Organizadores:
Paulo César Busato Rhayssam Poubel de Alencar Arraes
A LINGUAGEM DO SISTEMA CRIMINAL
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Diagramação e Capa: Jéssica Razia CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
C317
Caruncho, Alexey Choi A Linguagem do sistema criminal [livro eletrônico] / Alexey Choi Caruncho ... [et al.]; prefácio Paulo César Busato; Paulo César Busato, Rhayssam Poubel de Alencar Arraes (org.). - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024. 1Kb; livro digital ISBN: 978-65-5908-716-7. 1. Direito penal. 2. Filosofia da Linguagem. 3. Processo penal. 4. Criminologia. I. Título. CDU: 343 Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/ Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Organizadores:
Paulo César Busato Rhayssam Poubel de Alencar Arraes
A LINGUAGEM DO SISTEMA CRIMINAL Autores Alexey Choi Caruncho Alicia Marcy de Carvalho Bellegard Amanda Sian Orsi de Campos Ana Júlia Amaro Miyashiro Eduardo Augusto da Silva Dias Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza Emilly Paviotti Felipe Giacomolli Felipe Peniche Ribeiro Fernando Fischer Gabriela Grupp George Walter Barreto de Oliveira Guilherme H. Gonçalves Helena Schünemann Buschmann Julia Heliodoro Souza Gitirana Lara Marcon Michels Lincoln Domingues Marco Aurélio Nunes da Silveira Mariana Cesto Patrícia Marino Romano Paulo César Busato Paulo Henrique Helene Priscilla Placha Sá Priscilla Conti Bartolomeu Renato Campos Rhayssam Poubel de Alencar Arraes Ricardo Gloeckner Roberta Martinic Cauduro Rodrigo Cavagnari Taís de Paula Scheer Samuel Ebel Braga Ramos
Sumário Apresentação......................................................................................................... 9 Rhayssam Poubel de Alencar Arraes
Prefácio................................................................................................................ 11 Paulo César Busato
Apontamentos sobre a ação nos resultados criminais derivados de decisões cibernéticas......................................................................................................... 17 Paulo César Busato e Renato Dilly Campos
O direito penal deve ser encarado enquanto ciência? Um breve debate entre as ideias de Tomás S. Vives Antón e Urs Kindhäuser............................ 42 Guilherme Henrique Gonçalves, Rhayssam Poubel de Alencar Arraes e Roberta Martinic Cauduro
Ação de Pessoa Jurídica? Sim, faz sentido......................................................... 63 Paulo Henrique Helene
Aportes significativistas para a identificação de formas de aparição delitiva da pessoa jurídica no Direito brasileiro.......................................................... 81 George W. Barreto e Emilly B. J. Paviotti
Um aporte filosófico sobre a causalidade em contributo para a imputação das pessoas jurídicas.......................................................................................... 107 Samuel Ebel Braga Ramos, Alicia Marcy de Carvalho Bellegard e Helena Schünemann Buschmann
Homicídio a pedido e eutanásia: distinções e equivalências........................ 127 Mariana Cesto
Responsabilidade individual por ato coletivo: reflexões sobre a unidade do tipo de ação e o compartilhamento da responsabilidade na coautoria.156 Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza
Pena e linguagem: Uma desconstrução teórica pela fenomenologia heideggeriana.................................................................................................... 177 Fernando Fischer
Sanção pecuniária e responsabilidade penal empresarial: Uma contribuição a partir da filosofia da linguagem.................................................................. 202 Alexey Choi Caruncho
Aquelas que perdemos no fogo: Ensaio sobre omissões feminicidas do Estado brasileiro.............................................................................................. 229 Julia Heliodoro Souza Gitirana, Priscila Conti Bartolomeu e Priscilla Placha Sá
A assinatura e os cenários dos casos de feminicídio: compreensões a partir do contexto feminicida em amostra de casos do Paraná.............................. 253 Amanda Sian Orsi de Campos e Ana Júlia Amaro Miyashiro
Marcadas pelo fogo: Análise do feminicídio incendiário sob a ótica da masculinidade hegemônica no controle de corpos femininos.................... 278 Patrícia Marino Romano
Linguagem feminicida e a lógica monogâmica: uma análise de discursos de autores de feminicídio no Estado do Paraná sob a ótica da conquistalidade................................................................................................ 290 Gabriela Grupp, Lara Marcon Michels e Taís de Paula Scheer
A apelação do ministério público com fundamento na “decisão manifestamente contrária à prova dos autos” e o quesito genérico no tribunal do júri................................................................................................. 321 Ricardo Jacobsen Gloeckner e Felipe Giacomolli
Um panorama sobre a imparcialidade do juiz à luz da concepção de Vives Antón e do caso stf hc 164.493/PR.................................................................. 349 Rodrigo Cavagnari e Lincoln Domingues
