Copyright© 2019 by Thiago Fabres de Carvalho, Natieli Giorisatto de Angelo & Raphael Boldt Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros
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Thiago Fabres de Carvalho Natieli Giorisatto de Angelo Raphael Boldt
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Carvalho, Thiago Fabres de
Criminologia Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot crítica e justiça restaurativa no capitalismo
periférico / Thiago Fabres de Carvalho, Natieli Giorisatto de de Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto Investigações Jurídicas da UNAMRaphael - México Angelo, Boldt. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2019. Juarez Tavares 240 p. ; 23cm Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
ISBN:de978-85-9477-365-4 Magistrado do Tribunal Europeu Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
1. Criminologia. 2. Direito Criminal. I. Título. Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
CDU: 343.9 Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
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CRIMINOLOGIA CRÍTICA E JUSTIÇA RESTAURATIVA NO CAPITALISMO PERIFÉRICO
Carvalho, Thiago Fabres de Criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo periférico [livro eletrônico] / Thiago Fabres de Carvalho, Natieli Giorisatto de Angelo, Raphael Boldt. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2019. 1Mb ; ebook ISBN: 978-85-9477-364-7 1. Criminologia. 2. Direito Criminal. I. Título. CDU: 343.9
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Academia
São Paulo 2019
APRESENTAÇÃO
FILOSOFIA RESTAURATIVA ABOLICIONISTA E PRÁXIS DA LIBERTAÇÃO Segundo consagrada crítica criminológica, em formações sociais marcadas pela desigualdade e por um processo permanente de exclusão social, o controle dos grupos subalternos, especialmente os contingentes populacionais marginalizados do mercado e do consumo, é uma estratégia indispensável para a manutenção do status quo, para a manutenção das relações de poder e de apropriação privada do capital. Nas sociedades capitalistas, a relação cárcere/ marginalização social indica o quão funcional é o sistema de justiça criminal e, principalmente, a pena privativa de liberdade, para a perpetuação dos processos produtivos e das relações de dominação na sociedade. É preciso ressaltar que as transformações desses processos subjacentes ao empreendimento neoliberal têm gerado novos mecanismos de controle social, novas e eficientes formas de gestão autoritária da miséria, sem abdicar da justiça retributiva, cuja racionalização e sofisticação ganham contornos inovadores em tempos de “democracia autoritária”, de “Estado Pós-Democrático” (CASARA, 2018; CROUCH, 2004). Percebe-se, pois, que o objetivo de abolição do cárcere ainda encontra-se em sua fase preliminar. E é justamente em prol desse objetivo que o presente livro foi escrito. Novas estratégias são necessárias, não apenas para superar o sistema penal, mas para democratizar a sociedade. Em meio ao cenário de naturalização permanente do poder punitivo e disseminação dos relatos justificadores da punição, Cragg (1992) destaca que as perguntas a seguir são primordiais e nortearam trabalhos importantes no contexto da justificação do castigo e da construção de alternativas ao sistema de justiça criminal: quem deve ser punido? Por que se justifica punir determinados indivíduos? Quais tipos de punição são justificáveis? O discurso jurídico-penal justifica a punição daqueles que infringiram regras fundamentais, impondo-lhes uma penalidade que reflita de maneira adequada o dano causado ao violar essas regras. O castigo justifica-se na medida em que, ao violar as regras em questão, esses indivíduos obtiveram uma vantagem
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injusta em relação a suas vítimas e à comunidade, privando-as dos benefícios conferidos por essas mesmas regras e colhendo vantagens que não mereciam. É importante notar que, como conjunto de táticas, estratégias e forças para a busca da legitimação ou garantia do consenso, o controle social se sustenta a partir da “crença” no poder punitivo como resultado do processo civilizador, supostamente capaz de impedir, por meio da pena, a vingança generalizada, em termos hobbesianos, “a guerra de todos contra todos” (SCHEERER, 1984; ALAGIA, 2108; BOLDT, 2018). A afirmação de que a pena deve necessariamente existir (Strafe muss sein) sugere a dificuldade de configurar alternativas ao sistema penal e reforça a ideia de que a racionalidade penal moderna constitui um obstáculo epistemológico à inovação, isto é, à criação de uma nova racionalidade e de outra estrutura normativa. Conforme exposto em trabalho anterior (BOLDT; ADEODATO, 2016), a colonização exercida pelo sistema penal sobre a percepção das pessoas faz parecer “natural” a estrutura normativa escolhida e obsta qualquer reforma significativa do atual modelo de gestão de conflitos. Como resultado da consolidação dessa espécie de racionalidade que Scheerer (2001) chama de “razão punitiva” (strafende Vernunft), Pires (2004, p. 46) aponta, por exemplo, a construção paradoxal das relações entre direito penal e direitos humanos, ou seja, ao mesmo tempo em que o recrudescimento penal é compreendido como meio de eliminar a violência (uma das promessas da modernidade) e tutelar os direitos humanos, ele degrada os direitos que deveria afirmar. Esse conflito é supostamente resolvido pela própria racionalidade penal, ao pensar separadamente os conceitos de justiça e humanismo, de forma que para “ser justo” não é necessário “ser humano”. Sob os umbrais do processo civilizador e orientada pela racionalidade instrumental moderna que se caracteriza pela relação de meios adequados para fins desejados, a razão punitiva propaga a inevitabilidade do direito penal, o mito da universalidade da pena (SCHEERER, 2001, p. 71) e produz violência, negando, assim, a alteridade humana. A crença no potencial emancipatório da razão (neste caso, razão punitiva) e a perspectiva otimista para com a ciência e a modernidade estimularam o avanço da técnica e, no campo penal, engendraram a produção de novos mecanismos de intervenção penal, universalizados e legitimados por meio dos discursos que visavam à felicidade humana e à pacificação social. O incremento dos rituais de exercício de poder do sistema penal encontra-se,
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contraditoriamente, associado ao apelo à razão em nome da liberdade, bem como à ilusão das ciências criminais de encontrar métodos de melhoramento da humanidade, sobretudo por intermédio do castigo (BOLDT; ADEODATO, 2016). Em detrimento da reafirmação da dignidade da pessoa humana e da concretização dos direitos e garantias fundamentais, fontes de emancipação elaboradas pelo imaginário jurídico moderno, o processo penal, condicionado pela ideologia do progresso subjacente à civilização capitalista-industrial, tem contrariado as suas promessas, atuando como instrumento reprodutor de uma realidade que, do ponto de vista dos vencidos, pode ser configurada como catastrófica, categoria que Benjamin (1991) compreende como constitutiva do progresso: “a catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história”1. Embora os conflitos sociais sejam inerentes à sociedade, a solução destes quase que exclusivamente mediante o controle social formal, pode ser um indicador de altos níveis de autoritarismo, como ocorre na América Latina e, principalmente, no Brasil, onde o direito penal nunca foi visto como ultima ratio na proteção de bens jurídicos e a justiça penal sofre com a sobrecarga decorrente da expansão punitiva. Além de realçar a natureza autoritária da sociedade brasileira, a expansão do poder punitivo estatal produz, dentre outros efeitos nocivos, a reafirmação do significado político do direito penal como instituição de garantia e reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, de exploração e de opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas (SANTOS, 2006, p. 08). Diante da desumanização provocada no contexto da ação burocrática moderna e levando-se em conta as especificidades concernentes aos países subdesenvolvidos, este trabalho destaca as condições de possibilidade e os pressupostos teóricos necessários para a superação da barbárie civilizada no campo da gestão de conflitos, resgatando e reafirmando aquela que para Hassemer e Muñoz Conde (2008, p. 283-285) é a proposta mais interessante do abolicionismo: a pretensão de que “os conflitos penais sejam resolvidos ou solucionados por seus protagonistas, a sociedade civil e os sujeitos implicados no conflito, à margem das instituições estatais”. 1.
“Die Katastrophe ist der Fortschritt, der Fortschritt ist die Katastrophe”.
