José María Delgado García Copyright© 2019 by José María Delgado García Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros Conselho Editorial Científico: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
LINGUAGENS DO CÉREBRO
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G199L Garcia, José M. Delgado Linguagens do cérebro [recurso eletrônico] / José M. Delgado Garcia ; revisão e tradução Gabriel José Chittó Gauer ... [et al.]. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2019. recurso digital ; 1 MB
Revisão e Tradução:
Gabriel José Chittó Gauer Patrícia Inglez de Souza Machado Gauer Laura Mello dos Santos Sioma Henrique Breitman Amselem
Tradução de: Linguagens do cérebro Formato: ebook Modo de acesso: world wide web Inclui índice ISBN 978-85-9477-339-5 (recurso eletrônico) 1. Neurociências. 2. Cérebro. 3. Livros eletrônicos. I. Gauer, Gabriel José Chittó. II. Título. 19-57150
CDD: 612.82 CDU: 612.82
Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644 20/05/2019 23/05/2019 É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.
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Academia
São Paulo 2019
SUMÁRIO PRÓLOGO - Ivan Izquierdo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 NEUROCIÊNCIA PARA POBRES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 O futuro foi da eletricidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Tropeço entre duas estrelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16 Dentro e Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 A Carta Magna neuronal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Desenvolvimento manifestamente melhorável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 Vários mapas corticais em busca de um leitor consciente . . . . . . . . . . . . . 24 Origens de nossa pobreza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Quando foi assistido o nascimento da consciência? . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
SERÁ O ROSTO O ESPELHO DA ALMA? FISIOLOGIA DA EXPRESSÃO FACIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alguns passos para trás . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mundo interno, mundo externo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Emoções e sentimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Expressão facial: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sistema motor da pálpebra: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tipos de movimentos palpebrais: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alguns detalhes sobre a biomecânica palpebral: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Controle neural dos movimentos palpebrais: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O porquê do rosto ser o espelho da alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O rosto como reflexo de nosso mundo interno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PARA QUE MOVER OS OLHOS, SE JÁ MOVEMOS A CABEÇA? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Implicações motoras para ler um texto: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 A primeira tarefa do sistema motor ocular não é mover os olhos, mas sim fazer com que eles não se movam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Temos (e como não ter!) conflitos na fronteira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 Chega um momento no qual os olhos se movem sem contar com a cabeça . . . 62 Insetos de perto e aviões de longe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Vista em frente! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
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UM ENSAIO SOBRE OS DISTINTOS ASPECTOS DO COMPORTAMENTO MOTOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Aprendendo a navegar entre estruturas, mecanismos e funções . . . . . . . . O jardim de caminhos que se entrelaçam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acabamos nos topando com a plasticidade e a aprendizagem . . . . . . . . . . Traduttore tradittore . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PRÓLOGO
O TEMA DE NOSSO TEMPO REVISITADO . . . . . . . . . . . . . . 89 Um ponto de encontro entre cientistas e poetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 O meio e a paisagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Sentimos muito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 O que o cérebro tem a ver com tudo isto? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 Sempre temos consciência de alguma coisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 Um passo ao fundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 Farmacopeia do espírito necessitado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Epílogo esperançoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
PELO CAMINHO DE DOM SANTIAGO . . . . . . . . . . . . . . . . 107 Olhando para trás sem ira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma ajuda dos gregos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um passeio pelo Serengeti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Agora pelos bosques de Sumatra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cérebros sob demanda: plásticos, elásticos e homeostáticos . . . . . . . . . . Sempre nos sobra Voltaire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Tive a sorte de ler este belíssimo livro primeiro em espanhol, depois em inglês e agora em português. A mesma sequência em que aprendi essas línguas. Por isso sinto nele, com prazer, o sabor de várias etapas de minha vida adulta, que dediquei ao estudo e a prática da Neurociência. Como a todos os que nos dedicamos a ela, durante esses anos senti como o maior de seus mistérios aquele de como o cérebro converte sua percepção da realidade que o rodeia, da qual obtém e à qual envia informação, em linguagens que seus neurônios possam compreender, guardar e modificar. Esse mistério, que envolve a transmutação de informações de diversos tipos e procedências, é a base da função cerebral. José Maria Delgado, neste livro terso e cristalino, explica em detalhe as linguagens que o cérebro utiliza para essa função ímpar. Essa descrição consiste nada menos que no fundamento da Neurociência. Não conheço nenhuma outra descrição dessas linguagens e de suas interações superior a esta de José María Delgado, nem quem melhor tenha desvendado o mistério de como se transforma a realidade do mundo externo e suas linguagens em outra que o cérebro consiga processar, de ida (na percepção) e de volta (na ação). O cérebro traduz tudo o que o rodeia e que chega a ele ou sai dele. Ou seja, traduz as linguagens do mundo que percebe e no qual vive e navega, registra na memória o que pensa dele, e também as mensagens que emite em consequência. Algumas dessas linguagens são químicas e outras são elétricas. Saber e entender como, onde e por que umas geram as outras ou se transformam nelas, é o objeto
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da Neurociência. José María Delgado, exímio neurocientista, aplica toda sua vasta experiência e lucidez à descrição clara e apaixonada de tudo isso. Clara e apaixonada: por tanto, belíssima. Quem ler este livro terá a dupla fortuna de aprender os fundamentos da Neurociência através das palavras de um dos seus melhores mestres, e sentirá a indescritível satisfação de entender de maneira transparente como funciona seu órgão central, o cérebro. O leitor não conseguirá facilmente alguém que o guie por esse caminho de forma mais precisa e agradável que o autor do texto que agora tem em mãos.
Se – com o tempo – você não consegue explicar às pessoas o que você tem feito, o esforço será inútil” Edwing Schrödinger Ciencia y Humanismo, 1951
Ivan Izquierdo Porto Alegre, setembro de 2017.
