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Lenio Luiz Streck Copyright© 2018 by Lenio Luiz Streck Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

PRECISAMOS FALAR SOBRE DIREITO E MORAL: OS PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO E DA DECISÃO JUDICIAL

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S895

Streck, Lenio Luiz Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial [livro eletrônico] / Lenio Luiz Streck. – 1.ed. - Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. 2M ; e-book ISBN: 978-85-9477-265-7 1.Direito. 2. Decisões. 3. Moral. 4. Responsabilidade civil I. Título. CDU: 347.5

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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Teoria


SUMÁRIO NOTAS INTRODUTÓRIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 CAPÍTULO 1 PORQUE PRECISAMOS FALAR SOBRE DIREITO E MORAL. . . . . . . . . . . . . 9 1.1. De quando a política se insere no meio da briga entre o Direito e a moral . . . 12 1.1.1. 1.1.2. 1.1.3. 1.1.4. 1.1.5. 1.1.6. 1.1.7.

De 458 a.C. a 2018 d.C.: da derrota da vingança à vitória da moral! . . . . . . . 12 O Rubicão e os quatro ovos do condor: de novo, o que é ativismo? . . . . . . . . 15 “Porte de arma de traficante” e caso Bolsonaro: o que têm em comum? . . . . . 22 Todos os brasileiros pais de gêmeos ganharão 180 dias de licença? . . . . . . . . . 26 Caso do ejaculador: de como o Direito nos funda e a moral nos afunda . . . . 28 STF: ainda há espaço para ações institucionais ou vivemos de heróis? . . . . . . 32 Cuidado: o canibalismo jurídico ainda vai gerar uma constituinte . . . . . . . . . 36

1.2. Império da vontade e o livre convencimento: o país arde e os bombeiros são piromaníacos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 1.2.1. Partindo para o ataque, primeiro alvo: livre convencimento no Tribunal Superior Eleitoral – sempre a questão da relação Direito-moral . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 1.2.2. Esporte Clube “Política e Moral” 10 x 0 “Futebol Clube Direito”: e Deus mandará um exército de anjos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 1.2.3. O indulto e a Escola do Direito Livre: o STF que vai de zero a cem! . . . . . . . 48 1.2.4. Em HC, TJ-SP mostra os marimbondos “Direito” e “Moral” se autodevorando . . 51 1.2.5. E se a opinião pública fosse contra a prisão após segunda instância? . . . . . . . . 55 1.2.6. Juízes e procuradores não confiam em... Juízes e procuradores . . . . . . . . . . . . 58

1.3. Os inimigos ainda são os mesmos: filosofia da consciência e behaviorismo – mas, é claro, presente a relação Direito-Moral . . . . . . . . . . . . . 65 1.3.1. 1.3.2. 1.3.3. 1.3.4.

Direito é como um jogo de baseball? Qual é mesmo a jogada, professora? . . 65 Behaviorismos: quando o texto da lei vale menos que um brunch pela manhã . . . 69 O protagonismo judicial e a máxima “Enquanto houver bambu, vai flecha” . 72 O Direito e três tipos de amor: o que isso tem a ver com subjetivismo? . . . . . 74

1.4. Sobre o papel do ensino jurídico na predação do direito pela moral, ou de como o ensino jurídico pode inverter o jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 1.4.1. Submissão final do Direito aos seus predadores (moral, política e economia): só a vergonha nos libertará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 1.4.2. Resumocracia, concursocracia e a “pedagogia da prosperidade” . . . . . . . . . . . 86 1.4.3. O que o procurador pastor tem a ver com a desmoralização do Direito? . . . . 87

CAPÍTULO 2 PORQUE PRECISAMOS FALAR SOBRE DECISÃO JUDICIAL E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 2.1. Respeitar limites interpretativos de um texto jurídico é uma postura necessária, democrática e republicana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95


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2.1.1. Para nos mostrar que há esperança juiz não seguiu o realismo retrô e o voluntarismo... e bingou! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 2.1.2. Na democracia, não é feio dizer que, onde está escrito X, leia-se X. . . . . . . . . 98 2.1.3. Hermenêutica e positivismo contra o estado de exceção interpretativo . . . . . 103 2.1.4. Imperdível: professor e juiz explicam a literalidade da Constituição . . . . . . . 106 2.1.5. “Defiro os requerimentos ministeriais, se existentes”! . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

NOTAS INTRODUTÓRIAS

2.2. De como a sétima arte nos ensina a decidir por princípios... Cenas pós-créditos: de como enunciados matam os princípios . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 2.2.1. As notícias não são boas. Judiciário não cumpre o CPC: Is it the law? . . . . . 114 2.2.2. O fator stoic mujic, a juíza Kenarik e o papel dos advogados, hoje! . . . . . . . 117 2.2.3. Making a murderer, Orestéia e minha ode à Constituição! . . . . . . . . . . . . . . 120 2.2.4. Enunciado self service, feito em workshop, virou fonte para preventiva . . . . . 125

2.3. ... E também precisamos falar sobre a Lava Jato! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 2.3.1. O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report . . 130 2.3.2. A frase “faça concurso para juiz” é (e) o que restou do processo penal . . . . . 136 2.3.3. Os presos da “lava jato”, os índios, o voyeurismo e a atriz global . . . . . . . . . 140 2.3.4. O juiz Sérgio Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 2.3.5. Jurisprudência de crise e de exceção? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144

2.4. O crescente e sintomático cerceamento de garantias . . . . . . . . . . . . . . . . 148 2.4.1. Há excesso de garantias, diz professor. E pergunto eu: O que dirão os 750 mil presos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 2.4.2. O estranho caso que fez o STF sacrificar a presunção de inocência . . . . . . . 154 2.4.3. Presunção da inocência: Fachin interpreta a Constituição conforme o CPC? 157 2.4.4. Fim da presunção da inocência, flagrantes online... E indago: onde ficou a Constituição? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 2.4.5. A proibição do silêncio do réu e a vedação de superar precedentes . . . . . . . . 168 2.4.6. Cumprir a CF? “Mais triste que as demoras é saber que não vens mais” . . . . 170 2.4.7. Intervenção federal ou militar? Ato discricionário? Qual é o limite? . . . . . . . 173

CAPÍTULO 3 CONSPIRAÇÕES FINAIS: ADVOCACIA VIROU EXERCÍCIO DE HUMILHAÇÃO COTIDIANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

Durante as duas últimas décadas, venho defendendo algumas teses que causam desconforto à comunidade jurídica. Uma delas é a de que o Direito não pode ser corrigido pela Moral. Ou seja, juízos morais não podem substituir a obra do legislador. Uma lei não vale por si só. Ela, antes de tudo, deve ser constitucional. Do mesmo modo, se a lei não é tudo, também não se pode dizer que ela é nada; se o juiz não é escravo da lei, tampouco é o proprietário dos sentidos da lei. O papel do juiz é de fundamental importância para fazer aquilo que Dworkin chama de “fit”, o ajuste institucional. Como também venho referindo, há várias hipóteses pelas quais a lei (regra, etc.) não deve ser aplicada, sendo, como dito, a principal delas a aferição de sua (in)constitucionalidade. Todavia, também existe modos de discutir o conteúdo da lei a partir de técnicas como interpretação conforme a Constituição e nulidade parcial sem redução de texto (há também a nulidade ou inconstitucionalidade parcial com redução de parte do texto legal). Do mesmo modo, há a hipótese da aplicação das velhas regras das antinomias, tais como lei posterior revoga lei anterior, etc. Para além disso, há ainda outra hipótese; esta, talvez, a questão mais importante no contexto da possibilidade de uma lei não ser aplicada: a que exsurge da relação regra-princípio. Em vários artigos e livros, explico que um princípio pode fazer com que uma regra desapareça ou, no contexto, seja redefinida. Isso desde que um princípio seja, de fato, um princípio – uma vez mais observado o ajuste institucional à la Dworkin – e não um mero standard retórico (aquilo a que chamo de pamprincipiologismo). O direito brasileiro vem sendo, a cada dia, fragilizado por um conjunto de predadores. Venho denunciando isso de há muito. Os predadores externos são a moral, a economia e a política. É evidente que a política tem atacado o Direito. Do mesmo modo, a economia, a partir de reformas estruturantes que alteram substancialmente direitos dos trabalhadores. Todavia, o mais


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importante predador tem sido ela, a Moral. Alguns ramos do Direito têm sido “privilegiados”, como o direito civil – que, aos poucos, vem perdendo seu estatuto epistemológico –, o direito penal – pelos desejos de punitivismo e aversão às garantias constitucionais do processo –, e o processo civil – em que não conseguimos fazer cumprir diversos dispositivos do Novo Código que funciona(ria)m como contenção aos impulsos do “predador-moral”. Daí a necessidade de falarmos sobre a relação Direito-Moral. Utilizando a cotidianidade das práticas dos Tribunais da República, este livro (re)trabalha vários elementos teóricos e práticos. Muito do material é produto de crônicas do ConJur, da coluna Senso Incomum. O modo como este livro foi produzido talvez seja um modo de urbanizar um pouco um conjunto de temas e teses sofisticadas que fazem parte da teoria do Direito e de outros de seus ramos. Nada melhor, então, que se parafraseie o excelente e famoso livro de Lionel Shriver: Precisamos Falar sobre o Kevin. Pois é. Aqui o Kevin tem sido um rebelde, que busca, todos os dias, confrontar a autoridade do Direito. Votos de boa leitura a todos, do Lenio Streck.

Capítulo 1

PORQUE PRECISAMOS FALAR SOBRE DIREITO E MORAL Em meados de 2016, durante um dos programas da apresentadora Fátima Bernardes, foi realizada a seguinte enquete entre os convidados do programa: quem deve receber atendimento médico primeiro? Um policial levemente ferido, ou um meliante em estado grave? Corretamente, os convidados de Fátima responderam o óbvio: socorrer quem está mais ferido. Mas o público nas redes sociais não pareceu concordar com o posicionamento majoritário. “O policial deveria ser atendido primeiro, Não importa quais sejam as circunstâncias”. “Bandido bom é bandido morto”. Assim bradava a voz do “clamor público”, de forma a dar razão para o poeta Konstantinos Kaváfis, com seu poema À Espera dos Bárbaros, de 1904. Talvez os bárbaros já tenham chegado. A discussão se deu no plano dos ditos dilemas morais. Alguns professores de Direito divertem os alunos com dilemas dessa natureza, como aqueles propostos por Michael Sandel sobre se, por exemplo, para salvar dez pessoas é possível matar o gordinho que está no outro trilho do trem.1 Direito não tem relação com dilemas morais. Essa questão não se põe. Os exemplos apresentados pelo Sandel, tais como o “trolley dilemma” (Dilema do Vagão), servem como pontos de partida para a problematização aceca dos sistemas éticos. Ou seja, tem uma finalidade didática e uma abordagem específica. Para delírio de operadores do Direito (estou usando a palavra com um tom um tanto sarcástico, confesso), os exemplos acerca das “escolhas morais” que devem ser feitas fluem como se fossem um bálsamo. Os juristas adoram fazer correções morais. A partir dos exemplos de Sandel, já começam as adaptações. Ativismos, decisionismos e, lógico, as “escolhas” erradas. Claro que as vezes, a escolha é acertada, mas um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia. 1.

