EXAME – QUESTÕES DE TEORIA DO CINEMA Marco Filipe Fraga da Silva 2008/2009
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Este artigo foi elaborado a partir de leituras e reflexões geradas pela unidade curricular Questões de Teoria do Cinema, do programa de Mestrado em Estudos Cinematográficos da Universidade Lusófona. O artigo está dividido em três partes que correspondem a três questões colocadas pelo professor Bragança de Miranda. 1. Discuta o que entende por cinematismo. 2. Discuta criticamente a noção de cinema expandido. 3. Ensaio sobre o filme "O Vampiro" de Carl Theodor Dreyer.
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1. Para responder à primeira questão e formular o meu próprio entendimento de cinematismo, parto de uma frase de Bruno Polidoro retirada do seu artigo “Cinema, Vídeo, Digital: A virtualidade do Audiovisual”. «Eisenstein criou (…) o conceito de cinematismo, no qual ele defendia que todas as artes estavam presentes no cinema, assim como muitas artes eram “cinematográficas”, mesmo que o cinema se tenha constituído posteriormente a elas.» Começo por dividir o meu artigo em duas partes: na primeira parte argumentarei acerca da presença das artes no cinema e na segunda acerca da presença do cinema nas artes. Artes no Cinema Serguei Eisenstein (1898 - 1948), com este conceito (cinematismo), atribui à arte do cinema o destaque que ela merece. O seu percurso profissional de cenografista, encenador, cineasta e teórico (entre outras actividades), o seu contacto com as vanguardas artísticas da época parecem encaminhá-lo para a criação do cinematismo. O conceito é novo, mas a ideia de todas as artes estarem presentes no cinema não era propriamente algo de novo. Desde o princípio, o cinema buscou inspiração em outras artes, Eisenstein (de forma irreverente) escreve no seu artigo “Dickens, Griffith e nós”: «(…) para mim, pessoalmente, é agradável verificar que o nosso cinema não é um órfão sem linhagem, sem passado, sem tradições e sem a rica herança cultural das épocas passadas. Só pessoas muito levianas e arrogantes é que podem erigir leis e uma estética para o cinema, partindo de premissas que supõe um qualquer nascimento virgem desta arte!» Georges Méliès (1861 – 1932) misturava teatro, artes circenses/magia e um extraordinário trabalho cenográfico quando Eisenstein era ainda criança. Utilizou pigmentos para colorir/pintar os seus filmes, fazendo uso da cor antes da película a poder fixar, e, como era costume na época, uma banda ou realejo acompanhava a projecção do filme, conferindo-lhe uma vertente áudio. Podemos também concluir que o conceito cinematismo nasce em Eisenstein, mas é anterior a este autor e ao próprio cinema.
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Antes do cinematógrafo, uma série de engenhocas e brinquedos ópticos já simulavam movimento através de desenhos e pinturas animadas, a pertinência retiniana já havia sido medida e a lanterna mágica era um brinquedo popular no século XVII, com a descoberta do principio básico na antiguidade clássica. Alguns espectáculos com lanternas mágicas eram bastante complexos. Uma sequência de imagens, pintadas sobre vidro, com uma narrativa delineada era acompanhada por música. Apesar de as imagens não terem uma cadência como aquela que o cinema produz, podemos aferir que estes espectáculos eram “cinematográficos”. Os espectáculos de Fantasmagoria faziam uso da lanterna mágica: com pinturas de falecidos aumentando e diminuindo de tamanho eram um espectáculo audiovisual comum para os interessados no sobrenatural. O espectáculo de Émile Reynaud (1848 - 1918), o Teatro Óptico, era cinema como o conhecemos nos dias de hoje. Apesar de o ter previsto, não utilizou a fotografia, utilizou a pintura para produzir o que hoje sabemos serem os primeiros filmes de Animação. O seu projecto antecede o “oficial” nascimento do cinema e é um espectáculo audiovisual onde o desenho e a pintura são de extrema importância. O Teatro Óptico consistia de um praxinoscópio ligado a uma lanterna mágica, a projecção era feita sobre uma tela para uma audiência. O conceito de imagem projectada é antigo. A título de exemplo, o teatro de sombras chinês, com a sua longa história, é uma espécie de cinema sem o aparato tecnológico que mais tarde será questionado pelo cinema expandido. O teatro, desde o princípio, foi uma importante referência para o cinema. Ainda hoje em dia muita da terminologia utilizada advém do teatro. No seu texto “Dickens, Griffith e nós”, Eisenstein escreve o seguinte: «(…), desde os autores isabelinos e de Shakespeare, através da vulgarização das suas obras no melodrama de mau gosto do início do século XIX, através de Dickens, até Griffith. O melodrama, tendo atingido em solo americano, no final do século XIX, o seu mais completo e exuberante amadurecimento, exerceu, neste estádio superior de desenvolvimento, uma grande influência em Griffith. Acumularam-se ao longo da cinematografia de Griffith grandes quantidades de maravilhosos e característicos momentos onde se reflectem estes métodos teatrais.»