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Evidentemente, desconstruir os consensos forjados desde a modernidade não é tarefa das mais fáceis, pois exige o abandono da ideologia do progresso linear e a assunção de uma nova racionalidade, na visão de Dussel (2007, p. 321), uma “razão ético-crítica”, comprometida com a transformação social a partir da perspectiva das vítimas do sistema vigente. O desafio torna-se ainda maior no caso da periferia do capitalismo ocidental, onde, mesmo diante da evidente ineficiência, o Estado reluta em abdicar de sua pretensão de monopólio na produção de normas coercitivas e continua a exibir “as mais diferentes formas retóricas e procedimentais para obter um controle de algum modo eficaz sobre os conflitos” (ADEODATO, 2012, p. 107-108). A proposta de delinear os contornos de uma filosofia restaurativa abolicionista desde a perspectiva de um novo sujeito histórico, ou seja, a partir dos contingentes sociais marginalizados no contexto da modernidade periférica, justifica-se, sobretudo, em virtude da imperiosa necessidade de se consolidar uma práxis de libertação que leve em consideração a realidade concreta desses indivíduos, evitando cair na armadilha dos discursos jurídico-penais modernos cuja principal consequência é promover a inversão perversa do aparato destinado à proteção da vida em um aparato produtor de morte. O objetivo básico deste trabalho é perceber, desde a realidade dos países periféricos, a impossibilidade de transpor os elementos autoritários do processo penal contemporâneo, desenvolvido a partir de matrizes antidemocráticas, na expectativa de projetar os fragmentos de alternativas insurgentes no campo da gestão de conflitos que possam, estrategicamente, contribuir para a eliminação do sofrimento decorrente do sistema de justiça criminal. À evidência, essa empreitada requer não apenas admitir os limites e as críticas à justiça restaurativa e à perspectiva abolicionista (conferir, por exemplo, HIRSCH; ASHWORTH; SHEARING, 2003), mas superá-los, de modo a evitar a sua colonização e a ressignificação de velhos pensamentos autoritários. Evitar uma imagem romantizada da comunidade, cujos valores podem não corresponder àqueles idealizados, é fundamental para a elaboração de uma filosofia restaurativa libertadora. Como uma das mais promissoras tentativas de reconstrução de respostas a conflitos, a justiça restaurativa atualmente corre o risco de se desenvolver a partir de matrizes teóricas conservadoras, devendo, pois, afastar as absolutizações e ingenuidades que caracterizaram a noção de comunidade. Essa visão excessivamente positiva da comunidade, que desconsidera a negatividade dos valores de formações sociais específicas
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como a brasileira, pode conduzir à reprodução acrítica da violência, das desigualdades sociais, inerentes à maioria das sociedades contemporâneas. Com isso, reforça-se o emprego da violência para mitigar a própria violência. Se a expressão “justiça restaurativa” pode abarcar concepções teóricas e propostas práticas muito diversas, a elaboração de alternativas libertadoras pressupõe admitir a contradição dos mecanismos modernos da justiça criminal, abandonando a ideia de mera disfunção, subjacente à crença otimista de que, em algum momento, essa mesma abordagem destrutiva será contida. Alternativas mais democráticas e humanas para a gestão de conflitos em países violentos como o Brasil demandam uma autêntica transformação social, caso contrário, todas as propostas normativas supostamente emancipatórias podem acabar contribuindo para a perpetuação da violência e das desigualdades por meio da reprodução de antigos e nefastos valores que fomentam a promoção de novos mecanismos imunitários. Considerando essas premissas, a presente obra almeja suprir uma lacuna no Brasil e, para tanto, foi dividida em duas partes. A primeira parte pretende refletir sobre as principais fontes daquilo que denominamos “imaginário punitivo”. O objetivo é perscrutar os imaginários simbólicos das personagens da obra Abril Despedaçado e revolver os alicerces do imaginário punitivo clássico, ainda profundamente arraigado aos sistemas penais das democracias contemporâneas, para destacar não apenas as suas fragilidades epistemológicas, expressadas nas contradições entre as funções declaradas da pena pelo classicismo e as funções reais ou latentes do poder punitivo, mas as inúmeras experiências antropológicas que colocam abaixo o argumento iluminista de que a ausência do direito penal formal, exercido exclusivamente pelo Estado, engendraria um cenário caótico de vingança generalizada. Assim, ante a crise de legitimidade do sistema penal, de crescimento da violência e da percepção de insegurança, bem como de incapacidade do sistema penal para administrar os conflitos intersubjetivos, a segunda parte do livro destina-se a projetar medidas mais democráticas, úteis e adequadas para lidar com os conflitos sociais. Frente a essa problemática, parte-se da hipótese de que a naturalização da desigualdade, cuja gênese está no processo de modernização seletiva e autoritária dos países periféricos, embora não impeça a implementação da justiça restaurativa, é uma condição que, à luz da criminologia da libertação, precisa ser enfrentada e ultrapassada para que as práticas restaurativas – que, no Brasil, são focadas no ofensor – possam
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se fundar em um paradigma relacional, com foco na simetria de ambos os envolvidos no conflito. As práticas restaurativas precisam ser construídas para cada sociedade, em uma conjuntura específica, a partir da teoria crítica e da revisão permanente, de modo a combater as formas ocultas da dominação. Em outras palavras, defende-se que, para que uma justiça restaurativa fundada no paradigma relacional seja possível nesse contexto de desigualdade abissal e consentida, de negação da vítima e de particularidades que dificultam a comunicação de cidadãos iguais, há a necessidade de enfrentamento da realidade e das especificidades das sociedades periféricas, não de sua ocultação, a partir do compromisso com os esforços de libertação humana e da denúncia das situações que marcam essas realidades sociais.
REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012. ALAGIA, Alejandro. Fazer sofrer: imagens do homem e da sociedade no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2018. BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: TIEDEMANN, Rolf; SCHWEPPENHÄUSER, Hermann (Hrsg.). Walter Benjamin. Gesammelte Schriften: Aufsätze, Essays, Vorträge. 1. Aufl. Band I.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. BOLDT, Raphael. Processo penal e catástrofe: entre as ilusões da razão punitiva e as imagens utópicas abolicionistas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. BOLDT, Raphael; ADEODATO, João Maurício. Processo e catástrofe: a racionalidade do processo penal moderno a partir da filosofia histórica de Walter Benjamin. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 125, p. 255-276. São Paulo: RT, nov. 2016. CASARA, Rubens R R. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. CRAGG, Wesley. The practice of punishment: towards a theory of restorative Justice. London/New York: Routledge, 1992. CROUCH, Colin. Post-Democracy. Cambridge: Polity Press, 2004. DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2007. HIRSCH, Andrew von; ASHWORTH, Julian V.; SHEARING, Anthony. Restorative Justice and Criminal Justice: Competing or Reconcilable Paradigms? Oxford and Portland: Hart Publishing, 2003. PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, n. 68, mar. 2004. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. SCHEERER, Sebastian. Kritik der strafenden Vernunft. Ethik und Sozialwissenschaften. Hamburg: Lucius, n. 12, 2001, p. 69-83. _________. Die abolitionistische Perspektive. Kriminologisches Journal, Nr. 16, 1984, p. 90-111.
PREFÁCIO É notório que o campo do direito é conservador e, portanto, resistente a mudanças. Essa característica não é exclusiva de nosso país, mas uma marca dos sistemas jurídicos ocidentais modernos, tendo sido objeto de pesquisa de inúmeros autores das ciências jurídicas e sociais (Bourdieu, 2007; Garapon, 1996, 2001; Pires, 1999). Esse é um dos motivos pelos quais não é comum encontrar pesquisadores que podem ser chamados de críticos no campo do direito, mas os autores deste livro são, sem sombra de dúvidas, exemplos de exceção a essa constante. São força contrária à inércia, ao pensamento tradicional que insiste em não ver seus limites e pensar em possíveis saídas fora das possibilidades mais evidentes, daquilo que lhes é familiar. Thiago Fabres de Carvalho, Natieli Giorisatto de Angelo e Raphael Boldt representam a resistência democrática em cada página desta obra que não tem medo de ultrapassar os limites do convencional e de questionar, com razão, até mesmo os limites daquilo que se coloca como inovação no campo do direito – neste caso, a justiça restaurativa. Nos últimos anos, uma quantidade razoável de trabalhos sobre justiça restaurativa foi publicada no Brasil. Depois do livro de Howard Zehr (2008), pode-se tomar, como exemplos, as obras de Leonardo Sica (2007), Raffaella Pallamolla (2009), Daniel Achutti (2014), Fernanda Fonseca Rosenblatt (2015), André Giamberardino (2015), Vilobaldo Cardoso Neto (2018), e o trabalho organizado por Valois et al (2017). Trata-se de alguns exemplos de trabalhos que, naturalmente, não esgotam as publicações sobre o tema, mas são representativas do que tem sido desenvolvido no âmbito acadêmico no Brasil no campo do direito, especialmente na esfera das ciências criminais. Em relação às experiências restaurativas espalhadas pelo país, o trabalho de maior fôlego de que se tem notícia foi coordenado por Vera Regina Pereira de Andrade (2017), com financiamento do Conselho Nacional de Justiça, em que se buscou mapear as experiências de justiça restaurativa nos Tribunais brasileiros. A quantidade e a diversidade de experiências avaliadas indicam que, certamente, as práticas restaurativas estão em expansão, em que
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pese não seja possível concluir que isso seja, ao mesmo tempo, uma boa notícia. Independente do que se tem no momento, em termos práticos ou teóricos, o fato é que o debate sobre como deve ser uma justiça restaurativa tipicamente brasileira se faz urgente e necessário. Compreender a situação periférica do Brasil, suas desigualdades e violências históricas, a seletividade de seu sistema penal e o cada vez mais latente esvaziamento dos direitos humanos, faz com que não seja mais possível imaginar um modelo de justiça restaurativa que ignore estas realidades. A situação do sistema penal no Brasil, para pegar apenas um exemplo, fala por si só: com a recente divulgação da informação de que o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0), do CNJ, registrou mais de 812 mil presos no país, a compreensão de que a justiça restaurativa, nos anos 19701980, tomou corpo a partir da insatisfação crescente com o sistema de justiça criminal tradicional (Hoyle, 2010), é absolutamente fundamental. Enquanto temos uma boa formação técnica, que desenvolve de forma ímpar a habilidade de facilitar ou mediar encontros restaurativos, deixamos de lado importantes debates sobre o contexto em que essas mesmas práticas serão aplicadas: os atores envolvidos com a aplicação da justiça restaurativa precisam estar cientes de que um conflito nunca será apenas um conflito, e que para além do conflito subjacente desde a perspectiva individual, é bastante provável que os conflitos a serem facilitados ou mediados consistirão, de uma forma ou de outra, na expressão das desigualdades e das opressões históricas a que boa parte da população brasileira foi – e ainda é – submetida. Desigualdades e opressões essas que são revividas de forma insistente pelo sistema de justiça criminal. A separação entre teoria e prática, algo que parece bastante comum no campo da justiça restaurativa (Pallamolla, 2017), pode gerar um hiato significativo na formação de novos facilitadores ou mediadores de práticas restaurativas: excelentes teóricos que desconhecem a prática, e exímios práticos que desempenham com louvor a técnica mas são incapazes de visualizar, ao facilitar ou mediar um conflito, o drama que ronda a história de vida daquelas personagens. E é essa separação, ao fim e ao cabo, que contribui para o enfraquecimento da justiça restaurativa como uma estratégia de transformação das práticas do sistema de justiça criminal. É latente, portanto, a necessidade de aprofundar as reflexões teóricas sobre justiça restaurativa, no campo da administração de conflitos no Brasil, com o objetivo de incidir essas mesmas reflexões na prática.