Uma leitura foucaultiana das aleturgias........................................................ 371 Eduardo Augusto da Silva Dias
A etapa intermediária e o juízo oral de admissibilidade da ação penal: uma análise em cotejo com os processos penais chileno e mexicano................... 384 Felipe Peniche Ribeiro e Marco Aurélio Nunes da Silveira
Apresentação Filosofar é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pequeno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando tudo entra no lugar a porta se abre. Ludwig Wittgenstein
Filosofar sobre a linguagem e a sua aplicação no sistema criminal é um desafio obrigatoriamente realizado com a ajuda de muitos. Cada um realizando, nas palavras de Wittgenstein, “pequenos ajustes no mecanismo” que contribuem com a descoberta do segredo deste cofre chamado linguagem. Desvendar a linguagem e as suas relações com o sistema criminal foi o projeto que os autores da presente obra se propuseram a realizar por meio dos artigos aqui presentes, fruto de extensas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos Sistema Criminal e Controle Social (SCCS) do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenado pelo professor Paulo César Busato. A maioria dos artigos que compõem a presente obra tem como pedra angular as ideias do professor catedrático da Universidade de Valência (Espanha) e ex-Vice-presidente do Tribunal Constitucional Espanhol, Tomás Salvador Vives Antón, o qual propôs a aplicação da filosofia da linguagem ordinária do filósofo Ludwig Wittgenstein na dogmática penal, apresentando a construção de um sistema de imputação democrático lastreado em uma pretensão universal de justiça, que busca obter o resultado mais justo àquele que se pretende imputar uma conduta criminosa que tenha cometido. Nessa perspectiva, a presente obra inicia-se com artigos que analisam a dogmática jurídico penal e a filosofia da linguagem. A seguir, as sanções penais são analisadas a partir da filosofia da linguagem em artigos que analisam, por exemplo, a pena e a linguagem a partir de uma desconstrução teórica pela fenomenologia heideggeriana e o papel da sanção pecuniária na responsabilidade penal empresarial. Na sequência, são analisados os aspectos criminológicos da linguagem jurídico-penal em artigos que versam desde as omissões feminicidas do Estado brasileiro e os crimes de feminicídio cometidos com o emprego de fogo a um estudo quantitativo do contexto feminicida no Estado do Paraná. 7
Por último, são analisadas as garantias no processo penal a partir da filosofia da linguagem, em artigos que versam sobre temas, a exemplo da apelação do Ministério Público com fundamento na decisão manifestamente contrária à prova dos autos; o quesito genérico no tribunal do júri, uma leitura foucaultiana das aleturgias e uma investigação sobre a etapa intermediária e o juízo oral de admissibilidade da ação penal nos processos penais chileno e mexicano. Os artigos aqui presentes corroboram a importância de um debate propositivo acerca do sistema criminal cujo ponto de partida seja a linguagem, bem como reafirmam a importância e a atualidade da Concepção Significativa da Ação. Apenas com a compreensão dos mecanismos linguísticos que compõem o sistema criminal, será possível “abrir a porta do cofre” e construir um sistema criminal democrático que ande em compasso com as mais recentes demandas impostas pela nossa sociedade globalizada e tecnológica, ao mesmo tempo que seja capaz de propiciar as mais justas decisões possíveis. Curitiba, Outubro de 2023. Rhayssam Poubel de Alencar Arraes
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Prefácio O Núcleo de pesquisas Sistema Criminal e Controle Social do PPGD/UFPR vem trabalhando no campo da intersecção entre o Direito penal e a Filosofia da Linguagem desde sua fundação. Em realidade, ao lado dos inúmeros eventos organizados e publicações, teses e dissertações vinculadas ao Núcleo relativas ao tema, desenvolveu-se uma verdadeira colaboração permanente com a Universidad de Valencia, Universidad Jaume I, de Castellón. Universidad d’A Coruña e a Universidade Federal de Minas Gerais no sentido da realização periódica de um Seminário Ibero-Americano de Direito penal e Filosofia da Linguagem que já alcançou quatro edições e caminha para a quinta. Neste diapasão de avanço para um contexto de interinstitucionalidade, buscou-se abrir um edital mais amplo nestas pesquisas propondo avançar não apenas no resgate de ideias centrais ou tangenciais à aplicação da Filosofia da Linguagem no campo penal, mas também no intuito de estabelecer novos contatos com investigadores interessados na matéria vinculados a outras instituições e receber seus trabalhos no seio de um projeto que fosse representativo de o quanto se expandiu, em território brasileiro, a discussão sobre os paradigmas propostos. A partir deste projeto, o intuito é conformar um espaço anual para o Núcleo de Pesquisas SCCS no Seminário Permanente instaurado pelas Universidades de Valencia e Jaume I, de Castellón, em homenagem à obra do Prof. Tomás S. Vives Antón. Os trabalhos coletados neste volume representam as distintas vertentes de desenvolvimento da ideia de linguagem no plano jurídico-penal, compreendendo desde problemas dogmáticos, quanto político-criminais/criminológicos, relacionados às consequências jurídicas do delito e até mesmo ao processo penal. Durante mais de um ano foram desenvolvidos diversos projetos comandados por professores de várias instituições nestas quatro direções visando recompilar o que há de mais atual no desenvolvimento da filosofia da linguagem aplicada ao sistema penal no Brasil. Deste volume serão selecionados os trabalhos que representarão o Brasil no Seminário de Valencia/Castellón e que serão postos à prova pelo debate com os discípulos diretos do Prof. Vives Antón. O leitor encontrará, na primeira parte, referida à dogmática jurídico-penal, um trabalho de que fui coautor com o pesquisador Renato Dilly Campos, da 9