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O teatro, a literatura, a pintura são artes que muito ofereceram à nova e aglutinadora arte do cinema. O teatro ofereceu a sua linguagem e terminologia, a literatura ofereceu a narrativa e construção de personagens, a pintura a construção/composição de “quadros”. Outras artes, como a BD, a dança, a escultura e a arquitectura estão e estarão sempre presentes no cinema, como temas e como elementos constitutivos. Posso concluir que todas as artes existem no cinema e que de forma enriquecedora convergem nesta arte total. Cinema nas Artes O facto de “todas as artes” estarem presentes no cinema parece-me evidente. A questão que se coloca é: por que são algumas artes cinematográficas? Para responder a esta questão tenho primeiro de saber o que é o Cinema? Respondendo à questão anterior terei uma maior compreensão do que é cinematismo, visto que é uma qualidade do cinema. Jean Epstein (1897 - 1953) define o cinema como indefinível, mas cria o conceito de fotogenia (que é criticado por ser igualmente indefinível). Ele afirma que a fotogenia está para o cinema como a cor está para a pintura e o volume para a escultura. Afirma também que o cinema é acima de tudo movimento, e o movimento atravessa o espaço
e
o
tempo
(Red.
de
cinematógrafo,
do
gr.
kínema,
-atos,
«movimento»+gráphein, «descrever»). Sabendo que o cinema pressupõe um movimento que atravessa o espaço e o tempo, como podem as artes estáticas ser cinemáticas? Como pode a pintura ser cinemática? Ou a literatura? A literatura apela à nossa imaginação. Na nossa cabeça construímos visualmente a narrativa que estamos a ler através de imagens. A literatura está imbuída de cinematismo porque “simula movimento” e apela à criatividade imagética. No seu texto “Dickens, Griffith e nós”, Eisenstein, fala do cinematismo presente na obra de Charles Dickens (1812 – 1870) e como a mesma sugeriu a D.W. Griffith (1875 - 1948) o conceito de Montagem Paralela. É impressionante a descrição/ desconstrução que Eisenstein faz de alguns trechos da obra do escritor conseguindo visualizar escalas de planos em certas passagens, sobreposição de imagens e outras características que se julgam cinematográficas.