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As particularidades de um país latino-americano, marcado pela violência (urbana e do Estado) e pelo desprezo cotidiano aos direitos fundamentais, precisam passar a fazer parte, com urgência, da discussão sobre o que buscamos e o que pretendemos com a aplicação – e com a ampliação – da justiça restaurativa. Para isso, todavia, a compreensão dos fundamentos filosóficos da justiça restaurativa é condição absolutamente necessária, em especial para se compreender não apenas as limitações deste modelo de administração de conflitos, como também seus principais desafios. Após a compreensão de seus fundamentos filosóficos, a caracterização de seu surgimento nos debates da criminologia crítica – em especial, do abolicionismo penal (Achutti, 2014) – é igualmente questão fundamental, por situá-la de modo crítico quanto à existência e ao funcionamento do sistema de justiça criminal. Colocadas essas questões preliminares, localizar a justiça restaurativa no Brasil e na América Latina é o passo seguinte, e nesse cenário o texto de Thiago, Natieli e Raphael é publicado em boa hora. Em sua primeira parte, os autores propõem problematizar as concepções clássicas sobre o imaginário punitivo a partir do magnífico Abril Despedaçado. Utilizando-se de modo magistral das personagens do filme, expõem os discursos oficiais sobre pena e punição, e colocam um ponto de interrogação importante em relação à ideia de que a ausência do direito penal ocasionaria em um cenário de caos e vingança. Na segunda parte, contextualizam a crise de legitimidade do sistema penal e, a partir da criminologia da libertação e da teoria crítica dos direitos humanos, projetam um modelo de justiça restaurativa para os países latino-americanos, em que possa se constituir em uma alternativa não punitiva de controle social, que demanda uma mudança sobre o que se entende por crime e, como referem os autores, “sobre o que significa punir, ou mais precisamente censurar, e sobre a própria concepção de justiça, a partir da busca por uma resposta emancipada da ideia de pena e que vise a possibilitar a relação violada pelo crime”. Ao problematizar o que se pode e o que se deve esperar da justiça restaurativa no Brasil, os autores ainda ressaltam que o cenário das experiências brasileiras é desanimador: a referida investigação coordenada por Vera Regina Pereira de Andrade (CNJ, 2017) aponta, de fato, para programas ou projetos de justiça restaurativa em que se privilegia sua aplicação em casos de crimes de menor potencial ofensivo, frequentemente sob a coordenação de um juiz ou um promotor de justiça, e em muitas vezes sem a participação
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da vítima. Já Pallamolla (2017) aponta, por seu turno, para a centralidade do Poder Judiciário na instituição e no desenvolvimento da justiça restaurativa no Brasil, e chama a atenção para o risco de se construir um modelo excessivamente burocratizado, que atenda primeiramente aos interesses e à forma de funcionamento do Judiciário para, apenas depois, voltar-se para os interesses das partes. O reocentrismo característico do sistema penal, por sua vez, faz com que os atores envolvidos nas práticas restaurativas estejam mais preocupados com uma eventual ressocialização do ofensor do que com uma efetiva oportunidade para que as partes possam, de fato, estabelecer um diálogo adequado sobre o conflito em questão. Isto faz com que a vítima, que ocupa (ou deveria ocupar) posição central em qualquer programa restaurativo, permaneça relegada a um mero suplemento desejado dos encontros restaurativos, mas não ocupe o espaço que deveria, necessariamente, ocupar. Ao propor um modelo atento às particularidades histórico-sociais dos países latino-americanos, os autores suprem importante lacuna na produção acadêmica brasileira, e oferecem ao leitor um guia fundamental para colaborar com a construção de um modelo crítico de justiça restaurativa, desvinculado do paradigma punitivo e de possíveis riscos de ampliação do controle social. Apenas por isso, o livro já deve ser celebrado, mas vale ressaltar que os autores – Thiago, Natieli e Raphael – representam com maestria o que se poderia chamar de Escola Crítica de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia de Vitória. Thiago, ex-professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e atualmente vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), pode ser considerado o representante mais experiente desse grupo. Autor de trabalhos marcantes da criminologia brasileira (Carvalho 2010, 2014, 2015), oferece agora ao público sua incursão na temática da justiça restaurativa, a partir de seus reconhecidos referenciais hermenêuticos. Raphael, professor da FDV e autor da geração seguinte, igualmente oferece obras prévias (Boldt, 2013, 2018) que não deixam dúvidas sobre seu referencial crítico e emancipador. Natieli, por sua vez, confirma a existência da Escola Crítica de Vitória em sua primeira publicação, muito bem acompanhada de dois de seus mestres, a partir de pesquisa desenvolvida no âmbito do mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito da FDV. Na sequência dos trabalhos referidos acima, a presente obra fornece um amplo espectro sobre o atual estado da arte da Escola Crítica de Vitória,
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e sinaliza que ou buscamos compreender a justiça restaurativa desde uma perspectiva crítica, ou estaremos fadados a produzir mais do mesmo e a ampliar as formas de controle social, e ao se utilizar do discurso da pacificação social, dificilmente será possível superar o exercício desse controle dócil e aparentemente inofensivo. É preciso expor os conflitos e mostrar sua face mais bruta e desigual. Apenas assim, encarando os problemas que nos constituem de frente, é que será possível efetivamente encontrar novos caminhos, dissociados das formas punitivas hegemônicas. Nada melhor, nesse contexto, do que o livro de Thiago, Natieli e Raphael. Boa leitura.
Daniel Achutti
Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS Professor da Escola de Direito e Política e do PPG em Direito – Universidade La Salle
Raffaella Pallamolla
Doutora em Ciências Sociais pela PUCRS Professora da Escola de Direito e Política – Universidade La Salle
REFERÊNCIAS ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal. São Paulo: Saraiva, 2014. ANDRADE, Vera Regina Pereira de (coord.). Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2018. BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: do discurso punitivo à corrosão simbólica do garantismo. Curitiba: Juruá, 2013. ________. Processo penal e catástrofe: entre as ilusões da razão punitiva e as imagens utópicas abolicionistas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2018. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CARDOSO NETO, Vilobaldo. Justiça restaurativa no Brasil: potencialidades e impasses. Revan: Rio de Janeiro, 2018. CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não-violência. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. ________. Criminologia, (in)visibilidade, reconhecimento: o controle penal da subcidadania no Brasil. Revan: Rio de Janeiro, 2014. ________. Justiça paralela: criminologia crítica, pluralismo jurídico e (sub) cidadania em uma favela do Rio de Janeiro. Revan: Rio de Janeiro, 2015.
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Conselho Nacional de Justiça. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões. Brasília: CNJ, 2018. GARAPON, Antoine; GROS, Frédéric; PECH, Thierry. Punir em democracia– e a justiça será. Coleção Direito e Direitos do Homem. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. GIAMBERARDINO, André. Crítica da pena e justiça restaurativa. A censura para além da punição. Empório do Direito: Florianópolis, 2015.
SUMÁRIO
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. ________. A construção da justiça restaurativa no Brasil e o protagonismo do Poder Judiciário: permanências e inovações no campo da administração de conflitos. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. PUCRS: Porto Alegre, 2017. PIRES, Álvaro Penna. Alguns obstáculos a uma mutação “humanista” do direito penal. Sociologias. Dossiê Conflitualidade. Porto Alegre: UFRGS – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, ano 1, nº 1, jan./jun., 1999. ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008. ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. The Role of Community in Restorative Justice. Londres: Routledge, 2015. SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. VALOIS, Luiz Carlos; SANTANA, Selma; MATOS, Taysa. (Orgs.) Justiça Restaurativa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.