STRECK, Lenio Luiz. Matar o gordinho ou não? O que as escolhas morais têm a ver com o Direito? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 28 de ago, São Paulo, 2014. Disponível em <https://www. conjur.com.br/2014-ago-28/senso-incomum-matar-gordinho-ou-nao-escolha-moral-ver-direito>.


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Capítulo 1 - PORQUE precisamos falar sobre direito e moral 11

Vem Sandel e diz: você está em um trem que tem pela frente várias pessoas, mas tem um desvio que pode ser feito, onde está um gordinho. O que você faz? Salva as cinco ou mais pessoas, matando o gordinho? Na sequência: e se você está em uma plataforma do trem e este matará cinco pessoas, mas você pode salvá-las, derrubando um gordinho sobre os trilhos, parando, assim, a trajetória do trem. No primeiro, as pessoas dizem que matariam o gordinho; na segunda, não, porque teriam que empurrá-lo. E daí? O que isso tem a ver (diretamente) com o Direito? Serve, sim, para discutir filosofia moral e correlatas; mas, para o Direito, uma aplicação direta só fragiliza sua autonomia.

Voltemos ao exemplo do gordinho e à eventual moralidade do assassinato (isso serve para outros “dilemas”). Sandel utiliza esse problema para ilustrar as posturas utilitaristas. A morte de uma pessoa seria preferível à morte de cinco. Porém, a audiência não consegue universalizar esse princípio: a maioria fica desconfortável em assumir a responsabilidade por empurrar o gordinho nos trilhos; e isso leva a reformular, ou a refinar, o argumento inicial de que a vida de muitos vale mais do que a vida de um só. Não precisamos ir muito longe para sermos apresentados a uma versão preliminar do conceito de dignidade humana, pela qual a vida humana tem uma dimensão não instrumental.

Permitam aqui desfazer qualquer tipo de mal-entendido: sei que Sandel é um filósofo mais que respeitável. Nada tenho contra o seu célebre curso “Justice”, no qual trata, em linguagem direta, desanuviada e sem imposturas, do pensamento de gente como Aristóteles, Kant, Bentham e Rawls. É uma prova, aliás, de que clareza e simplificação não são sinônimos. Também, endosso sua postura de tentar resgatar o debate público, em especial o político, das trevas onde se encontra hoje em dia (o que dizer do “debate público” no Brasil?). Ao demonstrar que problemas morais têm repercussão no âmbito político (na construção de uma sociedade justa, etc.), Sandel acerta na mosca.

Mas um jurista não está em condições de fazer este tipo de escolha fundamental (entre o utilitarismo e a dignidade, por exemplo). Para ser bem claro sobre esse ponto: já há um sistema (de regras, princípios etc.) que lhe antecede e que lhe coloca em condições de dizer algo. Ninguém quer saber se o juiz do caso é pragmaticista, consequencialista, ou se ele age com base em princípios morais (quais? de quem?). Melhor dito: o Direito democrático não pode depender disso.

Aliás, também Dworkin é autor que apresenta uma postura similar: a de participar ativamente do debate público, tentando ultrapassar a barreira entre a linguagem profissional, acadêmica, e as questões que ocupam a ordem do dia. O seu “Is Democracy Possible Here?” é um dos muitos bons exemplos disso. Neste ensaio, Dworkin propõe que se faça uma espécie de depuração do debate político norte-americano, polarizado entre Democratas e Republicanos. Dworkin procura estabelecer um common ground entre adversários políticos (e não inimigos) que torne a discussão autêntica e produtiva. Concordamos que valores como dignidade, igualdade e Democracia são importantes (ainda que discordemos a respeito do que estes conceitos significam)? Eis aí um bom ponto de partida. Retomando, penso que as lições de Sandel, se bem lidas, são mais do que bem-vindas dentro do debate público e, mesmo, à argumentação jurídica. Mas seus exemplos devem ser lidos com uma advertência. Aliás, deveriam carregar uma tarja com os dizeres: “você, que escolhe se mata ou não o gordinho, não está agindo como um jurista”. O agente moral que deve fazer esta escolha não representa um juiz em sua tomada de decisão enquanto agente público. Desenvolvo isso ad nauseam em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica.

Quero dizer, simplesmente, que na Democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais. Simples assim. Correto o médico de House of Cards, quando, instado a que deixasse o presidente americano baleado a fazer transplante de fígado, disse que não poderia “furar a fila”: It is the law. O princípio é: o que vale é a vida humana. Não importa de quem seja a vida. Isso deveria valer para a decisão judicial. Por exemplo, no Direito Penal o que importa é o fato e não a pessoa. O Direito Penal é do fato. A escola de Kiel é que pregava o Direito Penal do autor que, aliás, é o que se faz hoje no Brasil. Julgamos moralmente, quando os julgamentos deveriam ser pelo Direito. Fazer a coisa certa é dizer: It is the law. Fazer a coisa errada é dizer: It is the morality. O dilema de Fátima (Bernardes), portanto, não chega nem a ser um dilema na medicina. Todos os médicos já responderam que não importa quem seja, atende-se àquele que mais precisa. Porque é uma questão de princípio. Eis, aliás, um bom exemplo do que seja um princípio e um agir por princípio. Os juízes deveriam aprender com os médicos. Mesmo a contragosto, o médico tem de atender o mais ferido. Interessante é que é no Direito que certos juristas, com formação em uma dogmática no interior da qual o Direito tem um baixíssimo grau de autonomia, transformam-se em torcedores, problemática facilmente constatável quando confrontados com


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questões como prova ilícita (eles fazem juízos morais e dizem, quando lhes interessa, que o que vale mesmo é a verdade real) e questões que envolvem “inimigos”. Estudantes pequeno-reacionários, bacharéis-médios reacionários e doutores-grandes reacionários (claro que a escala não é assim, digamos, ‘mecânica’) passam a justificar coisas comezinhas como o ato da juíza que concede mandado coletivo, divulgação de interceptações clandestinas contra expressa proibição legal, fragilização da presunção da inocência contra expresso texto constitucional, etc. Graças a essa moralização chegamos onde estamos. Direito substituído pela moral e pela política (e agora também pela economia). E Direito legislado substituído pelo Direito jurisprudencializado. Em síntese – e foi exatamente isso que eu disse na Comissão do Novo Código de Processo Penal – eis aí a questão que desde sempre preocupou a Teoria do Direito (portanto, de todos os ramos do Direito): se remetermos a validade de uma norma e a apreciação de provas às opiniões desde um ponto de vista moral, estaremos deixando o Direito refém justamente da divergência entre opiniões morais, com que o Direito – enfim, o que é certo ou errado – dependerá do gosto de cada um. E ao que consta, ainda não inventaram, até hoje, uma TGP. Não, não falo de uma Teoria Geral do Processo. Refiro-me à outra TGP: a Teoria do Gosto Pessoal.

1.1. DE QUANDO A POLÍTICA SE INSERE NO MEIO DA BRIGA ENTRE O DIREITO E A MORAL 1.1.1. DE 458 A.C. A 2018 D.C.: DA DERROTA DA VINGANÇA À VITÓRIA DA MORAL! Parece que a discussão que Fátima Bernardes propôs no capítulo anterior reflete aquilo que se pode chamar de senso comum teórico acerca da relação Direito-moral. Mas isso é muito antigo. Explico: coincidentemente, no dia do julgamento do Recurso do Ex-Presidente Lula no TRF4, encontrava-me na Grécia. Visitei o templo da deusa Palas Atena e fiquei pensando sobre a história. Eu estava ali, no berço da civilização. E vendo o “lugar” em que a mitologia coloca o primeiro julgamento da história. Os gregos inventaram a Democracia. E, acreditem, também inventaram a autonomia do Direito. O primeiro tribunal está lá na trilogia de Ésquilo, Oresteia, nas Eumênides, peça representada pela primeira vez em 458 a.C. Agamenon, no retorno da guerra de Troia, é assassinado na banheira de

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sua casa por sua mulher, Clitemnestra, e seu amante, Egisto. Orestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança. Até então, essa era a Lei. Era a tradição. Orestes deveria matar sua mãe (Clitemnestra) e seu amante, Egisto. E ele mata os dois. Aí vem a culpa. É assaltado pela anoia, a loucura que acomete quem mata sua própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Eríneas, que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: Alepho, Tisífone e Megera). As Eríneas são as deusas da fúria, da raiva, da vingança (hoje todas as Eríneas e seus descendentes estão morando nos confins das redes sociais). Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento, que é aceito pela deusa da Justiça, Palas Atena. Constitui-se, assim, o primeiro tribunal, cuja função era parar com as mortes de vingança. Antes, não havia tribunais. A vingança era “de ofício”. As Eríneas berram na acusação. É o corifeu, o Coro que acusa. Não quer saber de nada, a não ser da condenação. E da entrega de Orestes à vingança. Apolo foi o defensor. Orestes reconheceu a autoria, mas invoca a determinação de Apolo. E este faz uma defesa candente de Orestes. Os votos dos jurados, depositados em uma urna, dão empate. Palas Atena absolve Orestes, face ao empate. O primeiro in dubio pro reo. Moral da história: rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças. É uma antevisão da modernidade. Em pleno século XXI, autoridades não escondem e acham normal que o Direito valha menos que seus desejos morais e políticos. Na Oresteia, os desejos de vingança sucumbiram ao Direito. Embora a moral seja uma questão da modernidade, é possível dizer que o Direito, nesse julgamento, venceu a moral. Não aprendemos nada com isso. Como falei na ocasião, o julgamento de Lula não foi o Armagedom jurídico. Mas, é inegável o fato de que em função desse julgamento (em verdade, inserido dentro de um contexto amplo de descaso institucional por parte das autoridades judiciárias e representantes do MP para com a tradição jurídica do país) o Direito, há muito fragilizado e negligenciado, tombou, e, jogado ao chão, demorará a se reerguer. Na verdade, o Direito foi substituído por uma TPP (Teoria Política do Poder). O PCJ (Privilégio Cognitivo do Juiz) vale mais do que as garantias processuais e toda a Teoria da Prova que já foi escrita até hoje.


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O mundo apreendeu muito com a Oresteia. Depois do segundo pósguerra, aprendemos que a Democracia só se faz pelo Direito e com o Direito. E o Direito vale mais que a moral. E, se for necessário, vale mais do que a política. Sim, quem não entender isso deve fazer qualquer coisa – como Sociologia, Ciência Política, Filosofia, religião, moral etc. –, menos praticar ou estudar Direito. Temos um milhão de advogados, parcela dos quais se comporta como as Eríneas das Eumênides. Vi, entristecido, aqui da Grécia, nas redes sociais brasileiras, pessoas formadas em Direito – muitas delas com pedigree – torcendo por coisas como “domínio do fato”, “ato de ofício indeterminado” e quejandos. Parece que esquecemos que o Direito é/foi feito exatamente para impedir o triunfo das Eríneas. Meus 28 anos de Ministério Público e quase 40 de magistério mostraram-me que, por mais que um discurso moral, político ou econômico seja tentador, ele deve pedágio ao Direito. Alguém pode até confessar que matou alguém, mas, se essa confissão for produto de uma intercepção telefônica ilícita, deve ser absolvido, porque a prova foi ilícita. Esse é o custo da democracia. Você pode pensar o que quiser sobre o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política. Dworkin, para mim o jurista do século XX, sempre disse que juiz decide por princípio, e não política ou moral. Simples assim. E, assim, o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o ônus da prova. Não é o juiz que faz a prova nem é o juiz que intui provas. A Teoria da Prova é condição de possibilidade. Ou vamos apagar centenas de anos de Teoria da Prova? Isso quer dizer, de novo, que Direito não pode ser corrigido pela moral. Tenho dito isso nos momentos mais difíceis, inclusive no caso das nulidades contra Temer, de Aécio e dos indevidos pedidos de prisão do ex-presidente Sarney. Há muito denuncio a predação do Direito pelos seus predadores naturais – a moral, a política e a economia. E, permito-me repetir o poeta T. S. Eliot: numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece que está fugindo. Mais: faz escuro, mas eu canto, diria Thiago de Mello, eternizado pela voz de Nara Leão. Por tudo isso, fazendo minha oração à deusa Palas Atena, fico pensando no que vai acontecer com o Direito brasileiro depois disso tudo. Se a moral e os subjetivismos valem mais do que o Direito, o que os professores ensinarão aos alunos? Teoria Política do Poder? Mas de quem? A favor e contra quem?

