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Paulo Silas Filho Copyright© 2019 by Paulo Silas Filho Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros Conselho Editorial Científico: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

O DIREITO PELA LITERATURA: ALGUMAS ABORDAGENS

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S576

Silas Filho, Paulo O direito pela literatura : algumas abordagens [livro eletrônico] / Paulo Silas Filho. – 2.ed. – São Paulo : empório do direito.com : Tirant lo Blanch, 2019. 1Mb ; ebook

2ª Edição

ISBN: 978-85-9477-437-8 1.Direito. 2. Literatura. I. Título. CDU: 340:82 É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Avenida Nove de Julho nº 3228, sala 404, ed. First Office Flat Bairro Jardim Paulista, São Paulo - SP CEP: 01406-000 www.tirant.com/br - editora@tirant.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil

São Paulo 2019


“Acho difícil acreditar na existência de pessoas de pouca (ou nenhuma) leitura que tentam escrever e esperam que os leitores gostem dos seus textos, mas sei que elas estão por aí. Se eu ganhasse um centavo por cada um já que me disse que queria ser escritor, mas “não tinha tempo para ler”, daria para pagar um bom jantar em uma churrascaria. Posso ser direto? Se você não tem tempo de ler, não tem tempo (nem ferramentas) para escrever. Simples assim.” (STEPHEN KING)


AGRADECIMENTOS Escrever é um exercício que exige tempo, comprometimento e compreensão. Tempo, pois deve se arranjá-lo, delimitá-lo, estipulá-lo, já que poucos são os que o tem de sobra, a fim de se separar um período do cotidiano para a dedicação a um determinado projeto. É aí que entra o comprometimento, vez que resultante da dedicação, devendo o autor se desligar de quaisquer outras atividades enquanto imerso estiver na construção literária, devendo ainda levar em conta todas as ferramentas necessárias para que a escrita seja colocada em prática. Já a compreensão eu costumo situar como algo que não depende propriamente do autor, mas sim daqueles colegas, amigos e familiares que lhes são próximos. Compreensão e incentivo, por mais que eu concorde que o ato de escrever não deve ser feito tão somente e apenas para a leitura de terceiros, são fundamentais para o desenvolvimento da escrita, traduzindo-se principalmente no respeito ao tempo que o autor necessita para a desenvoltura da escrita. É a razão pela que levo em conta tais fatores para mencionar alguns nomes nesta parte do livro que poucos leem. Agradeço a minha esposa Pablilline, por ser o que é em minha vida (suporte, companheira, colaboradora, amável...). Ao meu filho Victor Hugo (a inspiração literária na escolha do nome é inegável), por me fazer querer sempre seguir em frente – mesmo que ainda nem saiba disso. Incluo aqui agora a minha filha Laura – que está por nascer -, a quem amo desde já. Ao meu pai (Paulo) e minha mãe (Regina), por todo o amor e apoio que sempre me ofertaram. Aos meus irmãos (Marcelo, Kelvin, Pamella e Silvio), cujo incentivo sempre se fez presente.


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Agradeço ainda aos amigos, colegas e mestres que, direta ou indiretamente, sempre acreditaram, torceram e incentivaram: Paulo Eduardo, Arnon Bruno, Ygor Salah, Caroline Salah, Filipe Gusmão, Adriel Smailey, Claudio Melim, Jefferson Gomes, Paulo Ferrareze, Alexandre Morais da Rosa, André Pontarolli, Beatriz Paola, Jean Karax, Alisson Galbine, Guilherme Zorzi, Jéssica Pohl, Osvaldino Nunes, Iverson Kech, Samuel Ebel, Larissa Tomazoni, Jacinto Coutinho, Juliano Keller, Luiz Cani, Luiz Meister, Aicha Eroud, Paulo Incott, Rui Dissenha, Estefânia Barboza, Eliton Marques, Aline Gostinski, Bernardo de Azevedo e Souza, Bernardo Nogueira, Danielly Borguezan, Myrna Alves, Shalom Baltazar, André Karam, Henriete Karam, José Calvo, Emanuel Pepino, Luana Aristimunho, Dieter Axt, Décio Franco, Rosália Mourão, Bruna Simioni, Bryan Bueno, André Peixoto, Aline Pascholati, Gustavo Czekster, Hugo Victor, Lenio Streck, Alfredo Copetti, Adriano Bretas, Miriam Alves, Angela e Dolor, Alana Oliveira, Marion Bach, Thiago Minagé, Djeff Amadeus, Paola Bianchini, Luciana Pimenta... Alguém sempre acaba passando, mas fica o registro do meu “muito obrigado” a todos os citados e aos que também assim mereciam.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 NOTA DO AUTOR À 2.ª EDIÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

CAPÍTULO 1 - A QUESTÃO DA NARRATIVA NO DIREITO . . . . . 23 CAPÍTULO 2 - JOSEPH K. E O NOSSO PROCESSO PENAL . . . . . 27 CAPÍTULO 3 - A JUSTIÇA ESTADUNIDENSE NA LITERATURA DE JOHN GRISHAM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 CAPÍTULO 4 - FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS? UM EXEMPLO EM “TEMPO DE MATAR”, DE JOHN GRISHAM . . . 35 CAPÍTULO 5 - ATTICUS FINCH, O ADVOGADO DE “O SOL É PARA TODOS” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 CAPÍTULO 6 - O ESTIGMA DO CONDENADO EM “OS MISERÁVEIS” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 CAPÍTULO 7 - VICTOR HUGO E A PENA DE MORTE EM “OS MISERÁVEIS” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 CAPÍTULO 8 - O CRIME IMPRESCRITÍVEL DE JEAN VALJEAN . . 51 CAPÍTULO 9 - E ONDE SERÁ JULGADO O PROMOTOR DO REI? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 CAPÍTULO 10 - DESVIRTUANDO AS REGRAS DO JOGO: AS ADIVINHAÇÕES EM “A TORRE NEGRA”, DE STEPHEN KING, E A “ORDEM PÚBLICA” NO PROCESSO PENAL . . . . . . . . . . 59 CAPÍTULO 11 - O ACUSADO INJUSTAMENTE À ESPERA DE UM MILAGRE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 CAPÍTULO 12 - O SONHO DE LIBERDADE PRESENTE EM TODOS NÓS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71