Universidade Milton Campos em Minas Gerais sobre a ação – considerada desde os postulados da filosofia da linguagem - nos resultados criminais derivados de decisões cibernéticas; uma contraposição entre as ideias de Tomás Vives Antón e Urs Kindhäuser, em um trabalho de Guilherme Henrique Gonçalves, Rhayssam Poubel de Alencar Arraes e Roberta Martinic Cauduro, todos vinculados ao PPGD/UFPR; duas contribuições para discutir a ação/omissão de pessoas jurídicas, uma a cargo de Paulo Henrique Helene, da FAG-Cascavel e outra a cargo de George W. Barreto e Emilly B. J. Paviotti, da UFMG. Além deles, um trabalho específico para discussão da relevância da causalidade no plano da imputação das pessoas jurídicas, desenvolvido por Samuel Ebel Braga Ramos, Alicia Marcy de Carvalho Bellegard e Helena Schünemann Buschmann, do PPGD/UFPR; um trabalho que discute, à luz da linguagem, a distinção e as similitudes entre o homicídio a pedido e a eutanásia, a cargo de Mariana Cesto, do PPGD/UFPR e um trabalho de análise do concurso de pessoas a partir da filosofia da linguagem, de autoria de Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, também do PPGD/UFPR. No bloco que relaciona as sanções penais e a filosofia da linguagem, contou-se um trabalho sobre a desconstrução teórica da pena pela fenomenologia heideggeriana, de autoria do magistrado Fernando Bardelli Fischer, do PPGD/ UFPR e outro do pesquisador e doutorando da Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha, Alexey Choi Caruncho, que aborda a sanção pecuniária e responsabilidade penal empresarial a partir da filosofia da linguagem. Na parte dedicada aos aspectos criminológicos e de política criminal, capitaneado pela Desembargadora Priscilla Placha Sá, do PPGD/UFPR e sob sua direção, foram apresentados quatro trabalhos que promovem a intersecção da filosofia da linguagem com a dinâmica feminista, compostas por uma análise das omissões feminicidas do Estado brasileiro onde a coordenadora trabalhou com Julia Heliodoro Souza Gitirana e Priscila Conti Bartolomeu; um segundo, onde coordenou o trabalho de Amanda Sian Orsi De Campos e Ana Júlia Amaro Miyashiro, na identificação da linguagem na assinatura dos cenários feminicidas através de amostra de casos do Paraná; um terceiro que aborda especificamente a mensagem do feminicídio incendiário como expressão da masculinidade hegemônica no controle de corpos femininos, trabalho partilhado com Patrícia Marino Romano e um último em que coordenou uma análise de Gabriela Grupp, Lara Marcon Michels e Taís De Paula Scheer sobre os discursos de autores de feminicídio no Estado do Paraná, com vistas a promover a identificação da linguagem feminicida associando-a à lógica monogâmica como forma de conquistalidade. Finalmente, na intersecção entre a filosofia da linguagem e as garantias no processo penal o leitor contará com a minuciosa discussão sobre o fundamento da decisão manifestamente contrária à prova dos autos nos casos de Tribunal do 10
Júri e sua correlação com o quesito genérico próprio do sistema dos julgamentos populares, de autoria de Ricardo Jacobsen Gloeckner e Felipe Giacomolli, da PUC-RS; com a detida análise sobre a imparcialidade do juiz à luz da concepção significativa de Vives Antón colocando sob lupa o caso do HC 164.493/PR, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, discussão oferecida por Rodrigo Cavagnari e Lincoln Domingues da FAE-PR, e dois trabalhos orientados pelo Professor Marco Aurélio Nunes da Silveira do PPGD/UFPR, um assinado em coautoria com Felipe Peniche Ribeiro sobre a etapa intermediária e o juízo oral de admissibilidade da ação penal em forma de direito comparado com os processos penais chileno e mexicano e outro, coordenando o trabalho Eduardo Augusto da Silva Dias onde se faz uma detida leitura foucaultiana das chamadas aleturgias no processo penal. Com se nota pela profundidade dos trabalhos, cujos debates e revisões passaram por diversas reuniões do Núcleo de Pesquisas, a produção é vasta de de proveniência diversificada, tanto quanto aos assuntos como quanto às origens de seus autores, de modo a demonstrar a verdadeira expansão de importância da vinculação geral entre linguagem e direito e mais específica entre Filosofia da Linguagem e Direito penal. Afinal, como diria Vives Antón, o direito não é mais do que uma forma de argumentar ao redor de tópicos sobre como organizar certa parcela do controle social que compete ao Estado, relativo aos comportamentos mais intoleráveis. Como tal, tem seu início e seu fim na linguagem compartilhada entre as pessoas. Assim, se direito é linguagem, o paradigma oferecido pela filosofia que a ela se dedica certamente tem muito a oferecer para o avanço dos debates que se trava no ambiente jurídico. Boa leitura! Curitiba, 02 de outubro de 2023. Paulo César Busato