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A questão é que o cinema é também uma simulação do movimento. Recorre à sequenciação fotográfica que, a uma determinada velocidade, tem a capacidade de nos iludir. Na realidade, o cinema não passa de fragmentos da realidade que querem capturar um presente que a Modernidade considera fugidio, ou seja, não pode ser “capturado”. Se a essência do cinema é a simulação do movimento, então cinematismo será essa característica transportada para as restantes artes que parecem simular esse devir, de forma menos expressiva, mas evidente. Existem exemplos de arte rupestre em que alguns animais têm múltiplas pernas, numa tentativa de simular movimento. Podemos recuar a este período para referir indícios de cinematismo. A expansão do cinema e a crescente imagicidade (Eisenstein) das sociedades actuais potenciam o cinematismo. Vivemos uma época onde a multidisciplinaridade e a hibridação têm um importante papel na convergência das artes. É mais correcto falar de uma grande esfera audiovisual que comporta as linguagens cinematográfica, videográfica, televisiva e hibridações recorrentes das novas tecnologias. Estas linguagens relacionam-se e não podem ser dissociadas. Mudam as plataformas e os dispositivos, mas as questões essenciais serão sempre as mesmas. Alexandre Rocha da Silva, no seu artigo “Semiótica e audiovisualidades: ensaio sobre a natureza do fenómeno audiovisual”. «O conceito de Audiovisualidade – que tem sido proposto e problematizado pelo Grupo de Pesquisa Audiovisualidades (GPAv) – foi formulado sob forte influência dos conceitos de imagicidade e cinematismo, de duração, de virtualidade e zeroidade e de pós-mídia, e tem como primeiro desafio pensar o audiovisual em sua irredutibilidade a qualquer mídia audiovisual (televisão, cinema, vídeo, internet), ainda que as mídias e seus processos lhe sejam imprescindíveis. Isto implica acompanhar Eisenstein quando reconhecia haver um cinema antes mesmo da invenção da indústria cinematográfica e da exibição midiática de qualquer filme» O Grupo de Pesquisa de Audiovisualidade (GPAv) acredita que o conceito de audiovisualidade não se reduz a uma tecnologia, às tradicionais divisões do audiovisual. Segundo Susana Klipp (membro do GPAv), no seu artigo “Novas figuras do tempo na Televisão”, admite que o audiovisual é também uma virtualidade que se actualiza nas tecnologias, mas que as transcende.
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O GPAv propõe três dimensões para o conceito de audiovisual, três aspectos nos quais focam as suas pesquisas. Aqui falarei apenas da primeira: fundamenta-se em Gilles Deleuze (1925 – 1995) e em Eisenstein, na sua afirmação que o cinema precedia a indústria cinematográfica. O GPAv propõe-se a pesquisar e analisar audiovisualidades fora do seu contexto: obras pré-cinema que continham qualidades cinematográficas e outras como textos, música, desenhos, teatro, etc. Posso concluir que a presença do cinema nas Artes é uma realidade passível de ser discutida. Neste sentido o conceito de cinematismo encontra-se num lugar de destaque e com grande actualidade.
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2. Na resposta à questão anterior, desenvolvo que a expansão do cinema e a crescente imagicidade das sociedades actuais potenciam o cinematismo. Podemos falar de uma relação de reciprocidade, pois o cinematismo potencia também a expansão do cinema, no sentido em que o Grupo de Pesquisa de Audiovisualidade o utiliza na sua busca de audiovisualidades fora da sua esfera. O cinema não se pode cingir a uma tecnologia, necessita de se expandir. Para responder à segunda questão e adquirir uma noção de expansão do cinema, começo por evidenciar a característica que julgo ser a mais interessante: o cinema expandido surge da necessidade de questionar o “cinema clássico” e o aparato tecnológico que o constitui – a película, o projector, a câmara e a tela. Esta parece ser a característica mais evidente nos anos 1960, não olvidando a importância do que vinha de trás. Peter Weibel (n. 1944) no seu texto “Expanded Cinema, Video and Virtual Environments” começa do seguinte modo: «In most histories of cinema the avant-garde film occupies a minor and marginal position. In the interwar period of the twentieth century, avant-garde film was initially seen as a spin-off or by-product of visual art movements like Cubism, Futurism, Suprematism, Construtivism, Dadaism or Surrealism. Linked to these movements were abstract or pictorial animations as well as montage and