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Por isso, de forma ortodoxa, mantenho-me nas trincheiras do Direito. Aliás, foi o que fez a diferença para a modernidade: a interdição entre a civilização e a barbárie se faz pelo Direito. Até porque, se hoje você gosta do gol de mão, amanhã seu time pode perder com gol de mão. Há um momento do julgamento de Lula em que o presidente da turma diz: “Terminamos a primeira fase – a das sustentações orais. Faremos um intervalo de 5 minutos e, na volta, o relator lerá seu voto”. Sim. No país em que vivemos, sustentações orais são encaradas, por boa parte dos nossos magistrados, como se fossem arguições vazias. Colocamos o valor do “processo” na sua finalidade, pouco importa o conteúdo de uma sustentação oral para o convencimento de um magistrado, as folhas do “procedimento” já disseram o que ele (acha que) precisava saber, e, como o “processo” – travestido em “procedimento”2 – é uma ferramenta à revelia do julgador, esse pode muito bem ignorar as sustentações e levar seu voto pronto, ignorando etapa importantíssima de um julgamento em grau colegiado, a arguição oral das partes e do MP. Lembro que, no julgamento mitológico de Orestes, os jurados não tinham o voto pronto. Cada um votou depois de ouvirem a defesa e a acusação. É incrível como, no Brasil, 2.500 anos depois, os votos vêm prontos e não levam em conta nada do que foi dito nas sustentações orais. Nem disfarçam. Afinal, por que manter, então, esse teatro, se a decisão está tomada? Isso não é um desrespeito a quem sustenta? Insisto: o ensino jurídico no Brasil tem futuro? Ficções da realidade e realidade das ficções! E pior: há milhares de professores que, por aí afora, não protestam contra isso tudo. Aliás, de quem é a culpa do livre convencimento?

1.1.2. O RUBICÃO E OS QUATRO OVOS DO CONDOR: DE NOVO, O QUE É ATIVISMO? É inimaginável a maneira como essa substituição do Direito pela moral está “normalizada” no campo jurídico. Os capítulos anteriores deixaram isso patente. Por outro viés, este capítulo vem no (contra)fluxo do texto de Luiz Werneck Vianna3, que diz não haver limites na patologia que é a judicialização da política. Diz que o Supremo Tribunal Federal atravessou o Rubicão com a recente judicialização do rito do impeachment. 2. 3.

STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; DIETRICH, William Galle. O que o processo civil precisa aprender com a linguagem? Revista Brasileira de Direito IMED, v. 13, p. 317-335, 2017. VIANNA, Luiz Werneck. Não há limites para a patológica judicialização da política. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 03 de jan. 2016, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com. br/2016-jan-03/luiz-werneck-vianna-nao-limites-judicializacao-política>. Acesso em 24 de abr. 2018.


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Como já se pode ver, esse é um assunto que me é caro. Venho batendo nessa tecla de há muito. De pronto, penso que Werneck Vianna mais se refere ao ativismo judicial do que propriamente à judicialização da política. E se sua crítica se limitar a essa parte específica da “política”, penso que fica de fora a maior parte do problema. O problema do ativismo é muito maior do que da judicialização. Isto porque Werneck coloca ativismo e judicialização no mesmo patamar ou não faz diferença entre os dois. Penso que isso é um problema, como explicarei na sequência. Há uma diferença entre esses dois fenômenos, ao menos no Brasil. O ativismo sempre é ruim para a Democracia, porque decorre de comportamentos e visões pessoais de juízes e tribunais. É como se fosse possível uma linguagem privada, construída à margem da linguagem pública. Já a judicialização pode ser ruim e pode não ser. Depende dos níveis e da intensidade em que ela é verificada. Na verdade, sempre existirá algum grau de judicialização (da política) em regimes democráticos que estejam guarnecidos por uma Constituição normativa. Por isso, é possível observá-la em diversos países do mundo. Aliás, ainda recentemente viu-se isso na Alemanha e nos Estados Unidos. Por vezes, para a preservação dos direitos fundamentais, faz-se necessário que o Judiciário (ou os Tribunais Constitucionais) seja chamado a se pronunciar, toda vez que existir uma violação por parte de um dos Poderes à Constituição. Portanto, a judicialização decorre da (in)competência – por motivo de inconstitucionalidades – de poderes ou instituições.4 A questão da judicialização (da política), portanto, está ligada ao funcionamento (in)adequado das instituições, dentro do esquadro institucional traçado pela Constituição. Quanto maior a possibilidade de se discutir, no âmbito judicial, a adequação ou não da ação governamental lato sensu com relação aos ditames constitucionais, maior será o grau de judicialização a ser observado. Por isso que afirmo, como já o fiz em outras oportunidades, que a judicialização é contingencial. Ela depende de vários fatores que estão ligados ao funcionamento constitucionalmente adequado das instituições. O ativismo judicial, por outro lado, liga-se à resposta que o Judiciário oferece à questão objeto de judicialização. No caso específico da judicialização 4.

Essa diferença entre ativismo e judicialização é de fundamental importância. Não me parece que se possa fazer uma crítica adequada se confundirmos os dois conceitos. A menos que tudo seja considerado judicialização, o que diminuiria sobremodo o papel da jurisdição, mormente em países periféricos. Nesse sentido, ver os trabalhos de Vanice do Valle e José Ribas Vieira, além de Clarissa Tassinari. Esse problema do ativismo afeta a Democracia, havendo excelentes estudos acerca dessa pauta de autores como Marcelo Cattoni, Gilberto Bercovi, Martonio Barreto Lima, Otavio Luiz Rodrigues Jr, Rafael Tomaz de Oliveira, Geroges Abboud, André Karam Trindade, Alexandre Morais da Rosa, entre outros.

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da política, o ativismo representa um tipo de decisão na qual a vontade do julgador substitui o debate político (seja para realizar um pretenso “avanço” seja para manter o status quo). Assim, de uma questão que sofreu judicialização pode-se ter como consequência uma resposta ativista, o que é absolutamente ruim e censurável numa perspectiva de democracia normativa. Todavia, é possível afirmar que existem casos de judicialização nos quais a resposta oferecida pelo Judiciário é adequada à Constituição, concretizadora de direitos fundamentais e/ou procedimentos guarnecedores da regra democrática e que, portanto, não pode ser epitetada de ativista. Afinal, como diz Marcelo Cattoni, em seu Devido Processo Legislativo5, há situações em que a jurisdição constitucional deve ser agressiva no sentido da garantia dos direitos fundamentais. Esclarecido isso, apenas agrego que, lendo o texto de Werneck Vianna, tem-se a impressão – ou corre-se o risco de que alguém possa tê-la – de que a judicialização (sempre) é ruim. Neste ponto, embora o Professor tenha uma visão crítica relevante acerca da relação entre os Poderes, a crítica à judicialização – sem a distinguir do ativismo –, pode enfraquecer sobremodo a jurisdição constitucional. A menos que venhamos a aderir a uma postura mais radical, da qual Jeremy Waldron é um dos expoentes – no sentido de que questões políticas e morais polêmicas, a respeito das quais haja um desacordo razoável estabelecido na comunidade política, não devam, por princípio, ser resolvidas pelo Poder Judiciário. Há uma pergunta fundamental que deve ser feita e que pode dar um indicador se a decisão é ativista: a decisão, nos moldes em que foi proferida, pode ser repetida em situações similares? Há outras perguntas que podem ser feitas, conforme explicito em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica6. Sendo essa primeira resposta um “não”, há fortes indícios de que estejamos a ingressar no perigoso terreno do ativismo. Veja, nesse sentido, acórdão da lavra do Desembargador Alexandre Freitas Câmara, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em que essa questão é discutida.7 Já escrevi acerca do grau de ativismo existente no país,8 mormente na 5. 6. 7. 8.

Editora Fórum, 3ª. ed. 4ª. ed., RT RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Segunda Câmara Cívil. Agravo de Instrumento nº 0033615 – 54.2015.8.19.0000. Relator: Desembargador Alexandre Freitas Câmara. Data de publicação do Acordão 11 de dez. 2015. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial, em números? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 26 de out. 2013, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2013-out-26/obser-


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Suprema Corte. Dizia, então, que uma decisão é ativista até mesmo quando, por exemplo, concede a metade da herança para a concubina-adulterina, assim como é ativista uma decisão que diz que é juízo discricionário dizer se pode haver prova antecipada no caso do artigo 366 do CPP. Também foi ativista a decisão do STF no caso das uniões homoafetivas. E sobre terras indígenas. E o caso Donadon na MS 32.326. E o que dizer do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)? Assim, o direito à saúde pode ser concedido por decisões que concretizam adequadamente o Direito, como também por decisões ativistas. Por exemplo, conceder um tratamento que consumirá um terço do orçamento do município é um caso de judicialização que acaba em ativismo. Um exemplo explícito de ativismo: foi a concessão da pílula contra o câncer, que provocou uma corrida ao Judiciário. No mais, decisões contra legem são práticas ativistas, porque, nesse caso, o juiz se assenhora da lei e coloca os seus juízos pessoais no lugar dos do constituinte e/ou do legislador ordinário. Também é ativista decisão que confunde explicitamente os conceitos de texto e norma9, remetendo o Direito aos cânones formalistas. Entendam-me bem: nem toda resposta juridicamente errada é, por ser errada, ativista; aliás, a postura pode ser ativista e, a resposta jurídica, correta. A questão é que, só pelo fato de ser ativista, há um problema de princípio que a torna errada, na sua formulação. É uma questão de dever judicial. Igualmente é uma confissão de ativismo quando se diz que o Supremo Tribunal é a vanguarda iluminista do país, porque ele, o Supremo, teria vocação para “empurrar a história”.10 Decisões no plano da jurisdição constitucional objetiva costumam correr menos risco de ativismo, embora possam, sim, a pretexto de judicialização em face de contingências, ingressar nesse terreno. Por outro lado, o STF (ou outros tribunais) podem declarar a inconstitucionalidade de leis em alto índice e ainda assim tal atitude não ser, necessariamente, ativista. Se as leis forem inconstitucionais, é bom para a Democracia – ou, diria, condição de possibilidade dela – que sejam assim declaradas nulas. Ativismo ou judicialização não se capta a partir do código “constitucional-inconstitucional” e tampouco do código “ação deferida-ação indeferida”. Os conceitos de vatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>. Acesso em 24 de abr. 2018. INTERPRETAÇÃO diversa da lei só é inválida se afrontar uma norma. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 05 de jan. 2016, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-jan-05/interpretacao-diversa-lei-invalida-afrontar-norma>. Acesso em 26 de abr. de 2018. 10. EM artigo, barroso defende papel “iluminista” do supremo. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 23 fev. 2018, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/artigo-barroso-defende-papel-iluminista-stf>. Acesso em 24 de fev. 2018. 9.

