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Copyright© 2019 by António José Avelãs Nunes Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

António José Avelãs Nunes

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

OS CAMINHOS DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ N923c Nunes, António José Avelãs Os caminhos da social-democracia europeia [recurso eletrônico] / António José Avelãs Nunes. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2019. recurso digital ; 1 MB Formato: ebook Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-9477-375-3 (recurso eletrônico) 1. Ciência política. 2. Europa - Política e governo. 3. Europa - Condições econômicas. 4. Economia Keynesiana. 5. Democracia. 6. Capitalismo. 7. Socialismo. 8. Livros eletrônicos. I. Título. 19-58949 CDD: 321.8 CDU: 321.7(4) Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135 05/08/2019 12/08/2019 É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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Teoria

São Paulo 2019


PREFÁCIO

(A)OS CAMINHOS DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA António José Avelãs Nunes, o notável Professor Catedrático de Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Nota Prévia à obra Do capitalismo e do Socialismo, publicada em Coimbra pela revista Vértice e pela Atlântida Editora, nos idos de 1972, comunica aos leitores que a decisão de retomar a análise, então mais detalhada, de alguns pontos que versavam sobre questões em discussão afloradas no debate com o Prof. Jan Tinbergen (Prêmio Nobel de Economia em 1969), a par da sua importância, situava-se “apenas no animado propósito de ‘ser útil aos leitores [da Revista Vértice], no esforço de clarificação ideológica em que estarão empenhados’” (p. V-VI). Quase meio século depois, quando se apresenta nova oportunidade de mais esta edição, Avelãs Nunes mantém, para o alento de todos, seu animado propósito de outra vez mais “ser útil aos leitores”. Se outrora se considerava tão só um jovem desconhecido, sua impactante e relevante trajetória acadêmica o elevou ao júbilo do reconhecimento público, por indiscutível mérito, testemunhado pelas dezenas de obras escritas e publicadas. De toda sorte, a irrefutável comprovação de seu emérito saber se exprime notadamente no que considerou como lições de humildade científica, as quais teriam calado fundo no seu espírito universitário – fazendo referência agora sobre o então consagrado professor recém-galardoado com o Prêmio Nobel, Jan Tinbergen –, devidamente introjetadas, reproduzidas e disseminadas como marca indelével em cada uma de suas obras. A vida, certamente, pode lhe ter sido pródiga, mãe generosa, como confessado. Mas o conhecimento não lhe fora uma dádiva. Nem fora agraciado por alguma benevolência com sua extraordinária capacidade de dar lições, quer em sala ou nos livros, ministradas com máxima clareza, extrema objetividade e excelente didática, sem prejuízo da profundidade e da crítica.


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Suas notáveis qualidades são frutos de árduo e constante labor: na pesquisa como investigador ou nos estudos da história das ideias econômicas e do pensamento econômico. Reverenciado pela sapiência e erudição, ao mesmo tempo temido pelo rigor e exigência. O tratamento era mantido em equidade, pois a mesma dedicação e seriedade que traçam sua conduta como professor, são exigidas de cada um dos seus alunos. Em cada ato, aula ou escrito, comparece o compromisso renovado em pensar, de maneira crítica, para propor um mundo melhor. Sua humildade enaltece a sapiência. Na Nota Prévia que acompanha a presente edição, o reconhecimento que veio em ato apresentado pela via do agradecimento, ao Prof. Jan Tinbergen, estaria a pagar uma (suposta) dívida. No entanto, atribuir créditos acadêmicos não implica dívidas, embora testemunhe o caráter prenhe de retidão de conduta. A decisão de renovar seus escritos e compartilhar com os leitores o saber, para além da face altruísta do seu ser, traduz em certa medida a paciência própria dos docentes. Afinal, ser (e não estar) professor é mais do que uma função: é um lugar, de todo privilegiado, de quem se permite repetir mais e mais, metido sempre na sua fala, lições capturadas na solidão dos estudos, a todos os integrantes da sociedade contemporânea que não aprenderam bem e se deixam derrotar, abandonando as promessas nunca cumpridas de um Estado de Bem-estar, democrático no projeto, social no fundamento, jurídico na regulamentação e devedor da maioria da população. Aprender, sempre e para sempre. Trata-se de um círculo virtuoso que se completa; não obstante, voltar à obra do passado não é repetir as mesmas palavras, senão renovar o conteúdo, ressignificando-o. Os descaminhos da social-democracia europeia pode ser visto, neste aspecto, como uma obra em síntese, de glória acadêmica do pensamento crítico do autor, já exposto em tantos outros registros. O livro como um todo é obra-mestra. O autor é um encantador e a leitura profícua e instigadora. Todos (com)provarão. Por ora tão somente alguns pontos que aqui seguem em pinceladas, merecedores de destaque com o único escopo de instigar a leitura, porquanto corroboraram o impacto e importância da obra, hoje. Ao dialogar com Avelãs Nunes na leitura desta obra de pronto abre-se uma janela de oportunidades para melhor compreender os (des)caminhos

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tomados pela social-democracia europeia. Ao tempo da publicação na década de 70, como ressalta o autor, o Estado Social, que era a principal bandeira das sociais-democracias, vinha criticado pela esquerda marxista por ser considerado um expediente para salvar o capitalismo, apresentado como uma “solução de compromisso” ou “evolução na continuidade”. Como uma reforma “gatopardesca”, mudar para permanecer tudo igual, “mudar alguma coisa para salvar o essencial”. Mantinha-se o propósito de “atenuar as contradições do capitalismo, ‘anestesiar os contestatários e afastar os riscos de roturas revolucionárias”. Pautas socialistas e sociais-democratas não são evoluções de um capitalismo ou a confirmação de uma “democratização do capital”. Neste trilhar, a social-democracia europeia, no início dos anos 1970, exprimia caráter não revolucionário da teoria keynesiana – nem anti-capitalista, nem socialista –, que se constituía apenas como uma solução para atenuar as contradições do capitalismo e assim mantê-lo na sua essência. Seria o “único meio de evitar uma completa destruição das instituições econômicas atuais e a condição de um feliz exercício da iniciativa privada”. Nunca se chegou a um socialismo propriamente dito na Europa: este específico modelo de produção não se fez realidade. Trata-se de um sistema econômico e social caracterizado pelo pertencimento à coletividade ou ao Estado dos meios de produção (propriedade social dos meios de produção), como muito bem explanado por Avelãs Nunes em Os sistemas económicos (Coimbra: Almedina, 1994, p. 212 e seguintes). Desta forma, pressupõe a própria negação do capitalismo, cuja essência é a propriedade privada dos meios de produção e o recurso ao trabalho assalariado. Uma breve análise histórica europeia comprova que os partidos socialistas e sociais-democratas e seus programas reformistas cingiramse a proceder reformas graduais na sua estrutura; e nos processos de nacionalização houve-se por bem colocar o setor empresarial do estado ao serviço dos lucros privados. Eis o sucesso do capitalismo europeu do pós-guerra. A teoria da convergência dos sistemas, um misto revelador de um capitalismo socializado, é mais um puro discurso ideológico. A “revolução dos gerentes”, detentores de um pretenso poder sem propriedade, findou; e as grandes empresas mostram a sua fidelidade de sempre aos interesses dos grandes acionistas, reforçando o objetivo de angariar lucros elevados, ainda