PARTE 1 A CRIMINOLOGIA DA NÃO-VIOLÊNCIA: FUNDAMENTOS TEÓRICOS DE FILOSOFIA RESTAURATIVA E O IMAGINÁRIO PUNITIVO DE UM ABRIL DESPEDAÇADO . . . . . . . . . 21 THIAGO FABRES DE CARVALHO RAPHAEL BOLDT
PARTE 2 CRIMINOLOGIA CRÍTICA, (IN)VISIBILIDADE E AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS NO CAPITALISMO PERIFÉRICO: POR UMA JUSTIÇA RESTAURATIVA DA LIBERTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 NATIELI GIORISATTO DE ANGELO THIAGO FABRES DE CARVALHO RAPHAEL BOLDT
PARTE 1
A CRIMINOLOGIA DA NÃO-VIOLÊNCIA: FUNDAMENTOS TEÓRICOS DE FILOSOFIA RESTAURATIVA E O IMAGINÁRIO PUNITIVO DE UM ABRIL DESPEDAÇADO THIAGO FABRES DE CARVALHO RAPHAEL BOLDT SUMÁRIO: 1. Introdução. – 2. No princípio era a violência – 2.1. Violência e (luta por) reconhecimento – 2.2. ‘Sou violento, logo existo’: violência, instituição da sociedade e as fontes subjetivas do desvio – 3. ‘Em terra de cego quem tem um olho só todo mundo pensa que é doido’: Pacu e a não-violência como exigências ética e política – 4. Punir é recordar a lei: a longa memória da pena, vingança ou pacificação? – 5. A criminologia da não-violência e as representações simbólicas punitivas: justiça relacional e a filosofia ética da vingança (punir é transformar um sofrimento em (in) felicidade) - 5.1. Punir é recordar: vítimas apagadas, esquecidas e anuladas - 5.2. O percurso do justo vindicativo à justiça relacional - 5.3. A justiça vingativa: do em si e para si - 5.4. Por uma filosofia ética restaurativa - 5.5. Punir é transformar sofrimento em infelicidade: o transcurso do tempo - 6. Considerações finais - 7. Referências
“Eternamente quieto está o passado. (...) Isto, sim, é a própria vingança, a aversão da vontade contra o tempo e o que se foi”. (F. Nietzsche, Assim falau Zaratustra) “Tempo rei! Oh tempo rei! Oh tempo rei! Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo Socorrei” (Gilberto Gil, Tempo Rei)
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1. INTRODUÇÃO Sertão Brasileiro, 1910. No chão árido e talhado da caatinga nordestina, um menino caminha solitário e inicia a narrativa de sua singela, porém extraordinária e chocante biografia: “meu nome é Pacu. É um nome novo. Tão novo que ainda nem peguei costume. Tô aqui tentando alembrar1 uma história. Asveis2 eu alembro, Asveis eu esqueço. Vai ver que é porque tem outra que eu não consigo arrancar da cabeça. É a minha história, de meu irmão e de uma camisa no vento”. O sangue seco e amarelado, estampado na camisa sobre o varal, ativa a reprodução incessante de um tempo cíclico de violência irrefreável. O patriarca da família Breves resgata a memória da tradição sombria, diante do olhar atônito dos filhos:–“o sangue começou a amarelar”. As rodas da bolandeira3 que o pai não cessa de girar, conduzidas pela brutalidade do chicote nos lombos dos bois, espelham uma temporalidade cíclica, repetível, o eterno retorno de uma vingança calculada:–“Vambora! Vamo Preto! Vamo Cavaco! Vamo, meu boi! Bora, bora, bora, bora! Yah, yah, yah!”. Vida estagnada, papéis sociais rigidamente estabelecidos por uma hierarquia familiar aparentemente inquebrantável. Movimentos corporais repetitivos, enfadonhos, estafantes. Vida que é sobretudo fardo pesado demais:–“o pai é que toca os boi pra rodar a bolandeira; No tempo de vô os escravo fazia o serviço todo; Agora é nois mesmo; Tonho, meu irmão, é o que mói a cana; A mãe recolhe os bagaço; A mãe costuma dizer que Deus não manda um fardo maior do que nois pode carregar. Conversa fiada! Asveis ele manda um peso tão grande que ninguém guenta”. Relato arcaico da vingança de sangue. A vida de Pacu está imersa em uma luta ancestral, cuja lógica destruidora e mortífera destitui a possibilidade de afirmação do diálogo como estratégia de superação dos conflitos. Será essa luta a própria guerra, a ausência absoluta do Direito? Nos confins da tradição, seu irmão Tonho, filho do meio da família Breves, é impelido pelo pai a vingar a morte do irmão mais velho, última vítima desta disputa antepassada entre famílias rivais, movidas pelo desejo de poder e pela posse da terra. 1. 2. 3.
No decorrer do texto, as palavras em itálico referem-se à transcrição literal, em linguagem coloquial e típica do sertanejo, das falas das personagens de Abril despedaçado. Filme disponível em: http://www. youtube.com/watch?v=wqzx1fWF2cY. Asveis, quer dizer, no sotaque sertanejo, “às vezes”. Bolandeira é uma maquinaria artesanal muito antiga, feita de troncos e pedaços de madeira, consistente em uma roda dentada, girada pela força da tração de animais, cavalos ou bois, cujo movimento realiza o trabalho de moer a cana-de-açúcar nos engenhos.
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Com efeito, Tonho descobre que, se cumprir sua missão, sua vida ficará partida em dois momentos definitivos: os vinte anos que ele já viveu, e o pouco tempo que lhe restará para viver. Ele será então perseguido por um membro da família rival, como dita o código de vingança da região. O pai afirma com autoridade implacável os deveres da tradição, inscrevendo na memória do filho a simbologia e os atos do ritual de violência:–“O sangue amarelou; Tonho: conhece a tua obrigação”. Aprisionado no tempo cíclico da vingança mortífera, o Senhor Breves reativa vigorosamente o ódio ancestral. Tal qual as rodas da bolandeira que seu chicote não cessa de conduzir, o patriarca mantém-se convicto no eterno retorno da vingança de sangue, na reprodução funesta da violência cega e mortífera. Diante da resistência do Menino, seu filho mais novo, que incita Tonho a interromper a saga, o pai imediatamente castra a sua palavra com um tapa violentíssimo e reafirma a sentença implacável: “preste atenção Menino, teu avô, teus tio, o teu irmão mais velho. Eles tudo morreram por nossa honra e por essa terra. E um dia pode ser tu. Tu é um Breves. Eu também já cumpri minha obrigação. Se não morri, foi porque Deus não quis”. A fileira de fotografias na parede do casebre retrata que o ciclo louco da vingança interminável só apresenta novos personagens. Tudo não passa do eterno retorno do mal inaugural. A violência e o tempo aprisionados em si mesmos. O enredo fúnebre das violências e vinganças recíprocas possui rituais, símbolos e regras próprias. Ele apresenta uma lógica previsível e repetível, que exige incessantemente o sacrifício, reativa o ódio entre os adversários, expressa os limites da dívida e da cobrança. Novamente o pai, através de uma sentença inapelável, pretende recordar os termos do talião:–“Tonho, tu vai com cuidado ao amanhecer, e não se esqueça: tua obrigação é só com quem matou teu irmão. Negócio de homem pra homem. Olho no olho.” Subjugada pela mesma lógica da vingança, a mãe de Tonho expressa em suas ardentes preces o desejo ilimitado pelo sangue dos adversários, como recompensa pelo sangue derramado de seu filho:–“que Deus permita. Que Deus queira. Que a alma de Inácio, filho primeiro, encontre sossego ao lado dos seus. Que cada gota de seu sangue seja duas da do inimigo. Que você, meu filho, encontre a paz que não teve entre os vivo e saiba olhar pelos seus irmão na hora de cumprirem a sua obrigação”. Quando o sangue amarela, Tonho segue o caminho previsível e quase
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mecânico do destino que lhe fora traçado. De arma em punho afirma:–“vim cobrar o sangue do meu irmão”. Segue-se, pois, a lógica inexorável. Tonho elimina o membro da família Ferreira que havia ceifado a vida do seu irmão Inácio:–“Adeus meu irmão, até o dia do juízo!”, canta o coro do velório, à espera do julgamento divino. Em seguida, o ritual permite que a família agressora assista ao velório, participe do almoço e reze pela alma do morto. Após o enterro, o pedido de trégua é decidido pelo patriarca rival que sempre consagra a continuidade da tradição.
de solução dos conflitos violentos para além da pena pública, erigida como dogma (quase) inquestionável no universo das representações simbólicas punitivas do mundo ocidental.
O sisudo patriarca da família Ferreira, não à toa acometido pela cegueira (real e simbólica), quase nada enxerga a não ser a escuridão aterrorizante da violência e da vingança de sangue. Suas palavras expressam aquilo que as ausências do reconhecimento intersubjetivo e do interdito podem gerar no seio do grupo social ferido em seus elos instituintes? Ou seria apenas a onipresente necessidade do sacrifício apaziguador? Com seu semblante mórbido, o patriarca reafirma o desejo de vingança, aciona o discurso enclausurado da tradição, impede o ingresso do tempo na tarefa de cicatrização do mal e da dor: “tá concedida a trégua. A mesma que teu pai concedeu a meu neto. Mas só até a próxima Lua. (...) Depois, se o sangue amarelar não vale mais nada. (...) A tua vida agora tá dividida em dois. Os vinte ano que tu já viveu e o pouco tempo que te resta pra viver. Já conheceu o amor? Nem vai conhecer. Tu tá vendo aquele relógio ali? Cada vez que ele marcar mais um, mais um, mais um...ele vai tá te dizendo menos um, menos um, menos um.”
Com efeito, a noção de imaginário punitivo, aqui desenvolvida, parte do pressuposto de que o sistema penal (que engloba os discursos de justificação do poder penal ou de sua crítica, e as práticas punitivas concretas e/ ou reações sociais às condutas reputadas intoleráveis) não apenas emerge das e nem se contenta em defender as posições instituídas, mas se engendra a partir de discursos e práticas alternativas, e exerce igualmente funções instituintes, “o que supõe criação imaginária de significações sociais-históricas novas e desconstrução das significações instituídas que a elas se opõem”. Assim, o imaginário punitivo se articula, pois, como um jogo ininterrupto entre as formas oficiais do direito estabelecido ou positivo (amparadas pelos discursos jurídicos e criminológicos dominantes de justificação do exercício do poder punitivo) e um amplo espectro de representações simbólicas em permanente tensão com tais formas instituídas. Nesse sentido, o imaginário punitivo repousa tanto nas formas instituídas do direito posto, com suas práticas e seus discursos de justificação, quanto em um imaginário jurídico, isto é, uma espécie de infradireito, “gerador das mais diversas formas de costumes, hábitos, práticas e discursos que não cessam de agir, de dentro, sobre os modelos oficiais do direito instituído” (CASTORIADIS, 1998; OST, 1999; 2004; ARNAUD, 1981; ZAFFARONI, 2010; PAVARINI, 1999; HESS, 1983; BARATTA, 2001; YOUNG, 2014; ANDRADE, 1999; 2013; CARVALHO, S., 2012; MARTEAU, 1997).