Tudo o que sequer pode ser pensado Pode ser pensado com clareza. Tudo o que pode ser posto em palavras Pode ser posto com clareza. Ludwig Wittgenstein Tractatus LogicoPhilosophicus, 1921
NEUROCIÊNCIA PARA POBRES In the beginning was the secret brain. The brain was celled and soldered in the thought Before the pitch was forking to a sun; Before the veins were shaking in their sieve, Blood shot and scattered to the winds of light The ribber original of love. (in the beginning, Dylan Thomas)
O FUTURO FOI DA ELETRICIDADE Talvez, felizmente, para você e para mim, chame a atenção que, no mundo em que vivemos, sempre em busca de negócios, nenhum empresário visionário tenha levado em conta que, para o seu funcionamento, nosso cérebro depende da eletricidade; isto é, que os biopotenciais são o substrato imprescindível das células nervosas ou neurônios1. Talvez, chegue o dia em que nos seja cobrada a fatura pelo consumo de bioeletricidade, que supõe nosso comportamento e nossa atividade mental. A aceitação da eletricidade animal como o mecanismo biofísico subjacente à grande parte do que cientificamente se entende por atividade nervosa foi um processo de dezenas de anos, que iniciou com as potrimetrías do século XVIII, com o trabalho de L. Galvani, o qual continuou ao longo do século XIX na obra de reconhecidos fisiologistas como E. DuBois-Reymond e H. Von Helmholtz. O trabalho de E. DuBois-Reymond contribuiu significativamente para determinar que o sinal ou mensagem que “viaja” pelo sistema nervoso é uma
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onda de eletricidade. No final do mesmo século, L. Bernstein ajudou na delimitação do conceito de polarização da membrana plasmática que envolve as células, conceito que no dia de hoje é conhecido como potencial de membrana2. Por sua vez, Von Helmholtz realizou experimentos engenhosos para o cálculo da velocidade de condução do impulso nervoso ou potencial de ação3. O uso experimental do osciloscópio por J. Erlanger e H. S. Gasser nos anos quarenta do século passado permitiu um avanço espetacular nos conhecimentos sobre a eletrofisiologia do tecido nervoso de invertebrados e vertebrados, que permanece até os dias de hoje. Por exemplo, em uma série de trabalhos cruciais para a Neurociência do século XX, A.L. Hodgkin e A. F. Huxley descreveram os mecanismos iônicos que determinam a produção do impulso nervoso. Para finalizar, numerosos investigadores (J.C. Eccle, B. Katz, entre outros) contribuíram durante o século XX para o conhecimento dos processos bioelétricos que ocorrem nas sinápses ou zonas de comunicação entre os neurônios, ou um neurônio e um efetor (fibra muscular, célula secretora, órgãos elétricos dos peixes). Em resumo, se desde o ponto de vista morfológico, a unidade estrutural que representa o cérebro no seu conjunto é o neurônio, do ponto de vista funcional, até o final do século passado, a fisiologia cerebral tem sido representada por seu potencial de ação4. Ao contrário do que foi dito anteriormente, a partir dos anos sessenta do século XX, foi ficando evidente que a atividade neuronal não se reduz à geração de potenciais de ação. Os neurônios possuem muitas outras possibilidades de atuação. Por exemplo, a excitação de uma parte de um neurônio (suponhamos um dendrito) não tem que propagar-se por toda ela, existe atividade elétrica relevante para o funcionamento neuronal que não alcança o limiar para produzir um potencial de ação. A própria atividade local pode modificar a ultraestrutura de uma mínima parte de um neurônio e assim por diante. Por outro lado, ficou evidente que a sinápse é um elemento crucial do funcionamento cerebral, pela enorme variedade molecular que apresenta, pela diversidade de atividades bioelétricas que pode realizar
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e por ser suscetível de modificação funcional e estrutural de acordo com as circunstâncias, isto é, pela sua capacidade de aprender. De fato, a imensa maioria das drogas utilizadas pelo ser humano, como os psicofármacos, atuam sobre elementos moleculares relacionados de algum modo com a transmissão sináptica. Entretanto, a principal dificuldade para que, no futuro, possamos seguir considerando as correntes bioelétricas como elementos determinantes da atividade cerebral, em particular dos primatas, incluindo os homens, se deve ao fato de que os neurocientistas só recentemente começaram a trabalhar no denominado problema cérebro-mente5. Pondo em palavras mais simples, ainda não há uma forma de explicar como a atividade elétrica cerebral humana é transduzidas para estados mentais, para pensamentos. Digo transduzir com o pressuposto de que o estado mental seja uma forma de energia distinta da elétrica: o verbo pode ser substituído por transformar ou converter, com resultados idênticos. Deste ponto, seguem outros certamente desanimadores, já que tampouco fica claro se alguma outra manifestação energética (por exemplo, processos bioquímicos) e, por extensão, alguma propriedade da matéria (por exemplo, alguma partícula subatômica), auxilie a explicar como se origina o estado consciente6. Desta forma, deixamos sem futuro a bioeletrecidade como elemento crucial na explicação de como funciona nossa mente porém, ao mesmo tempo, ficamos sem nada no que apoiarmos. Coloco ênfase em como ele funciona, já que desde os materialistas do século XVIII (magnífico Le Mettrie!), não foi feito nada senão aumentar a proporção de estudiosos do tecido nervoso que aceitam, quase por princípio, que nosso cérebro produz nosso pensamento7. Ou seja, se aceita que o cérebro produz a atividade mental, porém não sabemos como isso acontece. Porém, para ser mais preciso, o cérebro também nos permite perceber como é o mundo ao nosso redor, e ele mesmo é fonte e gestor de nosso comportamento. Aqui convém, no entanto, dar um passo para trás, em umas centenas de milhões de anos, e olhar a nossa origem.
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TROPEÇO ENTRE DUAS ESTRELAS Os vertebrados são, desde os primórdios, maníacos do movimento. O seu modo de viver consiste em mudar de lugar, navegar pelo ambiente sem arriscar em demasia a sua integridade corporal. Para isso, necessitaram, pelo menos, saber o que é acima e o que é abaixo, saber que há dois lados, e enxergar. Esta estrutura básica pode se sofisticar o quanto for desejado, com adição de mais informações sensoriais, o que supõe a detecção das mudanças que ocorram em outras manifestações energéticas (sons, sabores, odores) e o aperfeiçoamento sucessivo das condições biomecânicas de deslocamento (caminhar, nadar, rastejar, voar, galopar). De fato, o primeiro esboço do sistema nervoso dos vertebrados primitivos surgiu na larva dos tunicados (ascídias), pois ela tem a capacidade de nadar. Porém, quando o animal se torna adulto, se imobiliza e fica unido por um pedículo ao substrato marinho, seu sistema nervoso elementar é reabsorvido e desaparece quase que por completo. No momento, desconheço se este processo de reabsorção cerebral também ocorre em determinados burocratas, pela inatividade na qual costumam cair devido à obtenção de um determinado cargo ou posição vitalícios8. De qualquer maneira, o movimento dos vertebrados segue um processo evolutivo de adaptação aos nichos espaciais e temporários disponíveis, alcançando um extraordinário grau de precisão e elegância. Algo similar ocorre com o processo perceptivo (enxergar, cheirar), ainda que não nos seja tão evidente. Em um espaço de tempo relativamente curto (dezenas de milhares anos), pode ser que tivesse surgido (à escolha: passo a passo ou em grandes saltos) o estado consciente. Pensamentos e comportamentos contratantes sugerem certa complementaridade. O comportamento é um pensamento transformado em ação, atuação sobre o ambiente físico e social, perseguição de presas ou fugas aterrorizantes, luta pela(o) companheira(o) ou, finalmente, em defesa de um território. Tudo no comportamento é observável e, por este motivo, a seleção o toma como referência. Desta forma, o tamanho e cor das plumagens nos tornam mais vistosos
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ou demasiadamente visíveis; no primeiro caso, somos mais reproduzíveis e, no segundo, beneficiáveis. Por outro lado, o pensamento é um comportamento interior; reproduz, no nosso interior, estratégias motoras que não são acessíveis ao observador. Permite, a si próprio, a elaboração e ensaio de estratégias comportamentais complexas a ser executadas em um tempo futuro, a ser determinado. Ambas as funções são antagônicas, porque a tarefa consciente requer um certo grau de concentração motora, enquanto um máximo de atividade motora costuma estar desprovida de importantes elucubrações mentais. Porém, se é viável a existência de animais vertebrados com uma capacidade mental nula ou rudimentar, o contrário não é, além de viável, desejado em nenhum caso: uma atividade mental com ausência de movimento, de comportamento. Conforme afirma E. Fromm, o mais difícil na vida de um homem é se sentar em uma cadeira e não fazer nada. Na verdade, este artigo foi concebido como uma homenagem tardia a um honrável galego, que não podia mover-se por si próprio (como consequência de um acidente que o tornou tetraplégico), mas que se fez valer, já que, pelo menos para mim, foi capaz de fazer valer o que pensava9. Costumava dizer “que morreu no dia que deixou de se mover”, e que somente se sentia realizado e livre ao sonhar. O devaneio nos faz donos do Universo, já que todo o seu conteúdo provém de nosso interior: “Sempre é noite quando durmo”, disse Paul Eluard.
