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Maria Cristina Pedro Alves de Lima

Filtros e Infiltros na Democracia (Des)Acelerada


Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Capa e diagramação: Jéssica Razia CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L699f Lima, Maria Cristina Pedro Alves de Filtros e infiltros na democracia (des)acelerada [recurso eletrônico] / Maria Cristina Pedro Alves de Lima. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2024. recurso digital Formato: ebook Modo de acesso: world wide web ISBN 978-65-5908-698-6 (recurso eletrônico) 1. Direito - Brasil. 2. Democracia - Brasil. 3. Justiça. 4. Poder. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 24-87977 CDU: 342.34(81) Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643 É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou 23/01/2024 29/01/2024 editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/ Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Maria Cristina Pedro Alves de Lima

Filtros e Infiltros na Democracia (Des)Acelerada

Prefácio

Prof. Dr. Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco


Dedico este livro aos meus filhos Arthur e Eduardo, ao meu marido Ricardo, aos meus pais Maria Cleuza e Antonio, aos meus amigos e à minha família que me incentivaram em todos os momentos desse longo desafio.


Nota da autora O livro é resultante de minha pesquisa realizada perante o programa de Mestrado Acadêmico em Direito – DINTER PPGD da Universidade Veiga de Almeida e UNIFACVEST, com área de concentração: Cidadanias, Internacionalização e Relações Jurídicas, com linha de pesquisa em Direito, Constituição e Cidadanias, no qual foi defendida a dissertação “Filtros e Infiltros na Democracia (des)acelerada”, desenvolvida sob a orientação da Profa. Dra. Cláudia Franco Correa, e da coorientadora Profa. Dra. Cristina Gomes Campos de Seta, como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Direito. A dissertação foi defendida no mês de setembro de 2022 perante banca examinadora composta pela ilustre orientadora, pela Profa. Dra. Cristina Seta, e pelo Prof. Dr. Rafael Mario Iorio Filho, aos quais agradeço pelas importantes lições. Meu agradecimento aos professores do curso que me trilharam com novas ideias e ideais durante o período do curso que adentrou ao momento da pandemia que salientou novos desafios acadêmicos e familiares. Agradeço, especialmente ao Prof. Dr. Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco que me inspirou à temática central da Democracia e do uso desmedido do Poder. A publicação em formato de livro neste primeiro momento corresponde fielmente ao texto defendido, salvo pequenos ajustes. Mas, permite uma futura revisitação ao tema central, eis que as consequências jurídicas e sociais causadas durante aquele momento impar da moderna Democracia Brasileira serão sentidas por décadas, não podendo haver seu esquecimento. Desejo uma ótima leitura. São Paulo, agosto de 2023 Maria Cristina Pedro Alves de Lima 6


Sumário Nota da autora.............................................................................. 6 Maria Cristina Pedro Alves de Lima

Prefácio......................................................................................... 9 Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco

Introdução. ................................................................................ 12 Capítulo 1

Polarização do poder e da democracia brasileira....................... 20 1. Poder e polarização na sociedade brasileira contemporânea................... 20 1.1. A polarização e a crise do poder....................................................... 25 2. O sentido contemporâneo de democracia à brasileira............................ 28 2.1. Delimitação do estudo da democracia.............................................. 28 2.2. Grécia antiga e a democracia inspiradora.......................................... 30 2.3. Frutos à democracia: do Renascimento ao Iluminismo e o contrato social...................................................................................................... 36 2.4. Do constitucionalismo ao neoconstitucionalismo e a democracia: principais aspectos.................................................................................. 43 2.4.1. Constitucionalismo.................................................................... 43 2.4.2. Neoconstitucionalismo............................................................... 47 2.5. Movimento constitucionalista brasileiro de 1988............................. 53 2.5.1. Aporte inicial.............................................................................. 53 2.5.2. Democracia à brasileira............................................................... 55 Capítulo 2

Os filtros e infiltros na democracia (des)acelerada. .................. 61 1. Sistema político antidemocrático: os filtros e infiltros e os efeitos colaterais na democracia brasileira............................................................. 61 2. (Des)aceleramento democrático na pandemia: linhas tênues.................. 78 Capítulo 3