Como visto, a trégua segue apenas até a próxima Lua cheia e logo após, assim que a mancha de sangue se tornar amarela, a lógica da vingança será reativada imediatamente. Não há, portanto, no interior dessa dinâmica, nenhum espaço para o ingresso do tempo, para o questionamento de um destino implacável, mortífero. Trata-se, precisamente, da ausência do tempo, da sucessão, da mudança. Eterno retorno do mesmo. As vidas de Tonho e de seu irmão mais novo, o Menino, estão desde sempre traçadas e amarradas a uma violência que ninguém sabe bem quando e por quê começou. Imerso nesse cenário, o presente texto busca empreender uma antropologia hermenêutica da violência, a fim de perquirir as fontes imaginárias da violência, da vingança e as suas possíveis relações com a pena e a justiça penal. Diante dos limites inesgotáveis do tema proposto, o estudo busca, com o auxílio da arte cinematográfica, revolver o chão linguístico da filosofia penal, descortinando novos horizontes de sentido e novas possibilidades
Nos marcos de uma antropologia hermenêutica da violência aqui proposta, que supõe uma “fusão de horizontes” entre diversos saberes aptos à compreensão da violência e suas formas de punição ou reparação, pretende-se refletir sobre as principais fontes daquilo que denominamos imaginário punitivo.
Nesse sentido, o conjunto de problemas que orienta a presente investigação se firma na convicção de que as representações simbólicas punitivas hegemônicas emergem das condições históricas concretas de uma dada comunidade política, atrelando-se não apenas às suas condições materiais de reprodução da vida social, mas também aos seus universos simbólicos (míticos, culturais, religiosos) que orientam práticas sociais específicas. Tais representações, por sua vez, jamais esvaziam definitivamente ou apagam
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imaginários simbólicos alternativos, com suas formas ou estratégias distintas para o enfrentamento das mesmas situações problemáticas. As formas oficiais de resolução de conflitos jamais suprimem ou eliminam mecanismos cotidianos, mediações intersubjetivas diárias que contradizem as representações simbólicas e as práticas dominantes (HESS, 1983; RUSCHE & KIRCHHEIMER, 2002; PAVARINI, 1999; ROULAND, 2003; ARNAUD & FARIÑAS DULCE, 2000). Assim, a caminhada investigativa orienta-se, pois, pelo seguinte conjunto de problemas centrais: quais as principais fontes do imaginário punitivo, isto é, quais as tramas que alimentam o anseio presente em praticamente todos os grupos sociais de esconjurar a violência mortífera, de criar representações simbólicas e mecanismos rituais capazes de transformar o desejo de vindicta em alguma forma de instituição social susceptível de limpar a mácula da ofensa, de compensar o prejuízo sofrido, e assim restaurar a concórdia no seio do grupo? Quais as possíveis relações, portanto, entre pena e memória, entre pena e recordação da lei, afinal entre pena e vingança? Como superar ou transcender o castigo como puro e simples desejo de vingança cega e mortífera? Enfim, a pena pública é, de fato, o substituto da vingança e do rito sacrificial apaziguador, a ponto de a sua ausência querer expressar ou conduzir necessariamente à afirmação do caos, da guerra de todos contra todos?4 Para enfrentamento desse conjunto de indagações, partimos da hipótese do ocaso do “fundamento legitimante” (ZAFFARONI, 2010, p. 95) do discurso filosófico liberal e iluminista de justificação da pena. Com efeito, construído a partir da premissa de que “o objetivo da pena seria a minimização da reação violenta contra o delito”, ao prevenir e, se possível eliminar, “uma reação formal ou informal mais violenta contra o delito”, restando a pena justificada “como um instrumento impeditivo da vingança”, tal discurso constitui uma quimera ideológica erigida a partir do processo de “confisco do conflito”, na aurora do Século XIII, ao sustentar a violência soberana, a partir do mito da “violência legítima” exercida pelo Estado moderno, como única estratégia de solução dos conflitos. Assim, busca-se revolver os alicerces do imaginário punitivo clássico, ainda profundamente arraigado aos sistemas penais das democracias contemporâneas, para destacar não apenas as suas fragilidades epistemológicas, 4.
Esse conjunto de problemas estão profundamente inspiradas pelas análises filosóficas de OST, 1999; 2004; GRÓS; PECHY; GARAPON, 2001; RICOUER, 1995; e CLASTRES, 2004.
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expressadas nas contradições entre as funções declaradas da pena pelo classicismo e as funções reais ou latentes do poder punitivo, mas as inúmeras experiências antropológicas que colocam abaixo o argumento iluminista de que a ausência do direito penal formal, exercido exclusivamente pelo Estado, engendraria um cenário caótico de vingança generalizada. A antropologia hermenêutica da violência, aqui desenvolvida, aponta na direção de que o sequestro do conflito pelo Estado representa, não a racionalização do conflito pela introdução de um terceiro imparcial apto a dirimi-lo, mas a proclamação do “inominável mau encontro”, da “instituição da relação de poder”, ao estabelecer a apreensão da “essência do político na divisão social entre dominantes e dominados, entre os que sabem, e portanto mandam, e os que não sabem, e portanto obedecem”, pela qual “o político é o exercício do poder (legítimo ou não, pouco importa aqui) por um ou alguns sobre o resto da sociedade (para seu bem ou seu mal, pouco importa também)”. A partir disso, uma nova forma de justiça (penal) se desenha, uma justiça imposta do alto, que se infunde gradativamente como poder judiciário e poder político. Uma justiça penal que apaga e elimina as vítimas concretas das ações danosas, inventa a infração e os infratores, e os transformam no álibi para o exercício desenfreado do poder punitivo estatal e suas ilegalidades subterrâneas intrínsecas. (CLASTRES, 2004, p. 145 e segs.; LA BOÉTIE, 2006; FOUCAULT, 1996; 2017; HULSMAN & BERNAT DE CELIS, 1993; SCHEERER, 1983; BOLDT, 2018). Nesta direção, o recurso ao mundo da arte, da cinematografia brasileira, serve como um valioso pano de fundo de experiências antropológicas reais, de imaginários sociais produzidos e experimentados por grupos específicos, por horizontes simbólicos de personagens que traduzem pessoas e universos culturais concretos. Trata-se, pois, de perscrutar os imaginários simbólicos das personagens da obra Abril Despedaçado, atribuindo-lhes sentido. Busca-se, assim, dialogar com as personagens a partir de suas próprias situações existenciais, uma vez que o homem produz sentido sobre a dimensão simbólica que o governa sempre e inexoravelmente a partir de uma determinada condição existencial, na luta interminável pelo reconhecimento intersubjetivo (dignidade) e pela visibilidade pública. Imerso no mundo da pluralidade do discurso e da ação (ARENDT, 2000), o ser humano passa a apreender e a manejar com o tecido simbólico no movimento constante e frenético de “círculos hermenêuticos”
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(GADAMER, 2002; 2003; RICOUER, 1990). Na compreensão do ser, o ser humano irremediavelmente compreende-se a si mesmo e compreende os entes. Apenas a partir desse movimento da compreensão é que o ser humano pode explicitar o sentido do mundo (STEIN, 2000; 2003; HEIDEGGER, 1999). Por essa razão, em termos metodológicos, faz-se uso basicamente do instrumental teórico hermenêutico, entendido como “interpretação ou hermenêutica universal”, onde o sujeito, mergulhado na linguagem de sua faticidade e existência, enfim, na sua condição-de-ser-no-mundo (Dasein), não pretende construir uma (meta)linguagem rigorosa sobre o objeto investigado, nem aspira a uma descrição neutra e objetiva do mesmo, consoante consagrado pelo paradigma científico positivista, mas sim estabelecer um processo de atribuição de sentido por meio de uma “fusão de horizontes”. (HEIDEGGER, 1999; GADAMER, 1994; RICOUER, 2013; HEKMAN, 1986; SANTOS, 2004; STRECK, 2004; SOARES, 2002). Nos termos da antropologia hermenêutica da violência e do controle penal, aqui proposta, a criminologia assume um caráter filosófico, de compreensão dos processos de produção social da violência e dos mecanismos de reação social aos atos considerados intoleráveis. Sendo assim, a criminologia deixa de fechar-se na busca de um estatuto científico próprio e definitivo, para abrir-se aos horizontes inesgotáveis de sua tarefa “epistemológica”, ao reivindicar o seu status teórico no âmbito das ciências sociais como uma permanente hermenêutica da conflitividade social e da questão criminal, nas permanentes tensões e contradições entre formas instituídas e forças instituintes. Com esse olhar, a compreensão da obra cinematográfica Abril Despedaçado, aqui realizada, pretende construir a articulação de novos horizontes simbólicos, novos imaginários jurídicos penais, novos círculos hermenêuticos da pena (MESSUTI, 2003), a fim de que, ao compreender a violência, a vingança e a pena, possamos compreender a nós mesmos, e assim permitir a lenta, porém inadiável, transformação das velhas formas do viver da justiça penal, em um contexto de crise do direito e da dogmática jurídica (STRECK, 2004; ADEODATO, 2012).
2.