DENTRO E FORA De acordo com os conhecimentos atuais, a vida se originou nos oceanos há, aproximadamente, uns 3.500 milhões de anos. As condições físico-químicas dessa sopa primordial tornaram possível o acúmulo de moléculas progressivamente mais complexas até a formação das biomoléculas (principalmente proteínas e ácidos nucleicos), que caracterizam o estado da vida. Porém, para interagirem, as moléculas precisam de uma proximidade física, ao qual se opõe a força dissipativa do diluente (a água), que tende a dispersá-las. Nessa situação, pode ser que tivesse um papel determinante a presença de
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uma membrana ou bicapa lipídica capaz de se estruturar, por si só, em pequenas formas esféricas, delimitando, assim, um pequeno interior frente à imensidão dos oceanos. No interior dessas vesículas, as substâncias pré-bióticas teriam conseguido interagir e se acumular. Com o tempo, a formação de cadeias estáveis de ácidos ribonucleico e desoxirribonucleico tornariam possível a reprodução da célula. A História acima referida sugere que, desde suas origens, os seres vivos estão delimitados fisicamente de seu entorno, mantendo em seu interior os códigos funcionais para sobreviver e se reproduzir. Porem, as vezes, os seres vivos, inclusive os unicelulares, mantêm uma troca contínua de substâncias com o meio que os rodeia, capturando os materiais alimentares necessários para sua sobrevivência e eliminando os descartáveis. Por outro lado, a competição pelo espaço e pelos nutrientes obriga a interação com outros seres vivos, o que supõe a aparição de estratégias agonísticas de captura e de fuga. Em tudo isso, deve ficar claro que, desde os seres unicelulares, os elementos norteadores do comportamento situam-se no interior do individuo, ou seja, sem contato direto com o meio exterior, com o ambiente físico-químico que os rodeia. Assim, para que esse núcleo interior, norteador dos desígnios celulares, possa saber o que ocorre no meio circundante, a célula precisara ter sistemas de detecção em sua periferia. Por outro lado, para intervir ativamente sobre o entorno vivo ou inerte, terá que desenhar sistemas efetores (produtores de movimento, liberadores de substâncias químicas) eficazes. De certa forma, as células (vivendo sozinhas ou em seres pluricelulares) reproduzem a imagem platônica de que o elemento que dispõem da informação necessária para a sobrevivência e reprodução celular percebe o mundo de forma indireta, graças às mensagens que chegam a sua periferia, e atua sobre seu ambiente físico e vivo através de efetores interpostos. Por último, os seres vivos não só vão interagir com seu meio externo em um esquema de estímulo/resposta, como seu centro cardinal pode gerar decisões internas, não contingentes, destinadas a explorar ou tirar algum proveito do exterior celular.
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Os seres pluricelulares repetem este esquema básico. A pluricelularidade permite, entre outras vantagens, a especialização das tarefas. Do ponto de vista do sistema nervoso, a primeira especialização é a separação entre neurônios sensoriais e motores. Os neurônios sensoriais são os encarregados da detecção de alterações no meio externo por diferentes manifestações energéticas (luminosidade, ruídos, proximidade de moléculas alimentícias). Os neurônios motores são os que ativam os efetores (músculo, glândula de secreção, órgão elétrico) para que eles atuem sobre o entorno. O elemento crucial na gênese do sistema nervoso dos vertebrados é a surgimento dos interneurônios, ou seja, de neurônios interpostos entre os neurônios sensoriais e os neurônios motores. Este processo evolutivo leva à formação do cérebro, que se encontra na situação descrita anteriormente para o núcleo celular. Deste modo, o cérebro permanece separado fisicamente do meio externo, mas recebe informações deste por meio dos seus órgãos sensoriais, e atua sobre o meio através de seus efetores, principalmente os distintos músculos do organismo. O cérebro humano é formado por um elevadíssimo número de neurônios: calcula-se que mais de 1012. Talvez esse número não diga muito acerca do quão grande é, mas faça alguns cálculos simples. Supondo que cada neurônio tenha o tamanho de um grão de areia (aproximadamente um milímetro cúbico), saberemos que 109 grãos de areia ocupam um metro cúbico (pesando em torno de uma tonelada). Para chegar a 1012 grãos de areia, precisaríamos de mil toneladas (103) de grãos de areia, ou seja, o que se poderia transportar em uns vinte vagões de trem cheios até o topo. Além disso, os neurônios estão conectados entre si mediante sinápse, como referi anteriormente. Em média, cada neurônio faz uns mil contatos sinápticos com outras células nervosas e recebe outros mil. Para que se possa ter uma ideia do que se supõe em tamanho relativo a esse numero de conexões (em torno de 1015 contatos sinápticos), se cada axônio neuronal tivesse um milímetro de diâmetro, a grossura do cabo que conectasse todos os neurônios entre si seria similar ao diâmetro da Terra.
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Ainda que o que foi dito se depreenda a que nem todos os neurônios estejam diretamente conectados entre si, poderia se pensar que uma mensagem que chegasse por um grupo deles, por exemplo por meio de um órgão receptor, acabaria chegando a todos, através da rede de contatos sinápticos. Isto não é aceito como verdadeiro, porque os neurônios não só são forma, como também função, visto que para se comunicarem entre si, precisam ter linguagens elétricas similares. Ao cabo, isto parece com o ocorrido nas diferentes linguagens faladas pelos humanos: um requisito mínimo para a compreensão é falar o mesmo idioma.
A CARTA MAGNA NEURONAL O que deve ser entendido por atividade neuronal? O conceito é certamente ambíguo, já que o neurônio está ativo durante toda sua vida. Atividade neuronal faz referência à presença de mudanças naquilo que caracteriza cada tipo de neurônio do ponto de vista funcional, normalmente, mudanças na geração de potenciais de ação por unidade de tempo. A função neuronal poderia ser condensada em três princípios básicos. O primeiro é o princípio de polarização dinâmica, proposto por Santiago Ramon y Cajal. Este principio indica que a organização funcional do neurônio segue uma trajetória que vai dos dendritos ao soma neuronal, e dele ao axônio. Este é o sentido em que se desloca o impulso nervoso. O axônio, através de seus elementos terminais, faz contato com outros neurônios nas sinápses, e assim sucessivamente. Um conceito mais recente é o da polarização trófica, originado a partir dos trabalhos de Rita Levi-Montalcini. Este princípio ressalta a dependência do neurônio no cérebro adulto dos mamíferos de sinais moleculares procedentes de seu alvo. Aqui, a mensagem vai em direção contrária; significa dizer que, desde o alvo, através da sinápse, até o axônio, e por esse até o núcleo da célula nervosa. Portanto, enquanto o conceito de polarização trófica aponta para um fluxo de informações de caráter metabólico relacionado com a sobrevivência celular e com a manutenção de sua
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conectividade, o conceito de polarização dinâmica se refere a todo o fluxo de sinais elétricos e aos processos de comunicação neuronal subjacentes à percepção sensorial e a elaboração de comportamentos e pensamentos. Recentemente, vem tomando corpo o que chamarei de conceito de transformação. Do interior corporal, o cérebro tem que construir uma imagem de seu entorno que não necessariamente precisa ser fiel em suas diferentes magnitudes físicas e manifestações energéticas, e sim útil, no sentido adaptativo. Os neurônios se subdividem em tipos diferentes, de acordo com a forma em como transformam a informação que chega a eles. Se todos os neurônios sensoriais terminam por transmitir as diferentes fontes de energia que detectam (luz, som, pressão mecânica) em energia elétrica, em biopotenciais, cada tipo de neurônio transforma a informação elétrica que recebe, ao menos do ponto de vista de funcionalidade do sistema. A informação que entra em um determinado tipo de neurônio deve ser significativamente diferente da que sai; ainda que, no momento, o que sabemos é que o portador segue tendo um substrato bioelétrico. Porém, em algum ponto do circuito nervoso, a fruta que se desfaz na boca há que se transformar em gosto! Nisso, precisamente, consiste nosso dilema. Uma questão sempre aberta é onde armazenar a informação relevante. Dado que o que aprende não parece poder chegar aos gens, atualmente se aceita que tal informação se armazena em forma de modificações funcionais na resposta que um neurônio dá a um mesmo estímulo, em função de outros estímulos contingentes. Estas modificações funcionais podem levar, em um tempo variável, à mudança da ultraestrutura neuronal, sobretudo nos lugares onde se localizam os contatos sinápticos10. Outra possibilidade (menos explorada pelas evidente dificuldades técnicas) é que a memória se armazene em estados funcionais ativáveis, isto é, em programas e subprogramas de atividade neuronal correlativa5,7. Recordar significa, portanto, extrair informação armazenada em nosso cérebro em forma e/ou função, com necessária
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perda de multiplicidade de acessórios informativos. Daí, o mundo tão gravemente desfeito, as vezes, em que se convertem nossas recordações e a necessidade de armazenar informação no exterior cerebral, em suportes diversos (pedra, papiro, vinil, rede de Internet).