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que para tal seja necessário recorrer à fraude em grande escala.

estado fascista, sem máscaras”.

Assim se seguiram os escândalos da “nova economia’, exemplos de fraudes em grande escala e práticas criminosas (março de 2000), como se depreende do ocorrido na ENRON, WorldCom, Tyco, que desvelam o mito da eficiência dos mercados financeiros regulados.

É imperioso notar, como ressalta o autor, que os partidos da social-democracia europeia abandonaram a sua matriz ideológica originária e, dando as costas ao legado keynesiano, presentificaram a conversão ao neoliberalismo. Passa-se a adotar políticas de privatização dos serviços públicos, a impor a marginalização dos sindicados, a proceder reformas precarizantes dos mercados de trabalho, flexibilizadoras dos direitos dos trabalhadores e destruidoras dos sistemas de seguridade social. Os tratados da União Europeia seguem o manual do conservadorismo (do neoliberalismo mais radical), deixando à margem qualquer compromisso com o emprego.

Desde a publicação de Do capitalismo e do socialismo (1972), “mudaram-se os tempos e mudaram-se as vontades”: a social-democracia europeia abandonou os trabalhadores e renunciou à luta de classes, tendo-se transformado numa esquerda supérflua. O resultado da neoliberalização da social-democracia, como ressalta o autor, é a substituição do Consenso Keynesiano pelo Consenso de Washington, assumindo o capital financeiro a supremacia sobre o capital produtivo e o protagonismo na história do pensamento econômico. Inverte-se o sentido das políticas públicas, as quais passam a ser executadas em favor do capital. Aliás, o combate ao pensamento neoliberal sempre encontrou espaço profícuo nos escritos de Avelãs Nunes, e é fonte imprescindível para quem queira tratar do tema: O Keynesianismo e a Contra-revolução Monetarista, Coimbra, 1991 (separata do Boletim de Ciências Económicas), livro reeditado em 2016 (Lisboa, Editora Página a Página, com uma Nota de Apresentação do autor); Neo-liberalismo, globalização e desenvolvimento econômico (Coimbra: Coimbra Editora, 2002); Neoliberalismo e direitos humanos (Lisboa: Editorial Caminho, 2003); A Constituição europeia: a constitucionalização do neoliberalismo (Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007); ou, mais recentemente, em O neoliberalismo não é compatível com a democracia (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016). Em verdade, em se tratando de neoliberalismo, nunca é demais se posicionar contrariamente. Apresentam-no como um “sistema libertário, que dispensa o estado”, acarretando regressão das “concepções atomísticas da sociedade”, em que se pressupõem indivíduos livres e iguais em direitos na busca de um bem comum. Como adverte o autor, esta é uma postura “amiga do capital”, uma concepção que subjaz à “ditadura do grande capital financeiro”. Há de se agregar, então, o esvaziamento da democracia e a prevalência do mercado: “o estado capitalista pode vestir-se e armar-se de novo como

Políticas de austeridade, que minam o estado social, seguem os passos dos argumentos falaciosos da insustentabilidade financeira e acarretam o empobrecimento dos povos. Por outro lado, desconsideram constituições e tratados internacionais. A crise estrutural do capitalismo não é nem a crise do neoliberalismo, nem a da deficiência da regulação, tampouco a de costumes que decorre da falta de ética do setor financeiro, ou a do excesso dos mercados: é uma opção política, tomada em tempos de parca legitimidade democrática. A indagação que introduz o último capítulo: “O que fazer com esta Europa?” é, a bem da verdade, a pergunta que todos, cidadãos do mundo, fazem a si mesmos, hoje. O que fazer com este mundo? Que Europa é esta ou que Brasil é este? Que países são estes em que partidos de extrema-direita são levados ao êxito eleitoral, partidos socialistas e sociais-democratas são eliminados? Poderia alguém afirmar que mais importante do que as respostas são as perguntas, se esse alguém, desde que esse alguém, não conhecesse o fenômeno que leva o nome António José Avelãs Nunes. Todos que um dia tiveram a felicidade de conhecer seu pensamento, sua pessoa, sua obra, têm absoluta convicção de que somente ele teria as respostas corretas. Cabe agora ao leitor a descoberta. Quem ler, saberá. É como se fosse um premio. Das utopias Se as coisas são inatingíveis...ora! Não é motivo para não querê-las...


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Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas! Mario Quintana

Aldacy Rachid Coutinho

NOTA PRÉVIA

Profa. Dra. Titular de Direito do Trabalho da UFPR, aposentada. Professora da UNIVEL e da Faculdade Damas, Recife

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Prof. Dr. Titular de Direito Processual Penal da UFPR, aposentado. Professor do PPGD-PUCRS e da Faculdade Damas, Recife