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ativismo e judicialização que explicito é que dão o limite do sentido e o sentido do limite da discussão. Se lermos as críticas à judicialização de modo radical como o faz Werneck Vianna, correremos o risco de criticar até mesmo decisões em ações diretas de inconstitucionalidade que nulificam leis que ferem a Constituição. De novo: por isso uma coisa é o ativismo; outra, a judicialização. É nesse caldo de cultura que andei refletindo sobre esse enorme contingente de decisões cotidianas sobre as quais não há controle e das quais pouco se fica sabendo, a não ser que envolva assuntos polêmicos com autoridades em geral ou causas com apelo social, aptos a “bombar” em redes sociais. Os próprios textos legais, quando dão azo ao livre convencimento, livre apreciação da prova, ponderação de valores, interesses, etc., são claros incentivos a essas práticas que, de judicialização pouco tem, mas tem muito de ativismo. Neste ponto, falha a doutrina ao não criticar adequadamente estes “incentivos legislativos ao ativismo”. Numa palavra, quando um magistrado diz que julga “conforme sua consciência” ou julga “conforme o justo” ou “primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento” ou ainda “julga conforme os clamores da sociedade”, é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. Um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para “desnaturalizar”. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (“cronofobia” e “factumfobia”). O que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos – para usar uma palavra suave – a aplicação da lei no país. Isso é facilmente verificável no conjunto de decisões. A “ideologia” de que falo está nas práticas puramente consequencialistas e/ou teleológicas. Basta examinarmos a jurisprudência de turmas, câmaras ou tribunais como um todo: por vezes se apela à clareza da lei (até utilizando a velha metodologia de Savigny, que, cá para nós, não tinha nem um apego ao legislador e nem à lei), em outras, no mesmo dia, diz-se que a lei é só a ponta do iceberg, “essa lei é injusta”, “os fatos sociais foram adiante da lei”, “o contexto social fala mais alto” ou, ainda, simplesmente, lança-se mão de princípios fofos-líquidos-dúcteis para justificar a tal primazia desse(s) princípio(s) sobre uma regra jurídica votada pelo Parlamento. Só que tudo isso é dito para cima e para baixo, isto é, os mesmos julgadores que apelam a uma pretensa literalidade, lançam mão, em outros momentos, de um arcabouço de argumentos morais para corrigir a legislação. E, assim, a moral corrige o Direito (d’onde pergunto: e quem corrigirá a moral?). Por exemplo, o mesmo tribunal que considera claro um dispositivo do CPP no que tange à oitiva de testemunhas, considera que mais


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de um ano e meio de prisão preventiva configura apenas um pequeno atraso e isso justifica a manutenção da prisão cautelar. De outro lado, não é difícil para um tribunal sustentar que é possível usucapião em terras públicas, sob o argumento de que a União não comprovou que a área é importante para a estratégia nacional. Entretanto, o tribunal não se dá conta de que essa decisão, levada a ferro e fogo, em termos de coerência e integridade, pode colocar por terra o próprio dispositivo constitucional que trata de terras públicas. Onde está a “clareza” ou a “obscuridade” nesses casos e outros milhares? Aliás, como já referi no caso do rito do impeachment, votos vencedores e vencidos invocaram a literalidade do texto constitucional. E, então? Por exemplo, fiquei pensando em como conciliar esse enorme leque de decisões que, por vezes olhadas isoladamente, até nem parecem “tão ativistas” e, quiçá, teleologicamente corretas. Entretanto, comparando com outras sobre matéria similar, acende a luz amarela, piscando para a vermelha. Há sentença judicial de juiz federal absolvendo refugiado sírio por ter falsificado seu passaporte. O réu havia recebido visto de refugiado e agora queria ir para a Inglaterra. A sentença não dá detalhes sobre algumas questões arroladas, como comprovação de que o refugiado não conseguira trabalho, sua irmã morando em Londres, etc. (deve estar nos autos, mas não está na decisão). A absolvição se deu, com a aquiescência do Ministério Público Federal (MPF), sob a tese da inexigibilidade de outra conduta. Teleologicamente a decisão pode estar correta. Mas essa pode ser uma opinião moral11 sobre o caso. Como responder a perguntas como “Mas não havia mesmo outra conduta ao refugiado seguir?” “Não havia outra conduta a se exigir de alguém que recebe o visto de refugiado?” Ele “tem de falsificar sua saída?” “Isso é conduta diversa?” “Em casos similares, essa decisão pode ser repetida?” “E se vale para refugiados, outras pessoas poderão falsificar passaportes?” “O problema está na pessoa do refugiado ou no tipo penal?” “O Direito Penal é do fato ou do autor?” Na verdade, quando nos interessa, alegamos que o Direito Penal é do fato. Mas por vezes, queremos que seja do autor, ainda que esse mesmo argumento (moral), em outras circunstâncias, possa ser um tiro no pé. Vejam os leitores: Como disse, posso concordar com o resultado, mas a fundamentação não me convence. Veja-se: dias antes, o mesmo juiz condenou um estrangeiro por transportar 11. Por exemplo, é um bom exercício buscar compatibilizar essa apreciação sobre o fato (absolvição pelo crime de falsificação de passaporte) confrontando-a com decisão sobre refugiados como a recentemente proferida pelo TRF4: FAMÍLIA não consegue visto de refugiado por não estar no brasil. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 4 de jan. 2016, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com. br/2016-jan-04/familia-nao-visto-refugiado-nao-estar-brasil>. Acesso em 25 de mai. 2018

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quatro ovos de Condor, ave considerada em extinção. A pena chegou a mais de um ano por ovo, por assim dizer. Sim, sei que é crime ambiental. A questão não é saber se o resultado foi correto. A questão é saber se ambas decisões podem ser corretas, jurídica e constitucionalmente falando. Ao mesmo tempo, o STJ concede liminar em reclamação dizendo que o ato de entregar automóvel a terceiro é um crime de perigo abstrato. Pior: a comunidade jurídica, impregnada da Síndrome Étienne la Boétie, não se dá conta de que, com esse tipo de decisão em sede de reclamação, estabeleceu-se um sistema cassatório, por aqui, por intermédio de um instituto que não é recurso. A comunidade jurídica esquece que a reclamação surgiu para preservar a autoridade de decisões, só que acabou por se transformar – darwinianamente – em um instituo que vincula a jurisprudência. O que é um texto jurídico, afinal? Poderia também falar das inúmeras decisões reconhecendo vários pais para o mesmo filho, avós em dobro, tornozeleira para pena de 13 anos. Tudo em nome da felicidade e da afetividade. Sim: o utente poderá alegar que é um direito fundamental seu ter o registro de uma madrinha determinada no seu registro de nascimento. Repito a pergunta: O que é um texto jurídico, afinal? Daí a pergunta que deve ser respondida: O Direito, ao fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, melhor, ele é o que o Judiciário diz que ele é? Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção, porque continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito? Não seria melhor deixar que “quem decide é quem sabe”? Talvez o que falte é sabermos, mesmo, de verdade, se podemos ou não falsificar passaportes, se manter uma casa de prostituição é crime (e não só nas pequenas cidades), se podemos ou não pegar ovos do falcão, se podemos ou não entregar um carro (e se se exige ou não o perigo concreto, já que o terceiro só responde concretamente, por mais paradoxal que isso possa parecer), quanto tempo alguém pode ficar preso preventivamente, o que é isto – a hipossuficiência, que está claramente posta na CF. Enfim, bem que gostaríamos de saber antes, pelo menos, a partir de uma certa tradição, e não ficarmos apenas discutindo “o depois”, isto é, ficar discutindo restos de sentido, verbetes, ementas, súmulas. E sermos simplesmente “profetas do passado”. E a doutrina se transformar em simples glosas do que os tribunais-disseram-sobre-a-lei. O que será que queremos, mesmo? Etienne de la Botié nasceu em 1530 e morreu em 1563. Escreveu uma obra clássica: O


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Discurso da Servidão Voluntária. Parece ser uma obra escrita para a comunidade jurídica brasileira.

1.1.3. “PORTE DE ARMA DE TRAFICANTE” E CASO BOLSONARO: O QUE TÊM EM COMUM? Para quem gosta de ativismo – que não deixa de ser a substituição do Direito por juízos outros, como os morais, políticos e econômicos – basta lembrar o que já digo de há muito em Verdade e Consenso: o ativismo não é um sentimento constitucional. Ele depende da composição do Tribunal. É behaviorista (comportamental). Logo, depende da opinião pessoal. Logo, é antidemocrático. Às vezes pode até nos agradar. Por vezes, pode acertar. Mas, não há como confiar. Como somos apaixonados pelo ativismo norte-americano, poderia trazer dados do livro The Constitution – An Introduction, em que Michael Stokes Paulsen e Luke Paulsen (New York, 2015), mostram os estragos feitos pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas penso que é despiciendo isso. O Brasil fez diversas importações inadequadas, entre elas, o ativismo norte-americano e a ponderação alexiana, da qual a dogmática fez uma vulgata sem tamanho. Há uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 3ª Câmara Criminal, que causou celeuma e espanto. Demonstrarei como o espanto se deu pelo motivo errado. A decisão12 deixou de dar uma interpretação constitucional ao artigo 212 do CPP em um caso de tráfico de entorpecentes e, ao mesmo tempo, absolveu o traficante do crime de uso de arma de fogo, por entender que, por ser majorante específica do crime de tráfico de drogas, não pode o acusado ser denunciado pelo porte de arma como se fosse conduta autônoma, uma vez que a arma destinava-se ao guarnecimento da atividade de traficância, caso em que supostamente o concurso material restaria por prejudicar o réu. Ao que sei e vi, ninguém reclamou da decisão que ignorou o artigo 212, por outro lado, contra uma suposta validação da possibilidade de o traficante poder portar arma na atividade de tráfico, o clamor público insurgiu-se. A Câmara pode não ter sido feliz na confecção do acórdão, que deve ter sido deixado a cargo do estagiário (outro estagiário levanta a placa “ironia”). Mas, no âmago, a Câmara acertou, por se tratar de caso de consunção. Aqui cabe um simples alerta: a ementa pode ser uma caricatura da decisão. 12. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.TJ-RS. Apelação-crime nº 70057362683. Rel: Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro. Data do julgamento: 02 de jul. 2015. Disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/12/art20151207-09.pdf>. Acesso em 26 de abr. de 2018.