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CAPÍTULO 13 - ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: HOMO HOMINI LUPUS? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 CAPÍTULO 14 - TRIBUNAL DO JÚRI: SOMOS JULGADOS POR NOSSOS PARES? REFLEXÕES A PARTIR DE “O VERMELHO E O NEGRO”, DE STENDHAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 15 - ACUSAR-SE FALSAMENTE: UM EXEMPLO EM NELSON RODRIGUES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 CAPÍTULO 16 - AS “GÍRIAS” NO SISTEMA PENAL E NA LITERATURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 CAPÍTULO 17 - O CLUBE DA LUTA PELO DIREITO . . . . . . . . . . . 93 CAPÍTULO 18 - A LITERATURA E O PATRULHAMENTO JURÍDICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 CAPÍTULO 19 - LUGAR DE LIVRO NÃO É NO LIXO! . . . . . . . . . 101 CAPÍTULO 20 - OS MOTES DO PARTIDO DE “1984” PRESENTES NAS DECISÕES JUDICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 CAPÍTULO 21 - A VIOLÊNCIA CONTRA A VIOLÊNCIA EM “LARANJA MECÂNICA” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 CAPÍTULO 22 - AS PRISÕES COMO “SOMA”: ALGO SOBRE ALDOUS HUXLEY E O DIREITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 CAPÍTULO 23 - OS ENSINAMENTOS DE UMBERTO ECO

SOBRE A IMPRENSA RUIM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

CAPÍTULO 24 - REGRAS DEONTOLÓGICAS NA ADVOCACIA E O ADVOGADO DO DIABO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 CAPÍTULO 25 - PARA ELES, A INDIFERENÇA (OU O SISTEMA PENAL) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 APÊNDICE I - “EU SOU AQUELE SISTEMA” . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 APÊNDICE II - “JOÃO, O CIDADÃO DE BEM” . . . . . . . . . . . . . . . 133 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

A literatura é talvez a forma mais pura e sincera de comunicação. Ao se expressar, o escritor não fica engessado pelos formalismos sociais, não precisa vestir as máscaras dialogais, não se aprisiona pelo medo das reações instantâneas. Ao contrário, expõe a alma em nudez escancarada, narra verdades inconvenientes, confessa a estranhos os pecados mais íntimos. É preciso reconhecer que o escritor escreve, em verdade, de si e para si, desbrava o próprio subconsciente, expõe vontades recônditas. Citando a máxima de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Eis a essência do escritor. O mais estranho é que o leitor experimenta sensação igual, no polo inverso. Identifica-se na construção literária alheia, transforma-se em personagem, toma a obra para si como se fosse o exclusivo destinatário de cada palavra lançada ao papel. Eis a essência do leitor. Uma boa obra literária inspira, revolta, assusta, transforma, encoraja, apaixona. Os caminhos da leitura são os mais variados possíveis, aleatórios, imprevisíveis. Quem abre um livro arrisca-se em aventura sem volta, entra em simbiose com realidade paralela construída por outrem. Pode parecer exagero dizer, mas a literatura não é só uma forma de manifestação artística, é, também, um relevante elemento de evolução e transformação pessoal e social. Faço este breve elogio à literatura para dizer que uma das escolhas mais importantes que fiz na vida foi influenciada por obras literárias. Olha aí! Tenho que me cuidar, caro leitor! Não posso fugir do objetivo. Eu vim aqui falar sobre a obra do Paulo e já estou falando da minha pessoa. Ao menos confessei no início: quem escreve acaba


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falando “de si e para si”! Mas, prometo que, falando de mim, chegarei ao Paulo e à sua brilhante obra que me cabe apresentar. A escolha a que me refiro acima é a escolha pelo Direito. A escolha por ser Advogado. Encontrei a minha vocação na literatura, nas páginas das mais variadas obras que “pintam” o Direito em cores vivas. Partindo de clássicos como “Crime e Castigo”, passando pelos suspenses desafiadores de Sir Arthur Conan Doyle, chegando aos recentes escritos de autores como John Grisham – cito um que muito me marcou: “O Advogado”. Quando fiz a escolha vocacional não tinha referenciais ou parentes na advocacia. A literatura é que me mostrou o Direito, descortinando os meandros insondáveis de um mundo desconhecido. É claro que a literatura também fez, por vezes, o inverso: revelando o quanto desconhecia aquilo que achava conhecer. Achou confuso? Leia “O Processo” de Kafka e entenderá o que é realmente ficar confuso. É inegável: a literatura inspira e apaixona! Apaixonei-me pelo Direito e foi a literatura que marcou o nosso primeiro encontro. O que quis mostrar através da minha experiência é o importante elo entre Direito e literatura. Aqui cito o Paulo que, em um de seus escritos, bem fala disso: “Literatura e direito: o liame que os une é bastante concreto. Talvez não seja tão perceptível para alguns – geralmente os mais incautos. Mas para aqueles que mantêm uma visão mais ampla de mundo, para os que se dedicam aos estudos, para os que mantêm o salutar hábito da leitura, o nexo existente é algo que se evidencia. Basta percorrer as estantes nas livrarias para ver presente o direito na literatura e a literatura no direito”. Vou aproveitar o gancho para falar do Paulo! Antes de conhecê-lo eu conheci os seus escritos – vezes sobre literatura, outras sobre Direito – repercutidos nas redes sociais. Excelentes ideias! Raciocínios bem construídos! Reflexões jurídicas de fundamento! Literatura de qualidade! Passei a admirar, acompanhar e compartilhar todas as publicações. O que é bom tem que ser elogiado.