kinetic films by artists (…) these films constituted a body of work that served as the source of the innovative and autonomous post-WWII motion picture that was variously termed “art” or “experimental” film.» Reforçando a ideia, podemos falar do exemplo do artista Zdenek Pesanek (1896 – 1965) que é referido no texto de Michael Bielicky (n. 1954) “Prague – A place of illusionists”. «In the 1930s, the Prague-based artist Zdenek Pezanek wrote his book Kinetismus, in wich he investigated the potential of multimedia performance as a new form of visual expression – regardless of whether it involved an installation, a film, a fireworks display, or the aesthetics of anti-aircraft defense. He himself
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built light kinetic objects that had multimedia qualities. They moved; they changed color; they produced sounds.» Todas estas correntes e autores vão “experimentar cinema” e influenciar a geração de 1960 no sentido claro e preciso de uma expansão do cinema. Nos anos 1960, os artistas estavam mais auto-conscientes em relação ao médium e existia já uma infra-estrutura que suportava este novo cinema – o cinema experimental ou artístico. Estes autores vão questionar o aparato tecnológico do cinema tradicional: vão fazer cinema, sem câmaras, pintando directamente sobre a película; vão projectar os seus filmes sobre corpos humanos, vapor, água e balões; vão utilizar um cordel no lugar de película projectando a sua sombra. Alguns utilizam vários ecrãs e projecções múltiplas, lasers, strobs que simulam a sequenciação fotográfica característica do cinema. A linearidade narrativa é quebrada e procuram-se novas formas de “contar histórias”. Neste período, a televisão ganha terreno e as audiências tornam-se mais exigentes. Desde os anos 1940 e 1950 que várias estações transmitiam (electronicamente) programas na Europa e EUA. O próprio cinema mais comercial vai procurar novos meios para levar o público às salas de cinema. Carlos Barbáchano escreve no livro “O cinema, arte e indústria”: «(…) um dos principais motivos desta crise é constituído pela entrada do pequeno ecrã na vida familiar. Com a televisão – foi dito repetidas vezes – o cinema está em casa. Para que ir, pois, ao cinema se o cinema vem até nós? (…) A TV não só permite ao espectador maior comodidade, como também uma considerável economia para o orçamento familiar na hora de distrair-se (…) (…) a indústria do cinema estava em crise e, logicamente, a produção de filmes decrescia. A partir de agora o cinema tentará recuperar o público perdido (…) As empresas Paramount e Fox lançam em 1952 o Cinerama e o Cinemascope (…)» Os dois sistemas acima referidos (Cinerama e Cinemascope) foram um meio do cinema se afastar da Televisão, aumentando consideravelmente a área de projecção para que o espectador assistisse a um grandioso espectáculo que a pequenez do ecrã de televisão não podia oferecer. Esta expansão do ecrã no “cinema comercial” é uma resposta directa à crise que o afectava e não tanto por necessidade experimentalista e de questionamento do meio.
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Nos EUA, a crise adensa-se e a grande indústria cambaleia; na Europa, criam-se medidas contra o cinema americano de forma a favorecer o que se produz nacionalmente. No final dos anos 1950 surge a Nouvelle Vague que vem dar um novo fôlego ao cinema com filmes de baixo orçamento e com um carácter mais artístico. No campo das artes, Nam June Paik (1932 – 2006), na sua primeira exposição (em 1963), fez história ao demonstrar as possibilidades da manipulação do sinal electrónico da TV numa vídeo-instalação. Sylvia Martin (n. 1964) escreve no seu livro “Video Art”: «Em Março de 1963, o experiente compositor, Nam June Paik, instalou a sua “Exposition of Music – Electronic Television” na Galeria Parnass (…) Paik combinou doze aparelhos de televisão preparados com quatro pianos, giradiscos, gravadores, objectos mecânicos de som, e a cabeça de um boi recentemente morto pendurado à entrada do espaço (…) A exposição esteve patente apenas 14 dias, com um sucesso moderado. Como os canais de televisão alemães, ao contrário da televisão americana, apenas tinham emissões ao fim da tarde, as horas de abertura da galeria foram mudadas para esse horário. Paik usou intervenções técnicas para modificar as imagens electronicamente transmitidas. Um dos televisores entre os que se encontravam espalhados pela sala de exposição, estava ligado a um gravador, por exemplo, através do qual a música era introduzida no