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Todavia, o que importa discutir é o modo como essa absolvição do traficante se transformou em uma caja chino (caixa chinesa) escondendo o principal: a adoção pela aludida Câmara de uma tese do século XIX, relativizando um princípio fundamental e uma lei aprovada democraticamente. Quer dizer, a Câmara é progressista de um lado e, de outro, “conservadora”. Explicarei isso melhor. A preliminar fundamental restou afastada com menor empenho argumentativo, na medida em que o descumprimento da aplicação do artigo 212, do CPP, sem qualquer exercício de jurisdição constitucional, foi simplificado. Isto é, a “relativização” da aplicação de uma garantia fundamental de categoria constitucional – a maior nulidade do sistema – que, inclusive, separa objetivamente a figura do juiz e do Ministério Público e assegura o devido processo legal, não causou o mesmo espanto! Optar pelo emprego de uma velha (e ultrapassada) tese dogmática entre nulidades absolutas e relativas, numa espécie de “katchanga” para dar uma volta na Constituição não traz perplexidade. É difícil olhar o novo com os olhos do velho. Continuamos a descumprir o artigo 212 do CPP. É curioso ver como a dogmática processual penal segue trabalhando com uma “teoria das nulidades” que antecede qualquer problematização constitucional mais séria. Será que ainda faz sentido falar em coisas como “nulidades absolutas”, “nulidades relativas”, “anulabilidades” e “meras irregularidades”? Há um encobrimento do fenômeno “invalidade processual” em cada um destes conceitos, quando aplicados, digamos, como “primordiais-fundantes”. Se a nulidade é “absoluta”, deve ser decretada de ofício, não preclui e não envolve discussão a respeito do prejuízo; se é “relativa”, deve ser alegada tempestivamente, sob pena de preclusão. Será isso assim mesmo? Tenho impressão de que nossos juízes e aplicadores do Direito em geral passam mais tempo tentando “encaixar” determinadas situações processuais nestas classificações “duras” do que “botando o olho na coisa”, do que se perguntando pelo sentido que está por trás da aplicação de cada uma das regras do jogo. Ora, a invalidade é uma sanção que se atribui a algum defeito do ato processual, certo? Se este defeito comprometer alguma garantia constitucional, algum direito fundamental dos sujeitos processuais (seja acusação ou defesa, no caso do processo penal), parece-me que isto não pode ficar “encoberto” pelo manto da “nulidade relativa” ou da “anulabilidade”. Não importa o nome que se dê à coisa. O fato é que processo penal é coisa séria demais para ser tratada deste modo. É o direito à liberdade de alguém que está, em última análise, em questão.


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Vejam: o processo jurisdicional é a forma encontrada pelo Estado para legitimar o uso da coerção contra alguém acusado de uma infração grave, certo? O resultado de um processo como este é o mais grave possível: a imposição de uma reprovação à conduta de um indivíduo com a marca do Direito Penal, última “ratio”. Bem, se é assim, e se o Poder Público só se justifica enquanto tal quando preserva os direitos dos integrantes da comunidade, é preciso que se estabeleçam regras claras a serem por ele respeitadas. As regras do “jogo”. O devido processo legal. Então, como é que se “relativiza” uma regra que serve, justamente, para a imposição de limites ao Estado-juiz? Que delimita os contornos da sua atuação e dos demais atores processuais? Não foi por acaso, e não é sem justificativa, que o artigo 212 do CPP foi aprovado pelo Parlamento. Esta aproximação com o modelo “adversarial”, que amplia os poderes das partes (dentre estas, diga-se, o próprio Ministério Público) e que delimita os poderes do Juízo, decorre de uma interpretação (aliás, correta) das diretrizes constitucionais sobre o processo penal. A Constituição aponta para um sistema acusatório – aqui entendida, ao menos, a separação formal entre as figuras de quem acusa e de quem julga. Pergunto: o artigo 212 CPP é inconstitucional? Se não é, tem de ser aplicado. Vejam como o ativismo é nocivo: há quem o aplauda no caso da “relativização” da nulidade decorrente do descumprimento do artigo 212 CPP, mas ficam espantados ao ouvirem coisas da estirpe do “direito-fundamentaldo-bandido-ao-exercício-armado-da-traficância”. É justamente por isso que o Direito deve corrigir a moral e a política, e não o contrário.13 Se abrimos espaço para um tipo de visão teleológica, finalística, em detrimento do Direito, esse fragiliza-se, perde parte de sua força normativa. Nesse sentido, faz-se necessária uma vontade de Direito, para que não fiquemos à mercê dos ditos fatores reais de poder, sendo a moral alheia um dos mais poderosos fatores reais de poder.14 Pergunto: o recebimento da denúncia contra o Deputado Jair Bolsonaro (PP) é um ponto fora da curva ou a partir de agora o Supremo Tribunal Federal aplicará esse novo entendimento para todos os casos de discussão de imunidade? Ou o STF só o fez porque era “esse caso”? Sem discutir o mérito do caso (despiciendo falar do abjeto ato do deputado). O que se deve responder é se o STF, a partir de agora, dirá que “em casos x, y e z, a imunidade do parlamentar 13. Nesse sentido, PINTO, Emerson de Lima; DIAS, Giovanna; SILVA, Frederico Pessoa da. Urgente: professor de Direito tem prisão decretada após segunda instância! Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 14 de abr. 2018, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-abr-14/diario-classe-urgente-professor-direito-prisao-decretada-instancia>. Acesso em 15 de abr. 2018. 14. Cf. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1991.

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não prevalece”. Só para saber. Veja-se que dias antes, Jandira Feghali (PCdoB) manteve sua imunidade sem máculas, quando associou Aécio Neves ao consumo de cocaína. O senador Fernando Collor (PTC) chamou o procurador-geral da República de f.d.p. Então? Ah, dirá o Líder da Minoria no Congresso, mas esse caso do Bolsonaro é (mais) grave. OK. É grave. Mas a apreciação é moral? É política? Discutimos a imunidade pela apreciação moral do que foi dito? Como sabem, decisões devem ser por princípio e não por política ou moral. A distinção que o STF faz não é forte e, sim, fraca (subinterpretação), limitando a discussão da diferença entre injúria e outros crimes. Entretanto, isso é suficiente? Por exemplo, “Vossa Excelência é ladrão”: pode? É injúria. Parece que pode. Mas dizer: “Vossa Excelência é um ladrão porque meteu a mão na bolsa x”: não pode? Mas, em termos de imunidade, qual é a diferença entre injúria e calúnia? Ou se um deputado disser: “– Vossa Excelência apoia esse governo sonegador de direitos; seria bom que os contribuintes também sonegassem o pagamento de seus impostos”, não é injuria e nem calúnia e tampouco difamação. Mas, nesse caso, estará abrangido pela imunidade? O que mais não estará abrangido? Cada decisão do STF ilumina (ou escurece) o sistema de justiça. Cada decisão tem efeitos colaterais. Decisões não podem ser ad hoc. O que está e o que não está abrangido pela imunidade? Como aplicar no futuro o “precedente Bolsonaro”? Esse é o problema: pontos fora da curva, quando se estabelece algum ou alguns, quebram a coerência e a integridade. Para o bem e para o mal. E imunidade está restrita ao prédio do Parlamento? Hoje em dia, na era virtual, isso ainda faz diferença? “–Ah: falei isso, mas foi da tribuna”. Ah, bom. Parafraseando o livro famoso de Lionel Shriver "Precisamos falar sobre Kevin", aqui precisamos falar sobre imunidade. Urgente. Sob pena de o STF escolher em cada caso um determinado tipo de delito que fique dentro ou fora da abrangência. Vem aí uma porção de ações que Eduardo Cunha move(rá) contra os deputados que o ofenderam na votação do Impeachment. Estavam abrangidos pela imunidade? No fundo, tudo tem a ver com o que acima falei. Aplicação do Direito de forma subjetiva, por moral ou por política, dá nisso. Isso se vê tanto em habeas corpus quanto em qualquer processo. A linha divisória entre Direito e moral já foi ultrapassada de há muito. A questão é saber: quem corrigirá a moral? O Direito? Depois a moral volta e corrige, de novo, o Direito. Que por sua vez terá que corrigir a moral ad infinitum.


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1.1.4. TODOS OS BRASILEIROS PAIS DE GÊMEOS GANHARÃO 180 DIAS DE LICENÇA? A tentação proporcionada pelos juízos morais é incomensurável. Há até mesmo coisas que são difíceis de discutir. Ninguém é contra coisas fofas. Dúcteis. Você é contra a tese de que os pais tenham tempo a cuidar de seus filhos? Quem seria contra? É o caso da decisão do juizado especial de Santa Catarina, confirmada pela Turma Recursal, concedendo 180 dias de licença paternidade ao pai de gêmeos.15 Sem qualquer previsão legal ou constitucional, o Judiciário fez uma coisa da moda: ativismo. Decisão behaviorista. Fabricou um novo Direito. Como se legislador fosse, só que sem previsão orçamentária. Welfare state pela força da pena. Fê-lo, é claro, porque concedeu o direito que deverá ser pago pelo erário, como se este fosse uma ilha autossustentável. Não, este texto não é consequencialista. Apenas é um texto que se apega à Constituição. Baseado nos princípios da legalidade, da isonomia, da igualdade e republicano. Basta que se faça esta pergunta, e toda a decisão padece pela ausência que se constatará de qualquer sentido jurídico principiológico: qualquer pai de múltiplos, morador de Pindorama, tem o mesmo direito de ir à justiça exigir esse benefício? Qualquer trabalhador pode entrar em juízo para exigir o mesmo tratamento? O operário pode ingressar com ação obrigando o patrão a lhe conceder 180 dias de licença paternidade? Se a resposta for não, a decisão deve ser reformada. Imediatamente. Posso até fazer, ademais, uma pergunta minimamente consequencialista: por qual motivo as demais pessoas que são pais de múltiplos têm de transferir recursos para fazer a felicidade da família beneficiada pela decisão de Santa Catarina? É como um cidadão que professa determinada religião e exige que, no sábado, o trânsito de sua rua seja fechado, porque precisa descansar. Ou um aluno que vai a juízo exigindo que a universidade lhe faça um curriculum à parte, porque, em razão de sua objeção de consciência, não consegue lidar com sangue, e ele quer cursar medicina. Como se cursar medicina fosse um direito fundamental. E como se os que não cursam ou os que não professam determinada religião tivessem que transferir recursos para bancar a felicidade desses cidadãos. E assim por diante. Em Verdade e Consenso16 e Jurisdição 15. JUSTIÇA federal concede licença-paternidade de 180 dias e pai de gêmeos. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 3 de maio 2017, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-mai-03/ justica-concede-licenca-paternidade-180-dias-pai-gemeas>. Acesso em 07 de maio 2017. 16. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva jur, 2017.