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DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL E FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Apontamentos sobre a ação nos
resultados criminais derivados de decisões cibernéticas Paulo César Busato1 Renato Dilly Campos2
1. O problema Atualmente, são identificadas diferentes casos em que a causalidade de resultados jurídico-penalmente desvalorados – incluindo lesões a bens jurídicos fundamentais, como a vida e a integridade física – é realizada com a intervenção de inteligência artificial (A.I.)3. Isso chamou atenção para a necessidade de se estabelecer alguma forma de controle social penal4. São frequentes as notícias de lesões decorrentes de intervenções de robôs em cirurgias5 ou em processos industriais6, de armas autônomas letais conduzidas por drones7, dos chamados ‘veículos autônomos’8, de operações autônomas no mercado moveleiro que produzem flash crashes9 etc. E tudo isso se refere ainda ao que se costuma definir como a 1 2 3 4
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O autor é Profesor de Direito penal na Universidade Federal do Paraná, Doutor em Problemas atuais do Direito penal pela Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España e Procurador de Justiça do Ministerio Público do Estado do Paraná. O autor é doutorando em Direito Doutorando em Direito Penal Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara; Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito Milton Campos e advogado. Doravante no texto será usada a sigla AI (do inglês artificial intelligence), para referir à inteligência artificial. Sobre essa necessidade de identificar ‘de quem é a culpa’ no advento dos carros autônomos, ver LOH, Wulf y LOH, Janina. “Autonomy and Responsibility in hibrid systems: The example of autonomous cars”, in Robot Ethics 2. 0. From Autonomous Cars to Artificial Intelligence. New York: Oxford University Press, 2017, pp. 35 e ss. Também GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”. in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 41-42. Cf. SULLIVAN, Hannah R. y SCHWEIKART, Scott J. . “Are Current Tort Liability Doctrines Adequate for Addressing Injury Caused by AI? ” AMA Journal of Ethics, Volume 21, Number 2, February 2019, p. 162. Hallevy relata que já em 1981, um operário japonês foi morto por robô conduzido por AI que identificou erroneamente o trabalhador como ameaça à sua missão e calculou a maneira mais eficiente de eliminá-lo. Ver HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities - from Science Fiction to Legal Social Control”, in Akron Intellectual Property Journal - March 2016, Akron: The University of Akron, 2016, pp. 171-172. Cf. GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”…cit., p. 38. WEIGAND, Thomas. “Direito de necessidade para carros autônomos? ”. in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019. Os exemplos aparecem em WHITE, Trevor N. y BAUM, Seth D. . Liability for present and future robotics technology”, in Robot Ethics 2. 0. From Autonomous Cars to Artificial Intelligence. [Patrick Lin, Ryan Jenkins y Keith Abney – Ed.], New York: Oxford University Press, 2020, pp. 66 e ss. e SOUSA, Susana Aires de. “Não fui eu, foi a máquina: teoria do crime, responsabilidade e inteligência artificial” in A inteligência artificial no Direito penal. Lisboa: Almedina, 2020, p. 60. Para detalhes dos casos de carros autónomos Uber e Tesla, ver JANUÁRIO, Túlio Xavier. “Veículos autônomos e imputação de responsabilidades por acidentes” in A inteligência artificial no Direito penal. Lisboa: Almedina, 2020, p. 97 e nota p. 97, nota 6.
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primeira geração da A.I.10, em um fenômeno que pode ser descrito como uma verdadeira metamorfose 11. Mas, se é certo que a tecnologia evolui rapidamente, não é menos coreto que seus propulsores são exatamente as pessoas e os avanços costumam consistir em produzir resultados que, ainda que tragam riscos, são, via de regra, computados atuarialmente como aceitáveis em relação aos benefícios que supõem12. Tal dinâmica acerca dos riscos foi incorporada à dogmática penal pela via do chamado funcionalismo13. Mas, ao que parece, tal paradigma começa a desmoronar. Embora seja normal que novos desafios dogmáticos produzam discrepâncias de opiniões, nos casos envolvendo A.I.s parece haver um especial estupor frente aos resultados oferecidos pelo sistema de imputação, que parecem estar longe dos esperados. Se há muito tempo convivemos com a revolução tecnológica e os avanços científicos, o que há de diferente nesses casos para determinar uma reação tão particular na doutrina penal? Parece que o problema tem a ver com o fato de que a intervenção das A.I.s produz resultados que nem sempre são antecipados por seus programadores ou usuários14. A partir disso, surge uma primeira dificuldade para o Direito penal, derivada de sua característica de exigir um elemento subjetivo para a atribuição da responsabilidade. Se há resultados penalmente desvalorados importantes fora do âmbito de previsibilidade, ainda há espaço para propor uma responsabilidade penal? Cabe 10