Apresentação 13

Eis que um belo dia sou acometido de uma ideia – dessas que surgem do nada, mas que não vão embora – inusitada: criar um site para compartilhar conteúdo específico da área penal. Eu já mantinha uma página no Facebook com este fim, mas um site me pareceu algo muito mais amplo e desafiador. Detalhe: eu não fazia ideia de por onde começar! Não se preocupe, eu também percebi, caro leitor: voltei a falar de mim! Mas não me julgue por vaidoso, estou apenas tentando contar a história toda. Ao ter a ideia do site, ponderei comigo mesmo que precisaria de conteúdo de qualidade para alimentá-lo. Sozinho não sairia do lugar! Eu tinha que arranjar escritores. Maldita ideia trabalhosa. Quem toparia escrever? Contribuir com um novo projeto? Quem? Diga-me, amigo leitor? Exatamente! Antes de amadurecer a ideia, antes de pensar em como faria o tal site, fui falar com o Paulo! Convidei-o para ser colunista de um espaço virtual que ainda nem existia. Aceitou instantaneamente! Ele quis saber sobre o que seria a coluna? Puxa vida! Não tinha pensado neste detalhe! Que tal Direito Penal? Ou melhor: Que tal Literatura? Melhor ainda: Direito Penal e Literatura! Agora sim, com uma ideia dessas, uma junção temática tão apaixonante, o projeto teria que andar. Até aquele momento do “iter” estávamos na cogitação, distantes dos atos preparatórios. Ter uma ideia é uma coisa, pôr em prática é outra! É bem aquela máxima do cara que inventou a lâmpada: “10% inspiração e 90% transpiração”. Montar o tal do site era mais difícil do que eu imaginava: java, tags, DNS, domínio, provedor! Quando estava quase engavetando o projeto, recebo um e-mail do Paulo: “Boa noite meu amigo, segue o meu primeiro texto para a coluna”. Aí o bicho pegou! Senti o peso da responsabilidade! O conteúdo estava ali, mas faltava o site. Eu tive que dar um jeito. Passei a madrugada trabalhando e, no dia seguinte, o site – aproveito para


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fazer propaganda: salacriminal.com – e o texto estavam no ar! Sem saber, o Paulo botou pressão e fez o projeto andar e, de lá para cá, não falhou uma terça-feira sequer. Toda semana um novo texto jurídico literário. Cada novo texto do Paulo dá gosto de ler. São textos profundos. A mistura do Direito e da literatura viabiliza uma leitura agradável do início ao fim! Aqui, nesta primeira obra, de muitas que virão – já disse ao Paulo que o ritmo em que escreve orgulharia Pontes de Miranda –, é possível encontrar a reunião dos textos que unem duas grandes paixões: Direito e Literatura. Mas atenção, querido leitor! Vou dar uma última dica: leia rápido, pois, conhecendo o Paulo, em breve estaremos com o segundo volume em mãos! Curitiba, 19 de novembro de 2016

André Luis Pontarolli

PREFÁCIO Compreender o Direito não é uma tarefa fácil. Conhecer lei, doutrina e jurisprudência não significa, por si só, perceber o fenômeno jurídico em toda sua complexidade. Há algo que está na essência constitutiva do Direito e não pode ser percebido apenas pelo conhecimento dos textos jurídicos. O Direito é um fenômeno metafísico, pois transcende a natureza física das coisas. Não está no texto! Não pode ser apalpado, medido ou pesado. Surge pelos estímulos sensoriais gerados nos contextos de convivência social, produzindo o sentido de um tipo de pretensão diretiva de conduta que permeia a existencialidade humana. Angústia, medo, inveja, raiva, ciúme, orgulho, vaidade, alegria, paixão e tantos outros sentimentos são coisas não palpáveis que compõem o humano enquanto ser e, portanto, permeiam a existencialidade do Direito. Não se compreende o fenômeno jurídico sem levar em conta tais aspectos da natureza humana. A Literatura cumpre uma função importante nesse contexto, pois enriquece esses estímulos sensoriais que fundam as pretensões diretivas de conduta que caracterizam o Direito. Ela aciona a capacidade de compreensão de forma mais profunda, revolvendo o chão de onde nascem os sentidos como um arado que revigora o solo para o plantio de uma nova safra. A Literatura amplia o potencial de sentidos e aprimora a capacidade de percepção, oferecendo mais e melhores caminhos interpretativos acerca dos fenômenos jurídicos. A Literatura dá vida ao estudo do Direito. A ilusória dicotomia “questões de fato” x “questões de direito” é uma ingenuidade.


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Não se compreende o Direito sem uma narrativa fática e não se compreende um fato juridicamente relevante sem a percepção das diretrizes do ordenamento jurídico vigente. Por esse motivo, os exemplos práticos são imprescindíveis para explicação do Direito nas salas de aula. Sem exemplos, não há aulas ou livros de Direito. A Literatura tempera e dá qualidade a esses exemplos, emprestando-lhes a humanidade que está na essência constitutiva do fenômeno jurídico. Paulo Silas Filho é um jovem e promissor jurista por quem nutro grande admiração. Um apaixonado por livros. Disciplinado e perseverante em seus estudos, vem aprimorando cada vez mais sua competência na construção de abordagens que aliam o Direito e a Literatura. Nesta obra, Paulo entrelaça a Literatura e os textos jurídicos em interrogativas desafiadoras sobre questões candentes do cotidiano do Direito. Sua forma de abordagem torna palatável a complexidade da fenomenologia jurídica, aguçando a curiosidade do leitor acerca das obras e temáticas tratadas. Propõe leituras jurídicas de obras da Literatura, compartilhando seus insights reflexivos sobre a problemática que o instiga na vivência dos Direitos Penal e Processual Penal. Não há fórmulas prontas, pois isso não funciona no Direito. O que se propõe são pequenos exercícios de análises possíveis. Sugestões de leitura para o enriquecimento do estudo do Direito. A partir daí, cada um deve construir o próprio caminho para incrementar a compreensão do Direito pela Literatura. Sempre há muitos caminhos e benefícios possíveis. Da simples melhoria na qualidade da leitura e da escrita do estudante ou do profissional do Direito até o suporte fático para as análises profundas das grandes questões que inquietam o mundo jurídico. A Literatura é uma fonte inesgotável de elementos para o aprimoramento do estudo do Direito. Mas é necessário alertar que a ideia de um relacionamento compreensivo entre Direito e Literatura não deve transformar-se na