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Constitucional17 isso foi explicado em detalhes. Interessante é que a decisão foi dada em nome da “equidade”. Minha pergunta: o que é isto – a equidade? Ora, equidade é a adaptação do Direito a um caso concreto, mas quando não há regra. Ou para criar igualdade. No caso, em que caberia a equidade? Como invocar a equidade? A decisão também alude a “fins sociais e exigência do bem comum”? De quem? Só daquela família. E as outras famílias? Quem decide o quanto queremos pagar pelos direitos de todos? Os representantes do Judiciário, no momento da decisão judicial, devem assumir posturas institucionais que honrem com a responsabilidade política conectada congenitamente aos cargos que ocupam, isso vale para os representantes do Ministério Público. Dizer “não” também pode ser uma decisão correta. Não dá para conceder metade da herança para a amante com base na afetividade, como decidiu um tribunal da Federação. Também não dá para conceder um ou dois meses a mais de auxilio maternidade para a mãe na hipótese de mais filhos. E nem ao pai. Decisão não pode ser invenção. Decisão não pode ser escolha discricionária. Nem arbitrária. Aliás, decidir não é o mesmo que escolher. Mas, por que isso é assim? Porque muitas dessas decisões não recebem o necessário constrangimento epistêmico se o Judiciário e o MP carregam fardos institucionais, também os bancos acadêmicos possuem sua cota de responsabilização política e institucional. A autoridade para decidir não decorre apenas da investidura dos juízes em seus cargos, mas sim dos argumentos de princípio que estes utilizam para justificar o uso da coerção pública. Quando o juiz expede uma ordem, em nome do Estado, esta ordem é resultado de um processo devido, sem protagonistas, sem buracos negros de legitimidade (a minha consciência, a minha íntima convicção ou coisas desse jaez). A pergunta é: por que isso é assim? Tudo se torna ainda mais problemático porque proveniente do âmbito dos juizados especiais, cujas decisões são imunes a recurso especial e ação rescisória. Poder-se-ia cogitar do ajuizamento de reclamação para dirimir-se divergência entre o acórdão prolatado pela turma recursal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; porém, essa modalidade de reclamação não se funda em lei, mas na Resolução STJ 3/2016, que faz vista grossa ao § 1º do artigo 125 da CF-1988 e, à margem das Constituições dos Estados, atribui a competência para julgá-las às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça. Ou seja, ter-se-ia de utilizar uma inconstitucionalidade 17. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.


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criada pelo STJ para debelar uma ilegalidade cometida pela turma recursal. Uma autêntica aporia. Um dilema sem saída. Venho denunciando esse tipo de ativismo há anos. O judiciário e o MP estão esticando a corda ao limite. Julgamentos devem ser imparciais. Não se pode querer ser heroe.18 Decisões como essa sofreriam seríssimas consequências na Europa, bastando ver o que diz a Lei Alemã dos Juízes e o próprio Código Penal de lá, ou as leis de outros países europeus.

1.1.5. CASO DO EJACULADOR: DE COMO O DIREITO NOS FUNDA E A MORAL NOS AFUNDA É em Os Irmãos Karamazov que Dostoiévski apresenta a fábula d’O Grande Inquisidor, na qual Ivan Karamazov, personagem da obra, conta a seu irmão mais jovem, Alyosha, uma fábula segundo a qual Jesus Cristo volta à Terra e é preso e julgado pela Inquisição. No cárcere, um padre diz a seu ilustre prisioneiro que resistir às tentações do Mal em seu período no deserto foi sua ruína. Ao fazê-lo, Cristo também passou a exigir demais do homem, incapaz de resistir às tentações da mesma maneira. Segundo o Grande Inquisidor, o homem é fraco, incapaz de oferecer qualquer resistência quando é tentado. Por que trago isso? Porque, ao que parece, damos razão ao Grande Inquisidor de Dostoiévski. Parecemos incapazes de resistir às tentações que nos são constantemente apresentadas. Todos os dias. O episódio de um homem que ejaculou em uma mulher dentro de um ônibus é um claro exemplo. Uma vez mais, fomos tentados a corrigir as insuficiências ou as demasias do Direito por nossas próprias apreciações morais. Até mesmo faróis dogmáticos – inclusive positivados em lei – seculares de interpretação do Direito – como é o caso da máxima de proibição da analogia in malam partem – pode ser subjugado a vontade do homem em satisfazer ao seu desejo narcísico de pôr-se acima das instituições, cedendo ao canto da sereia e sobrepondo a sua vontade sobre a vontade do Direito. Deveríamos todos ler a velha doutrina e o projeto do CP comandado por Juarez Tavares, pelo ICC: É vedado o recurso à analogia para definir, agravar ou qualificar crime, ou impor pena. Simples assim. E não vejo dúvida na interpretação do que seja definir, agravar, qualificar. Quem escolhe o Direito faz, ao mesmo tempo, outras escolhas implícitas que são originárias da primeira. Há um custo inescapável. 18. STRECK, Lenio. Heróis, soldados, minimalistas ou mudos? são estes os perfis de juízes? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 12 de nov 2015, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com. br/2015-nov-12/senso-incomum-heroi-soldado-minimalista-ou-mudo-sao-perfis-juizes>.

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Escolhendo-se o Direito, escolhe-se também abrir mão de se portar como torcedor. Numa palavra: por que existe o Direito? Simples. Não existe um ponto arquimédico; nunca falamos a partir de um grau zero de sentido. Sempre veremos o mundo a partir da moral, e é por isso que só há uma saída: o Direito impede que falemos o mundo simplesmente e somente pela moral. O Direito nos salva de nós mesmos. Quando nós, juristas, deparamo-nos com casos como o do “ejaculador” somos postos à prova: será que somos capazes de cumprir com o nosso dever de lutar pelo Direito, mesmo que os cúes venham a baixo? Até o mais garantista dos juristas pode esquecer rapidamente das garantias que defende, quando se veem diante de algo que ofenda seus próprios juízos morais (ou de gênero, como é o caso). Transformam Ferrajoli em Jakobs em questão de segundos. Ora, as políticas legislativas ad hoc em questões criminais sempre foram alvo dos juristas críticos/progressistas: não é uma contradição concordar com os termos daquilo que sempre se criticou? Lei Medina, Lei dos Remédios, Daniela Peres, etc. Na verdade, isso é fruto da fórmula: omitimo-nos no atacado e nos indignamos no varejo.19 Lembremos: a partir do Direito abrimos mão de várias coisas. Escolher o Direito é escolher que não temos mais escolhas – temos decisões. E decisões, caro leitor, só são no seu fundamento. Nenhuma decisão se justifica pelos seus resultados. Decisão e o fundamento da decisão são uma coisa única. E, em se tratando de matéria jurídica, as decisões tomadas por uma magistrada são (devem ser) adstritas ao e fundamentadas no Direito. Não na moral, não na política, não na economia, enfim, não em seus predadores externos. O Direito exige um elevado grau de autonomia, e ignorar a lei, cedendo aos predadores externos, é um luxo ao qual os juristas não se podem dar. Ignorar os limites hermenêuticos também. Veja: há quem tenha defendido, diante do episódio,20 a aplicação do artigo 213 do Código Penal. Outros defenderam a aplicação do 19. PINHEIRO DA FONSECA, Joel. Mais preocupantes são as justiças da rua e das redes. Folha de São Paulo, 5 de set. 2017, São Paulo. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2017/09/1915853-mais-preocupantes-sao-as-justicas-da-rua-e-das-redes.shtml>. Acesso em 23 de abr. 2018. 20. Estou ciente dos 17 casos pretéritos de envolvimento do acusado em questão em situações similares. Sei bem que 13 deles foram enquadrados em ato obsceno ou importunação, um na hipótese do artigo 215 do CP, bem como sei que um foi considerado estupro tentado, e outro estupro consumado. Só um foi julgado. Da mesma maneira, estou ciente do caso mais recente, em que o “ejaculador”, que voltou a praticar o mesmo ato, novamente dentro de um ônibus, teve o flagrante homologado e a prisão preventiva decretada. A decisão do magistrado parece ter acalmado o clamor público – o que, por óbvio, e pelas mesmas razões expostas acima, não quer dizer que o juiz tenha acertado. O ponto é que nem os casos anteriores, nem os posteriores, têm o condão de influenciar na apreciação deste. O que gerou a discussão foi o fato específico e, se desviarmos disto, a velha guilhotina de Hume estará novamente à nossa espera.


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artigo 215, outros a hipótese do artigo 217-A, e por aí vai. Todos em disputas semânticas acerca de termos como “constranger” e “oferecer resistência”. Ora, é evidente que as palavras são plurívocas, dotadas de caráter retórico inclusive no Direito Penal. Acontece que, descontada a retórica, permanecem limites, que têm consistência diferente no Direito Penal na comparação com outras áreas. Por quê? Simples: Serve para evitar a “criatividade” na hora em que o jurista for tentado pela moral. Um estelionato não vira homicídio, assim como um estupro, que exige violência e é considerado hediondo, obedece a limites hermenêuticos de atribuição de sentido. Mais diretamente: onde estavam, no caso do ônibus, os requisitos de vulnerabilidade e violência? Desde 2009, o tipo penal de estupro – artigo 213, CP – passou a englobar o antigo tipo de atentado violento ao pudor – art. 214, revogado pela Lei 12.015/09. Por isso, em meus pareceres no Ministério Público, quando confrontado com atos libidinosos (como beijo lascivo ou apalpada nas nádegas – que nos compêndios que glosavam a jurisprudência de então assim constava: “beijo lascivo configura atentando violento ao pudor, conforme jurisprudência dominante), sempre referi que se o legislador optou por juntar o antigo artigo 214 ao velho artigo 213, é porque o ato libidinoso de agora não pode ser o ato libidinoso de antes. Caso contrário, qualquer gesto ou ato seria um estupro, tornando o artigo 213 inconstitucional face a Übermassverbot (proibição do excesso). No mesmo sentido, ainda, lembremos que a aplicação do artigo 213 seria analogia in malam partem, algo vedado. É justamente nessa linha, em texto pelo portal Justificando , que Bárbara Bastos e Leonardo Isaac Yarochewsky bem nos lembram que certos atos libidinosos – por mais reprováveis, graves, repugnantes que sejam – não se equiparam àqueles praticados com violência ou grave ameaça. É isso: reprovação fundada em juízos morais é uma coisa; Direito é outra. Caso contrário, as Erínias teriam comido o rim e o fígado de Orestes. 21

Ou seja, Direito não é vingança. As Erínias das quais falei acima foram vencidas pela Deusa Palas Atena nas Eumênidas de Ésquilo. Pelo contrário: é o Direito que serve de freio à ânsia punitivista, que inauguraria um verdadeiro estado de natureza hobbesiano. Basta lembrar o caso do atirador norueguês: réu confesso, matou 77 pessoas (numa tentativa de conter aquilo que chamava de 21. BASTOS, Barbara; YAROCHEWSKY, Leonard. Aspectos dogmáticos, sociológicos e a objetificação feminina no crime de estupro. Carta Capital – Justificando, 4 de set. 2017, São Paulo. Disponível em <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/04/aspectos-dogmaticos-sociologicos-e-objetificacao-feminina-no-crime-de-estupro/>. Acesso em 21 de abr. 2018.