NO PRINCÍPIO ERA A VIOLÊNCIA
No universo simbólico da mitologia grega, o conflito e a violência emergem como as fontes imaginárias do início do Cosmos, do nascimento do Universo e da vida. Um emaranhado de contradições inesgotáveis, provindas
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da escuridão do caos, marca a genealogia do Universo. Tudo remonta ao princípio, ao crime inaugural de Kronos. A narrativa mítica assinala que no princípio de tudo havia apenas o Caos (Kháos). Tratava-se, pois, na expressão de Vernant, de “um vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e confusão, sem fim, sem fundo”. Como “uma boca imensa e aberta que tudo tragasse numa mesma noite indistinta”, o caos consiste em um “abismo cego, noturno, ilimitado” (VERNANT, 2000, p. 17). Desse momento caótico originário, Gaia (Terra) e Urano (Céu) forjam-se entrelaçados numa união sexual ininterrupta, com o auxílio do Eros primordial. Cada porção de terra é duplicada por um pedaço de céu que lhe corresponde perfeitamente. Como está o tempo todo deitado sobre Gaia, Urano não permite que seus filhos venham à luz, comprimindo-os no ventre de Gaia que aí continuam alojados, não podendo, desta forma, assumir uma existência autônoma. Não podem se transformar em seres individualizados, pois não conseguem sair do ventre absorto. Diante disso, emerge a explosão raivosa de Gaia, que sufocada, inchada, aturdida, resolve libertar-se das investidas constantes e insaciáveis de Urano. Assim, incita os filhos a se revoltarem contra o Pai-céu. Apenas Crono (Tempo), o caçula, aceita ajudar sua mãe e enfrentar o pai. Com efeito, Gaia concebe um plano engenhoso. Fabrica uma foice e coloca-a na mão do jovem Crono. Ele está no ventre da mãe, ali onde Urano se uniu à Terra, e fica à espreita, em emboscada. Quando Urano se deita sobre Gaia, ele agarra com a mão esquerda as partes sexuais do pai e corta-as. Ao castrar Urano, Crono cumpre uma etapa fundamental do nascimento do cosmo. Separa o Céu e a Terra. Cria um espaço livre entre ambos onde a vida é possível. No entanto, inaugura a transformação do tempo, posto que permite a sucessão de gerações (VERNANT, 2000, p. 20 e segs; OST, 1999). Na imagem narrada, é sem dúvida o desejo da autonomia e da liberdade que inaugura a possibilidade da vida em comum. Livre das amarras do tempo estagnado, da opressão de Urano, a vida autônoma emerge como inevitável. A inauguração da dimensão temporal, da necessidade evolutiva, recalcada pela força opressora de Urano, é o que permite a consolidação das existências individualizadas, conscientes e dispostas a enfrentar o mistério da existência. No entanto, a liberdade e a autonomia nascem, paradoxalmente, de um ato transgressor, de um crime de Crono, trazendo consigo a necessidade de expiação da culpa. Se a vida nasce de um crime, é necessário que a
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discórdia inicial que o gerou não seja recalcada, sob pena de retornar indefinidamente. Ao simbolizar a ânsia devoradora da vida, o desejo insaciável, e ao inaugurar um sentimento de duração que escorre entre a excitação e a satisfação, Crono se vê diante da culpa existencial (DIEL, 1985, p. 108 e segs). Isto porque, as gotas de sangue que cobrem a Terra após o seu ato, farão surgir as Erínias, que representam a memória do erro, a recordação, e a exigência de que o crime seja castigado. Nos termos de Vernant, “das gotas do sangue de Urano nascem três tipos de personagens que encarnam a violência, o castigo, o combate, a guerra, o massacre. Um nome resume aos olhos dos gregos essa violência: é Éris, conflito de todos os tipos e de todas as formas, ou discórdia dentro de uma mesma família, no caso das Erínias”. Ao mesmo tempo, o membro arrancado de Urano, que Crono lança ao mar, “não soçobra nas ondas marinhas, fica boiando, e a espuma do esperma se mistura com a espuma do mar. Dessa combinação espumosa em torno do sexo, que se desloca ao sabor das ondas, forma-se uma fantástica criatura: Afrodite” (VERNANT, 2000, p. 25-6). No rastro de Afrodite, deusa da beleza e da fertilidade, e seguindo seus passos, surgem Éros e Hímeros, Amor e Desejo. Esse Eros não é mais o Eros primordial que uniu Gaia e Urano, surgido do caos, mas um outro que, doravante, exige que haja o masculino e o feminino. Ocasionalmente se dirá que ele é filho de Afrodite. Com efeito, “agora, o seu papel passa a ser o de unir dois seres bastantes individualizados, de sexos diferentes, num jogo erótico que supõe uma estratégia amorosa e tudo o que isso comporta de sedução, concordância, ciúme. Eros une dois seres distintos para que, a partir deles, nasça um terceiro, que não seja idêntico a um nem a outro de seus genitores, mas que prolongue a ambos. Assim, há agora uma criação que se diferencia da que houve na era primordial. Em outras palavras, ao cortar o sexo do pai, Crono institui duas forças que, para os gregos são, complementares: uma que se chama Éris, a Disputa, e outra que se chama Éros, o Amor” (VERNANT, 2000, p. 26). Ambos são como irmãos, forças complementares, embora contraditórias, oriundas do mesmo gesto violento que marca a gênese da temporalidade e da vida. Trazem, portanto, a mesma matriz genética, a mesma herança genealógica. Do início caótico, da solidão e escuridão indistinta, nasce a união de Urano e Gaia, alimentado por um amor primordial, intenso. No entanto, o amor de Urano sufoca, sufoca a ponto de eliminar a autonomia, destituir
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a vida. Gaia, para se libertar, recorre à violência, por intermédio de seu filho Crono. Do caótico amor primordial emerge a primeira discórdia, disputa, guerra, que doravante estarão gravadas na matriz genética de Eros e Éris. No plano social, das relações entre os homens, esse imaginário ecoa profundo. O pensamento político, desde as sociedades primitivas e do pensamento grego, evoca a amizade e a inimizade, o amor e o ódio, zoé e bios como as fontes simbólicas da vida coletiva. Com efeito, também no âmbito da instituição do mundo social, definitivamente, “no começo, é o conflito”. A antropologia filosófica destaca que a nossa relação com os outros é constitutiva da nossa personalidade. Segundo Müller, a existência (condição) humana do homem não é estar no mundo, mas sim estar com os outros. O homem é essencialmente um ser de relação. Só existo em relação com outrem. Todavia, a maior parte das vezes, experimento inicialmente o meu encontro com o outro como uma adversidade, como um confronto, como pluralidade (MÜLLER, 1998a, p. 16; ARENDT, 2001). De fato, no âmbito das interações sociais, o outro se apresenta, em várias ocasiões, como uma ameaça para minha existência. O outro é aquele cujos desejos se opõem aos meus, cujos interesses se chocam com os meus, cujas ambições se erguem contra as minhas, cujos projetos contrariam os meus, cuja liberdade ameaça a minha, cujos direitos usurpam os meus. Sendo assim, “a chegada do outro a mim é perigosa, pelo menos pode sê-lo. Pode também não o ser, mas nada sei sobre isso; é por esse motivo que a sinto como perigosa”. Há, portanto, sempre inquietude, incerteza, insegurança, na minha relação com outra pessoa. Talvez não me queira efetivamente mal; talvez até me queira bem, mas nunca o sei de forma definitiva. Por essa razão, “mesmo que não esteja imbuído de más intenções, o outro transtorna-me” (MÜLLER, 1998b, p. 16; FREUD, 1999). A presença alheia se manifesta quase sempre como um estorvo. Como adverte precisamente Müller (1998c, p. 16), “será preciso arranjar-lhe lugar, ceder-lhe o meu, e talvez até mais do que isso. Inicialmente, sinto a proximidade do outro como uma promiscuidade. Talvez o outro não me venha a ameaçar, talvez queira simplesmente pedir ajuda? Mas esse pedido continua a ser uma ameaça, continua a ser um transtorno. O meu medo do outro redobra, quando não é meu semelhante, quando não fala a mesma língua, quando não tem a mesma cor, quando exibe a sua fé num Deus que não é o meu. Esse, mais do que qualquer outro, transtorna-me. Por que não ficou em casa dele?”
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Desde esse encontro, portanto, logo estaremos a rivalizar por distintas pretensões, a confrontar por interesses essencialmente antagônicos, já que é a apropriação por um mesmo objeto, isto é, a rivalidade mimética, que se encontra na origem dos conflitos entre os indivíduos. O aprendizado e a imitação conduzem os homens a estenderem a mão aos mesmos objetos. Nesse sentido, “o conflito é o confronto da minha vontade com a do outro, cada um querendo fazer ceder a resistência do outro” (MÜLLER, 1998, p. 17).
Nas palavras de Müller (1998, p. 18), “o desejo exige para além daquilo que a necessidade pede, muito para além disso. ‘Há sempre algo de ilimitado no desejo’, escreve Simone Weil. Numa primeira fase, o indivíduo procura o poder para não ser dominado pelos outros, mas, se não tiver cuidado, depressa transpõe o limite a partir do qual ele procura dominar os outros. Também a rivalidade entre os homens só pode ser ultrapassada a partir do momento em que cada um limite os seus próprios desejos”.
Tanto os Ferreiras quanto os Breves almejam e disputam o mesmo chão, acreditam-se portadores da legitimidade de dominar a mesma porção de terra, de desfrutar do mesmo poder sobre bens sociais. Uma luta ancestral, movida pelo desejo de posse e de poder, mas também por honra, surge a partir de sentimentos que conduzem à violência desenfreada. Sentimentos macabros, equívocos, incompreensíveis aos olhos e à sensibilidade de um menino.