Em finais de 2017, concretizou-se a hipótese de sair no Brasil uma 2ª edição de um livrinho meu que viu a luz do dia, pela primeira vez, nos idos de 1972: Do Capitalismo e do Socialismo, Coimbra, Vértice/Atlântida Editora, 1972. Publicado no Brasil em 2008 pela Fundação Boiteux (Universidade Federal de Santa Catarina), o livro foi editado de novo em Portugal pela Editora Página a Página (2017) e reeditado no Brasil pela Livraria do Advogado Editora (Porto Alegre, 2018). Este livro foi o feliz resultado (feliz para mim, claro) de um debate entre mim e o Prof. Jan Tinbergen, recém-galardoado com o Prémio Nobel da Economia, então atribuído pela primeira vez. A vida, tantas vezes madrasta, é às vezes pródiga, como mãe generosa. Como era natural, Tinbergen era um economista de renome mundial. Apesar disso, dispôs-se a discutir os seus pontos de vista de professor consagrado com um jovem desconhecido. Foi, para mim, uma lição de humildade científica que calou muito fundo no meu espírito de universitário em início de carreira. Na altura, não agradeci devidamente ao Prof. Jan Tinbergen esta lição. Ainda que tarde, quero fazê-lo agora, como quem paga uma dívida. Tinbergen mostrou também que não era um dogmático, situando-se a anos luz do dogmatismo dos sociais-democratas atuais, convencidos de que são (juntamente com a direita, com a qual partilham os pontos de vista essenciais em matérias de economia e de sociedade) os ‘donos’ da verdade verdadeira, acima das ideologias, para a qual não há alternativa. Velho e ilustre militante social-democrata, entendeu que valia a pena confrontar as suas ideias com o Sr. A. A.. Assim tratou Tinbergen o jovem marxista que ele não conhecia de parte nenhuma, porque foi assim que assinei o primeiro texto da nossa ‘conversa’ (uma tentativa de evitar a censura, que andava a cortar pequenos textos meus destinados à Vértice). Interrogando-me sobre a oportunidade de mais esta edição de um livro


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já com vida longa (45 anos!) e com as marcas do tempo bem presentes, pareceu-me que fazia sentido a reedição do livro e decidi autorizá-la. Porque, nas condições atuais das nossas sociedades, a democracia não é possível sem o estado social. E por isso mesmo – corretamente, a meu ver – a luta pelo estado social está hoje no primeiro plano das lutas em que a esquerda está comprometida, contra o neoliberalismo e as políticas neoliberais, em defesa da democracia. Tenho para mim que a luta pelo estado social se identifica com a luta pela democracia e que dela não podem desertar as pessoas e as organizações de esquerda. Mas esta minha certeza não invalida a caraterização que faço do estado social como uma solução dentro do capitalismo, uma solução que não põe em causa a lógica do capitalismo. Na perspetiva do marxismo e da luta pelo socialismo, considero, pois, fundamental que se mantenha aberta a discussão sobre o que é o capitalismo e o que é o socialismo. Porque o estado social está longe de ser o socialismo. A reflexão sobre a oportunidade desta nova edição acabou por me levar também a questionar-me sobre se o debate que então teve lugar seria possível hoje. Pareceu-me importante partilhar com os leitores esta reflexão, pelo que resolvi escrever o texto que serviu de Posfácio à edição brasileira de 2018, no qual concluo que a natureza e o estilo do debate que tive o privilégio de manter com Jan Tinbergen no início dos anos 1970 não poderiam transportar-se para os dias de hoje. Esse Posfácio é o ponto de partida do texto que agora submeto aos leitores (uma primeira versão (bastante mais curta e diferente desta) foi publicada no Boletim de Ciências Económicas, Volume LXI-2018 e na Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico, 2019), por me parecer que seria interessante partilhar com eles uma reflexão mais alargada (embora parcial e incompleta) sobre um tema atual, que creio ser necessário e urgente discutir: os caminhos da social-democracia na Europa, após 2º Guerra Mundial.1 Em certa medida, é uma reflexão sobre os perigos da democracia na Europa, nesta Europa alemã, 1.

Considero indispensável, para a definição de uma estratégia global de esquerda na Europa o estudo do complexo processo que conduziu à ‘dissolução’ das forças de esquerda na França, na Itália e na Espanha. Nestes países, o processo de desagregação dos partidos historicamente ligados ao movimento operário e às lutas dos trabalhadores envolve também os partidos comunistas (os três maiores partidos comunistas da Europa capitalista, o PCI, o PCF e o PCE), que abandonaram o marxismo-leninismo e perderam a sua natureza de partidos revolucionários, contaminando igualmente o movimento sindical, que perdeu o seu caráter de sindicalismo de classe. A abordagem desta problemática não cabe, porém, na economia deste texto.

ANTÓNIO AVELÃS NUNES – NOTA PRÉVIA 13

nesta Europa de Vichy, que, rendida aos dogmas do “culto europeísta”, deixou de lutar, rendendo-se ao fascismo de mercado, porque (cito Joshcka Fisher) “ninguém pode fazer política contra os mercados.” Creio que vivemos na Europa um tempo de resistência. Todos temos o dever de falar claro, sobretudo com os que estão mais próximos de nós. Só assim podemos assumir, de forma consciente, as nossas responsabilidades. Certos que estamos – todos, creio eu – de que “o sono da razão gera monstros.” Penso que vale a pena partilhar estas reflexões com os leitores brasileiros. Por isso me agrada tanto a oportunidade desta edição (alterada relativamente à edição portuguesa), que fico a dever à afetuosa amizade aos meus Colegas e meus Amigos Aldacy Rachid Coutinho e Jacinto de Miranda Coutinho, que quiseram honrar-me fazendo o prefácio que muito valoriza este meu livrinho. Bem hajam, do fundo do coração. Coimbra, março/2019

António José Avelãs Nunes


SUMÁRIO

PREFÁCIO - (A)OS CAMINHOS DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 NOTA PRÉVIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 I - DA SOCIAL-DEMOCRACIA DO INÍCIO DOS ANOS 1970 À ESQUERDA SUPÉRFLUA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 II - AS CRISES DO PETRÓLEO, A CONTRA-REVOLUÇÃO MONETARISTA E O CONSENSO DE WASHINGTON . . . . . . . . . . . . 31 III - OS SOCIALISTAS EUROPEUS RENEGAM KEYNES . . . . . . . . . 47 IV - AS RESPONSABILIDADES DA SOCIAL-DEMOCRACIA NO DÉFICE DEMOCRÁTICO DA CONSTRUÇÃO DA ‘EUROPA’: DE ROMA A MAASTRICHT, DA ‘CONSTITUIÇÃO EUROPEIA’ AO TRATADO DE LISBOA E AO TRATADO ORÇAMENTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 V - A CONVERSÃO DOS PARTIDOS SOCIALISTAS EUROPEUS AO NEOLIBERALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 VI - A SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA APOIOU AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 VII - O QUE FAZER COM ESTA ‘EUROPA’? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 VIII - “O FUTURO NÃO PODE SER UMA CONTINUAÇÃO DO PASSADO” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 ÍNDICE DE ASSUNTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205