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Em relação aos estratos com os quais as AIs são classificadas, temos a primeira geração identificada com o termo inteligência artificial estreita, que define a capacidade de realizar tarefas específicas, mas já existe o prognóstico em uma segunda geração, denominada inteligência artificial geral , na qual supõe-se que as máquinas serão capazes de raciocinar, planejar e resolver autonomamente problemas além de sua programação e um terceiro, chamado superinteligência artificial, onde poderão alcançar o autoconhecimento e o desenvolvimento de habilidades científicas e sociais. Ver KAPLAN, Andreas y HAENLEIN, Michael. “Siri, Siri, in my hand: Who’s the fairest in the land? On the interpretations, illustrations, and implications of artificial inteligence”, in Business Horizons 62, nº 1. Indiana: Kelley School of Business-Elsevier, jan. /feb. 2019, p. 16). Ver também TURNER, Jacob. Robot Rules. Regulating Artificial Inteligence. London: Palgrave-McMillan, 2019, especialmente pp. 28 e ss. Com uma extensa discussão sobre as perspectivas da superinteligência ver BOSTROM, Nick. Superintelligence. Oxford: oxford University Press, 2014. Beck dedicou um de seus últimos escritos a explicá-lo BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Novos conceitos para uma nova realidade. Trad. de Maria Luíza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Zahar, 2018, pp. 30-39. O termo “metamorfose digital do mundo” é utilizado na análise criminal por Hilgendorf, referindo-se a Di Fabio e Schwab em HILGENDORF, Eric. “Sistemas autônomos, inteligência artificial e robótica: uma orientação a partir da perspectiva jurídico-penal”, in Digitalização e Direito. Trad. de Orlandino Gleizer, São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 43. O argumento se refere ao seminal BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a outra modernidade. Trad. de Sebastião Nascimento, São Paulo: Editora 34, 2011. Vale notar que o funcionalismo em matéria penal não deve ser entendido da mesma forma que o funcionalismo significa em termos filosófico-sociológicos. Embora apareça alguma conexão, não há, de fato, nenhuma transposição direta. Nesse sentido, ver VIVES ANTÓN, Tomás S. . Fundamentos del Sistema Penal. 2a ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, pp. 442-443. Nesse sentido, HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit., p. 172 e JANUÁRIO, Túlio Xavier. “Veículos autônomos e imputação…cit., pp. 95-96.
estabelecer responsabilidade penal pelos resultados se, no momento da intervenção, a sua existência era completamente incerta? De fato, costuma-se considerar que o elemento subjetivo é considerado um obstáculo à responsabilidade em casos de danos causados por sistemas autônomos de A.I.15 e o problema é delimitado a partir da consideração de que o dano atribuído à máquina não consta na representação de quem a possui ou opera, fugindo da intenção e inclusive da previsibilidade. Como os resultados desvalorados penalmente podem estar fora do escopo da intenção ou previsibilidade do programador ou usuário da máquina, fala-se de uma lacuna de responsabilidade16.
2. Tentativas de solução Com o objetivo de superar a lacuna de responsabilidade, a doutrina penal majoritária – ainda pautada no funcionalismo – discute a questão, mas chegou a um beco sem saída. Por um lado, têm sido feitas tentativas para criar responsabilidade criminal para a própria A.I., reconhecendo-a como pessoa para fins penais17, por outro, propõe-se resolver os problemas a partir das estruturas dogmáticas derivadas da matriz funcionalista do risco, com resultados que não só são insuficientes como carecem de uma uniformidade mínima.
2.1. As tentativas e estabelecer uma responsabilidade da própria A.I. É possível identificar a ideia de uma personalidade jurídica eletrônica como um produto de dois impulsos distintos. O primeiro é o impulso legislativo que tem buscado estabelecer dinâmica de controle jurídico da evolução científica no âmbito da robótica; o segundo é o argumento da equivalência funcional entre personalidade humana e personalidade eletrônica, que depende de tomar como pontos de partida a concepção de ação ancorada na mecânica newtoniana e a expressão da subjetividade baseada no modelo cartesiano do cogito ergo sum. Afirma-se que “a responsabilidade criminal de uma A.I. sob um modelo de responsabilidade direta não é diferente da responsabilidade penal de um ser humano. Em alguns casos, certos ajustes são necessários, mas substancialmente, é a mesma responsabilidade penal, que se baseia nos mesmos elementos e é avaliada da mesma forma” 18. 15 16 17 18
Assim em SOUSA, Susana Aires de. “Não fui eu, foi a máquina:…cit., pp. 70-72. Assim em Idem, pp. 74. HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit., pp. 186-193. HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit.,, p. 193.