Disrupção da democracia (des)acelerada.................................... 86


1. Participação democrática e a quebra dos filtros e dos infiltros................ 86 2. Pandemia de Covid-19: Supremo Tribunal Federal x Executivo Federal....... 90 3. Antidemocracia: Supremo Tribunal Federal x Fake News....................... 98 4. CPI da Pandemia: Poder Legislativo x Poder Executivo....................... 106

Conclusão................................................................................. 110 Referências bibliográficas......................................................... 113


Prefácio Em seu livro, Filtros e Infiltros na democracia (des)acelerada, Maria Cristina Pedro Alves de Lima, emprega ferramentas heurísticas cujo teor denomina filtros e infiltros a fim de desvelar os óbices às instituições e práticas democráticas que resultam na hipertrofia do Poder Executivo. A autora ressignifica os conceitos denominados de filtro e infiltro de modo que compreende o primeiro como uma barreira, um entrave aos processos de democratização. Como define a autora, “[...] os filtros são barreiras ao pleno exercício democrático. As barreiras surgem em certo momento para delimitar, enfraquecer, filtrar, relativizar e fragmentar uma situação democrática constituída [...]”. Os filtros correspondem também ao que Montesquieu denominava de corpos intermediários e canais, pois “as leis fundamentais supõem necessariamente canais médios por onde o poder se manifesta, pois se no Estado apenas existe a vontade momentânea e arbitrária de uma só pessoa nada pode ser fixo.” Os filtros evitam a concentração de poder, pois ao canalizar à vontade eliminam seu caráter arbitrário por meio das instituições, dos corpos intermediários e dos mecanismos de representação, sem os quais todo governo se tornaria uma tirania. Infiltro, por sua vez, corresponderia a inserção de mecanismos de blindagem às práticas democráticas, de modo que as relações de poder sejam despidas da mediação do direito, se manifestando de modo autoritário, sem participação e deliberação. Entre os filtros e infiltros analisados pelo trabalho destacam-se o desrespeito à prática consolidada da lista tríplice que confere legitimidade à escolha do Procurador Geral da República, as mudanças na política ambiental que esvaziaram órgãos de controle como é o caso do IBAMA, a adoção de medidas provisórias avessas à democracia de modo a trancar pautas do Poder Legislativo e minar pelo abuso do poder o jogo democrático. Todavia, a autora chama a atenção para o fato de que houve uma reação do Supremo Tribunal Federal às ações negacionistas do Governo que contribuíram com a morte desnecessária 9


de milhares de pessoas no país. Com argumentos e fundamentos sólidos, Maria Cristina demonstra que o STF atuou como guardião da democracia brasileira ao garantir que Estados e munícipios pudessem decretar o Estado de emergência de saúde pública sem o qual o número de mortes teria sido ainda mais elevado. A decisão que reconheceu às competências comuns entre entes federados viabilizou um federalismo mais autônomo que permitiu fazer um contrapeso excepcional ao Executivo e frear sua necropolítica comanda pelo General Pazuello, então a frente do Ministério da Saúde. Um dos méritos de Cristina foi expor a sucessão de ataques do governo Bolsonaro à democracia brasileira. O livro, porém, ao contrário de diversas análises veiculadas na mídia tradicional e nas redes sociais segundo as quais instituições democráticas não iriam resistir às investidas, ressalta a capacidade de reação e resiliência institucional de poderes, órgãos e seus respectivos agentes, que foram capazes de se contrapor às ofensivas antidemocráticas. O estímulo à polarização, o contingenciamento orçamentário, o desmonte de diversos órgãos públicos, o uso abusivo de medidas provisórias o negacionismo durante a pandemia, a desinformação e disseminação de notícias falsas, reação institucional e de diversos segmentos da sociedade civil. A atuação do STF, inequívoco freio e contrapeso ao Executivo Federal, impôs rígido limite ao plano de execução de uma necropolítica que poderia ter resultado em um número ainda maior de mortes. Como evidenciam os fatos e ficou comprovado com vasto material probatório produzido pela CPI da pandemia, o Governo Federal se converteu em um comitê de sabotagem contra as medidas sanitárias orientadas pelo OMS, que visavam à contenção da elevada letalidade da Covid-19 e suas variantes. No dia 20 de março de 2023 o Brasil atingiu a marca de 700.000 mortes provocadas pelo coronavírus, tragédia que não teria ocorrido se o Governo Bolsonaro não tivesse dificultado a compra de vacinas e boicotado a vacinação, assim como o isolamento social. Embora o Brasil tenha 3% da população mundial, o país contou com 10% dos óbitos causados pela Covid-19. Estima-se que dos mais de 700.000 mortos, 400 mil vidas poderiam ter sido salvas no país. 10