DESENVOLVIMENTO MANIFESTAMENTE MELHORÁVEL Para o cérebro humano, temos que aceitar que, a partir de uns 10 genes contidos em uma célula germinal, há que formar um sistema de 1012 elementos neuronais, com 1015 interconexões. Portanto, o cérebro do indivíduo adulto não parece estar determinado até no ultimo detalhe da informação genética disponível e, em consequência, o efeito do entorno incidirá ao longo do desenvolvimento do embrião e do recém-nascido de forma primordial. Como os passos cruciais do desenvolvimento do sistema nervoso estão regidos, ao seu turno, por genes que se manifestam de forma especifica no tempo e espaço, uma ligeira modificação no prazo de um determinado estágio de desenvolvimento pode ter uma consequência sobre uma espécie determinada tão importante como o que poderíamos supor pela interação da espécie com o seu meio ao longo de milhões de anos. De alguma forma, o desenvolvimento armazena toda a experiência da espécie que mostrou um valor ou interesse para sua sobrevivência. Este armazenamento poderia ser adaptativo ou estrutural (centros nervosos com uma função determinada), funcional (reflexos com uma gama de possibilidades, motivos para a ação) ou estar aberto ao que possa acontecer (estruturas ou procedimentos neuronais de função não definida). 5
O cérebro adulto mantém uns princípios estruturais que se repetem com pouca variação nos vertebrados. Não é este o lugar para descrever a estrutura cerebral, mas mencionarei algumas questões relevantes. Por exemplo, a divisão já mencionada entre o sensorial e o motor é, ainda, detectável no cérebro adulto. Assim, para a medula espinhal, o que é dorsal ou posterior (a depender se a coluna vertebral está paralela ou perpendicular à superfície terrestre) é preferencialmente
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sensorial, enquanto as estruturas neuronais localizadas na parte ventral ou anterior possuem um predomínio motor. Esta divisão alcança nosso cérebro, já que as estruturas localizadas atrás da fissura central ou de Rolando (sulco que separa o córtex cerebral em duas grandes áreas) ocupam-se, preferencialmente, do processamento de informação sensorial, enquanto as que se encontram na frente se ocupam da elaboração dos atos motores e, ao que parece, da atividade mental consciente11. Não deixa de ser um paradoxo, apontado por mais de uma pessoa, que as funções analíticas da realidade mais complexas que o cérebro realiza tenham lugar nas proporções cerebrais mais afastadas (em termos de sinápse) do mundo exterior. Ao longo da escala dos vertebrados (se tal escala existe), o sistema nervoso central (encéfalo mais medula espinhal) cresce na direção rostral e caudal. Então, as funções que vão se agregando ao acervo comportamental de sucessivas espécies dependem do aparecimento do núcleo vermelho, uma estrutura neuronal localizada na proporção rostral do tronco do encéfalo, é relacionada com a aparição de extremidades e a necessidade de coordená-las de uma maneira coerente e eficaz, para se locomover pela superfície terrestre. Os peixes carecem desse núcleo, já que, com exceções, somente realizam movimento natatórios. Outro exemplo notório é a evolução do sistema de proteção da córnea. Se você tiver um girino em mãos e paciência suficiente, observe-o durante a sua transformação em rã. Observará, entre outras coisas, que lhe aparecerão pálpebras. Na água não precisam delas, como uma rã adulta, que vive no meio terrestre, sim. Se pudesse observar o cérebro de uma rã durante estes momentos notaria que, em paralelo, ativam-se também diversos núcleos motores e pré-motores no tronco encefálico, relacionados com a tarefa de abrir e fechar as pálpebras. Cada função motora necessita, normalmente, uma atividade neuronal que a gere. Quando se trata de funções muito integradas no acervo da espécie, tais funções estão localizadas em estruturas e circuitos neuronais definidos e fixados, geneticamente, para sua repetição durante o desenvolvimento de novos membros da espécie.
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VÁRIOS MAPAS CORTICAIS EM BUSCA DE UM LEITOR CONSCIENTE Uma conclusão que se tira do exposto até agora é que qualquer lugar do cérebro não é igual a outro; cada um costuma ter funções especificas designadas. Do ponto de vista funcional, existem, em primeiro lugar, circuitos neuronais reflexos, encarregados de responder de modo adequado a presença de determinados estímulos. Uma escala seguinte, muito importante para nossa história, é a presença de geradores centrais de padrões. Estas estruturas nervosas se encarregam da geração de pautas repetitivas de atividades motoras, como respirar, andar ou nadar. Assim, estes movimentos não são o resultado de estímulos externos, ainda que possam se iniciar na presença de alguns em concreto, e sim gerados no nosso interior. No caso, estes geradores internos estão em contato com as fontes de informação sensorial para modificar os atos motores em função das circunstancias ambientais. Por último, decisões motoras mais complexas, como andar em uma direção ou saltar em um determinado ritmo, requerem a participação de grandes áreas do córtex cerebral e a coordenação de grande quantidade de informações sensoriais e motoras. Mais complexo ainda, se cabe ao assunto, é o processo de aprendizado motor. Agora, ficará evidente a razão pela qual demora tanto tempo para aprender a tocar piano ou a pronunciar corretamente uma segunda ou terceira língua. O cérebro já esta, de certa forma, senão predeterminado, pelo menos orientado a um certo tipo de atividades motoras, e sua reestruturação para fazer outras diferentes leva (muito) tempo. A informação sensorial que vem dos diferentes órgãos sensoriais (olho, ouvido, nariz) segue, no cérebro, um caminho inverso ao das ordens motoras. Enquanto as ordens motoras vêm do córtex cerebral e se dirigem aos motoneurônios, que por sua vez inervam as fibras musculares, a informação sensorial vai desde os receptores sensoriais até destinos específicos no córtex cerebral. Por exemplo, a informação sensorial visual se dirige, principalmente, ao córtex cerebral, localizado no lóbulo occipital. Em geral, cada informação sensorial que se
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percebe como diferente (luz, som, odor) dispõe de uma porção cortical concreta, na qual tal informação se estende como um mapa. Isto é particularmente evidente no córtex occipital, no qual se se pudesse marcar com cores adequadas a atividade elétrica dos mil milhares de neurônios que a formam, você poderia ver nela o mesmo que um determinado sujeito esta vendo neste momento. Isto não quer dizer que a consciência reside nesses mapas, mas sim que a atividade consciente há de interpretar o mundo de acordo com o que se indica neles12.