I

DA SOCIAL-DEMOCRACIA DO INÍCIO DOS ANOS 1970 À ESQUERDA SUPÉRFLUA 1.1. – O livro que refiro na Nota Prévia foi publicado num tempo em que a esquerda marxista criticava o estado social (então a grande bandeira da social-democracia europeia) porque ele era um expediente para salvar o capitalismo, como, de resto, Keynes tinha reconhecido e sublinhado. Na leitura dos autores marxistas, o estado social era encarado como uma solução de compromisso, uma “evolução na continuidade” (como o classificava então Joaquim Gomes), que visava atenuar as contradições do capitalismo, ‘anestesiar’ os contestatários e afastar os riscos de roturas revolucionárias. Naquela altura, como já antes, andava um espetro pela Europa… “Os dez dias que abalaram o mundo” (John Reed) abalaram o imperialismo, gravemente ferido pelos efeitos da “guerra que pôs fim às guerras.” O acolhimento favorável da Revolução de Outubro por parte dos trabalhadores europeus e das suas organizações de classe justifica o alerta do Primeiro-Ministro inglês David Lloyd George, em carta de 25.3.1919, dirigida a Georges Clémenceau (Primeiro-Ministro da França) e a Woodrow Wilson (Presidente dos EUA): “Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução. (…) Toda a ordem vigente, nos seus aspectos políticos, sociais e económicos, está a ser posta em causa pela massa da população de um extremo ao outro da Europa.” Na América, os receios eram os mesmos, num tempo em que, segundo o retrato de Averell Harriman, “os bancos estavam fechados e gente de bem vendia maçãs na rua.” A Grande Depressão de 1929-1933 veio agravar ainda mais a situação: “em 1932 – reconhece Truman nas suas Memórias – o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adoptasse um outro sistema.” Neste quadro, a revolução keynesiana (a General Theory foi publicada em 1936) dá corpo à velha máxima segundo a qual, em certas condições, é necessário mudar alguma coisa para salvar o essencial. Reconhecendo a


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ameaça crescente das crises cíclicas (“uma situação de pleno emprego é tão rara como efémera”), Keynes defendeu a necessidade de reduzir o número e a intensidade delas. Este é o objetivo das políticas de redistribuição do rendimento, que Keynes considera essenciais para assegurar alguma estabilidade da procura efetiva (a procura capaz de comprar os bens produzidos para serem vendidos com lucro). Daí a prioridade atribuída pelas políticas keynesianas ao combate ao desemprego involuntário e à promoção do pleno emprego, à redução da desigualdade dos rendimentos (que era socialmente injusta e economicamente nociva) e à manutenção de algum rendimento para aqueles que caíssem na situação de desemprego involuntário, de doença ou de velhice. Os fundamentos keynesianos do Welfare State são de natureza essencialmente económica, sem invocar princípios doutrinais de filosofia social. O famoso Relatório Beveridge (1942) apontava como objetivos fundamentais do Welfare State o combate aos cinco gigantes: o desemprego, a pobreza, a doença, a ignorância e a insalubridade. Para assegurar que o estado capitalista poderia cumprir o seu objetivo último de salvar o capitalismo, Keynes defendeu a necessidade de uma certa coordenação pelo estado da poupança e do investimento de toda a comunidade, o que exigia, a seu ver, “uma ampla expansão das funções tradicionais do estado”; “uma ação inteligentemente coordenada” para garantir a utilização mais correta da poupança nacional; a “existência de órgãos centrais de direção”; a adoção de “medidas indispensáveis de socialização”, de uma certa socialização do investimento. “A intensificação das crises cíclicas e o crescente caráter crónico do desemprego mostraram que o capitalismo privado está em declínio como meio de resolver o problema económico” escrevia Keynes em 1939: “nas condições atuais, nós precisamos, se queremos prosperidade e lucros, (…) de muito mais planeamento central do que aquele que temos presentemente.” Estas notas mostram que não é correto, a meu ver, confinar Keynes às interpretações redutoras do keynesianismo como “uma hábil política orçamental e monetária” capaz de levar as economias capitalistas a libertar-se das suas contradições, continuando a funcionar segundo os cânones do modelo liberal (fala-se de “keynesianismo bastardo”, de “keynesianismo sem lágrimas”, de “keynesianismo hidráulico”).

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Mas mostram também que a revolução keynesiana não foi (nem pretendeu ser) uma revolução anti-capitalista e muito menos uma revolução socialista. As novas responsabilidades cometidas ao estado capitalista e os novos instrumentos de política colocados à sua disposição eram considerados (no Cap. XXIV da General Theory) “o único meio de evitar uma completa destruição das instituições económicas atuais e a condição de um feliz exercício da iniciativa privada.” O objetivo de Keynes foi o de reforçar o estado capitalista, considerado uma instância política neutra, acima das classes. O estado keynesiano (o estado social) integrou-se, como não poderia deixar de ser, na lógica do capitalismo, atuando como fator de ‘racionalização’ e de estabilização, como fator de segurança e como anestésico das tensões sociais, num quadro marcado pelas reivindicações dos trabalhadores e pela emulação da URSS e da comunidade socialista. Keynes nunca teve qualquer ligação com o Partido Trabalhista (esteve próximo do Partido Liberal, com o qual colaborou). No entanto, viria a ser adotado como ideólogo da social-democracia europeia, que, após a 2ª Guerra Mundial, fez do estado social de matriz keynesiana a sua bandeira, abandonando a luta pelo socialismo. O “capitalismo social” transformou-se, por um golpe de mágica, em “socialismo democrático”, reduzido este a um indefinido “socialismo do possível” (título de um livro coordenado por François Mitterrand, Paris, Seuil, 1970), que mais não é, afinal, do que o capitalismo possível nas (ou o capitalismo exigido pelas) circunstâncias do tempo, um capitalismo que se limita, como bem observa Henri Janne, a “transformar os fins maiores do socialismo em meios de realizar outros fins, isto é, a manutenção do lucro, da iniciativa privada, dos grupos privilegiados.” Nos anos 1950, a maior ofensa que se podia fazer aos sociais-democratas era considerá-los simples gestores do capitalismo. Mas, com a implantação do estado social, os partidos socialistas e sociais-democratas da Europa enterraram de vez o seu projeto de ir construindo uma sociedade socialista, assumindo progressivamente aquela que é hoje, diria, a sua tese oficial: os socialistas europeus são defensores do capitalismo na esfera da produção, declarando-se socialistas no que toca à distribuição do rendimento. Os equívocos de há meio século desapareceram: a social-democracia europeia não quer mais do que gerir lealmente o capitalismo, no quadro da economia social de mercado (ou economia de mercado regulada). Fica, porém, uma contradição insanável: como pode ser socialista quem