A síntese do livro “Filtros e Infiltros da democracia (des)acelerada” revela que o regime democrático brasileiro, a despeito de seu esmorecimento provocado por contínuas investidas lideradas por um autocrata eleito, mostrou a capacidade de garantir a alternância de poder mediante eleições democráticas. Maria Cristina Pedro Alves de Lima, durante sua pesquisa e redação da dissertação que resultou no presente livro, não poderia prever que logo depois ocorreria a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro, na qual foram depredadas as sedes dos Três Poderes da República democrática brasileira. Seu livro, entretanto, não só é uma notável contribuição para a compreensão das sucessivas tentativas de solapar a democracia brasileira, mas também um aporte para explicitar a reação institucional que salvaguardou a democracia no país. Rio de Janeiro, agosto de 2023 Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ

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Introdução O objetivo principal do trabalho foi de conceituar e de contextualizar os filtros e os infiltros à democracia brasileira. Nos últimos anos há nítida transmutação do seu significado, um crescente ímpeto antidemocrático e de autoritarismo do atual Executivo Federal. Por isso, emerge uma necessidade de se retornar aos princípios originais da democracia, os quais haviam redirecionado toda a sociedade e materializado uma nova percepção da sociedade a partir da redemocratização pela Constituinte de 1988. Sobretudo, repensar o atual estágio social a partir do seu próprio significado, e do avanço do seu sentido esboçado pelo tempo, sedimentado na Constituição Cidadã. Por consectário, o estudo direciona-se para identificar os atos e as situações atreladas ao uso desmedido do poder que colocam em risco o pleno exercício da democracia, evidenciando a busca de soluções que possam ser utilizadas no intuito de resgatar a própria essência democrática que restou vandalizada. A justificativa pela escolha da temática e do objetivo geral da pesquisa bibliográfica, passa pela averiguação de fatos históricos empregados na depuração do sentido da palavra democracia, desaguando no momento posterior ao início do mandato do Executivo Federal (2019-2022), com a análise de sua proposta de governo impregnada de dominação pelo uso imoderado do poder. A democracia é um filtro. Contemporaneamente a democracia constitucional, representativa e participativa representa um filtro, uma barragem do poder autoritário, e, por vezes ditatorial. A democracia deve barrar e controlar todo o excesso e o abuso do poder por parte de seus representantes. Por isso a democracia age como um filtro ao poder, sendo a sociedade ouvida através de atos democráticos, balizados através de uma Constituição. Os sólidos fundamentos de uma democracia agem para que o poder não seja monopolizado, na tentativa de se evitar ou interrom12


per atos políticos autoritários, sejam esses causados pelo uso excessivo do poder ou simplesmente pelo não agir. O pleno exercício da democracia que adveio da Constituição Cidadã traz uma nova roupagem assegurando a cidadania, respeitando a participação ativa da população na política, nas instituições constitucionais e na escolha pelo voto de seus representantes, bem como através do referendo, plebiscito e pela iniciativa popular de leis. Assim define um modo de agir, um efetivo e democrático processo político e eleitoral mínimo, que se apresenta como seu próprio filtro constitucionalmente válido, assegurado por instituições constitucionalmente instituídas para dar razão e segurança jurídica às normas e aos pleitos, e que deve estar em constante aprimoramento dentro de um debate maior na esfera pública, possibilitando a inclusão de ideias, local que não comporta ilações infundadas sobre sua validade, e interferências indevidas de representantes de outro poder, em pleno respeito à tripartição dos poderes. No atual cenário político apresentam-se as mais diversas justificativas para a relativização da democracia, as quais são maquiadas pelo utilitarismo, pelo jogo do poder, significando em si uma democracia com filtros e infiltros, dentro de um novo termo conceitual, especialmente cunhado para a presente pesquisa. Os filtros e os infiltros são os novos problemas, as novas acepções que transmutam o real significado de democracia à brasileira. Dentro de uma concepção generalista, os filtros e os infiltros representam os recentes e acentuados atos políticos ou apolíticos, contrários à correta manutenção do sentido de viver, de participar e do livre exercício dos direitos políticos e sociais por todos os cidadãos, ou seja, a satisfação da própria aspiração democrática. Nesta pesquisa são propostos os conceitos de filtro e de infiltro na tentativa de se delimitar um marco teórico e referencial. Os filtros são barreiras ao pleno exercício democrático. As barreiras surgem em certo momento para delimitar, enfraquecer, filtrar, relativizar e fragmentar uma situação democrática constituída, já 13