ORIGENS DE NOSSA POBREZA Ninguém pode negar que a nossa visão do mundo é nossa e que nossos desejos são tão nossos quanto nossas experiências. Uma possível interpretação da atividade mental é que complementa o comportamento, já que permite realizá-lo em nosso interior, mediante o desenvolvimento de programas de atividade neuronal independentes do que ocorre no entorno. Esta independência do pensar pode ser do que ocorre não só fora do organismo, como também fora do próprio tecido nervoso, mas evidentemente, se costuma centrar na solução de problemas mais ou menos urgentes, relacionados com o entorno físico e social que nos rodeia. Instintos, desejos, impulsos, motivos, etcétera, todos esses nos levam a atuar sobre o exterior e todos procedem de necessidades internas a ser satisfeitas. Por sua vez, o comportamento como ato motor (cortar lenha, dar um passeio, recitar um poema) depende da atividade de precisos circuitos nervosos que atuam sobre dezenas de músculos diferentes. Se as necessidades internas podem ser imaginadas como um impulso vetorial até o exterior, o comportamento é uma sucessão harmoniosa de movimentos que se estendem no espaço habitado por cada espécie e estão à vista de todo o mundo. Por outro lado, o processo perceptivo forma uma imagem, não necessariamente visual, do mundo ao redor. Evidentemente, o mundo material que nos rodeia não pode ser possuído. Podemos formar um conceito de universo, mas não colocá-lo em nosso interior. Nem sequer em sentido estrito somos donos de nosso corpo, não só porque
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pode deixar de funcionar a qualquer momento, sem nossa autorização expressa, senão porque ocupa um lugar externo ao fenômeno perceptivo. Nosso corpo esta na lista do que é nosso, um pouco mais perto, sim, que nossa roupa, nossa cidade ou nosso país, mas fora de nosso mundo interior. Em consequência, devemos compreender o que existe, desde seres vivos (flores, feras), a construções defensivas (fortes), inclusive conceitos tão abstratos como as divisões arbitrárias da superfície terrestre (fronteiras), mas não possuí-los13. O mundo só nos pertence em sonhos porque, como assinalei no início, tudo que nele aparece vem de nossa atividade cerebral. O desejo de domínio sobre determinados nichos espácio-temporais não é privativo da nossa espécie, senão que várias outras o praticam, inclusive vegetais. Esse domínio pode ser exercido liberando determinadas substâncias tóxicas para os demais, ou atacando a todos que passem por um caminho, ou silenciando competidores em um fuso horário. Porém, a propriedade (coletiva, privada, compartilhada) de algo (animado ou inanimado) não passa de um conceito assumido por um grupo, no caso, o humano. Se a distribuição é irregular, parece evidente que estas diferenças na divisão serão aceitas por alguns poucos com satisfação, e pelos outros muitos relutantemente. A situação atual da espécie humana é o resultado instável de lutas constantes, de um processo educativo doloroso e de futuro sempre incerto. É evidente que esta situação é uma das fontes mais importantes, ainda que não a única, do mal-estar permanente com que os seres humanos se desenvolvem em sociedade. A rigorosa hierarquia social e a desigualdade permanente se impõem em todos os níveis da existência, inclusive na hora de aprender ou explorar o mundo ao redor. A necessidade de aumentar a disponibilidade do que se pode possuir e ou dominar leva à destruição progressiva do entorno, porque os sistemas biológicos tendem ao equilíbrio dinâmico (com uma ligeira variação, salvo catástrofes imprevisíveis), e não ao crescimento contínuo. Assim, em um dia de finados não distante, poderemos aumentar a nota de falecimento do nosso país com a morte do planeta
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Terra, escrevendo nela: aqui jaz o meio ambiente, que morreu por causa do outro meio14.
QUANDO FOI ASSISTIDO O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA? A forte carga emotiva que subjaz no indivíduo humano nos faz pensar se esta não pode ter sido parte na origem — tardia, na realidade — do estado consciente. A primeira pode ter desempenhado um papel primordial no aparecimento do fenômeno consciente, porque uma boa oportunidade de olhar para o interior de si mesmo, separando-se, por um momento, da relação com os outros, é quando o eu se frustra por não alcançar seus objetivos. Do caçador que falha na captura de sua presa, ao narcisista que sofre o ridículo da rejeição, há um longo trecho evolutivo, mas um motivo constante para a representação interna, para a encenação imaginária de tudo o que poderia ser e não foi, e como consegui-lo em uma oportunidade futura. Ademais, pensar suaviza a frustração, porque se faz o esforço de reentender a situação falhada. De fato, determinadas estruturas e centros neuronais integrantes da parte filogeneticamente mais antiga do córtex cerebral, a qual regula a conduta afetiva (isto é, o denominado sistema límbico), se encontram, por sua vez, intrinsecamente relacionadas com processos de caráter eletivo em relação ao mundo que nos rodeia, tanto físico-químico, quanto social. Estas estruturas são, principalmente, o núcleo amigdalóide, o hipocampo e a parte rostral da circunvolução do cíngulo. Em tais estruturas se avalia, por assim dizer, o gostar ou não gostar de uma situação, a adequação de uma resposta, a situação do individuo em um contexto determinado e sua experiência anterior5,7. Em particular, foi proposto recentemente que a mencionada região rostral da circunvolução do cíngulo poderia ser o assento (ou um deles) do livre arbítrio, segundo estudos realizados com pacientes que apresentam lesões em tal estrutura cerebral15.
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Nem toda estrutura complexa é capaz de gerar um estado consciente ou, dito de outra forma, atividade mental. Por exemplo, o cerebelo é uma parte importante do tecido nervoso encefálico encarregado, em particular, de dar continuidade, suavidade e harmonia ao movimento corporal e, que se saiba, sua atividade passa despercebida para a consciência. Da mesma forma, máquinas extraordinariamente complexas (sobretudo computadores) não alcançam, por hora, o estado consciente. Tampouco há razão para se pensar que um determinado algoritmo, por mais detalhado e elaborado que seja, e que se apoie no substrato físico (não cerebral) no que couber, gere um estado de consciência. Os algoritmos tropeçam, ainda, com aquilo que as regras não contêm: as regras de sua própria aplicação. A receita do chocolate repousa no livro, até que o cozinheiro a pratique16. Inclusive, como já havia assinalado anteriormente, nosso estado consciente não consegue ser consciente do que ocorre nas regiões corticais primárias. Só a presença da complexidade ou supercomplexidade não é suficiente para produzir estado consciente, e menos ainda em estados evolutivos anteriores, nos quais temos que supor que os cérebros seriam estruturalmente menos elaborados. É necessário agregar algo que possa explicar a aparição do fenômeno consciente no processo da evolução. Assim, pois, ainda que seja difícil traçar a origem evolutiva do estado consciente, ele pode ter tido sua origem na atividade neuronal do sistema límbico, já que este se ocupa de tudo aquilo que se refere às relações mais ou menos satisfatórias do indivíduo com seu ambiente físico e social. O desenvolvimento progressivo de outras áreas corticais, fundamentalmente dos lobos frontais e parietais (encarregados, respectivamente, de funções referentes a processos de caráter eletivo e de integração da informação sensorial e motora) explicam o incremento crescente de material de caráter mais frio e abstrato nos processo mentais. A atividade cerebral permite diferentes níveis de vigilância, isto é, dormindo, sonhando e acordado ou consciente. O estado consciente se apresenta como frágil, facilmente afetado por circunstancias
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ambientais, por substancias psicoativas e como limitado; somos conscientes, de vez em quando, de conteúdos escassos. A consciência sempre parece ser de alguma coisa. Ainda que haja muitos limites ao que se pode fazer, parece não haver limites para o que se pode pensar. No caso, se há algo impensável, isso é o estado consciente. Não somos conscientes da atividade neuronal de nosso córtex cerebral quando pensamos, como tampouco somos dos mecanismos corporais de regulação da concentração e glicose no sangue. Porém, poderíamos ser de ambos por meio da medida (em outros ou em nós mesmos) da concentração de glicose ou da atividade elétrica neuronal. O problema é que, ao medir, nosso estado consciente está ocupado com outros objetos e dados... “L’ánima és, e sol sabem l’effecte”, dizia, já há alguns séculos, Ausiàs March. De qualquer forma, um bom lugar para o estado consciente é o presente (“chama entre a madeira e as cinzas” para José Hierro), ainda que seja para o desenho de estratégias a ser utilizadas. Surpreende, portanto, que poderosos determinantes sociais tratem de nos prender continuadamente ao passado ou ao futuro, nos enredando ao presente, breve como ele é.
NOTAS O presente artigo foi publicado originalmente na revista Claves de Razón Prática (vol. 102., págs. 42-47, 2000). Apresenta-se, aqui, atualizado e com breves mudanças e correções. O neurônio idealizado se divide em três partes principais. O soma (do grego corpo) contém o núcleo celular e grande parte do citoplasma e das organelas intracelulares. Do soma, saem os dendritos (ramificação arbórea), que se subdividem como os galhos de uma árvore, a partir de umas quantas iniciais, e o axônio (eixo), que se estende ate fazer sinápse (conexão) com alguma célula alvo: por exemplo, outro neurônio ou uma fibra muscular.