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defende o capitalismo como modo de produção? Por outro lado, esta doutrina oficial da social-democracia europeia representa, a meu ver, uma equação teórica e política tão difícil de resolver como a da quadratura do círculo. Com efeito, sabemos, desde os fisiocratas, que a estrutura de classes da sociedade e as relações de produção que lhe são inerentes são os factores determinantes da distribuição da riqueza e do rendimento. No quadro do capitalismo, a lógica da distribuição não pode ser antagónica da lógica inerente às relações de produção capitalistas. Como é óbvio. 1.2. – Com o regresso da paz à Europa, as nacionalizações e a planificação pública da economia impuseram-se desde logo por razões pragmáticas: acreditava-se que a reconstrução só poderia ser levada a cabo por uma instância central que controlasse a poupança disponível e decidisse sobre a prioridade dos investimentos. Daí a inevitabilidade da nacionalização da banca e dos seguros. Mas também a inevitabilidade da transferência para o estado dos setores estratégicos (energia, transportes, minas, construção naval, siderurgia, etc.), nos quais era preciso arrancar praticamente do zero. Por toda a Europa, as nacionalizações foram também uma exigência das forças de esquerda, fortalecidas pela sua participação nos movimentos da Resistência: a verdade é que, nas eleições realizadas no final da Guerra, os partidos da esquerda obtiveram na França quase 75% dos votos (o PCF foi o partido mais votado nas duas eleições a seguir à Guerra) e o Partido Trabalhista ganhou as eleições no Reino Unido, apesar de Churchill ter dirigido a resistência dos britânicos à Alemanha nazi. Por outro lado, setores significativos da Democracia Cristã defendiam, na Itália e na Alemanha, posições bastante à esquerda, falando-se de “socialismo de responsabilidade cristã.” Em dezembro/1945, até um autor como Gustav Radbruch considerava “evidente que a reconstrução da Alemanha só será possível na base de uma economia organizada nos moldes de uma qualquer forma de socialismo e mediante a socialização de, pelo menos, alguns importantes ramos da sua vida económica, como os bancos, as minas e as indústrias capitais.” No que se refere aos partidos socialistas e sociais-democratas da Europa, o seu programa reformista tradicional era o de substituir o capitalismo pelo socialismo mediante sucessivas reformas graduais da sua estrutura, operadas através da nacionalização (mediante indemnização aos proprietários) dos principais setores da atividade económica. Quando este objetivo fosse alcançado (com a apropriação social dos meios de produção),

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estava realizada a condição essencial de uma sociedade socialista: a abolição dos rendimentos não provenientes do trabalho. Muitos acreditaram, por isso, naquela altura – escreveu J. J. Teixeira Ribeiro, num ensaio de 1947 –, que “as nacionalizações na França e na Inglaterra podiam bem servir do primeiro degrau do socialismo.” Por se entender que “o significado profundo das nacionalizações” residia em que “elas traduzirão sempre esse propósito firme, que os povos caldearam durante a guerra, de impregnar de humanidade a economia.” E por se esperar que as circunstâncias conduzissem a Europa para uma “era em que, de um modo ou de outro, a economia iria ser posta efetivamente ao serviço do homem.” Neste ensaio (Conferência proferida no Clube Fenianos Portugueses em 10.2.1947), o ilustre Professor de Coimbra viu as coisas com clareza: “ou as nacionalizações prosseguem até eliminar do setor privado todas as grandes empresas, ou as grandes empresas hão-de ameaçar permanentemente a política do setor público.” Ora, como é sabido, em vez de se prosseguir com as nacionalizações para pôr de pé uma economia ao serviço do homem, a orientação adotada traduziu-se em colocar o setor empresarial do estado ao serviço dos lucros privados, numa solução de capitalismo de estado, em que a propriedade pública se afirmou como uma nova forma de propriedade capitalista (propriedade do estado capitalista, um estado que “nunca é neutro” (François Perroux), antes é a “expressão das classes dominantes (…), largamente dependente do capitalismo dos monopólios.” Longe de ver no setor público consideravelmente reforçado um “perigoso rival”, o grande capital rapidamente viu nele – escreve Andrew Shonfield – “um aliado útil, de facto, quase como uma garantia, pois era agora tão vasto que não poderia mover-se na direção errada, por um instante sequer, sem fazer encalhar o barco todo.” Na síntese de Teixeira Ribeiro, “mantiveram-se os rendimentos sem trabalho e o sector público não se transmudou, portanto, em autêntico setor socialista.” 1.3. – Sobretudo na Europa e nos EUA, os trinta anos gloriosos após a Guerra (“les trente années glorieuses”, de que fala Jean Fourastié) registaram um bom ritmo de crescimento económico, com baixas taxas de desemprego e taxas aceitáveis de inflação. Houve quem se convencesse de que a boa utilização da chamada Curva de Phillips tinha conduzido à “obsolescência dos