cenário. Os impulsos electrónicos da gravação do som influenciavam a imagem electronicamente produzida no monitor.» Com o surgimento do Portpak Norelco da Sony (1965), o primeiro gravador de vídeo, o cinema democratiza-se e passa a ser de fácil acesso para uma série de artistas que vêem no médium novas possibilidades de manipulação da imagem. A Video Art surge e tenta diferenciar-se do cinema em termos estéticos e de conteúdos. Sylvia Martin descreve o vídeo no seu livro “Video Art” da seguinte forma: «(…) o vídeo difere dos seus dois parentes mais próximos, o cinema e a televisão, num ponto essencial: traduz directamente o material audiovisual para um código analógico ou digital. Assim a gravação e o armazenamento têm lugar simultaneamente. (…) Ao contrário do filme, o vídeo dissocia-se num grau mais técnico da realidade directamente ilustrada» O vídeo funciona como uma espécie de passagem do cinema tradicional para o cinema digital. A película é substituída pelo vídeo para rapidamente ser substituída pela 10
linguagem binária (K-7 mini DV, DVD, cartões de memória). As tecnologias evoluem e o cinema expande-se. Julgo que a intenção de se separar o vídeo do cinema não faz sentido, visto que são produtos audiovisuais com similitudes evidentes. Reforço mais uma vez que não é a tecnologia que determina o cinema, e parece-me que a expansão do cinema vem provar isso mesmo. O principal factor de desenvolvimento do audiovisual, nos dias de hoje, prendese com a plataforma web e a forma como esta tem evoluído na última década. A internet está a fazer convergir em si uma série de tecnologias de comunicação e entretenimento. O cinema, ou o audiovisual, está também a aparecer cada vez mais nesta plataforma, dando origem ao que se chama hipermédia. A forma como o audiovisual surge na web difere. Temos o que chamarei de circuito comercial e o circuito artístico. O circuito artístico é também comercial, mas faço aqui a distinção entre objectos criados por artistas e objectos criados pelos usuários mais comuns: designers, criativos e interessados em geral. No circuito comercial podemos ver sites dinâmicos que vivem de sequências vídeo imbuídas no seu layout (leia-se design ou aspecto gráfico), sites como o Youtube que funcionam como arquivo videográfico e os chamados banners ou pop-ups (janelas que se abrem automaticamente) que nos bombardeiam com publicidade animada. Um novo termo surgiu do meio desta parafernália: Motion Graphics, que eu prefiro traduzir para gráficos animados. Gráficos animados resultam da junção das áreas do cinema de animação, design, vídeo e fotografia. A expressão teve tanto impacto que o seu uso se generalizou, dando nome a cursos e sites do género Wikipedia. No site www.motionographer.com podemos pesquisar por empresas, ateliers e designers que produzem gráficos animados para múltipla plataforma (net, TV, cinema, mobile). A expansão do cinema para estes novos suportes é de extrema importância para a economia e cultura actual. Muitos projectos cinematográficos produzidos nos dias de hoje não se prendem com o simples facto de se ter um filme que vai ser distribuído e visionado nas salas de cinema. Criam-se videojogos, websites interactivos, trailers para serem visionados em telemóveis, Ipods, portáteis, etc. No circuito artístico temos o caso da Net Art. São artistas que exploram a linguagem da net para se expressarem; exploram o hiper-textual e a hiper-narratividade que a internet permite; colocam online peças interactivas onde questionam as potencialidades da própria plataforma. 11
O site www.jimpunk.com é um caso interessante. O autor utilizou a linguagem HTML para criar um site hiper-narrativo onde uma série de janelas abrem constantemente (as comuns janelas do internet explorer movimentam-se pelo ecrã do computador) e onde o clique do rato permite navegar por uma série de gráficos animados e objectos audiovisuais. É uma experiência caótica e labiríntica. O autor consegue explorar a linguagem típica da internet e dá-lhe um cunho pessoal e criativo. Todos os elementos típicos da navegação na plataforma estão ali explorados até à exaustão. Julgo que a expansão do cinema não pode passar simplesmente pela anexação de novas tecnologias, passará também por uma exaustiva experimentação e questionação dos médiuns existentes. Cabe à New Media Art, à Net Art, à Video Art, a designers e artistas, a fotógrafos e realizadores e a todas as novas formas de arte pensarem o cinema, e, de forma criativa, promoverem a sua evolução num percurso de qualidade e validade artística.