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2.1.1 Iniciativas normativas O impulso normativo de atribuição de personalidade às A.I.s19, com sua conversão em centro de imputação jurídica, já era esperado pela doutrina há algum tempo20. De fato, o Parlamento Europeu, em resolução de 16 de fevereiro de 2017, referente às recomendações à comissão europeia em matéria de legislação civil sobre robótica e A.I. apontou para a criação de um estatuto jurídico para os robôs21, ainda que tenha deflagrado uma polêmica com importantes reações contrárias. Iniciando as tratativas sobre o tema, a União Europeia publicou o guia ético de inteligências artificiais22, bem como uma política de investimentos e recomendações. O texto, de 08 de abril de 2019, apresentou lista de diretrizes para utilização da inteligência artificial sob o território europeu. Conforme tais recomendações: Uma A.I. de confiança tem três componentes, que devem ser observadas ao longo de todo o ciclo de vida do sistema: a) deve ser Legal, cumprindo toda a legislação e regulamentação aplicáveis; b) deve ser Ética, garantindo a observância de princípios e valores éticos; c) deve ser Sólida, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista social, uma vez que, mesmo com boas intenções, os sistemas de A.I. podem causar danos não intencionais.23
Após estas diretrizes genéricas, foram traçadas orientações fundamentais, no intuito de se obter a intitulada AI de confiança: Assegurar que o desenvolvimento, a implantação e a utilização de sistemas de AI satisfazem os requisitos para uma A.I. de confiança: 1) ação e supervisão humanas; 2) solidez técnica e segurança; 3) privacidade e governação dos dados; 4) transparência; 5) diversidade, não discriminação e equidade; 6) bem-estar ambiental e societal; 7) responsabilização.24
Cumpre destacar, que o mencionado guia não possuía caráter vinculativo, funcionando como mera regulamentação, para conduzir os avanços legislativos que regulariam esta tecnologia. 19
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Uma análise geral do tema aparece em BARBOSA, Mafalda Miranda. “Nas fronteiras de um admirável mundo novo? O problema da personificação de entes dotados de inteligência artificial”, in Direito digital e inteligência artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. [Mafalda Miranda Barbosa, Felipe Braga Neto; Michel César Silva e José Luiz de Moura Faleiros Júnior – Coord.], São Paulo: Foco, 2021, pp. 97 e ss. Cf. GIUFRIDA, Iria. “Liability for AI Decision-Making: Some Legal and Ethical Considerations”, in Fordham Law Review, Volume 88, Issue 2, 2019, p. 444. Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017. “59. Exorta a Comissão a explorar, analisar e considerar, na sua avaliação de impacto do seu futuro instrumento legislativo, as implicações de todas as soluções jurídicas possíveis, tais como: [...] f ) Criar um estatuto jurídico específico para os robôs a longo prazo, para que que pelo menos os robôs autônomos mais sofisticados possam ser identificados como titulares do estatuto de pessoas electrónicas responsáveis por remediar os danos que possam causar e eventualmente fazer valer a personalidade eletrônica nos casos em que os robôs tomem decisões autónomas ou em que interajam de qualquer outra forma com terceiros de forma independente”. ethics_ guidelines_ for_ trustworthy_ ai-pt_ 88008646-E664- D76A- BD4DC4524E29CCD2_ 60435. pdf ethics_ guidelines_ for_ trustworthy_ ai- pt_ 88008646- E664- D76A- BD4DC4524E29CCD2_ 60435. pdf 2018, p. 2 ethics_ guidelines_ for_ trustworthy_ ai- pt_ 88008646- E664- D76A- BD4DC4524E29CCD2_ 60435. pdf. 2018. p. 3.
Posteriormente, no ano de 2021, a União Europeia legislou a inteligência artificial. Assim, foi proposta a “EU regulatory framework on artificial intelligence (A.I.)” que visa delimitar a inteligência artificial no continente. O mencionado texto teve como escopo definir: a. Regras harmonizadas para a colocação no mercado, a colocação em serviço e a utilização de sistemas de inteligência artificial («sistemas de A.I.») na União; b. Proibições de certas práticas de inteligência artificial; c. Requisitos específicos para sistemas de A.I. de risco elevado e obrigações para os operadores desses sistemas; d. Regras de transparência harmonizadas para sistemas de A.I. concebidos para interagir com pessoas singulares, sistemas de reconhecimento de emoções e sistemas de categorização biométrica, bem como para sistemas de A.I. usados para gerar ou manipular conteúdos de imagem, áudio ou vídeo; e. Regras relativas à fiscalização e vigilância do mercado.25
Como visto, há evidente objetivo de delimitação do risco proibido na regulação da A.I., visando identificação de responsáveis pela inobservância de deveres de cuidado, nos casos nos quais o risco social pode se consubstanciar em dano. Não obstante, a regulamentação aqui analisada ainda deixa a lacuna das máquinas que possuem capacidade própria de aprendizado e conduta (imprevisíveis), de modo que a matriz funcionalista de conformação do risco permitido não indica saída dogmática consistente, como se demonstrará à frente.
2.1.2. A equivalência funcional entre humanos e máquinas Desde um ponto de vista funcionalista, argumenta-se que as A.I. atingiram níveis de desenvolvimento que permitem identificá-las como subsistemas sociais capazes de promover a estabilização das expectativas da comunidade, pelo que, constituem-se em equivalentes funcionais capazes de reunir os elementos objetivos e subjetivos necessários para comportar imputação jurídico-penal. Se é assim, resultaria possível afirmar que as máquinas raciocinam – tal como um ser humano – o que levaria a que se lhes fosse reconhecido o merecimento de equivalente tratamento jurídico. Afirma-se que a evolução das AIs gerou nelas características humanas como comunicação, internalização do conhecimento, capacidade de aprendizado, to25
Proposal for a REGULATION OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL LAYING DOWN HARMONISED RULES ON ARTIFICIAL INTELLIGENCE (ARTIFICIAL INTELLIGENCE ACT) AND AMENDING CERTAIN UNION LEGISLATIVE ACTS, EUROPEAN COMISSION, Brussels, 21. 4. 2021, disponível em https:// digital- strategy. ec. europa. eu/ en/ library/ proposal- regulation- laying- down- harmonisedrules- artificial- intelligence, acesso em 24 de março de 2023, p. 43.