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“islamização da Europa”) e, quando perguntado se estava arrependido, respondeu afirmativamente: sim, arrependido de não ter matado mais. O assassino, declarado mentalmente são e culpado, foi condenado a 21 anos de prisão. Alguns dos leitores talvez se perguntem “como assim apenas 21 anos?” Porque essa era a pena máxima prevista pelo ordenamento norueguês. E não vimos juristas noruegueses bradando: mas foi um crime bárbaro: merece pena mais alta, etc. Qualquer coisa para além disso seria decidir para além do Direito. E isso é antidemocrático. Desnecessário dizer o risco que seria um juiz decidir algo nos termos de “a pena máxima prevista é de 21 anos, mas a moral popular e minha consciência dizem que o crime é muito grave. Condeno o réu a 50 anos de prisão”. Se nem o Direito representar limites, não há accountability alguma. Interpretar não é – e não pode ser – um ato de vontade, e qualquer insatisfação não deve, nem pode ser corrigida por voluntarismos. Meu ponto é que a legitimidade para determinar a punição adequada a determinado ato pertence ao Direito, não à moral pessoal de cada um. E nem à moral da voz das ruas e das redes, as Eríneas contemporâneas. Parcela de juristas – e digo isso com toda a lhaneza e respeito – sempre tão contrários às repressões antidemocráticas, recorrendo a um punitivismo-de-gênero quando o ato em questão ofende concepções morais. Ao fim e ao cabo, a comunidade jurídica está sendo novamente colocada em teste e está novamente dando razão – mesmo que sem querer – ao Grande Inquisidor. Como se pode ver, são casos como este que nos colocam em teste. Também é diante de casos como este que surgem os discursos do tipo “não sou punitivista, mas...”. Sempre há um ‘mas’. E depois dele, sempre um discurso punitivista. Veja-se: ser a favor de que crimes graves sejam punidos com rigor não quer dizer que punições possam ser feitas à revelia de uma ortodoxia penal-processual (no caso do ejaculador, o punitivismo se mostrou no querer punir para além do ordenamento). É o caso, por exemplo, de manifestações como a da articulista e Professora Soraia da Rosa Mendes, publicada pelo jornal Carta Capital, no dia 4 de setembro de 2017.22 Veja bem, com o devido respeito à articulista, seu texto é mais um exemplo de “não... mas sim”. Mais um exemplo que cai no velho problema do ser – dever ser; a diferença fundamental entre is e ought. É simples: não se pode deduzir o que deveria ser do que é. Ou isso, ou encaramos a guilhotina de David Hume. Além disso, 22. ROSA MENDES, Soraia da. Foi constrangedor, foi violento e foi estupro. Carta Capital – Justificando, 4 de set. 2017, São Paulo. Disponível em <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/04/ foi-constrangedor-foi-violento-e-foi-estupro/> Acesso em 26 de abr. 2018.


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existe uma diferença significativa entre a devida postura de um jurista, para a postura de um filósofo moral. Ofereçam perguntas a um jurista e esse não responderá baseando-se naquilo que ele próprio pensa, mas naquilo que o Direito e o ordenamento jurídico têm a dizer. E assim deve ser a postura do Judiciário. Os fundamentos segundo os quais uma decisão jurídica será certa ou errada devem ser jurídicos, nunca extrajurídicos. Isto, por sua vez, não nega a possibilidade de que existem razões morais para que um acusado seja preso. Todavia, Dworkin nos lembra que os juízes têm responsabilidade política. E essa responsabilidade implica, sob um olhar hermenêutico, suspender os pré-juízos, que, por sua vez, implica não ceder à esquizofrenias.

1.1.6. STF: AINDA HÁ ESPAÇO PARA AÇÕES INSTITUCIONAIS OU VIVEMOS DE HERÓIS? Pois coube a um jornalista da Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman, colocar o dedo na ferida narcísica do Direito brasileiro.23 Subjetivismo, o protagonismo, o heroísmo, o personalismo. O que disse Schwartzman? Que, para além de lamentar a morte do Ministro Teori Zawaski – e que eu também lamento –, que era um quadro valioso do STF, com acertos e erros, trata-se de um tremendo exagero afirmar que o desaparecimento do Ministro tenha constituído um revés para a ‘lava jato’, da qual era o Relator na instância máxima. E acrescento: O tempo mostrou que o Ministro que o sucedeu foi bem mais punitivista que o magistrado falecido. Hélio tem total razão. Se o Direito fosse aplicado por princípio e não por política ou moral(ismos), essa questão não nos preocuparia. Afinal, o Direito não pode(ria) depender do Ministro x ou do Ministro y. Ah, mas, na prática, ele depende. Por que sempre temos que torcer pela bondade dos bons e temer pela maldade dos maus? Pergunto: por que a operação “Lava Jato” estaria “em perigo quanto ao seu futuro”, se o papel do Ministro Relator é o de homologar os acordos? O acordo já vem firmado. Por que dependemos do bom ou não-bom Ministro nas homologações? Dependemos de heróis? Desconfiamos dos demais Ministros? Os acordos podem conter gambiarras que só um bom Ministro (herói) detecta? Outro Ministro (um “não bom” ou “não herói” segundo os critérios da mídia e das redes “néscias”) deixaria ou deixará passar algo? Por que outro Ministro 23. SCHWARTSMAN, Hélio. República de gambiarras. Folha de São Paulo, 21 de jan. 2017, São Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2017/01/1851863-republica-de-gambiarras.shtml>. Acesso em 23 de abr. 2018.

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não pode fazer um trabalho à altura do trabalho do Ministro Teori Zawascki? Todos sabemos que o foro privilegiado, nos inquéritos da Lava Jato, faz com que dependa do Relator a abertura da investigação. A homologação idem. Mas, não deveria depender de um só. Um Ministro não deveria ter o poder de, solo, impedir a abertura de inquérito contra alguém com foro privilegiado. Se, por acaso, tem, é porque o Brasil é uma república sem accountability. Tudo isso só dá razão ao Hélio Schwartsman. Outra coisa: se o Relator é tão importante a ponto de dar esse frisson todo (não se fala de outra coisa), porque os juízes auxiliares podem continuar com as homologações antes da nomeação de um novo Relator? Não é um Ministro que tem de conduzir esse trabalho? Detalhe: a Folha de S. Paulo de 25 de janeiro de 2017 diz, com título de Ação de Janot pode apressar desfecho de caso Odebrecht,24 que a homologação da delação da Odebrecht divide opiniões no STF: por que o caso não é de urgência, já que o STF pode escolher um novo Relator em breve, que trataria da questão. Mais uma razão para estranhar o frisson. Ninguém assume, com sinceridade, o que está dizendo, e tudo é dito nas entrelinhas. Em uma República, quando instituições (estatais, midiáticas, sociais, etc.) não dialogam sinceramente entre si e com a sociedade como um todo, torna-se inviável a perpetuação de laços de confiança essenciais à estabilidade social e política de uma nação, instaura-se e cultiva-se, pelo contrário, esse sentimento de desconfiança banalizada que podemos perceber no nosso cotidiano. É o sentido escondido no e do não dito, o maior inimigo de uma Democracia. “Ah, a Lava Jato agora se vai morro abaixo”. Seja claro: diga o porquê. Por que qualquer dos dez ministros não poderia tocar a Lava Jato? Ora, são acordos de delação para homologação. Julgamento de acusado ou recursos de julgados já são outra coisa. Dependerá de vários Ministros. Por isso, o jornalista da Folha acertou. Dependemos de bons (e nãobons) personagens. Herança de nosso patrimonialismo. Só não dependemos das instituições. Só não dependemos daquilo do qual deveríamos depender: do Direito. Por isso, em Pindorama, o Direito virou uma loteria. E isso desaprendemos nos cursos de direito. Fazemos parecer que o Direito depende de quem o interpreta e aplica. Claro: por isso é que se diz – com ares de um realismo tupiniquim – que o Direito é o que o Judiciário diz que é. Toda essa fenomenologia repercute fortemente quando se discute quem 24. AÇÃO e janot pode apressar desfecho de caso odebrecht. Folha de São Paulo, 25 de jan. 2017, São Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/01/1852830-acao-de-janot-pode-apressar-desfecho-de-caso-odebrecht.shtml>. Acesso em 22 de abr. 2018.


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deve ir ao STF em vaga aberta. Ao que se vê e lê, o que vale, mesmo, são coisas como “a que grupo pertence”, “por quem é apoiado”, “a plantação do nome na imprensa” (sim, quem são essas fontes? É bastidor?), “quantos advogados e que Estado assinaram manifesto”, “quais associações de operadores apoia tais e tais e tais figuras”, etc. Ou coisas como “porque fulano é contra o aborto”; “já sicrano é a favor”; “fulano ou fulana é favorável às delações”; “beltrano é apoiado pelo governador ou ministro sicrano porque é duro na concessão de habeas corpus”; “candidato(a) é discreto e simpático”; “fulano se veste bem ou algo assim”. Que sofisticados critérios, não? Triste Pindorama, que depende de personagens e heróis particularistas e seus voluntarismos. Ninguém discute questões como “o Direito não deve depender de subjetivismos ou ideologias”. Despiciendo dizer que não somos alfaces. Temos sentimentos. Temos subjetividades. Um coração bate no peito dos juristas. Mas um Ministro do STF (como qualquer juiz) possui responsabilidade política. E essa responsabilidade política é incompatível com subjetivismos. É incompatível com partidarismos. É incompatível com a substituição do Direito por juízos morais. Portanto, o STF não é o superego da nação. E nem pode ser a vanguarda iluminista do país. Não podemos depender de um Ministro, que não deve querer empurrar a história (corre-se o risco de empurrá-la para trás). Se fosse, dependeríamos dos vanguardistas. Aí, quando algum morre, como ficamos? Se nos é permitido um espirito mais literário, imaginem a seguinte situação. Na ocasião de uma Sabatina arguida pelos membros do Senado, o ‘candidato’ ao posto de ministro recebe as seguintes indagações: Você é a favor da limitação da presunção da inocência deixando que se prenda antes do trânsito em julgado? “Sim, sou”; ou “Não, sou contra”. Resposta errada. Os cidadãos, que votam nas eleições, não queremos saber o que o senhor pensa disso, queremos saber o que o Direito nos diz. Resposta certa: “a CF e a lei nos asseguram que... e eu, gostando ou não, tenho de cumprir”. Pergunta dois: qual sua opinião sobre o uso do argumento do “clamor social” em direito penal? “Eu penso que...”. Resposta errada. Supremo Tribunal existe para ser contra maiorias, uma peça fundamental dentro de Democracias sérias, podemos dizer que sem essa ferramenta, a Democracia corre sério risco de tornar-se demagógica. A própria Constituição Federal é um remédio contra maiorias. Caso contrário, não precisaríamos de Constituição. Elementar isso. Isso pode valer para as opiniões cotidianas. Só que

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um Ministro do STF não pode dar simples opiniões ou opiniões cotidianas. Ele representa uma instituição e deve dar respostas conforme uma estrutura já existente e que não depende dele: o Direito. Pergunta três: “Entre a lei e sua consciência, fica com o quê? “Não posso ir contra a minha consciência”. Resposta errada. E se o Ministro é jusnaturalista (com esse nível de ensino, os juristas nem sabem bem do que se trata, imaginemos os senadores), isto quer dizer que o Direito escrito vale menos que o Direito natural, certo? Qual é a consequência disso? Mais: se o Ministro é ativista, quer dizer que, na hora H, ele optará por juízos morais ou de conveniência política. Qual é a consequência disso? E assim por diante. É disso que se trata. Simples assim. O resto é torcida organizada. A torcida elogia quando a decisão é a favor e critica quando é contra. Mudam apenas os personagens. Lembremos que um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia. O jurista norte-americano Cass Sunstein25 fez uma classificação dos juízes da Suprema Corte em Heróis, Soldados, Minimalistas e Mudos. Todos os Heróis podem ser considerados “ativistas”, no sentido peculiar de que eles estão dispostos a usar a Constituição para derrubar os atos do Parlamento. Eles pensam que podem direcionar a sociedade e seus anseios via decisões judiciais. Para eles, o Poder Judiciário pode ser a vanguarda (iluminista? – inserção minha!) do país, corrigindo o marasmo ou inércia dos demais Poderes. Já os Soldados caracterizam-se por maior deferência ao processo político, entendendo como seu dever promover a concretização das normas produzidas pelos poderes políticamente legitimados. Quanto aos Minimalistas, assumem uma postura essencialmente cautelosa. Sob a alegação de um dever de prudência, eles procuram evitar intervenções intensas ou abrangentes, privilegiando as práticas e tradições socialmente sedimentadas. Nesse sentido, os minimalistas preferem atuações mais centradas nos casos sob julgamento (coerência e integridade), receando da produção de repercussões potencialmente perturbadoras do processo sociopolítico, cujo ritmo próprio de maturação deve ser respeitado. O quarto perfil é o dos Mudos, que, como o nome diz, resignam-se e mantém silêncio diante dos hard cases e das controvérsias que envolvam posicionamentos mais sensíveis. Repetem a jurisprudência já existente, acriticamente (aqui se aproximam dos Soldados), evitando alterações na cadeia discursiva, por assim. Claro que o próprio Sunstein desconfia dos modelos, pela simples 25. SUSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015.