O desejo desmedido, ilimitado, lembra-o bem o terrível semblante do patriarca dos Ferreiras, é cego. Já a violência, diz Müller (1998g, p. 30), ocorre quando o homem deseja o ilimitado e seu desejo é contrariado pelos outros. Nesse caso, “a violência surge num conflito quando um dos protagonistas acciona meios que fazem pender sobre o outro uma ameaça de morte”. De fato, “a intenção da violência, diz Paul Ricouer, a finalidade que ela persegue implícita ou explicitamente, directa ou indirectamente, é a morte do outro – pelo menos a sua morte ou qualquer coisa pior que a morte”. Ainda segundo Müller (1998, p. 30), “toda a violência é um processo de homicídio, de aniquilamento. Talvez o processo não vá até o fim, mas o desejo de eliminar o adversário, de o afastar, de o excluir, de o reduzir ao silêncio, de o suprimir, vai tornar-se mais forte do que a vontade de chegar a um acordo com ele. Do insulto à humilhação, da tortura ao homicídio, são múltiplas as formas de violência e múltiplas as formas de morte. Atacar a dignidade do homem é já atacar a sua vida. Violentar é sempre fazer calar, e privar o homem de sua palavra é já privá-lo de sua vida”.
Mas parece ser sobretudo o sentimento de ciúme, que faz invejar e desejar o objeto possuído pelo outro, uma das molas mais poderosas dos conflitos que opõem os indivíduos entre si. Nos termos de Jean-Marie Müller (1998, p. 18), o poder sobre os objetos logo cria um poder sobre os outros. Com efeito, “o desejo de posse e o desejo de poder estão profundamente ligados um ao outro. Ao mesmo tempo que os indivíduos rivalizam pela apropriação dos objectos, lutam entre si pela afirmação do seu poder. Existe assim um elo orgânico entre a propriedade e o poder. O jogo dos conflitos que opõem os homens é frequentemente um jogo de poder”. (MÜLLER, 1998e, p. 18). Além da disputa pela terra e pelo poder, primeiramente é o Menino que deseja Clara, que se diz seu namorado e, mais ainda, futuro esposo: “É ela – diz ele ao apontar a sereia do livro de estórias – a moça que meu deu o livro! Ela veve no mar, mais os peixe, os siri, navio. Quer ver? Ela vai me levar com ela. Vai me ensinar o abecê e tudo mais. Tá acreditando, não? Apois, quando eu crescer, eu vou me casar com ela.” Mais tarde, é precisamente Tonho que se vê apaixonado por ela: “não vou nunca me esquecer disso, nem de tu”. Mas Clara não está completamente livre; ela pertence, de certo modo, ao seu padrinho Salustiano: “Clara!”, esbraveja ao vê-la corresponder ao olhar de Tonho. Visivelmente, se os desejos de posse e de poder rumam ao infinito, a possibilidade do acordo se torna inviável. O desejo desmesurado pode conduzir-me drasticamente a uma autonomia absoluta, apresentando-se como respaldo quase natural para exigir e desenvolver o meu poder sobre os demais.
Do ponto de vista antropológico, a violência é de todos e está em todos. Desde as sociedades primitivas, percebe-se que a violência é um componente básico, primário, da vida social, ao mesmo tempo disjuntivo, irruptivo, caótico e profano, tanto quanto agregador, permanente, ordenador e sagrado. Como destaca René Girard, “uma vez despertado, o desejo de violência produz certas mudanças corporais que preparam os homens para luta”, de modo que “só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para devorar” (GIRARD, 2008, p. 12-15; CARVALHO, 2008). Nos mitos e práticas das sociedades primitivas, arcaicas, essa função era atribuída ao sacrifício, cuja “função é apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão de conflitos”. Nos termos de Girard (2008, p. 19), é a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas
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exteriores. O sacrifício polariza sobre a vítima os germens de desavença espalhados por toda parte, dissipando-os ao propor-lhes uma saciação parcial. (...) Sacrifícios são oferecidos em nome dos mais variados objetos ou empreendimentos, principalmente a partir do momento em que o caráter social da instituição começa a desaparecer. No entanto, há um denominador comum da eficácia sacrificial, tão mais visível e preponderante quanto mais viva for a instituição. Este denominador é a violência intestina: as desavenças, as rivalidades, os ciúmes, as disputas entre próximos, que o sacrifício pretende inicialmente eliminar; a harmonia da sociedade que ele restaura, a unidade social que ele reforça. Todo o resto decorre disto.
No entanto, quando a violência intestina recalcada pelo sacrifício revela sua natureza, ela sempre se manifesta sobre a forma da vingança de sangue, ameaça terrificante, intolerável, que tende espalhar-se e a dilacerar todo o corpo social. O relato arcaico da vingança sinaliza que, face ao sangue derramado, a única vingança satisfatória é o derramamento de sangue do criminoso. Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria vingança. Ele é concebida como uma represália, e cada represália invoca uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é visto como o primeiro: ele é considerado como a vingança de um crime mais original (GIRARD, 2008, p. 27).
Por essa razão, François Ost (1999, p. 127) nos lembra que da mesma forma que é impossível atingir-se um ponto zero do direito, uma vez que toda juridicidade pressupõe um plano de interação e de reconhecimento intersubjetivo prévio, poderíamos defender: ‘há crime antes do crime’. Nas palavras do autor, “o crime que a vingança pune, explica René Girard, ‘quase nunca se concebe a si mesmo como primeiro; pretende ser já vingança de um crime mais original’. Assim, os homens terão sido sempre já confrontados com a violência; existe um futuro anterior do mal, como existe um futuro anterior da legitimidade”. Por essa razão, “a esta anterioridade do crime responde a perenidade da memória punitiva; se não a sua perenidade, pois no universo moderno intervém a prescrição, pelo menos a sua longa duração. Punir é, pois, antes do mais, recordar” (OST, 1999, p. 127-8). A violência meticulosamente calculada entre as famílias Breves e Ferreira não possui um início preciso. Ela aparece pura e simplesmente como expressão de “um futuro anterior do mal”, uma violência que emerge como princípio, como manifestação de uma ambivalência constitutiva das relações humanas. No princípio de tudo há sempre o conflito, o caos, diriam os gregos. Na verdade, o conflito não é o modo primordial, mas o mais primário
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da nossa relação com o outro (MÜLLER, 1998, p. 19). Nesse contexto, as palavras do Menino refletem, efetivamente, essa constatação de que a violência incessante entre as famílias rivais possui um início imemorial, incerto, impreciso e, por essa razão, indizível: “pra chegar nos Ferreira, Tonho vai pisar em chão que já foi nosso. Os Ferreira tomaram e nós tomamo dos Ferreira. Agora é deles de novo. Foi assim que começou a briga”. Portanto, não há nem um início preciso nem uma causa absolutamente determinante. Apenas “o pai disse que é olho por olho”. Simplesmente, “foi assim que começou a briga”. E o eterno retorno dos sucessivos atos de vingança parece reproduzir sem cessar essa mecânica sacrificial, na ânsia de estancar “a violência intestina”. No entanto, é necessário, de algum modo, superá-la, transfigurá-la, uma vez que a mancha de sangue é perene: “a mãe pensa que mancha de sangue sai. Mas num sai.”
2.1. VIOLÊNCIA E (LUTA POR) RECONHECIMENTO O que precisa ficar claro, desde logo, é que os indivíduos não podem de modo algum fugir de uma situação de conflito sem renunciar aos seus próprios direitos. Eles devem, ao contrário, aceitá-la, pois é através do conflito que poderão ser reconhecidos pelos outros. Nesses termos, a base da interação social é o conflito e o seu cimento valorativo é a luta por reconhecimento. A condição humana, percebida justamente como a possibilidade do aparecer público e do reconhecimento intersubjetivo igualitário, mediante o exercício do discurso e da ação num espaço comum partilhado, é inevitavelmente conflituosa (HONNETH, 2002; ARENDT, 2001). Conforme assevera Müller (1998, p. 18), é verdade que o conflito pode ser destruidor, mas também pode ser construtivo. A função do conflito é estabelecer um contrato, um pacto entre os adversários que satisfaça os respectivos direitos e chegar, assim, à construção de relações de equidade e de justiça entre os indivíduos no interior de uma mesma comunidade e entre as diferentes comunidades. O conflito é, assim, um elemento estrutural de toda a relação com os outros e, por conseguinte, de toda a vida social.