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A membrana celular que envolve os neurônios e muito permeável a determinados íons (por exemplo o íon potássio), mas não a outros (por exemplo, o íon sódio). Isto origina concentrações iônicas um pouco diferentes entre o interior e o exterior celular. Estas diferenças de concentração 2
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de determinados íons fazem com que o interior celular seja mais eletronegativo (umas dezenas de milivolts) que o espaço extracelular. Esta diferença de potencial elétrico se denomina potencial de membrana. O potencial de ação se origina com uma mudança brusca e transitória na permeabilidade da membrana neuronal, o que permite a passagem de determinados íons (principalmente sódio, potássio e cálcio), que despolarizam o interior neuronal em relação ao espaço extracelular, modificando, assim, o potencial da membrana. Esta despolarização se estende rapidamente às regiões vizinhas, o que permite a propagação do potencial de ação ao longo do axônio. Assim, o potencial de ação é o processo fisiológico que as células excitáveis (neurônios, fibras musculares) utilizam para enviar mensagens rápidas, de um extremo ao outro de suas estruturas. Alguns potenciais de ação se propagam a mais de 100 metros por segundo.
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M.A.B. Brazier, The historical development of Neurophysiology, en: Handbook of Physiology (sec. I, vol. I), APS, Washington, págs. 1-58.
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J.C. Eccles, Do mental events cause neural events analogously to the probability fields of quantum mechanics, Proc. R. Soc. Lond. B, 227: 411-428, 1986, K. R. Popper y J.C. Eccles, The Self and its Brain. Springer International, Nova York, 1977, R.W. Sperry, Mind-Brain interaction: mentalism, yes; dualismo, no, Neurosci., 5: 195-206, 1980 e A. Fernández-Guardiola, Neurobiología de la conciencia: crítica del interaccionismo dualista, Salud Mental, 4: 7-13, 1981. 5
Para mim, quem expôs com melhor conhecimento nossas limitações para abordar o estudo dos processos mentais foi R. Penrose em: La nueva mente del emperador, Mondadori, Madrid, 1991. 6
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Mar adentro, de A. Amenabar. T. V. P. Bliss y G. L. Collingridge, A synaptic model of memory: long term potentiation in the hippocampus, Nature, 361: 31-39, 1993.
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J. M. Fuster, Redes de memoria, Investigación y Ciencia, 7: 74-83, 1997 y T. Beardsley, The machinery of thought, Scientific American, 8: 58-63, 1997. 11
F. Crick y Ch. Koch, Are we aware of neural activity in primary visual cortex?, Nature, 375: 121-123, 1995. Convém recordar que cada mapa necessita um leitor... Tragamos E. Kant ao nosso resgate: “sem sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado e, sem entendimento, nenhum seria pensado. Os pensamentos sem conteúdo são vazios; as instituições sem conceitos são cegas” (Crítica de La Razón Pura, Taurus, Madrid, 2005, pag.93) 12
“Buscando mis amores/ yré por esos montes y riberas; / ni cogere las flores, / ni temeré las fieras, / y passaré los fuertes y fronteras’. Experimente trocar los por de. San Juan de La Cruz, Poesía, Cátedra, Madrid, 1990, pag. 249. 13
O uso do termo meio ambiente é incorreto. Foi o fisiologista francês C. Bernard que definiu e chamou a atenção acerca da estabilidade do meio interno (no que se refere a temperatura, pressão osmótica, grau de acidez, concentração de açúcares, etc.) que banha as células de nosso organismo frente à variedade e instabilidade do ambiente ou meio externo, no qual nos movemos. Não só temos um Ministério do Meio Ambiente, como também se pretende que o ambiente não mude, como se isso estivesse em nossas mãos. 14
M. I. Posner y col., Localization of cognitive operations in the human brain, Science, 240: 1627-1631, 1988.
J. V. Pardo et al., The anterior cingulate cortex mediates processing selection in the Stroop attentional conflict paradigm, Proc. Natl. Acad. Sci. USA, 87; 256-259, 1990.
A informação sobre os tunicados, piadas à parte, corresponde ao magnífico artigo de R. Llinas, “Maindness” as a functional state of the brain, págs. 339-358, em Mindwaves, C. Blakemore y S. Greenfield, eds., Basil Blackwell, Oxford, 1988.
L. A. Zadeh, Outline of a new approach to the analysis of complex systems and decision processes, IEEE Trans. Syst. Man, Cybern., 3: 28-44, 1973. Este artigo está nas origens do que agora se denomina lógica embaçada ou difusa.
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O Sr. R. Sampedro, falecido em 12/1/97, trazido ao público no filme
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BIBLIOGRAFIA BUNGE, M.: The Mind-Body Problem. A Psychobiological Approach, Pergamon Press, Oxford, 1980. CALVIN, W. H.: How Brains Think, Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1997. CHURCHLAND, P. S.: Neurophylosophy, The MIT Press, Massachusetts, 1989. CRICK, F. La búsqueda científica del alma, Debate, Madrid, 1994. DAMASIO, A. R.: El error de Descartes, Critica, Barcelona, 1996.
SERÁ O ROSTO O ESPELHO DA ALMA? FISIOLOGIA DA EXPRESSÃO FACIAL
DELGADO-GARCÍA, J. M., FERRUS, A., MORA, F. e RUBIA, F. (eds): Manual de Neurociencia, Síntesis, Madri, 1998.
“Quisiera más que nada, más que sueño, ver lo que veo”
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Pedro Salinas, Confianza, 1955
KOCH, C. Y DAVIS, J.L. (eds): Large-Scale Neuronal Theories of the Brain, The MIT Press, Massachusetts, 1994. SCHRÖDINGER, E.: Mente y materia, Tusquets, Barcelona, 1990.
INTRODUÇÃO Cada vez que você contempla seu rosto em um espelho, está vendo o resultado expressivo da ação de um elevado número de músculos, controlados de forma precisa e contínua pelo sistema motor facial que reside em seu cérebro. A expressão do seu rosto é, a cada instante, o resultado de seu estado emocional interno. Só você sabe, momento a momento, como se sente, mas os demais têm acesso, de forma indireta, ao seu mundo interior, através do reflexo que seu rosto oferece acerca do que ocorre em seu interior. Porém, antes de explicar como o cérebro controla a expressão facial e o quanto sabemos hoje em dia acerca da organização neuronal dos movimentos faciais, convém dar uma breve explicação do que, para nós, significa entender em face de ser entendido, e o que um fisiologista definiria como mundo interno, em oposição ao conceito de mundo externo. Assim, vejamos ambos antagonismos, para começar.