aceita pela sociedade que se encontra em pleno vigor, e representa o resultado positivo da participação social que adveio de lutas antigas, por exemplo, a representatividade da sociedade civil em instituições e órgãos públicos institucionalizados em respeito ao Estado Democrático de Direito. Uma barreira que ataca a democracia e fere diretamente à Constituição Cidadã, com o fim de se alcançar de forma ilegítima aqueles interesses particulares, por quem tem a obrigação de representar de forma pública os interesses de toda uma sociedade. Uma barreira ou uma delimitação da representação social que atinge diretamente os valores constitucionais, tendo o condão de obter novos privilégios, de se fazer valer do poder e de apropriá-lo. Dentre os filtros que serão objeto de análise no decorrer da presente pesquisa, tomar-se-á por exemplo elucidativo o filtro da escolha do Procurador-Geral da República em 2019. A definição dos nomes mais votados ocorreu através de lista tríplice formada por votação de seus pares. Em 2019 houve participação na eleição por lista tríplice de 82,5% dos integrantes da categoria. Este modelo de processo de escolha iniciou-se em 2001. Constata-se que a forma de indicação em lista tríplice dos proponentes a ocupar o cargo se tornou um costume democrático e representativo a ser observado. A lista tríplice demonstra a escolha por seus pares daqueles representantes mais bem preparados para gerir a instituição, e para cumprir o múnus público. Representa, sobretudo o natural desenvolvimento das acepções democráticas desta importante instituição constitucional. Este modo de indicação demonstra um respeito ao Estado Democrático de Direito e a participação democrática na gestão das instituições constitucionais. Traz transparência na escolha daquele que deverá empenhar-se em uma função pública que requer comprometimento com à Constituição. Delimita toda a sua atuação, evidenciando um corte naquela busca de abrigo por afinidades com políticos, às amarras, e aos interesses diversos que ressoam díspares à sociedade e à lei. 14


Entretanto, o nome do Procurador-Geral da República escolhido em 2019 por decisão direta da Presidência da República não constava na lista tríplice enviada pela Associação Nacional dos Procuradores da República, criando-se uma barreira ao pleno exercício da democracia representativa dentro daquela instituição. A lista foi recebida e colocada de lado, desmerecendo a instituição e a importância da imparcialidade para o desenvolvimento dessa função de Estado. Ficou claro que a escolha se deu por interesses de ideais, colocando em risco o controle do agir político. O procedimento de longe não atendeu aos anseios da democracia, e poderia ter sido transposto pelo pleno exercício das competências do Poder Legislativo. Entretanto, ao final o Senado Federal aprovou a escolha como se tudo fosse normal, alinhando-se aos interesses antidemocráticos, reafirmando esse filtro à democracia representativa e participativa pelos interesses do governante. Enquanto isso, o infiltro se evidencia quando uma situação nova é criada para impedir o exercício legal, para bloquear o pleno movimento democrático do poder. A barreira no infiltro tende a se apresentar instransponível. O infiltro surge a partir de uma incisão, onde se planta através de um enxerto uma semente antidemocrática, a qual visa germinar com ares democráticos. O ato é blindado pela audácia e pela abusividade do poder, buscando que seu resultado se desenvolva naturalmente dentro da sociedade, transpondo àquele legitimamente institucionalizado. As incisões, as intervenções governamentais, os infiltros à democracia retiram sua legitimidade de ser, e servem de escudo para o uso desmedido, por certo destemido do Poder. Dentre os infiltros que serão objeto de análise no decorrer da presente pesquisa, tomar-se-á como exemplo o mais recente infiltro à democracia, que causou um nítido desequilíbrio entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Esse foi inferido pelo presidente da República através da Graça concedida a um Deputado Federal. Antes mesmo do trânsito em julgado de decisão condenatória proferida no dia 20 de abril de 2022, pelo Supremo Tribunal 15