Mesmo aqui, no árido e inóspito sertão nordestino, o conflito sangrento entre as famílias rivais permite a construção de uma regulação, de um pacto fáustico, sinistro, capaz de edificar um ritual claramente definido e fomentar um acordo mínimo e previsível entre os adversários. Mesmo a vingança cega e mortífera possui, neste caso, suas regras, e proclama seus
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limites: “A camisa tá quase amarelando”, alerta a filha da família Ferreira. “Sempre amarela”, reponde o velho Ferreira, com seu semblante tenebroso; afirma o patriarca a voz implacável da tradição. Entretanto, a ira do filho mais velho, portador do direito de exigir o sangue, pretende ultrapassar os limites de costumes ancestrais, as linhas rigidamente demarcadas do olho por olho, do talião sempre redivivo. Quer, de qualquer modo, cortar o mal pela raiz, eliminar de uma vez por todas, toda a genealogia rival: “eu tava pensando... se o senhor desse permissão... eu pegava os home... e nóis acabava logo de uma vez com a raça desses Breves”. Mas o conflito sangrento apresenta suas regras, seus acordos, seus mecanismos de autocontenção. A resposta do patriarca sufraga uma espécie de código ético-político-teológico que estabelece os contornos do exercício da violência, do “direito” de vingança: “já te disse isso e vou repetir pela última vez: O sangue de cada um tem a mesma valia. E tu só tem o direito de pedir o sangue que perdeu. Quem ultrapassa esse direito paga dobrado por isso nessa vida ou em outra. Foi isso que meu pai me ensinou, e o pai do meu pai ensinou a ele. Vai ser assim até a minha morte”. No entanto, a despeito de estar circunscrita a inúmeros rituais, a violência sempre anula o outro, transforma o homem em coisa, em objeto. Com efeito, “violentar é fazer sofrer e o sofrimento pode ser mais temível que a morte” (MÜLLER, 1998, p. 31). Por um lado, a violência é o abuso da força. Mas é preciso dizer mais do que isso: a violência, por si mesma, é um abuso; o próprio uso da violência é um abuso. Abusar de alguém é violá-lo. Toda a violência que se exerce contra o homem é uma violação: violação do seu corpo, da sua identidade, da sua personalidade, da sua humanidade. Toda a violência é brutalidade, ofensa, destruição, crueldade. A violência atinge sempre o rosto que deforma pelo efeito do sofrimento; toda a violência é uma des-figuração. A violência fere e magoa a humanidade daquele que a sofre (MÜLLER, 1998, p. 32).
De outro lado, a violência também dilacera a humanidade daquele que a exerce. Os pesadelos que agitam o sono: “Tonho... sonhei de novo com Inácio”. Primeiro a memória do agredido, mas logo depois é o agressor que custa a dormir com a cabeça tranquila: “Tu não tava de sonho bom não, Tonho. Tentei te acordar. Mas tu não quis.” Tanto as noites mal dormidas quanto a suspensão da existência sofrida pela inventividade literária, levada a cabo pelo Menino, são manifestações dessa amargura que pende sobre o destino de Tonho, de seu irmão e de uma camisa no vento. Essa
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desfiguração é também percebida pela mente radicalmente crítica do artista de circo Salustiano: Tu viu a fita preta no braço do moço? Esse aí não dura muito tempo mais não. (...) Tá metido em guerra de família. Morre um de lá, depois matam outro de cá. (...) Isso é antigo. Por aqui, todo mundo sabe disso. Ganância... briga por causa de terra. Preferem se acabar do que acabar com isso. Povo ranhento! Olhe, é que nem duas cobra que eu vi brigando um dia desse. Uma mordeu o rabo de uma. A outra mordeu o rabo da uma. E morde o de uma, morde o da outra, foram se comendo... até que um dia não restou mais nada. Pra não dizer que não restou nada, tava lá a pocinha de sangue no chão. É desse jeito que esse povo vai se acabar. Eu tenho é pena. Eu morro de pena.
Desta forma, “a violência fere e magoa igualmente a humanidade daquele que a exerce” (MÜLLER, 1998, p. 32). Isto porque, a violência exprime a reificação do outro, a transformação do homem objeto, petrificado e manipulável, uma simples coisa. Trata-se, portanto, de negar ao outro o reconhecimento intersubjetivo, de atingir o seu rosto pelo efeito destruidor da imposição do sofrimento. A reificação promovida pela violência “pode ser compreendida como uma forma perversa e perniciosa do Esquecimento-do-Reconhecimento” (SAAVEDRA, 2009, p. 16). Nesse sentido, aquele que se serve dos outros apenas como meio viola a sua humanidade: age de modo violento. Além disso, a violência aparece ainda como negação da palavra, expressão radical da produção coletiva da invisibilidade pública e da humilhação social5, enquanto impedimento da reunião plural e igualitária que funda a cidadania, retirando os indivíduos da bestialidade, da concentração em interesses privados (MÜLLER, 1998, p. 32-3; GONÇALVES FILHO, 2000). A castração da palavra, o impedimento do diálogo é, na maioria das vazes, mais dolorido do que a própria agressão física. Tanto é assim que Tonho, ao questionar diante de seu temido pai o peso e a tristeza de seu destino, impulsionado pela alegria transgressora do circo, prefere o sofrimento das agressões físicas a manter-se calado. Enquanto seu pai, acometido pela ira, esbraveja repetidamente: “cala a boca, cala a boca”, Tonho percebe que “privar o homem de sua palavra é já priva-lo de sua vida”, e reage imediatamente: 5. A invisibilidade pública consiste no “desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens”, afirmando-se como “expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais, os quais assumem caráter crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e reificação. A humilhação social, por sua vez, apresenta-se como um fenômeno histórico, construído e reconstruído ao longo de muitos séculos, e determinante do cotidiano dos indivíduos das classes pobres. É expressão da desigualdade política, indicando exclusão intersubjetiva de uma classe inteira de homens do âmbito da iniciativa e da palavra, do âmbito da ação fundadora e do diálogo, do governo da cidade e do governo do trabalho. Constitui, assim, um problema político (COSTA, 2000, p. 62 e segs.).
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“não calo, não calo”. E nem mesmo a força das pancadas de seu pai o impede de tentar afirmar a sua voz, a sua identidade sonegada. Consoante destaca Honneth (2003, p. 54 e segs.), desde Hegel, pode-se entender a ação violenta ou criminosa como uma ação que está ligada ao pressuposto social das relações jurídicas, na medida em que ela resulta justamente da indeterminidade da liberdade meramente jurídica do indivíduo: em uma ação criminosa os sujeitos fazem um uso destrutivo do fato de, como portadores de direitos de liberdade, não estarem incluídos no convívio social senão negativamente.
Portanto, a origem de um crime reside no fato de um reconhecimento intersubjetivo ter sido incompleto: “nesse caso, o motivo interno do criminoso é constituído pela experiência de não se ver reconhecido de uma maneira satisfatória na etapa estabelecida de reconhecimento mútuo”. Assim, o sujeito afetado só pode reagir adequadamente à lesão a sua própria pessoa, defendendo-se, por sua vez, de maneira ativa contra o agressor; daí deriva o conceito de luta, isto é, de uma luta de ‘pessoa’ contra ‘pessoa’, portanto, entre dois sujeitos juridicamente capazes, cujo objetivo é constituído pelo reconhecimento das distintas pretensões (HONNETH, 2003, p. 54-6). Trata-se, pois, de uma luta por honra, por visibilidade, poder-se-ia dizer em outras palavras, sendo essa luta, entendida como a postura que adoto em relação a mim mesmo quando me identifico positivamente com todas as minhas qualidades e peculiaridades. Um indivíduo só está em condições de identificar-se integralmente consigo na medida em que encontra, para suas peculiaridades e qualidades, a aprovação e o apoio também de seus parceiros de interação; o termo ‘honra’ caracteriza, por sua vez, uma relação afirmativa consigo próprio, estruturalmente ligada ao pressuposto do reconhecimento intersubjetivo da particularidade sempre individual. Daí os dois sujeitos perseguirem na luta pelo cumprimento da meta de reparar sua honra, ferida por razões distintas em cada caso, na procura por convencer seu oponente de que sua própria personalidade é digna de reconhecimento. Mas isso só pode acontecer, supõe Hegel mais adiante, ao demonstrarem reciprocamente a disposição de pôr em jogo a sua vida: só dispondo-me a morrer dou a conhecer publicamente que minhas metas e peculiaridades sempre individuais importam-me mais que a minha sobrevivência física (HONNETH, 2003, p. 54-56). Não à toa, o pai de Tonho adverte, com o uso da violência inclusive, que os Breves morreram pela honra da família e pela terra que cultivaram.
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É precisamente a honra, o desejo de visibilidade e de reconhecimento, que aparecem como as fontes subjetivas primordiais da reprodução da violência. Claramente, os membros da família dispõem-se tradicionalmente a morrer para defender essa honra, essa necessidade vital de afirmação de uma identidade (possivelmente) sonegada. O diálogo íntimo entre o casal Breves é emblemático a respeito: “Nessa casa os morto é que comando os vivo. As veis, eu tinha vontade que Tonho não voltasse mais nunca”, diz a mãe cansada de sofrimento, de ver falecer os filhos amados. “Não diz uma coisa dessa, mulher”, afirma o autoritário esposo. Mas ela não desiste de argumentar, de questionar a tirania do tempo e da violência compassados: “A pior das vida, homem, é melhor do que morrer feito bicho”. No entanto, o peso da tradição parece não permitir qualquer movimento, surpresa, alteração, qualquer chuva fora de época. A luta por honra não abre espaço ao perdão, ao esquecimento e à não violência: “Olha em volta, mulher... o que é que sobrou?” – diz o homem. “Nada” – afirma a senhora Breves. “Pois então. Nóis já perdemo tudo. Se Tonho não voltar, vamos perder também a honra” – proclama o esposo a sentença final. Por isso mesmo, a violência encontra o seu acento ético na exigência de visibilidade, de uma identidade coletivamente compartilhada. Isso porque, de acordo com Soares (2005, p.206), [...] a identidade só existe no espelho e esse espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve a nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por isso, construir uma identidade é necessariamente um processo social, interativo, de que participa uma coletividade e que se dá no âmbito de uma cultura e de um determinado momento histórico.
O processo de construção da identidade, de exigência de reconhecimento social, apresenta três dimensões ou etapas. Com efeito, Honneth (2003) estabelece três formas distintas de integração social, consubstanciadas sob as formas de padrões eticamente motivados de reconhecimento intersubjetivo. Nos termos do autor, as formas básicas de integração social seriam as ligações afetivas (amor), a adjudicação de direitos (direito) e a orientação comum por valores (solidariedade). A cada uma delas corresponde a uma