Prefácio 17

busca por uma “ciência” do Direito e Literatura, pois isso destruiria a própria natureza desse movimento. Paulo Silas Filho sabe disso e o extremo cuidado com o qual propõe as temáticas contidas neste livro deixa isso claro. Numa Sociedade onde a arbitrariedade formalista agride diuturnamente o Direito, como ocorre no Brasil, a lúcida e enriquecedora contribuição de Paulo em busca da humanidade do ser jurídico é muito bem vinda. Itajaí, 21 de Novembro de 2016.

Claudio Melim


NOTA DO AUTOR À 2.ª EDIÇÃO A nova edição de “O Direito pela Literatura: algumas abordagens”, que o leitor possui em mãos, foi entregue com muita alegria. A satisfação em poder contar com a produção agora também na plataforma digital, disponibilizada pela biblioteca virtual da Tirant lo Blanch, é fruto da gentil acolhida que a obra recebeu. Só tenho a agradecer pelo carinho de todos os leitores que contribuíram para que isso fosse possível. A estrutura do trabalho original foi mantida, ou seja, os vinte capítulos com os dois apêndices da primeira edição seguem incólumes nessa nova versão. A novidade é que cinco capítulos novos foram acrescentados nessa edição. Prezando pela mesma proposta na qual o livro se pautou e foi concebido, as inclusões são de textos que foram escritos na mesma época em que os capítulos originais (2016), de modo que tudo aquilo que pontuo na introdução da obra, aplica-se aos escritos presentes nessa edição – são textos curtos que se situam na vertente “direito na literatura”. Fomentar e difundir o movimento “Direito & Literatura” sempre foi a ideia presente. Esse livro é uma das minhas singelas contribuições nesse sentido.


INTRODUÇÃO O livro que segue é fruto da reunião de alguns textos que escrevi ao longo do ano. À convite do amigo André Pontarolli, assumi a coluna “Direito Penal & Literatura” no portal jurídico “Sala de Aula Criminal”, onde quase que semanalmente escrevo textos abordando duas de minhas paixões: o direito e a literatura. A maioria dos textos que aqui segue foram extraídos (tendo sido também adaptados) dessa minha coluna. Como menciono em alguns dos capítulos que seguem, o movimento “Direito e Literatura” é encabeçado no Brasil por grandes nomes, dentre eles Lenio Streck, André Karam, Alexandre Morais da Rosa, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Alfredo Copetti. O movimento vem crescendo cada vez mais, sendo a Rede Brasileira de Direito e Literatura a maior responsável pela propagação da ideia. Foi na qualidade de amante do direito e da literatura que passei a tecer algumas análises intersectivas entre tais saberes. Sempre há algo para ser desvelado no texto. Algo que se encontra escondido nas linhas dos romances, contos e poesias que lemos. Algo que está ali, aguardando ser garimpado, encontrado, estudado, interpretado e analisado, algumas vezes de forma explícita, outras de forma mais acobertada. A junção dos saberes do direito e da literatura é uma das formas de se compreender melhor as coisas: não só as coisas que estão no texto, mas também aquelas que estão no mundo, pois a partir do texto é possível compreender o mundo, aliás, a condição de compreensão do mundo se dá justamente pela linguagem, pelo texto. Não intentei nada pretencioso com os textos que seguem. São


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singelas abordagens que trilhei pela intersecção Direito e Literatura. Alguns insights que tive quando da leitura de alguma obra ou quando da recordação de uma leitura antiga. Seguem ainda dois “apêndices” postos, os quais se tratam de textos literários de minha autoria. Escrevo semanalmente para um portal literário (“literatortura”) e selecionei dois escritos que possuem um liame com a temática que abordo no presente livro. Têm-se alguns pontos críticos, alguns jocosos, outros meramente expositivos, “brincando e jogando” com análises da literatura pelo direito. Seja como for, sempre há uma mensagem – pelo menos assim intentei em cada um dos capítulos. Espero que a leitura agrade, que sirva como objeto de reflexão, como análise crítica, como uma forma diferente de se analisar tanto o direito como a literatura. Que seja, portanto, uma leitura proveitosa. Assim sigamos!

Capítulo 1

A QUESTÃO DA NARRATIVA NO DIREITO O direito está inserido na e pela linguagem, tal qual a literatura. As palavras dizem coisas. As coisas são ditas pelas palavras. Daí que no e pelo artificio da linguagem a compreensão e interpretação do mundo se faz possível. Inclusive quando da descrição de um fenômeno. A hermenêutica, a filosofia da linguagem, a linguística, tratam de tais questões, a saber, o debate acerca da linguagem e das coisas (inserindo-se aqui o próprio direito), discussão esta que resulta numa verdadeira angústia, esta que, nos dizeres de Lenio Streck, “assalta o homem desde a aurora da civilização e que atravessa mais de dois milênios”.1 O cenário jurídico necessita de uma maior intersecção com a literatura. Direito e literatura estão interligados ao se considerar o fator estruturante destes como sendo a linguagem. As coisas, para que sejam compreendidas e interpretadas, necessitam de um aparato para tanto. Eis o papel da linguagem. Na sua forma escrita, transmite ao leitor uma exposição articulada, concatenada, lógica–pelo menos quando o autor pretende que o seu texto seja digerido. No direito não é diferente. Na literatura, a construção narrativa é facilmente perceptível, afinal, o autor, ao contar uma história pela escrita, num romance, por exemplo, necessita que o texto seja coerente: deve ter um início, um meio e um fim. A lógica literária necessita que determinadas regras sejam observadas para que o escrito seja coerente. A 1

STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam. (Organizadores). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 229


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consequência disso é o arrebatar da atenção do leitor. Histórias são assim construídas. O texto, quando coerente, tal qual num romance, faz com a leitura flua. O recado dado é de fato transmitido ao ser absorvido pelo leitor. No direito, entretanto, há certa carência de tal tipo de narrativa. Daí que seu estudo em conjunto com a literatura se faz salutar. Lenio Streck evidencia muito bem isso: Não tenho dúvida de que a literatura pode ensinar muito ao direito. Faltam grandes narrativas no direito. A literatura pode humanizar o direito. Há vários modos de dizer as coisas. Uma ilha é um pedaço de terra cercado por água, mas também pode ser um pedaço de terra que resiste bravamente ao assédio dos mares. É comum dizer que o galo canta para saudar a manhã que chega; mas, quem sabe, ele canta melancolicamente a tristeza pela noite que se esvai.2

Deste modo, pode se dizer que é justamente esse contato mais afetivo, mais próximo, mais dinâmico, mais empático, enfim, com mais afinidade à linguagem, que faz falta no direito. A narrativa precisa se fazer presente no direito. Paulo Ferrareze Filho3, ao explicar a Teoria Narrativista do Direito de José Calvo González, evidencia que se faz necessário “pensar, antes, a coerências das narrativas fáticas e, depois, a coerência das normas segundo sua criteriologia”, já que teoria e jurisdição se detêm na norma (“onde o direito não está”). O próprio González explana que “a Teoria Narrativista do Direito pretende dinamizar as narrativas desniveladas do raso modelador, da igualdade simbólica, do selecionado como narrativtas da Verdade infalível e indivisível do Direito”4. Já numa abordagem mais profunda acerca da linguagem, mais precisamente pelo campo da hermenêutica, Claudio Melim5 expõe 2 3 4 5

Ibidem p. 227. FERRAREZE FILHO, Paulo. Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 46 GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 57 MELIM, Claudio. Ensaio Sobre a Cura do Direito: Indícios de Uma Verdade Jurídica Possível. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 27

PAULO SILAS FILHO – Capítulo 1

que a “compreensão de um texto será sempre o resultado dos estímulos causados pela leitura [...], somados aos sentidos proporcionados pelo acionamento da memória do próprio leitor”. Assim se diz para demonstrar que não se faz possível interpretar algo sem que se dê conta que a prévia compreensão se faz (ou deve se fazer) presente. Daí o papel da literatura aqui sugerida, para que, em conjunto com a abordagem pelo direito, seja feita uma análise conjunta destes campos para uma melhor compreensão e exposição daquilo que se pretende tratar. Sendo mais pragmático, é preciso que se saiba contar histórias ao redigir um texto jurídico. As informações presentes numa peça processual, por exemplo, devem ser coesas, harmônicas, cativantes. De que vale fazer aquele velho e ultrapassado (em vários vieses) silogismo jurídico (premissa maior que se interliga com a premissa menor, concluindo pela aplicação de determinada norma, visto que preenchidos os “requisitos” para tanto)? Entulhar uma peça processual com inúmeros julgados (dizendo-se, sendo ou não, jurisprudência), os quais muitas vezes sequer o autor da peça os lê integralmente, é realmente necessário? Note-se que a observação aqui feita não possui o intuito de estabelecer diretrizes impeditivas ou sugestivas do que se deve ou não colocar no texto jurídico. Meramente se trata de uma convocação à reflexão acerca da falta que a narrativa faz ao direito. Alexandre Morais da Rosa assim evidencia o ponto aqui tratado: É preciso contar histórias. E isso deve ser aprendido. Alguns nascem sabendo como fazer. Outros precisam ser ensinados. A narrativa precisa contagiar. Conhecemos bons e maus contadores de piadas, assim como bons e maus narradores de versões processuais. No processo oral, a partir da mesma informação probatória podemos depender de quem conta, da forma com que conta, enfim, do potencial de contaminação do conteúdo.6 6

ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 459.

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O DIREITO PELA LITERATURA: ALGUMAS ABORDAGENS – 2ª EDIÇÃO

Conclusão que se faz é que a questão da narrativa deve estar inserida no direito. Sejam aqueles que já possuem o dom da boa escrita (nos termos aqui suscitados), sejam os que necessitam de exercício constante para que o convencimento se faça presente no texto, o treino deve se fazer sempre presente, e isto se faz mediante (muita) leitura e (muita) escrita. Narremos, para além de escrever, portanto.