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razão de que o juiz que hoje dá um voto de herói, amanhã, por circunstâncias mil, adota a postura de soldado. Ou mudo. Donde teríamos um herói-soldado-mudo. E assim por diante. De minha parte, como já disse várias vezes, tivesse que “escolher” entre os quatro modelos (com todos os riscos que o próprio autor coloca), parece-me que o modelo minimalista mais se aproxima de quem julga por princípio.

1.1.7. CUIDADO: O CANIBALISMO JURÍDICO AINDA VAI GERAR UMA CONSTITUINTE E de tempos em tempos esse assunto reaparece. Mesmo os que desdém da Constituição, volta e meia querem fazer outra. Na verdade, comportamonos como a ascídia, que é um animal marinho que devora o próprio cérebro após fixar residência num local que lhe pareça “tranquilo e favorável”. A ascídia representa o suprassumo do canibal. Toda Democracia estável depende de uma relação equilibrada entre Direito e política para impedir que a constante disputa pelo poder, entre os diversos partidos e grupos sociais, possa colocar em risco a engenharia institucional estabelecida pelo pacto constitucional. Eis o caráter compromissório de uma constituição. Quando a política passa a funcionar na condição do vale-tudo, por meio de uma guerra generalizada entre facções que instrumentalizam o Direito de acordo com seus objetivos ideológicos mais prementes, a democracia é colocada numa situação preocupante, inclusive com riscos de rompimento do pacto constitucional. Entretanto, parece que a comunidade jurídica brasileira ainda não se atentou para esse detalhe, até porque ela não tem se preocupado muito com o Direito ultimamente. A atual crise política ainda não levou ao rompimento constitucional, mas pode seguir este rumo, caso o Direito continue a ser completamente ignorado na luta pelo poder que se instalou no país. Ou se ele for instrumentalizado ao modus da política. Parece que grande parte dos juristas ainda não entendeu a gravidade da situação institucional. Suas manifestações públicas se destacam principalmente por falas partidárias e opiniões ideológicas, sem o mínimo critério constitucional. É estranha essa situação, mas tudo indica que os juristas brasileiros não estão nem um pouco preocupados com o Direito. É claro que existem exceções. Contudo, cada vez menos juristas falam sobre o Direito. Seu interesse maior é pela política. E se comportam como torcedores. Sem esquecer os moralistas, é claro. Antes de analisarem constitucionalmente qualquer assunto, o cinismo ideológico se impõe para justificar todo tipo

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de violação contra o Estado de Direito, como as interceptações telefônicas ilegais; inversão do ônus da prova; vazamentos seletivos e ilegais; conduções coercitivas ilegais; a violência policial nas periferias das grandes cidades; as constantes decisões discricionárias/decisionistas do Poder Judiciário; os comportamentos ativistas do Ministério Público e da Defensoria; Tribunal de Contas; etc, promovendo uma farra estamental, para dizer pouco. Na verdade, tudo é considerado válido quando a ilegalidade atinge somente adversários políticos ou setores marginalizados da sociedade brasileira. E o mais assustador é que parte significativa dos juristas se coloca na primeira fila como principal apoiadora das medidas de exceção. Isso porque, para grande parte dos “doutores”, defender o Estado de Direito não é uma questão de princípio e sim uma questão de conveniência. Mas depois de todas as demonstrações de falta de apreço pelo Direito – e não faltaram violações nesses trinta anos da Constituição de 1988 –, alguns juristas também resolveram encampar a ideia estranha (para ser generoso) de que o Brasil necessita de uma nova Assembleia Constituinte para reformar o sistema político. Fala-se em convocar uma Constituinte exclusiva e apostam novamente na política como solução de todos males.26 Afinal, a Constituição de 1988 não tem nada a dizer sobre a atual crise? Por acaso ela autoriza a convocação de uma Constituinte exclusiva? A tarefa institucional que nós, juristas, temos, de dizer que absurdos como "Assembleia Constituinte exclusiva" são atentados à nossa Carta Política é nosso fardo; mas é também nosso legado. Nós, mais do que todos, sabemos quanto a tradição do constitucionalismo moderno foi fundamental para aplacar a vontade de poder que atinge todos os segmentos da política. Direita e esquerda, quando governam sem qualquer forma de interdição jurídica, acabam caindo na tentação de usurpar o poder e exercê-lo de forma autoritária. No século XX tivemos diversas demonstrações de regimes autocráticos que instrumentalizaram o Direito para seus objetivos políticos e, como consequência, instituíram um estado de exceção permanente contra opositores. Diante da falta de Constituições normativas, pelas quais a limitação do poder e a defesa das liberdades individuais e sociais sempre são garantidas pelo Direito, restou a política arbitrária como forma 26. STRECK, Lenio Luiz; BERCOVICI, Gilberto; CATTONI, Marcelo; BARRETO LIMA, Martônio. Defender assembleia constituinte, hoje, é golpiismo e hierarquiri institucional. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 26 de ago. 2014, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2014-ago-26/ defender-assembleia-constituinte-hoje-golpismo-institucional>.


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PRECISAMOS FALAR SOBRE DIREITO E MORAL

de controle social. Foi por isso que, depois da Segunda Guerra Mundial, a concepção favorável a uma Constituição normativa, capaz de garantir a autonomia do Direito frente à política, retornou com força na Alemanha. Depois de todas as atrocidades ocorridas em solo alemão – desde a unificação nacional pelas mãos de Otto Von Bismarck até o nazismo de Adolf Hitler – ficou claro que a construção de uma comunidade política democrática dependia do controle da política pelo Direito. É a partir dessa nova condição institucional que Habermas se apropria (e bem) do conceito de patriotismo constitucional, cunhado por Dolf Sternberger em 1979, para dizer que o estabelecimento de uma comunidade política dependia da adesão aos princípios que orientam a formação de um Estado constitucional democrático. Ou seja, a defesa do controle da política pelo Direito via Constituição. Constituição é norma. Não por capricho. É norma porque, no Direito “Auschwitz nunca mais”, a Democracia só se faz no Direito e pelo Direito. Política e moral (principalmente estes dois predadores) devem ser controlados. Caso contrário, o Direito se transforma em política ou moral. Simples: se não há controle sobre a política, então não há mais Direito. Quem acha que vale, excepcionalmente, dar um drible no Direito, está dizendo que política e moral valem mais do que o Direito. Isto tudo quer dizer que os mesmos que vibraram com as escutas ilegais feitas contra o senador Demostenes foram, depois, vítimas do mesmo drible jurídico. Quem vibrou com Protógenes, morreu do mesmo veneno. Quem lembra do Fausto De Sanctis? Vou falar com Milton Neves para ver o quadro “Por onde anda”. Ele chegou a ser ídolo. Para ele, os fins justifica(va)m os meios. Todavia, Direito quer dizer: contra tudo e contra todos. É uma questão de princípio. Todos os dias vemos pamprincipiologismos, mut(il)ações (in)constitucionais, rebeldia contra o CPC novo e ninguém se apercebe do ovo da serpente? Um juiz federal disse, em Juiz de Fora, face to face com uma Comissão da OAB que “Nós do TRF não nos submetemos ao novo CPC.” Simples assim. Com receio de contestarem, os causídicos saíram. Sem nada dizer. Uma Ministra do Superior Tribunal de Justiça já disse que o CPC não se aplica aos juizados especiais. Há centenas de decisões em todo o país negando o novo CPC. Ensino jurídico de baixa densidade, cursinhos a milhão, livros cada vez mais standartizados e, me digam: quem é culpado pelo fracasso? Quem? Tempestade perfeita que está armada.

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Por isso, pergunto: Fazer uma nova Constituição resolverá essa fragilização do Direito? Quem garante que a) o novo texto será melhor do que este? b) melhor para quem? e c) quem garante que a nova Constituição será obedecida por juízes, Ministros e membros do MP? Sim, porque, atualmente, vivemos em um estado de exceção interpretativo. No dia em que foi feita a primeira ponderação depois da CF/88, começou o erodição (e não a erudição) do Direito. Quando aplicaram pela primeira vez um princípio ad hoc, inventado sob pretexto de que “princípios são valores”, ali foi dado um passo importante rumo ao fracasso. Hoje estamos nesse estado. Tendo que dizer o óbvio: a Constituição é norma. E que ser “revolucionário” é defender a legalidade constitucional. Porque não tem Cristo que consiga fazer com que se cumpra nem mesmo um Código como o de Processo. Pior: descumprimento incentivado por professores, magistrados e outros quetais. Sim, porque no Direito, hoje, ocorre algo como no futebol: todos técnicos são “professores”. E, com tudo isso, vêm me falar em constituinte “exclusiva”? Só se for uma Constituição que será aplicada por juízes alemães. Ou norte-americanos. Por que com o que temos hoje, desculpem-me, prefiro ficar como está e lutar para que os juristas a levem a sério e parem de canibalizar o Direito. Ou alguém acha que um novo texto constitucional fará com que os juízes o cumpram? No dia seguinte começa tudo de novo. Quem tiver dúvida, veja o que está ocorrendo com o novo CPC. Com tantos vazamentos, a República está fazendo água. Parece que tem gente que acha que a política é dispensável. Claro que a política não se ajuda muito. Entretanto, cabe um aviso aos navegantes: uma crise na Itália, por exemplo, é uma crise na Itália. Milhares de anos de história, uma das maiores economias do mundo, base social sólida, educação, saúde, rodovias, muito turismo, etc. Outra coisa é uma crise no Brasil onde ainda se mostra uma tarefa complicada “dizer as Coisas”. No caos, não há Direito. Se o Direito é predado pela política e/ou se o Direito preda a política, sempre sobra para aqueles que não são donos do poder, para aqueles que não são filhos d’algo. Quando o Direito se transforma em política e, em uma fagocitose, captura a política, o moralismo entra em cena. Lá vem o novo, gritam alguns; mas, por debaixo das roupas do novo, esconde-se o velho. Trata-se do poema "Parada do Velho Novo", de Bertolt Brecht, que também escreveu Santa Joana dos Matadouros. Rogai por nós!


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