Percebe-se nas investigações dos percusos a ocasional interseccao entre a duas linhas. Isso foi considerado importante por indicar a presença de um espaço híbrido que atenda às demandas do passante.


caminhar


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Sesc Pompéia. Lina Bo Bardi Encontra-se como referencia pela questão de tratamento de espaços cobertos considerados livres. O uso de elementos naturais como a água, pedra e fogo é interessante sob a perspectiva de outras possibilidades para a configuração de paisagem. A maneira de organizar o galpão de modo a mantero térreo praticamente livre, traz uma permeabilidade entre os espaços única. Highline. Nova Iorque O Highline traz além do reuso de uma estrutura já presente (caso também do Sesc Pompéia) de uma maneira não convencional. O elemento da janela para a rua, traz a conexão do parque com o ambiente urbano.



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