Capítulo 2

JOSEPH K. E O NOSSO PROCESSO PENAL “Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Assim inicia o infortúnio de Joseph K, protagonista de um dos maiores romances da literatura. Em “O Processo”, de Franz Kafka, há a história do tormento processual sofrido pelo acusado. Não obstante a aflição que paira sobre Joseph K. durante todo o enredo da obra, tem-se ainda a dúvida constante sobre o que consistiria a acusação sofrida pelo protagonista. Joseph K. é acusado e processado, mas não sabe sobre o quê. Que conduta teria praticado para justificar a instauração de um processo contra si? O que teria feito a ponto de fazer o Estado se movimentar e levantar armas contra si? Joseph K. é inocente e assim se diz, mas inocente de quê? No transcorrer do livro o protagonista busca incessantemente tomar conhecimento sobre o que pesa contra sua pessoa, enfrentando diversos problemas legais que impedem de que tal ciência intentada seja alcançada. A burocracia processual impera, ocasionando as mais absurdas situações que sempre deixam Joseph K. longe de conseguir uma resposta. Com Rubens Casara, tem-se que “não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário tornou-se uma máquina de burocratizar”7. Dentre as diversas análises possíveis à obra, tem-se quiçá a principal delas, a saber, a celeuma dos meandros legais, das tortuosidades burocráticas e das excessivas leis que acabam contribuindo de uma maneira significativamente negativa para a clareza das coisas. 7

CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 25


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Para Alexandre Morais da Rosa, Kafka denuncia em sua narrativa “a história de um cidadão comum apanhado pelas teias da enigmática Justiça descrita pela obra. Uma Justiça fugidia, opaca, opressora, claustrofóbica, contraditória, burocrática, da qual passa a ser um objeto de investigação”8. No aspecto do direito penal e processual penal há bons exemplos comparativos que, de fato, evidenciam que a realidade não caminha tão distante da ficção. O que dizer de uma denúncia genérica, onde não há uma especificidade sobre em que consistiu a conduta de um denunciado para se ver acusado da imputação de determinado crime? Enquanto Joseph K. fez de tudo para tomar ciência sobre os fatos pelos quais estava sendo acusado, réus e corréus são processados num mesmo processo sem que a conduta de cada qual seja delimitada, muitas vezes inclusive sem que haja sequer o apontamento do fato que levaria a caracterizar eventual prática de crime. Enquanto Joseph K. se viu por vezes perdido num emaranhado processual burocrático, acusados custam a entender o motivo pelo qual a acusação recorre de decisões que lhes conferem a liberdade. Enquanto Joseph K. vivenciou a agonia de não saber o que estava acontecendo no processo que existia contra si, presos esquecidos nos presídios, sem defesa, anseiam por qualquer informação, por mais que mínima que o seja sobre suas situações processuais. Enquanto Joseph K. morreu tentando ter acesso aos seus acusadores, aos juízes, aos julgadores, enfim, aos responsáveis pela sua acusação, advogados e defensores enfrentam a dificuldade de se ter acesso aos magistrados, estes que resistem em falar com aqueles sob as mais diversas desculpas.

PAULO SILAS FILHO – Capítulo 2

inquérito policial”9, mas as violações em tal sentido no campo prático ocorrem de maneira não tão incomum. A ilogicidade do absurdo que é observada em “O Processo” também se faz presente na prática jurídica: decisões infundadas, pedidos que beiram o escárnio, condenações indevidas, atropelos de garantias, enfim, uma série de percalços que afetam o bom andamento do processo. Joseph K., como se sabe, foi condenado a morte, cuja sentença, da qual jamais tomou ciência, foi executada de maneira abrupta e desleal. O labirinto kafkiano do procedimento de “O Processo” permaneceu irresolúvel. O protagonista do romance sofreu com a agonia de não saber o que estava acontecendo durante toda a história, dada a forma da previsão e condução do processo, para que desse o seu último suspiro sem ao menos saber em que consistia a acusação. Seus últimos pensamentos, pouco antes de sua execução, foram estes: “Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?”. E assim, sem que as indagações do agora condenado Joseph K. fossem respondidas, a sentença foi cumprida. Justiça foi feita!

No cenário do aqui, do real, da prática, o acusado sofre muitas vezes tal qual Joseph K. sofreu. Num inquérito que tramite sob sigilo em que o acesso aos autos de investigação muitas vezes é negado ao próprio advogado, o acusado fica numa situação completamente confusa. Aury Lopes Jr. evidencia que “não existe sigilo para o advogado no 8

STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam. (Organizadores). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 10

9

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 348

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Capítulo 3

A JUSTIÇA ESTADUNIDENSE NA LITERATURA DE JOHN GRISHAM Não é novidade que dentre os diversos aspetos da literatura encontra-se a contextualização do próprio mundo vivenciado pela perspectiva do escritor. É por meio das palavras que o autor transmite aquilo que carrega consigo. Daí que nas linhas escritas poderão ser observadas dúvidas, incertezas, críticas, análises, observações, exposições, construções de teses, tentativas de convencimento, fornecimento de dados... Enfim, a escrita é o espaço utilizado pelo autor para expor suas ideias. As intenções do autor e suas formas utilizadas para a exposição de ideias variam de escritor para escritor. Alguns se utilizam da ficção, seja puramente pelo amor a uma história fantasiosa que surgiu em sua mente ou ainda como meio de dizer algo nas entrelinhas. Outros se amparam na poesia, no formalismo científico, no relato autobiográfico, no texto jornalístico ou ainda em demais estilos, já que diversas são as formas de escrita que o autor pode utilizar para lançar suas exposições. O notório escritor John Grisham figura dentre aqueles que utilizam da literatura ficcional para, além de construir uma boa narrativa e agradar pela própria história, tecer críticas que entenda pertinentes. É a partir de uma de suas obras que se extraiu, por exemplo, o “Fator Julia Roberts”, explicado por Lenio Streck como sendo o “dizer/sustentar que o Tribunal Maior (ou qualquer outro tribunal) cometeu um equívoco”10, complementando ainda Alexandre 10 STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: Como o senso comum pode nos enganar (Volume 2). 1ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 123.