ALGUNS PASSOS PARA TRÁS Um dos autores que melhor delimitou, na minha opinião, as relações e diferenças entre filosofia e poesia, foi Maria Zambrano. Para ela, o filósofo indaga o universo, ou tudo o que existe, em busca do “ser oculto atrás das aparências”, enquanto o poeta vive
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em um mundo transparente, no que deambula “desaparecido nessas aparências”. O filósofo trata de entender o mundo que o rodeia, inclusive de entender a si mesmo, desligando-se do que vê e sente. O poeta, por outro lado, rebusca em seu interior, sempre quieto, esperando uma possível doação — de conhecimento —. Zambrano se lamenta da divisão estabelecida por Platão, que reserva para todos os filósofos o entendimento do mundo real, por meio do pensar racional, enquanto “o poeta deve retratar mitos em seus poemas, e não racionalidade”. Contudo, talvez seja difícil alcançar o conhecimento absoluto pela rota do pensamento, apoiando-se ou não na experimentação... Para Maria Zambrano “a vista percebe a beleza que brilha, mas não pode perceber a sabedoria”. Poderia parecer desnecessária esta introdução à fisiologia do sistema motor facial, se não fosse pelo fato de que a expressão facial alcança seu maior desenvolvimento evolutivo e sua maior riqueza gestual na espécie humana, e porque a Neurofisiologia, nestes passos iniciais do século XXI, precisa adentrar com valor no estudo do que fazemos, somos e sentimos. Significa não se limitar em descrever neurônios, músculos e tendões, como se se tratassem de partes de um estranho, quando se trata, afinal de contas, de si mesmo. É necessário recordar, aqui, que o objetivo central da Neurociência é a descrição compreensível de nosso comportamento e de nosso pensamento. Volto, pois, ao argumento inicial. O neurocientista dos dias de hoje, como o filosofo desde sempre, questiona a realidade (exceto que equipado de poderosos instrumentos de medir e contar) em busca de respostas a perguntas elementares, mas quase inexpugnáveis: de que forma a atividade mental se produz no cérebro? Qual é o núcleo central de uma emoção? Em seu trabalho, o neurocientista sai necessariamente fora de si. Observa tudo, desde o extremo de seu eletrodo de alta impedância, ou desde os objetos tenuamente iluminados de seu microscópio de enorme resolução. Inclusive, quando investiga a sua realidade, ou a de seus congêneres humanos, o neurocientista olha e observa do exterior. Assim, descreve neurônios, centros e vias
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nervosas, e até complexas funções corporais de modo objetivo e desapaixonado (ainda que possa se irritar se outros colegas contradizem suas opiniões). Por outro lado, o poeta descreve seu interior, o que sente e vive com a precisão cientifica, mas também com o interesse e o empenho de quem joga algo importante. “Não corra, vá devagar,/ porque aonde você tem que ir é dentro de si mesmo!”, nos lembra Juan Ramón Jiménez, quem, ademais, tinha uma certa semelhança física com Santiago Ramon y Cajal. Em conclusão, para a Neurociência de nossos dias, não é fácil abordar o estudo de nosso ser interior, pela contradição acima descrita, isto é, porque para olhar dentro de nós mesmos de modo experimental, temos que sair ao exterior!
MUNDO INTERNO, MUNDO EXTERNO Convido-lhe, agora, a dar um salto no tempo, uns quantos mil milhões de anos e olhar a origem da vida na Terra. Para o que nos interessa aqui, um dos elementos primordiais na origem dos seres vivos foi a aparição da membrana plasmática capaz de delimitar um interior extraordinariamente pequeno, frente ao mar imenso em que a vida se iniciou. Este é um passo importante, porque as moléculas em dissolução tendem a separar-se entre si o máximo possível, seguindo as leis da diluição, enquanto para que possam haver reações químicas, as moléculas têm que estar próximas ou em contato. Assim, a membrana plasmática permite definir um espaço reduzido, no qual se acumulam, de modo ativo, biomoléculas capazes de interagir entre si por conta de sua proximidade. Também nesse interior celular, acumulou-se o genoma, isto é, a complexa estrutura molecular que armazena toda a informação disponível na célula e que permite sobreviver, reagir a estímulos e nutrientes e se reproduzir. Quero lhe fazer perceber que, desde o início da vida tal como a conhecemos e entendemos hoje, o genoma ou elemento orientador das atividades dos seres unicelulares se localizou no interior da célula, estando sempre banhado no protoplasma e isolado do meio externo pela membrana celular. O contato desse elemento central e orientador
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da vida celular com o mundo externo se estabelece por meio da membrana plasmática. É nesta última que se localizam grande parte dos receptores, que se encarregam de informar as mudanças de luminosidade, concentração de aminoácidos e hidrogênios, etcétera, que ocorrem no mundo exterior, assim como de executar as respostas adequadas. Portanto, desde o começo da vida, a célula se constitui em uma unidade funcional, composta de partes que cumprem tarefas diferentes e é dotada de um elemento central e separado do mundo exterior, que orienta seu destino. Esta certa ambiguidade, pela qual o elemento que controla e regula as vicissitudes celulares em um meio hostil está, ao mesmo tempo, desconectado dele; se manteve ao longo de toda a evolução das espécies e chegou, inclusive, a nós mesmos. O cérebro dos vertebrados está, como o núcleo celular, separado do entorno físico e social, rodeado de tecidos protetores e banhado pelo meio interno, ou seja, pelos líquidos corporais (sangue, líquido cefalorraquidiano e meio extracelular). Segundo a definição de Claude Bernard, o meio interno é constante em seus parâmetros (temperatura, grau de acidez, concentração de íons e nutrientes, etc.) frente ao meio externo, sempre em transformação. O cérebro recebe informações do que ocorre no meio externo por meio dos receptores sensoriais, que transduzem1 para ele essas mudanças em uma linguagem compreensível para os neurônios: a linguagem dos biopotenciais, dos impulsos elétricos nervosos. Por sua vez, o cérebro atua sobre o entorno, enviando ordens naturais aos órgãos efetores (principalmente os músculos e as glândulas de secreção). Portanto, o órgão gestor das ações animais e humanas se localiza no interior do indivíduo e, daí, o dirige e controla. No entanto, há um aspecto importante a ser destacado. O cérebro forma sua própria imagem do mundo externo, físico e social; e esta imagem não tem que ser tão real, e sim útil para a sobrevivência. Esse mundo interno é, necessariamente, próprio e peculiar de cada espécie e é formado pelo conjunto de códigos neuronais que a adaptam a seu entorno, e que permite viver e perpetuar seus descendentes. Esse
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mundo interior de códigos e normas se manifesta no mundo exterior mediante o comportamento, quer dizer, mediante o conjunto de atos motores que tornam possível andar, saltar e falar. Porém, outro resultado das atividades cerebrais é o mundo das sensações, do pensamento e da emoção. Neste caso, todo o conteúdo dessas atividades cerebrais fica restrito ao interior do indivíduo e não é facilmente acessível aos observadores externos, sejam ou não da mesma espécie. A maior parte da adaptação de uma espécie a seu entorno se armazena em seu genoma. Este, por sua vez, mediante o fantástico processo de desenvolvimento neuronal, se expressa no cérebro de cada indivíduo. Grande parte, pois, do que fazemos ou podemos fazer é determinado pela herança, a qual foi selecionada ao longo do processo evolutivo. Se não fosse assim, nunca estaríamos bem preparados para sobreviver. Não só se herdam traços e estruturas (cor da pele, tamanho, disposição dos órgãos e sistemas), como também comportamentos (gestos, habilidades motoras). Inclusive, em relação às funções cognitivas, há algo importante a dizer acerca da herança. A atividade mental tem uma capacidade limitada, razão pela qual grande parte do que fazemos se realiza sem um controle consciente. Se tivéssemos, realmente, que aprender a caminhar e a controlar cada um de nossos passos, levaria toda a nossa vida. Tudo aquilo estabelecido firmemente pela seleção da nossa espécie e de espécies próximas está incrustrado no genoma, desde o ritmo circadiano até a forma de bípede de andar, feitos de modo quase automático. Outras funções comportamentais e mentais são armazenadas de modo mais provisional, em forma de desejos. A (quase) todos nos agrada o perfume de laranjeira ou o incansável barulho do mar, mas (já) não sabemos porque. Ficou armazenado no funcionamento de nosso cérebro, atrelado ao nosso eu interno. Mas a sua razão inicial, funcional e adaptativa, foi descoberta e racionalizada por nossos antepassados e se armazenou em forma de motivo para agir, de desejo por satisfazer. Provavelmente, é neste sentido que Erwin Schrödinger afirma que “nossa vida consciente é, necessariamente, uma luta contínua contra nosso ego primitivo”.