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ciclos económicos” (Arthur Okun) e ao capitalismo post-cíclico (capitalismo sem crises). Num ambiente de contagiante ‘otimismo teórico’, os defensores da sociedade industrial (Daniel Bell) acreditaram que o ‘novo capitalismo’ era uma espécie de paraíso na terra. Daí o florescimento de uma vasta literatura sobre a sociedade da abundância. Os mais otimistas sustentaram que, graças a estes resultados, a ciência económica tinha, finalmente, adquirido direito de cidadania, afirmando a sua ‘autoridade’ quer como ramo das ciências sociais quer como instrumento capaz de resolver os problemas da sociedade, dando um salto sem paralelo na sua história e sem paralelo em comparação com qualquer outra das ciências sociais. Alguns aproveitaram para concluir que a revolução keynesiana tinha tornado obsoleto o marxismo. O ambiente da época, nos círculos políticos e académicos europeus mais importantes, é bem sintetizado por Tony Judt nestes termos: “O estado, era a convicção geral, faria sempre um trabalho melhor do que o mercado sem restrições: não só na aplicação da justiça e na segurança, ou na distribuição de bens e serviços, mas também no planeamento e na aplicação de estratégias para a coesão social, amparo moral e vitalidade cultural. (…) A história de sucesso do capitalismo europeu do pós-guerra foi por todo o lado acompanhada por um papel crescente do setor público. (…) O estado, então, era uma coisa boa.” 1.4. – Tudo parecia estar a correr tão bem que muitos entenderam que o capitalismo já não era capitalismo, por ter absorvido elementos de socialismo. Apesar das ‘glórias’ destes trinta anos, ninguém queria assumir a incomodidade de defender o capitalismo, talvez porque este não tinha bom nome na praça e porque poucos acreditariam que a bonança dos últimos tempos pudesse durar muito. Era mais cómodo sustentar que o capitalismo se tinha transformado em socialismo. Eclipsado assim o capitalismo, aproveitou-se a ocasião para, ao mesmo tempo, ‘matar’ o socialismo como alternativa ao capitalismo. Na sequência de Bernstein, de Kautsky e de Hilferding, desenvolveu-se uma abundante literatura como objetivo de mostrar que o estado social (fruto da “revolução keynesiana”) tinha esvaziado de sentido a luta pelo socialismo como alternativa ao capitalismo. Isto porque a democratização do capital e a revolução dos gerentes já tinham transformado o “capitalismo ocidental” num sistema misto, mais próximo do socialismo do que do capitalismo, reunindo em si o melhor do capitalismo e o melhor do socialismo. Foi este o papel da chamada teoria da convergência dos sistemas, uma constante do discurso ideológico da

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social-democracia europeia a partir de meados do século XX e até à emergência da perestroika ou até ao desaparecimento da comunidade socialista europeia. 1.4.1. – Este ‘milagre’ da transformação do capitalismo em socialismo foi anunciado em vários tons. Adolf Berle: “o aparecimento e o desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a propriedade como instituição quase tão profundamente como o fazem a doutrina e a prática comunistas”, pelo que “o sistema económico americano baseado na propriedade privada se tornou, no fim de contas, tão socialista como muitos sistemas socialistas.” Joseph Schumpeter: a evolução do capitalismo “desvitaliza a noção de propriedade”, opera a “evaporação do que podemos chamar a substância material da propriedade”, “afrouxa o domínio, outrora tão forte, do proprietário sobre o seu bem”: “a figura do proprietário e, com ela, o olho do patrão desapareceram de cena.” Jan Tinbergen: “toda uma série de componentes da propriedade foram já nacionalizados. Como dizem outros economistas, a propriedade privada já foi creusée. (…) Os dois sistemas evoluem no sentido de um optimum, de uma ordem que é melhor, ao mesmo tempo, que o capitalismo puro e o socialismo puro.” A esta luz, o entendimento do litígio ideológico entre os EUA e a URSS como “o litígio entre o capitalismo e o socialismo” é considerado por Tinbergen uma visão simplista e ultrapassada. Robert Tucker: “O conceito de comunismo de Marx seria aplicável hoje, com rigor, à América; o seu conceito de capitalismo está absolutamente antiquado e ultrapassado.” O ‘radicalismo’ desta formulação desacredita a mensagem. Mas ela foi difundida por outros meios. 1.4.2. – Argumentaram alguns (os defensores da sociedade industrial, o sub-sistema industrial de que fala John Kenneth Galbraith) que o progresso tecnológico tinha feito desaparecer a propriedade privada tal como ela existia nas sociedades capitalistas. O fator decisivo é o que contrapõe a sociedade industrial a todas as outras formas de organização económico-social: as sociedades modernas, capitalistas ou socialistas, são sociedades industriais, que geram os mesmos problemas e pedem as mesmas soluções. Tudo se resumiria a um problema técnico, que deve ser resolvido por quem é tecnicamente competente para o fazer: o estado tecnocrático substitui o estado democrático (o poder executivo sobrepõe-se aos parlamentos).


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1.4.3. – Por sua vez, os ideólogos da “revolução dos gerentes” procuraram convencer-nos de que, graças às modernas sociedades por ações (que fizeram também o ‘milagre’ de inventar a democratização do capital e o capitalismo popular, bandeiras da social-democracia que a ‘revolucionária’ Srª Thatcher fez suas), o poder dos proprietários desapareceu. Esvaziado o poder da propriedade, teria emergido, em seu lugar, o poder sem propriedade dos gerentes. E este poder dos gerentes já não está ao serviço do capital, mas ao serviço do bem comum, porque as grandes empresas do “sistema industrial” galbraithiano se comportavam como “empresas dotadas de alma” (Carl Kaysen). Se é o poder que conta e não a propriedade, capitalismo e socialismo encontram-se superados por um novo modo de produção (a sociedade dos gerentes, a sociedade de tecnostrutura), para o qual convergiriam aqueles dois. 1.4.4. – Em 1952, John Kenneth Galbraith deu a sua contribuição para ‘dissolver’ o capitalismo e o poder capitalista, ao enunciar a chamada teoria do poder compensador (American Capitalism: The Concept of Countervailing Power) que ele próprio resume assim: “Há na sociedade moderna um razoável equilíbrio entre os que exercem o poder e os que a ele se opõem. (…) O poder gera a sua própria resistência e age no sentido de limitar a sua própria eficácia.” Este poder compensador da opinião pública faria equilibrar o poder dos diretores das grandes empresas com uma espécie de conscience du roi que os colocaria, não ao serviço da valorização do capital, mas ao serviço dos interesses da coletividade. Sob o impulso dessa ‘consciência’, as empresas deixariam de ‘comportar-se’ em obediência ao espírito de maximização do lucro, para ganharem elas próprias uma ‘alma’, uma ‘consciência social’, que as levaria a prosseguir o interesse público. Se o mundo funcionasse desta sorte, seria caso para acreditar numa espécie de mão invisível coletiva, uma vez que este efeito compensador galbraithiano significa algo de semelhante à mão invisível de Adam Smith: cada grupo de interesses organizados, ao prosseguir os seus próprios objetivos, provocará, automaticamente, a organização de outros grupos de interesses de cuja atuação resultará a limitação do poder daqueles outros grupos, gerando-se assim, espontaneamente, um equilíbrio que promoverá da melhor maneira possível o interesse e o bem-estar coletivos. Transferindo este raciocínio para o terreno da luta de classes, dir-se-ia que, perante o poder da classe dominante, posto ao serviço dos seus interesses