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Morais da Rosa quando diz que o nome conferido ao mencionado fator se dá diante da “necessidade de superação do argumento de autoridade da Corte Suprema, invocado a partir da festejada atriz de cinema que protagonizou o filme “Dossiê Pelicano” (Alan Paluka, 1993, a partir do livro de John Grisham)”11. Tendo escolhido o direito como área de atuação, John Grisham conheceu de perto as nuances da justiça estadunidense, cujas falhas e rupturas são refletidas nos enredos constantes em suas diversas obras. Seus livros são muitos, e o autor por vezes figura nas listas dos mais lidos nos Estados Unidos. Quem desconhece o autor ou o título da obra, conhece ao menos a história pelas diversas adaptações para o cinema que seus livros constantemente ganham. Quem não se lembra de “A Firma” (o título do filme é o mesmo que o do livro), estrelado por Tom Cruise, que vive um advogado recém-formado, o qual é aliciado para trabalhar numa firma de advocacia que descobre se tratar de uma fachada para lavagem de dinheiro da máfia? Ou do clássico “Tempo de Matar” (de igual modo são os títulos de filme e livro), adaptação que conta com um grande elenco (Samuel L. Jackson, Sandra Bullock, Kelvin Spacey...), que retrata um pai que busca a vingança sem medir esforços pelo estupro de sua filha por brancos racistas? O crédito desses e outros excelentes enredos retratados no cinema são todos de Grisham, conheça-se ou não o escritor. Nas histórias do célebre autor há sempre o elemento ‘justiça’ figurando no cerne. Enquanto a humanidade ainda busca uma definição exata (inalcançável?) de tal termo, o autor expõe em suas obras as ramificações do conceito. Daí que constantemente se vê, em sua escrita, questões que envolvem leis, direito, advogados, juízes, vingança, processos e afins. É com esses artifícios que John Grisham trabalha para expor a face escura da justiça estadunidense, cujas críticas são facilmente perceptíveis nas dezenas de livros que escreve. Em “O Cliente”, há a exposição das consequências de 11 ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 143.

PAULO SILAS FILHO – Capítulo 3 33

investigações policiais que tramitam com a utilização de enorme pressão contra os envolvidos. A luta pelo bem maior justifica os meios utilizados? As feridas resultantes de todo o procedimento serão cicatrizadas? Em suma, o livro traz a história de um garoto que testemunha o suicídio de um advogado, não sem que antes que o causídico revele segredos de uma grande investigação que envolve o assassinato de um senador. O investigado se trata de um mafioso. É daí que a história prossegue, com toda a trama em cima do grande peso que recai sobre os ombros da criança, a qual de um momento para outro se vê presa ao sistema judicial estadunidense: é uma importante testemunha para o caso. O FBI, a polícia e a promotoria tentam a todo custo arrancar o depoimento do garoto que passa a ser representado por uma advogada sagaz, que luta incessantemente para que os danos sofridos por seu cliente sejam minimizados. Já em “O Negociador”, Grisham aborda a polêmica da traição como instrumento de autopreservação. Vale tudo para evitar que erros do passado voltem à tona? Para assegurar a própria sobrevivência (não apenas biológica, mas também social), é aceitável romper limites éticos? O autor expõe tais perguntas indiretamente dentro do contexto de sua história, a qual mostra um jovem estudante com um futuro promissor à sua frente, até que se vê obrigado a aceitar uma vaga num grande escritório de advocacia com uma única finalidade: passar informações sigilosas da firma para um homem misterioso que o força a assim agir, sob pena de ver revelado publicamente um fato constrangedor do seu passado. Mencionando mais uma de suas dezenas de obras, destaca-se “O Inocente”, tratando-se de um escrito não ficcional. O livro é a exposição de uma história verídica, no qual Grisham relata o caso de Ron Willianson, um homem que se viu injustamente acusado de um homicídio, sendo condenado e sentenciado à morte. Graças ao trabalho de uma equipe de defensores, o caso foi revisto pouco antes de sua execução (décadas após a sua prisão), livrando Ron de uma morte injusta e arbitrária. Além da narrativa da história real, o autor lança críticas


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aos custos desnecessários que o Estado tem com casos indevidos, ao tratamento que é dado aos presos (lançando-os nas “más-morras”12, como diria Amilton Bueno de Carvalho), às tremendas falhas que ocorrem na fase de investigação e, principalmente, à pena de morte. Como se observa, em cada livro que John Grisham escreve está presente uma crítica ou exposição da face não tão bonita da justiça estadunidense. Advogados e firmas antiéticas, juízes e políticos corruptos, procedimentos investigatórios falhos, conduta inadequada nos órgãos de investigação que acarretam em sérios prejuízos – nada foge ao olho clínico de Grisham, que apresenta tais meandros ao leitor de uma maneira fenomenal, sempre implícitos em cativantes histórias. A mensagem está presente nas obras do autor, sendo fácil a captação do recado pelo leitor. Entre os frutos que caem da árvore sempre há os podres, e é pela observação dos podres que John Grisham toma base para suas histórias. Críticas às falhas da justiça estadunidense estão presentes na literatura do autor. Fica o convite ao leitor para conhecer tal análise nos diversos livros do escritor.

12 CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.99

Capítulo 4

FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS? UM EXEMPLO EM “TEMPO DE MATAR”, DE JOHN GRISHAM Tomo como ponto de partida do presente escrito o artigo do colega advogado Iverson Kech Ferreira, intitulado “Tempo de Matar, preconceito e pena de morte: os fins justificam os meios?” (endereço do texto nas referências que seguem). Sugiro a leitura do texto indicado antes de seguir adiante com o presente. “Tempo de Matar” é o romance inaugural de John Grisham. Sucesso de vendas que também foi sucesso de bilheteria na adaptação que a obra ganhou para o cinema. Como é característico das obras do autor, o livro trata de temas ligados à justiça, ao sistema jurídico e à práxis forense. A história possui críticas e reflexões bastante profundas, mas tomemos o seguinte como um resumo bastante singelo da história: numa sociedade racista, homem negro mata por vingança os estupradores de sua filha, fazendo assim a sua própria justiça. Este é o cerne da história, o qual dá o sustentáculo para as diversas ramificações constantes na obra. Não que a narrativa fuja muito disso. O caso, os comentários e acompanhamento do processo pelos moradores da cidade, a coragem de um jovem advogado ao assumir a causa, enfim, o desenrolar das consequências do ocorrido. Entretanto, as reflexões são várias e residem de modo tanto aberto como enublado nas linhas do livro. Foquemos aqui na reflexão que se incute no presente capítulo. O “fazer justiça com as próprias mãos” é válido num aspecto que não jurídico? Digo para além do sentido legal diante do fato de que