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mada de decisão, até criatividade e espontaneidade26. Há ainda quem se refira à exigência de autoconsciência da AI para a afirmação de sua responsabilidade 27, mas, mesmo assim, reconhece que a evolução tecnológica já está na eminência de produzi-la 28. De ser assim, resultaria possível admitir que as máquinas raciocinam de modo idêntico aos seres humanos, pelo que, deveriam merecer igual tratamento jurídico. Alguns países já chegaram a reconhecer a personalidade jurídica das AIs. Em 2017, na Arábia Saudita e Japão, robôs foram considerados sujeitos de direito. Inclusive, a mencionada situação jurídica trouxe incoerências sistêmicas no ordenamento jurídico daquele país.29 Sob esse ponto de vista, é feita uma comparação indevida entre máquinas, pessoas físicas e jurídicas30, concluindo que os robôs dotados de inteligência artificial são capazes de realizar tanto o actus reus quanto a mens rea exigida para a responsabilização criminal, ou seja, seriam capazes de atender aos requisitos objetivos e subjetivos da imputação31. Para apoiá-lo, do ponto de vista da realização do fato (actus reus), identifica-se na AI uma capacidade de ação que corresponde à capacidade de produção de um movimento físico que produz um resultado, referido, portanto, a ação como dado ontológico32. Por outro lado, no que se refere à mens rea, admitida a suposição cartesiana de que a identidade humana se estabelece a partir do ato de pensar ou raciocinar, tem havido argumentos a favor do desenvolvimento da responsabilidade penal das máquinas, em razão de uma suposta “capacidade de pensar”. 26
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Cf. HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit., p. 176 e LOH, Wulf y LOH, Janina. “Autonomy and Responsibility in hibrid systems:…cit., p. 38. Por isso, críticas ao modelo de autorresponsabilidade da AI baseado em argumentos relacionados à consciência, em molde cartesiano, como os desenvolvidos em SOUSA, Susana Aires de. “Não fui eu, foi a máquina…cit., p. 77, não são suficientes para afastar tais tentativas. GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”…cit., pp. 44-45. Idem, p. 45. YASTREBOV, O. e ATABEKOV, A. Legal Status of Artificial Inteligence Across Countries: Legislation on the Move. European Research Studies Jornal, Volume XXI, Issue 4, 2018, pp. 775-776. Apontando uma semelhança equivocada JANUÁRIO, Túlio Xavier. “Veículos autônomos e imputação…cit., p. 100 e HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit.,, pp. 173-174. Embora o melhor lugar para o desenvolvimento do tema seja um estudo à parte, certamente é possível apontar que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é exatamente o oposto da responsabilidade penal dos AIs. Basta assinalar que, embora as pessoas jurídicas possam expressar linguisticamente suas intenções em suas ações (Vide, a esse respeito, BUSATO, Paulo César. Tres tesis sobre la responsabilidad penal de personas jurídicas. Valencia: Tirant lo Blanch, 2019, p. 98), embora nunca consigam produzir, por si mesmas, o movimento físico newtoniano, este é o único alcançado pelos AIs, que nada mais são do que replicadores de uma fórmula logarítmica completamente incapaz de expressar intenções linguisticamente. controle” SOUSA, Susana Aires de. “Não fui eu, foi a máquina…cit., p. 78. Nesse sentido HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit., pp. 177-178. A doutrina continua a considerar “condutas” dados ontológicos. Veja os exemplos de HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit.,, pp. 182-183 e 187. E repetem os mesmos erros básicos mesmo quando supõem “avanços” devido à adição inútil de um ou outro requisito avaliativo aos mesmos dados ontológicos. Por exemplo em GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”…cit., pp. 46-48.