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Nosso eu consciente não consegue, na maior parte das vezes, compreender o mundo dos desejos e das pulsões internas, porque sua razão de ser desapareceu do rastro do compreensível, do explicável. Em alguma parte de nosso cérebro, a contemplação de Las Meninas de Velázquez se transforma em prazer estético, mas não sabemos bem onde ocorre e, acima de tudo, não entendemos ainda como ocorre. Tampouco sabemos muita coisa sobre como a atividade neuronal produz o estado consciente. De qualquer forma, já disse Albert Einstein que “o mais incompreensível do mundo é que ele é compreensível”. Por uma curiosa extensão argumentativa do que foi referido no início deste artigo, sempre tendemos a pensar que e mais fácil entender a matéria do que o imaterial (a mente, por exemplo). Porém, como nosso cérebro foi feito da mesma matéria que o resto do universo, e como pensamos que podemos entendê-lo, igualmente seremos capazes de entender nosso mundo interior, com tempo suficiente disponível. Esse é o sentido primitivo da Fisiologia: a Natureza (physis) é suscetível de ser entendida pela Razão (logos).
EMOÇÕES E SENTIMENTOS Para defini-la de alguma forma, a emoção é uma agitação do ânimo, um fenômeno mental transitório que é acompanhada por correlatos vegetativos (rubor, suor, lágrimas) e de atos motores mais ou menos voluntários ou conscientes. Por outro lado, o sentimento é um estado de ânimo, um fenômeno duradouro, que é difícil de captar em uma expressão corporal definida. Para Jean-Paul Sartre, a emoção é uma conduta irreflexiva que se caracteriza por uma brusca queda no mágico. Pelo menos, qualquer psicólogo ou neurocientista aceitara que a emoção como estado mental e comportamental se afasta do estado consciente dominado pelo razoável. Em sua teoria das emoções, Charles Darwin aponta que a origem das emoções deve ser rastreada em gestos e atitudes mais primitivos; por exemplo, o gesto de ameaça nos mamíferos, inclusive na espécie humana, acompanha, muitas vezes, de mostrar os dentes, um gesto originário do ato de
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comer, no qual também se separam os lábios amplamente para morder o alimento. É como se o gesto indicasse ao observador que o observado poderia comê-lo ou, pelo menos, mordê-lo. Da mesma forma, o sorriso tem sua origem, ao que parece, em gestos de submissão, facilmente observáveis no zoológico, em numerosas espécies de primatas. Para Darwin, a expressão da emoção é muito indicativa do estado interno de um sujeito, seja o observador membro de sua espécie ou de outra com a qual interage (caçador, presa). E isto é assim porque o estado emocional aparece em situações de conflito, as que o sujeito não pode controlar facilmente, de modo consciente. É nesta situação, para Darwin, que são liberados atos motores incontrolados, que informam ao observador o que ocorre no interior do observado. Isto é útil do ponto de vista adaptativo, sempre que a emoção não seja fingida, obviamente. A emoção fingida pode ser adaptativa, mas só por um tempo limitado, já que o fingidor acabará sendo descoberto, perdendo assim o fator surpresa. A emoção se expressa em três formas distintas. Em primeiro lugar, a emoção tem um componente subjetivo, que corresponde ao que o sujeito sente (ira, temor, alegria). Em segundo lugar, a emoção se traduz em uma serie, nem sempre exatamente igual para todos, de fenômenos vegetativos controlados sobretudo pelo sistema nervoso simpático, como suor, rubor, choro ou tremor. Em terceiro lugar, a postura corporal, a entonação da voz e a expressão facial modificam-se de acordo com a emoção que se sente. Assim, o medo é acompanhado de uma postura retraída, tratando de diminuir a superfície corporal, enquanto a irritação costuma ser acompanhada de um certo cruzar de braços.
EXPRESSÃO FACIAL O rosto da espécie humana alcança possibilidades expressivas extraordinárias, visto que, sob a pele, subjacem mais de 20 (23 ou 24, segundo autores) músculos distintos, controlados pelo núcleo motor facial e pela unidade motora do núcleo trigeminal. Para I.
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LINGUAGENS DO CÉREBRO
Eibl-Eibesfeldt, “os movimentos expressivos [faciais] são comportamentos que experimentaram diferenciações especiais ao serviço da emissão de sinais faciais.” Uma prova indireta da origem comum das expressões faciais mais habituais é que todas elas são reconhecíveis por observadores pertencentes a culturas humanas muito diferentes da nossa. Entre o conjunto de expressões faciais aceitas ou identificadas como tais por todos os membros de nossa espécie estão, segundo P. Ekman, as que indicam os estados de alegria, tristeza, irritação, raiva, surpresa, medo e nojo. Cabe ressaltar que, atualmente, sabemos um pouco mais sobre onde, no cérebro, são percebidas as expressões faciais e seus respectivos estados emotivos, do que como ele as elabora. Neste último aspecto se concentrará grande parte do que segue neste artigo. Há uma certa e definida assimetria facial, que corresponde também a uma assimetria perceptiva. Nosso hemisfério direito percebe melhor o conteúdo emocional da expressão facial e do tom de voz observado, enquanto o hemisfério esquerdo se ocupa, em maior grau, em decifrar o conteúdo abstrato e quantificável do gesto e da situação observados. Da mesma forma, A hemiface esquerda costuma ser mais expressiva que a direita, o que pode ser comprovado ao mostrar a um grupo de observadores imagens de um rosto completo e do mesmo rosto composto, de modo artificial, por uma duplicação de sua metade esquerda ou direita. Pode ser que, por isso, Leonardo da Vinci nos apresente o lado esquerdo do rosto da Gioconda, como também fez Velázques, com seu autorretrato Las Meninas, e Goya, com suas duas famosas majas.
O SISTEMA MOTOR DA PÁLPEBRA Faz quinze anos que o nosso grupo de investigação estuda a organização cinética, propriedades no domínio do tempo e da frequência e, por último, o controle neural do sistema motor das pálpebras. Escolhemos esse sistema motor como modelo experimental para o estudo de como o sistema nervoso organiza o comportamento, pelas razões
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que serão expostas a seguir2. No homem, as pálpebras se movem pela ação quase exclusiva do músculo orbicular do olho, o qual se estende, em forma circular, sob a superfície da pele que cobre a órbita ocular. A posição de repouso de ambas pálpebras é fechada, inclusive quando estamos de cabeça para baixo. De fato, as pálpebras permanecem abertas durante o dia pela ação de mantenimento do músculo levantador da pálpebra; isto é, do músculo de ação oposta ou antagônica a do músculo orbicular. Se as pálpebras se fecham de forma passiva, na ausência de atividade contrátil no músculo levantador, é pela tensão acumulada nos tendões e ligamentos esticados de forma contínua pela ação de tal músculo. Existe outro possível mecanismo para fechar as pálpebras, mediante a co-contração de toda a musculatura extraocular, retraindo o olho até o interior da órbita. Ao que parece, isto não é factível para todos os membros da nossa espécie. Por outro lado, é comum observar esta resposta motora em felinos e roedores, os quais são capazes de co-contrair toda a musculatura extraocular (os quatro músculos retos que se inserem acima, abaixo, por dentro e por fora do globo ocular) e movimentar o olho até o fundo da órbita. Por último, grande parte dos vertebrados terrestres tem uma terceira pálpebra: a denominada membrana nictitante. Sua presença acompanha um músculo especial, o retrator do bulbo. Entre outros grupos de vertebrados, os morcegos e os primatas carecem de ambas estruturas. A membrana nictitante se estende por toda a superfície da córnea, em direção meio-lateral, quando o olho se retrai para o interior da órbita por ação do músculo retrator. Por sua vez, este músculo se insere quadruplicadamente na parte caudal do globo ocular e ao fundo da órbita. A contração dos quatro segmentos que formam o músculo retrator faz com que o olho se retraia até o fundo da órbita ocular e que, tanto a membrana nictitante, como ambas as pálpebras, se fechem em busca de sua posição de repouso. Diante do exposto até o momento, podemos aceitar que o sistema motor das pálpebras é relativamente simples em sua