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nosso ordenamento jurídico impossibilita qualquer tentativa de se fazer valer um direito suposto de modo arbitrário. Com a nomenclatura de exercício arbitrário das próprias razões, o artigo 345 do Código Penal prevê pena de detenção para aquele que “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”. Note-se que o texto legal prevê que a pretensão do sujeito mesmo quando “legítima”, ainda assim, não permite o “resolver a coisa por conta”. Conforme diz Pierpaolo Cruz Bottini ao comentar o mencionado artigo, “A resistência ao reconhecimento de direito não deve ser enfrentada pelo próprio cidadão, mas ser objeto de pretensão levada a Juízo, que poderá utilizar, em última instância, da violência estatal para realizar a Justiça”. Rogério Greco ainda esclarece que “a partir do instante em que o Estado chamou a si a responsabilidade de distribuir a justiça, consequentemente, passou a tentar evitar a justiça privada”13. Desnecessário dizer que matar por vingança não se enquadra em tal dispositivo legal. O tipo penal aplicado à conduta do pai da menina estuprada é o de homicídio, que aqui seria aquele constante no artigo 121 do Código Penal. Caberia, portanto, ao Tribunal do Júri realizar o julgamento do indivíduo. Mas e quanto ao questionamento abordado, qual seria a resposta? Ou quais seriam as respostas? Iverson Kech Ferreira expôs algumas dessas indagações em seu escrito: “os fins são realmente justificados pelos meios? Vale ter vingança quando se sabe que a justiça não enxerga as diferenças sociais, a estratificação social criada por um ideal racista? Deve o acusado ser libertado, mesmo que a lei ressalte a pena de morte nesses casos?”14. O questionamento principal que se chega é o de que se os fins justificam os meios. Justificam? Eu questionaria a questão num nível ainda mais profundo que não cabe aqui neste curto capítulo, mas para a análise proposta com base na obra “Tempo de Matar”, 13 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial (volume IV). Niterói: Impetus, 2013. p. 635 14 FERREIRA, Iverson Kech. Tempo de Matar, preconceito e pena de morte: os fins justificam os meios?. ISSN 2446-8150. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/ tempo-de-matar/. Acesso em 26/09/2016.

PAULO SILAS FILHO – Capítulo 4 37

tomemos os “fins” como sendo a justiça sendo aplicada e os “meios” como as formas utilizadas para alcançá-la. Para o pai da garota estuprada, a justiça consiste num sistema de retribuição de pagar pelo mal causado com o próprio mal, devolver na mesma moeda, enfim, em se fazer valer a vingança. Ao concluir que, pelo sistema legal responsável por conduzir o processo dos estupradores, tal tipo de justiça não seria alcançada, o desafortunado da história resolveu agir por conta própria, movido por sentimentos sofríveis que somente aquele que vivenciou tal tipo de tormento poderia explicar, resultando assim na vingança efetivada ao ceifar a vida dos responsáveis pela desgraça de sua filha. Até que ponto pode se dizer que seu ato é justificável? Concluo não com respostas, mas com as mesmas perguntas que Iverson encerrou o seu texto: “E você? Como julgaria o caso, atendendo o estritamente postulado pela lei ou entenderia os fatos anteriores ao assassinato, de uma forma diferente que o magistrado da obra? Ou, questão mais severa ainda. Os fins justificam os meios? Matar para se obter vingança, sabendo que a justiça não cumprirá sua parte no acordo de prender os reais malfeitores, é a solução? Se sim, és favorável ainda a uma pena de morte?”15. Pontuo apenas que a violência é cíclica. O Eterno Retorno nietzschiano produz sempre os mesmos efeitos: causas e consequências que se repetem infindamente. Sem que ocorra qualquer tipo de mudança em determinadas posturas adotadas, a história será sempre a mesma. Isso deve ser levado em conta quando das tentativas de respostas para os questionamentos aqui realizados.

15 Ibidem


Capítulo 5

ATTICUS FINCH, O ADVOGADO DE “O SOL É PARA TODOS” Ambiente: década de 30, cidadezinha pacata – a não ser pelo forte preconceito racial existente -, localidade onde todos os habitantes se conhecem, um crime que choca uma sociedade conservadora, um advogado que ousa defender o acusado e uma série de acontecimentos que são narrados por uma criança. Sedimentando-se em tais premissas, tal é a base utilizada na narrativa de “O Sol é Para Todos”, de Harper Lee. Para além de algumas observações que podem ser feitas sobre diversos prismas com relação ao livro, busco no sucinto capítulo traçar o notório perfil profissional de Atticus Finch, o advogado do romance em questão. Atticus Finch é um advogado respeitado na comunidade. Na maior parte do tempo, exerce a profissão em prol dos necessitados, pois a maioria dos habitantes da região não dispõe de condições econômicas necessárias para custear seus honorários profissionais. Vale lembrar que a história se situa em 1932, de modo que o livro retrata a situação econômica de muitos cidadãos após a crise de 1929. Sendo assim, alguns dos que foram representados por Finch o pagam como podem, resultando no recebimento dos honorários pelo profissional até mesmo por meio de alimentos plantados e colhidos pelos clientes. Assim, não é incomum ver Finch sendo pago com frutas e legumes, por exemplo. Há uma passagem no livro em que sua filha o questiona sobre tal situação, cuja resposta que segue traduz toda a situação peculiar de um modo bastante simples e entendível, principalmente


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