A capacidade de aprender autonomamente com o ambiente e de decidir a partir disso tem sido um argumento frequente na doutrina para justificar o desenvolvimento de um ‘pensamento’ de AI que a aproximasse do humano, algo que, afinal, é o objetivo de todas as formas de AI. De fato, os autores que defendem a capacidade subjetiva das AI costumam reduzir a exigência da dimensão subjetiva da capacidade de responsabilização criminal ao “conhecimento”, definido como “recepção sensorial de dados factuais e compreensão de tais dados”33 e exatamente a ideia de que AIs são capazes de aprender com o ambiente e reagir de forma a evitar determinados comportamentos, o que faz com que a doutrina34 aponte para uma equivalência dessa reação ao fundamento da culpabilidade, com base na capacidade de agir de outro modo. Assim, afirma-se que “do ponto de vista funcional, a culpabilidade é atribuída à pessoa identificada como causadora responsável do conflito social sedimentado no ato punível”35. O problema claríssimo que existe aqui é de fundo e tem a ver com a compreensão do próprio termo inteligência. Em primeiro lugar, como bem afirmou Max Tegmark36, é curioso ver como os mesmos pesquisadores inteligentes de AI não chegam a um consenso sobre o que define a inteligência. A armadilha é cair em reducionismos que consistem em comparar a inteligência com as capacidades de lógica, compreensão, planejamento, conhecimento emocional, autoconsciência, criatividade, resolução de problemas ou aprendizado. Nada disso pode traduzir totalmente a inteligência, na medida em que socialmente a linguagem reconheceu outra dimensão da inteligência, denominada inteligência emocional37. De fato, o próprio termo inteligência artificial, visto mais de perto, deveria ser suficiente para fazer perceber que se trata um engano, um artifício, uma emulação incapaz de alcançar equivalência. 33 34
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Assim HALLEVY, Gabriel. “The Criminal Liability of Artificial Intelligence Entities…cit., p. 188. Assim, por exemplo, GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”…cit., p. 42 afirmam que “O ser humano assume culpa de natureza criminosa quando comete delito de forma dolosa ou imprudente e, com isso, reconhece a injustiça de seu comportamento e pode absolutamente evitar isso. No entanto, como vimos, os agentes inteligentes também são capazes de aprender e, pelo menos em sentido figurado, agir de forma autônoma”. GLESS, Sabine y WEIGEND, Thomas. “Agentes inteligentes e o Direito penal”…cit., p. 50. “Minha esposa e eu recentemente tivemos a sorte de participar de um simpósio sobre inteligência artificial organizado pela Fundação Nobel sueca, e quando um painel de pesquisadores de AI foi solicitado a definir inteligência, eles argumentaram sem chegar a um consenso. Nós nos divertimos com isso: não havia acordo sobre o que é inteligência, mesmo entre pesquisadores de inteligência inteligentes! Assim, ficou claro que não existe uma definição ‘correta’ prevalecente de inteligência. Em vez disso, muitos outros competiram, incluindo capacidade de lógica, compreensão, planejamento, conhecimento emocional, autoconsciência, criatividade, resolução de problemas e aprendizado. TEGMARK, Max. Life 3. 0. London: Penguin Books, 2017, p. 49. Dificuldades com isso são descritas de forma semelhante em TURNER, Jacob. Robot Rules…cit., pp. 7-22. Ver, sobre isso, GOLEMAN, Daniel. Emotional Intelligence. New York: Bantam Books, 1995; BRANCO, Alexandra. Para Além do QI: Uma Perspetiva Mais Ampla de Inteligência. Coimbra: Quarteto, 2004 e KENDEL, Eric R.; SCHWARTS, James H.; JESSEL, Tomas M. Fundamentos da Neurociência e do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1997.
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2.2. A fragmentação das proposições da dogmática funcionalista Muitos optaram por resolver os problemas sem renunciar a uma base teórica que ancora a responsabilidade penal em uma censura moral e em um sistema de imputação que privilegia as estruturas lógico-objetivas sobre os princípios gerais do direito penal. Quase imediatamente, ao perceber o resultado desvalorado – que, nestes casos, os mais chamativos costumam ser os de morte ou lesões corporais -, passa-se à discussão sobre os critérios de distribuição de responsabilidade. Em nosso entorno dogmático, discutem-se os dilemas entre salvar a vida ou a integridade física de passageiros ou terceiros participantes do tráfego38; se o programador e os participantes na produção do veículo podem socorrer-se de causas de justificação39; casos de conflito de deveres40; responsabilidade pelo produto41e limites de risco permitido42. No ambiente do common law, também é discutido o aspecto utilitarista dos trolley case dilemmas43, onde se discute o que deve ser constar do programa da AI de veículos autônomos nas situações de conflito de deveres e suas variantes. Há duas notas distintivas claríssimas nessas elucubrações teóricas: a primeira é a mais absoluta artificialidade (com o perdão do trocadilho) das primeiras propostas, que não terminam de encaixar bem na estrutura carente da condição de “personae” da AI; a segunda é a soberba de insistir na preservação de um esquema dogmático herdeiro de estruturas falidas, completamente incapaz de resolver os casos com um mínimo de uniformidade, clareza e justiça.
3. Revisitando o problema de um ponto de vista alternativo A crítica à proposta de apuração da responsabilidade criminal da própria AI parte do fragilíssimo argumento utilitarista de que sua admissibilidade con38
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É o que discutem, por exemplo, HÖRNLE, Tatjana y WOHLERS, Wolfgang. “Trolley Problem revisitado: como devem ser programados os veículos autônomos no dilema vida-contra-vida? ”. in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 123-153 e JANUÁRIO, Túlio Xavier. “Veículos autônomos e imputação…cit., pp. 102-117. Cf. WEIGAND, Thomas. “Direito de necessidade para carros autônomos? ”…cit., pp. 109-122 e COCA VILA, Ivó. “Coches autopilotados en situaciones de necesidad. Una aproximación desde la teoría de la justificación penal”, in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 155-189. Ver HILGENDORF, Eric. “Direito e máquinas autônomas. Um esboço do problema”. in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 65-86 e GRECO, Luís. “Veículos autônomos e situações de colisão”, in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 191-201. ESTELLITA, Heloisa y LEITE, Alaor. “Veículos Autônomos e Direito penal: uma introdução”. in Veículos autônomos e Direito penal. [Heloísa Estellita y Alaor Leite - Org.] São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 33. Por exemplo, JANUÁRIO, Túlio Xavier. “Veículos autônomos e imputação…cit., pp. 120 e ss. Ver LOH, Wulf y LOH, Janina. “Autonomy and Responsibility in hibrid systems:…cit., pp. 38-42.