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de classe, surgiria automaticamente um poder compensador, que se traduziria na ação da classe explorada na prossecução do seu próprio interesse de classe, o que provocaria um equilíbrio de poderes que se traduziria na promoção do interesse de toda a comunidade. A luta de classes perderia todo o sentido. O paraíso ficaria ao alcance de um toque desta varinha mágica que é o countervailing power. Na dialética marxista, a dinâmica da conflitualidade em sociedades constituídas por classes sociais com interesses antagónicos conduz à agudização das contradições até que chegue o tempo da revolução social e da passagem de um sistema a outro. Segundo a tese de Galbraith, o conflito de interesses geraria uma dinâmica de adaptação, através do efeito compensador, que acabaria por conduzir automaticamente, espontaneamente, a uma posição de equilíbrio que realiza o interesse geral. E a história acabaria aqui. Também por esta via o capitalismo teria garantida a eternidade. J. K. Galbraith veio reconhecer mais tarde – honra lhe seja – ter adotado, naquele seu livro de 1952, “um ponto de vista indevidamente otimista quanto ao equilíbrio resultante [do poder compensador].” 1.5. – No diálogo que mantive com o Prof. Jan Tinbergen em 1972, o meu propósito foi o de esclarecer, na ótica do marxismo, a natureza do estado social enquanto estratégia para salvar o capitalismo, pondo em relevo que o estado social funciona dentro da lógica do capitalismo, não podendo confundir-se com o socialismo (ao contrário do que defendia Tinbergen e a social-democracia europeia). Porque o socialismo é um sistema económico e social negador do capitalismo, que há-de emergir da desagregação do capitalismo (destruído pelas suas próprias contradições internas e pela luta de classes) como um novo modo social de produção que supere as contradições insanáveis do modo de produção capitalista. Este diálogo seria hoje impossível. 1.5.1. – Em primeiro lugar, a realidade dos tempos que vivemos revela, a todas as luzes, quão falaciosa era toda a construção à volta da teoria da convergência dos sistemas. Não há dúvida de que a ‘revolução dos gerentes’ acabou, e quero acreditar que Tinbergen reconheceria isto mesmo. Hoje são os próprios managers (os administradores profissionais dos grandes grupos económicos) que vêm a público justificar as remunerações, prebendas e pensões milionárias que auferem como compensação dos seus ‘méritos’ enquanto gestores que cumprem e ultrapassam as metas que se


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propõem no exercício das suas funções. Estas metas – nos antípodas das preocupações com o bem comum próprias das tais empresas dotadas de alma… – consistem em dar muito dinheiro a ganhar aos grandes accionistas (elevadíssimos ganhos de capital e dividendos chorudos). Porque os administradores servem (como sempre!) os interesses dos grandes accionistas é que estes lhes concedem os privilégios obscenos de que hoje auferem. A necessidade de obter lucros muito elevados para poder contentar a gula dos acionistas e dos gestores profissionais (que, em regra, são também grandes acionistas das empresas que dirigem, porque uma parte dos salários e prémios é paga mediante a atribuição de ações das empresas por eles administradas) justifica, segundo a generalidade dos especialistas, a atração por operações de alto risco à margem da economia real, que podem proporcionar elevados ganhos (especulativos) que as ‘atividades normais’ não permitem. As novas ‘técnicas’ de gestão que os ‘patrões’ de sempre impõem hoje aos seus administradores (já esquecidos dos objetivos ‘revolucionários’ que os moviam nos anos 70 do século passado) vieram transformar as outrora chamadas empresas dotadas de alma em instrumentos de pura especulação. Neste tempo em que o capital financeiro predomina sobre o capital produtivo e em que o sistema financeiro se especializou nas atividades especulativas (especulação com a vida de milhões de pessoas), as empresas foram transformadas em meros ativos que se ‘jogam’ na bolsa, na esperança de obter elevados ganhos de capital. Esta política de valorização bolsista é prosseguida por todos os meios, apoiada em arriscados (e por vezes criminosos) expedientes de engenharia financeira: aquisição de acções próprias; falsificação da contabilidade (valorizando ou dissimulando dívidas, créditos, vendas e compras); fornecimento de informação opaca ou mesmo viciada; manipulação das cotações, sem qualquer relação com a tividade e com o valor real das empresas. Em certas condições, as ‘metas’ fixadas só podem atingir-se com base no recurso sistemático à fraude em grande escala, através de práticas criminosas que estiveram na ordem do dia nas últimas décadas (D. Plihon), dando origem (quando conhecidas…) a enormes escândalos. Pouco depois da crise que atingiu a chamada nova economia (março/2000), vários desses escândalos rebentaram nos EUA e também na Europa. Entre eles, o da falência de colossos como a ENRON (a sétima maior empresa dos EUA) e a WorldCom (a maior falência de sempre na história americana), tendo atingido duramente outras ‘empresas-modelo’, como a Tyco, a Global Crossing, a

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Qwest, a Adelphia Communications, a Xerox e a Vivendi Universal (todas elas empresas industriais transformadas em holdings financeiras dedicadas a actividades especulativas de alto risco). A falência da ENRON (que arrastou consigo a falência da ‘princesa’ das agências de consultadoria, a Arthur Andersen, apesar do muito dinheiro que ganhou a idealizar as operações fraudulentas que afundaram a ENRON) é já um exemplo de escola: ela decorreu exclusivamente das suas atividades financeiras, não tendo nada que ver com a atividade da empresa nos setores do gás e da eletricidade, cujos mercados praticamente não sentiram a sua falta, após a falência. O ‘filme’ destas histórias veio desfazer o mito da transparência, da racionalidade e da eficiência dos mercados financeiros regulados, pondo a nu a incompetência ou a cumplicidade (ou as duas coisas) das agências reguladoras ditas independentes e deixando de rastos a honorabilidade das mais ‘distintas’ empresas de contabilidade e de consultadoria financeira e das ‘sagradas’ agências de rating, todas elas comprometidas até à medula com as instituições financeiras e com os gestores das grandes empresas neste jogo de falsidades. Nos EUA, o próprio Congresso, alertado para a situação, nada fez para pôr cobro à fraude, porque (J. Crotty) “as indústrias financeiras e de contabilidade estão entre os maiores contribuintes para as campanhas dos políticos de Washington.” O que, verdadeiramente, está em causa é a natureza deste capitalismo de casino, desta “economia da mentira” e a inconsistência da tão celebrada regulação pelo mercado (ainda que com a ‘ajuda’ das agências reguladoras amigas do mercado), bem como as virtudes da não menos celebrada corporate governance. Acresce que, tanto os dividendos dos grandes acionistas como os honorários (e os prémios de gestão) dos administradores vão, em grande parte, para os paraísos fiscais, com o objetivo de fugir aos impostos e de entrar no circuito da especulação financeira. A ideia de assegurar o autofinanciamento das empresas com fundos resultantes de lucros não distribuídos cheira a romantismo passadista. Fala-se por vezes do fim do capitalismo fordista (em termos gerais, o que corresponde ao sentido das políticas de inspiração keynesiana) e do início de um novo período do capitalismo, que alguns designam capitalismo dominado pelos acionistas. É, a meu ver, o reconhecimento da falácia da chamada revolução dos managers: as ditas empresas dotadas de alma são agora consideradas empresas irresponsáveis (“irresponsible companies”).