Federal, o Deputado Federal condenado por crimes que atentaram à democracia brasileira, foi agraciado com o perdão constitucional de sua pena e das demais consequências condenatórias, através de Decreto publicado no dia seguinte, 21 de abril de 2022. O Decreto fundado na necessidade da manutenção do Estado Democrático de Direito, causa uma nova ruptura em nossa democracia, e causa para toda a sociedade a impressão de tudo ser possível, e de que resta operante um protecionismo àqueles que são considerados importantes em respeito ao projeto de manutenção do poder. A formalidade constitucional pode ter sido respeitada, mas a essência e a materialidade beira à inconstitucionalidade, um verdadeiro infiltro à democracia. A constituição foi interpretada no sentido que mais beneficiou o interesse daqueles que almejam uma continuidade no poder. Não se pode deixar de lembrar que o regime nazista foi legitimado através de leis e pela interpretação restritiva dos direitos constitucionalmente garantidos. No mesmo sentido, em um tempo não longínquo, a ditadura brasileira com toda a sua formalidade, mas desnutrida de legitimidade constitucional. Neste sentido, os filtros e os infiltros são criados pela intolerância, pelo interesse egoístico e pela compreensão vazia que advém das próprias razões que são utilizadas para diligenciar os interesses de todos, trazendo barreiras ao próprio significado de democracia. Dos filtros e dos infiltros deriva uma forma ilegítima de governar, que não respeita os fundamentos da própria evolução constitucional e democrática da sociedade, pois esta deve ser ouvida e respeitada, no espaço que é seu por direito. O uso da linguagem discriminatória fez nascer essa ruptura democrática. O chefe do Executivo Federal usando do poder e de seu autoritarismo, e de frases jogadas ao vento, “se não puder ter um filtro, vamos fechar ou privatizar a ANCINE”, regou a semente da intolerância. Pode apenas parecer simples palavras, mas denotam para a nação um direcionamento de conteúdo arbitrário, e uma perseguição sem fundamentos. Quanto à ANCINE, rogou-se pela pratica da “censura” em diversos níveis. Uma atitude que não cabe dentro de um Estado Democrático de Direito. 16


No mesmo sentido, germinando a intolerância, nos últimos anos a sociedade brasileira imergiu em um novo período de trevas, de escuridão, retrocedendo e vivenciando o preconceito, a intolerância, e se tornou realidade o crescimento do radicalismo político em nítido desrespeito aos valores constitucionais, aos princípios fundamentais e à diversidade social e de gênero. Toda uma linguagem preconceituosa foi se espalhando pela gestão do Executivo Federal, e diversos ministros de Estado adotaram termos, expressões, gestos, e uma comunicação que trouxe retrocessos em temáticas importantes para a integração social. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2019/2022) lançou uma frente ideológica de uma nova era, onde “menino veste azul e menina veste rosa”, carregando sua fala com substancial discriminação à diversidade. Estar-se-á diante de um claro revés da democracia. Norberto Bobbio com a sábia pergunta quem controla os controladores? Nos faz repensar quantas lutas foram necessárias para se chegar a um estágio aceitável de participação social, para de repente, por ideologias incompreensíveis, haver de retomar à frente da batalha para à defesa de direitos tão caros à sociedade. E, por fim “onde podemos encontrar um representante que não represente interesses particulares”1. Transparece que a escada para se chegar a uma vida social e harmoniosa, especialmente em vista à participação democrática, nunca tem um fim. O mau uso do poder que se desprende diuturnamente da gestão do Executivo Federal, através de propostas legislativas onde predominaram o retrocesso da participação social em órgãos colegiados e das decisões públicas, pela inserção de filtros e de infiltros na democracia brasileira através do envarado negacionismo que perdurou durante a pandemia de COVID-19, e sobretudo, pelo ataque através de Fake News ao sentido mais democrático da participação e da eficiência eleitoral: as urnas eletrônicas, são outros exemplos que 1

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2020. p. 45.