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3. Para falar da obra tenho de falar do homem. Carl Theodor Dreyer (1889 – 1968) nasce em Copenhaga, de uma relação ilegítima entre sua mãe Josephina Nilsson, governanta sueca, e Jens Torp, proprietário rural dinamarquês. Foi adoptado por Carl Theodor Dreyer (tipógrafo) e sua mulher. No seio desta família luterana não teve uma infância particularmente feliz. Sai de casa aos dezassete anos. Aos dezoito, descobre o infortúnio de sua mãe verdadeira: morrera em 1891 ao tentar provocar o aborto de uma segunda criança indesejada. O seu pai nunca o conhecerá e morre em 1928. Ao trabalhar como repórter descobre o mundo do cinema e os seus encantos. Em 1912 começa a escrever argumentos para cinema. Aos 29 anos (1918) tem a sua primeira oportunidade de realizar um filme, “O Presidente”, baseado num romance de Karl Emil Franzos (1848 – 1904). Dreyer explora neste filme o tema da culpa, um tema que o acompanhará por toda a sua obra. Para o seu segundo filme, “Páginas do livro de Satanás”, Dreyer inspira-se no filme de D.W. Griffith e na sua grande produção “Intolerance”, uma longa-metragem dividida em três períodos históricos na qual explora o tema da intolerância. Dreyer conta a história de como Satanás tentou os homens em quatro épocas distintas. Depois de várias incursões no cinema, Dreyer filma a sua obra-prima, “A paixão de Joana d’Arc”, considerado o último grande filme mudo. Neste filme ele procura a essência do sofrimento humano e o estatuto da mulher numa sociedade patriarcal. “Vampyr” (1931) será o seu primeiro filme sonoro, mas o autor realiza-o como se de um filme mudo tratasse, economizando os diálogos. Na realidade, o filme é filmado sem som - este é introduzido em pós-produção. A atmosfera do filme é etérea, feita de contrastes pouco definidos numa escala de cinzentos. O filme vai beber à corrente surrealista a sua estranheza sonâmbula bem como ao imaginário e à iluminação do expressionismo alemão. Tem um carácter ambíguo e claustrofóbico devido aos tectos baixos e corredores estreitos. Todo o filme é estranho e sobrenatural, labiríntico e de transições pouco usuais. Embora não tenha tido grande
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recepção na altura do seu lançamento, tornou-se um filme de culto. Catherine S. Cox (n. 1976) escreve no site Senses of Cinema: «Despite the popularity of other early horror films such as F.W. Murnau’s Nosferatu (1922) and Tod Browning’s Dracula (1931), Dreyer’s film was not well received at the time of its initial release in May 1932.» A intenção de Dreyer é filmar um sonho acordado, mostrando que o horror não faz parte daquilo que nos rodeia, mas do nosso inconsciente. O filme explora o estranho e o esotérico em pormenores como a sequência invertida do homem que cava. Outro pormenor estranho é o da sombra do soldado que parece ter vida própria antes de se sincronizar com o soldado de carne e osso. São várias as sombras que habitam o albergue onde o protagonista está hospedado. O som torna-se importante na medida em que preenche o espaço pelo qual o personagem principal deriva: sons de animais que ali não estão presentes fisicamente, por exemplo. Os personagens vivos são estranhos e enigmáticos e a morte, ou o receio da morte, está sempre presente. Falar deste filme leva-nos a discutir géneros. Edmundo Cordeiro escreve e conclui no seu livro “Géneros Cinematográficos”: «Noel Carroll, em “Notes on Dreyer’s Vampyr”, procura afincadamente incluir o filme no género terror e não de maneira nenhuma, como parece ser um costume recente, no género fantástico. Cremos que, nestes termos, a questão é irrelevante e só indica que, de facto, os géneros estão sujeitos a controvérsia, a misturas, a hesitações, a tangentes, a cruzamentos. De qualquer maneira, não cremos que a grande diferença entre o fantástico e o terror possa residir no facto de, no fantástico, não se poder decidir entre naturalismo e sobrenatural, ao passo que no filme de terror não haveria lugar a essa hesitação, sabendo-se imediatamente que tudo na história tem uma explicação sobrenatural.» Georges Franju (1912 – 1987) desdobra o género fantástico em três zonas, de modo a compreender este género: «(…) zonas: o Cinema Fantástico propriamente dito; o Cinema do Insólito; e o Cinema da Angústia. Podem confundir-se harmoniosamente. (…) O Fantástico está na forma. O Insólito na situação. A Angústia no desconhecido. O Fantástico cria-se. O Insólito revela-se. A Angústia sente-se.» A discussão sobre géneros é extensa, mas por que será tão difícil catalogar um filme? Ou se o filme é composto por vários géneros, como nomeá-los? 14
Edmundo Cordeiro expõe no seu livro “Géneros Cinematográficos”: «Rick Altman enumera quatro domínios do cinema onde a noção de género funciona de maneira específica, distinta em cada um deles – o domínio da produção, o domínio da distribuição e exibição e o domínio da recepção (…)» Esta ideia vem confundir a catalogação de géneros, abrindo o leque a terminologias, secções e subsecções de géneros cinematográficos. Então por quê catalogar um filme? Existem razões socioeconómicas que explicam o facto, quem vende e quem compra (público) cinema necessita de catalogar, necessita de nomear: esta é uma necessidade humana. O mesmo se pode ver na área da música e a problemática que existe em torno de catalogações que não são aceites pelos próprios artistas. Muitos repudiam até certos títulos. Existem também razões históricas para a concepção de géneros no cinema que antecede este médium. O teatro e as artes do espectáculo sempre foram sujeitos à divisão em géneros. Aristóteles faz a sua distinção entre tragédia e comédia. Robert Mckee (n. 1941), no seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” expõe um sem número de géneros e subgéneros e classificações de diferentes autores demonstrando que não existem regras nem consenso na matéria. Os géneros evoluem e não são estanques. O que hoje é incluído num determinado género, amanhã estará noutro. Cabe-nos a nós acompanhar esta evolução de forma crítica e construtiva. Na realidade, esta é uma das muitas áreas do cinema onde nunca poderá haver consenso. “Vampyr”, desde a sua estreia, tem vindo a ser incluído em diferentes géneros por parte de diferentes autores devido à evolução na classificação dos filmes e devido ao gosto de cada geração, num processo natural de reestruturação da própria indústria.
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Bibliografia
As Folhas da Cinemateca (2006). “Carl TH. Dreyer”. Editora Cinemateca Portuguesa. Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema (2004). “D.W. Griffith”. Lisboa, editora Cinemateca Portuguesa. CORDEIRO, EDMUNDO (2007). “Géneros Cinematográficos”. Edições Universitárias Lusófonas. BARBÁCHANO, CARLOS (1979). “O cinema, arte e indústria”. Biblioteca Salvat de Grandes Temas. MARTIN, SYLVIA (2006). “Video Art”. Taschen Basic Art Series. MCKEE, ROBERT (1999).“Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting”. Methuen Publishing Ltd. Texto de Acquarello acedido no website: http://archive.sensesofcinema.com/contents/directors/02/dreyer.html Texto de Dan Shaw acedido no website: http://archive.sensesofcinema.com/contents/directors/04/eisenstein.html Texto de Catherine S. Cox acedido no website: http://archive.sensesofcinema.com/contents/cteq/08/47/vampyr.html
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