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merecem toda a atenção social, e um necessário agir das instituições constitucionais. Seu projeto de dominação social, com uma ruptura escancarada das oportunidades de diálogo, do uso indiscriminado da máquina pública em prol a uma desesperança social, passa também pela deslegitimação dos demais Poderes da União, afrontando decisões do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal, e infiltrando-se pelas omissões do Poder Legislativo que por inércia deixou o seu espaço público e representativo por um largo tempo desocupado, emergindo uma crise identitária e uma perda referencial. Neste roteiro apolítico o principal problema que motivou a presente pesquisa consistiu na compreensão de que a democracia brasileira está sendo alvo desses filtros e infiltros. Tal percepção direcionou a outra hipótese: o uso imoderado do Poder, a linguagem impregnada de ódio, de preconceito e descompassada com o sentido democrático pode causar uma ruptura de representatividade e de participação social? Em qual momento a sociedade sente os efeitos negativos de tais decisões que imperam pelo frear da participação democrática, e pela manipulação das informações com o uso desmedido do poder? Com efeito foi sustentado que em um primeiro momento a quebra dos filtros e dos infiltros será efetivada através da atuação constitucional e institucionalizada dos Poderes Legislativo e do Judiciário, os quais detém a legitimidade para distanciar os interesses pessoais do interesse da sociedade. Neste sentido, a pesquisa analisou o embate entre o Supremo Tribunal Federal e o Executivo Federal quanto à constitucionalidade das medidas restritivas sanitárias e de saúde pública durante a pandemia. Evidenciará a constitucionalidade do Inquérito das Fakes News, e de forma objetiva os resultados da CPI da Pandemia, situação que estabeleceu outro embate entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, reafirmando a democracia representativa. 18


Em um segundo momento, será através da efetiva concretização da democracia constitucionalmente estabelecida que permitirá que todos os atores sociais tenham voz nos espaços públicos, e possam rever através do pleito eleitoral as escolhas que representaram um fracasso ao interesse coletivo, reafirmando a democracia participativa. O estudo realizado para a escrita do trabalho dentro do tema proposto observou a metodologia da pesquisa através da análise bibliográfica doutrinária e a análise dos fatos sociais através do uso de mídias digitais e do jornalismo eletrônico, aproximando a realidade social do entendimento doutrinário e do posicionamento decisório dos tribunais, especialmente do Supremo Tribunal Federal, através da leitura mais contextualizada do impacto das decisões na opinião de juristas e do público em geral. Foi realizada a análise dedutiva e comparativa entre a legislação e a doutrina nacional e a estrangeira sobre o tema central, aplicando-se quando necessário o método dogmático. Houve o emprego das técnicas de leitura interpretativa e crítica de artigos publicados em revistas especializadas, doutrinas, artigos de opinião e jornalísticos, e de dados coletados em documentos oficiais, tal como na CPI da Pandemia, sempre realizando a coleta dos dados e dos materiais através da criação de um banco de dados no formato digital.

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Capítulo 1

Polarização do poder e da democracia brasileira

1. Poder e polarização na sociedade brasileira contemporânea

A busca do poder é inerente ao ser humano. A todo momento ocorrem demandas pela sua aplicação sobre algo ou alguém. O justo poder não deveria ser capaz de criar conflitos, mas para o ser humano qual seria sua justa medida? Qual seria a legítima delimitação do exercício do poder? Especialmente do poder do Estado e de suas derivações. São essas algumas das questões que merecem respostas. Tais indagações nascem da plena observação de que o conceito e a prática do poder demandaram conflitos de toda ordem, os quais ainda não foram suficientes resolvidos para a consolidação do significado de sua própria natureza. Disputas pelo poder que ultrapassaram todas as gerações, e a incontestável apreensão de que ainda não houve o encontro de um ponto final. Na era moderna passou pelo poder clérigo e do monarca, pela institucionalização da Teoria do Estado e pela consequente ruptura realizada pela secularização. Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco investiga o Leviatã de Thomas Hobbes (1.651), e traz uma nova dimensão conceitual e significativa desse momento de evolução social: Do conceito de secularização desvela uma amplitude semântica em vários campos do saber, por outro, observa-se que vai sendo, paulatinamente, elevada à condição de categoria genealógica capaz de sintetizar o desenvolvimento histórico de moderna sociedade ocidental desde suas raízes judaico-cristãs2.

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CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Bôas. “Poderes invisíveis versus poderes visíveis no Leviatã de Thomas Hobbes”. Revista de Solicologia e Política. n. 23. p. 23-41. nov. 2004.


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