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Por vezes, os ‘jogos de casino’ da especulação correm mal… Mas os grandes acionistas (e os seus gestores) sabem que estes ‘pecados’ contra a tal ética dos negócios (de que agora tanto se fala) são sempre cometidos com boas intenções (a intenção de lhes dar a eles muito dinheiro a ganhar) e sabem também que, quando as coisas correm mal, se se tratar de grandes interesses financeiros ou de grupos económicos muito poderosos, o estado amigo lá está para cobrir os prejuízos, em nome do interesse nacional… O estado garantidor foi inventado para isso mesmo: para garantir ao grande capital financeiro os lucros desejados, sem risco e sem falências. É o capitalismo sem risco e sem falências, que rapidamente se afirmou como capitalismo do crime sistémico. 1.5.2. – Em segundo lugar, um diálogo como o que mantive com o Prof. Tinbergen seria hoje impossível, porque a social-democracia europeia de hoje está longe de subscrever as linhas mestras do pensamento do Professor de Roterdão, que, naquele período histórico concreto, coincidia com o essencial da doutrina social-democrata europeia, pressupondo que o capitalismo (que, segundo ele, já não era, verdadeiramente, capitalismo) assentava num estado social sério e consistente, num forte setor público empresarial, na planificação pública da economia, no controlo público da poupança e do investimento de toda a comunidade. Se confiarmos na análise de G. D. Cole, em 1960 os socialistas ainda defendiam “a propriedade pública e o controlo dos recursos essenciais e dos instrumentos de produção” e confiavam na “missão histórica da classe trabalhadora para efetuar a transição do capitalismo para o socialismo.” Ora, nestes últimos cinquenta anos, mudaram-se os tempos e mudaram-se as vontades da social-democracia europeia. Mantendo eu os pontos de vista que defendi em oposição aos de Tinbergen, dificilmente encontraria hoje, no campo do chamado ‘socialismo democrático’, alguém que defendesse as teses reformistas do primeiro Prémio Nobel da Economia. Os socialistas de hoje (que se gabam de ser sensíveis aos ventos da História, socialistas modernos…) não resistiram aos ventos do neoliberalismo: sacrificaram o estado social ao ‘projeto europeu’ e insistem que não há alternativa para esta política (isto é, para o capitalismo e o neoliberalismo). Os partidos que integram o Partido Socialista Europeu renegaram Keynes, e não se cansam de deitar cal no seu túmulo, não vá ele aparecer por aí a dizer-lhes que o ‘dogma’ do equilíbrio orçamental – o dogma dos dogmas da “primeira religião secular”, que é o “culto europeísta” (Régis Debray) – é, claramente, uma doutrina particularmente absurda e perigosa em tempos de

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crise, sem dúvida uma regra estúpida e medieval, na classificação de Romano Prodi, que falava então como Presidente da Comissão Europeia, talvez num momento de loucura passageira. Num ensaio luminoso de 1943, Michael Kalecki deixou claro que a função social da regra de ouro do equilíbrio orçamental (que os ‘donos da Europa’ quiseram que fosse consagrada nas constituições dos estados-membros, o que alguns fizeram!) “é tornar o nível de emprego dependente do nível de confiança”, ou seja, é impedir que o estado adote políticas ativas de combate ao desemprego e, sobretudo, de promoção do pleno emprego. Porque os homens de negócios entendem que “o desemprego é uma parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”, porque “não gostam das consequências sociais e políticas que são de esperar da manutenção de situações estáveis de pleno emprego”, porque “o seu instinto de classe lhes diz que o pleno emprego duradouro é algo de perverso.” Certamente por conhecer estes ‘sentimentos’ dos homens de negócios é que um antigo ministro espanhol da economia confessa isto mesmo (em 1996) num livro em que analisa a sua experiência em um Governo do PSOE (Apud Navarro/López/Espinosa): “a redução do desemprego, longe de ser uma estratégia de que todos sairiam beneficiados, é uma decisão que, se fosse levada à prática, poderia acarretar prejuízos a muitos grupos de interesses e a alguns grupos de opinião pública.” Quer dizer: as políticas ativas de combate ao desemprego e de promoção do pleno emprego não são levadas a sério porque o desemprego interessa a muitos grupos de interesses, os interesses ligados ao grande capital, que, enfraquecendo os trabalhadores e as suas organizações, podem reforçar as condições da sua exploração. É certeiro o diagnóstico de Halimi/Rimbert (2019): “À medida que a social-democracia europeia se enroscou no aparelho de estado, se sentiu confortável na comunicação social e ocupou os conselhos de administração das grandes empresas, ela relegou para as margens do jogo político a sua base popular de outrora.” Porque os trabalhadores só criam problemas, os sociais-democratas europeus abandonaram os trabalhadores (que servem apenas para ornamentar os discursos politiqueiros), fazendo suas as bandeiras de uma espécie de povo de substituição (fumadores de drogas leves, homossexuais, gente que faz da eutanásia um grande problema da humanidade, defensores dos direitos dos animais como se estes fossem seres humanos…). Encontrei


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há pouco esta ideia (que já tinha deixado algures em algum escrito ou em alguma palestra) numa entrevista que Costas Lapavitsas concedeu à revista CartaCapital (22.6.2017): A esquerda europeia “deixou de falar dos mais pobres, das suas ideias e aspirações. (…) A partir do momento em que a esquerda abandona a política clássica das classes sociais e a substitui pelas políticas sexuais, de género, ela deixa de falar das classes sociais, dos pobres, das classes trabalhadoras. (…) A esquerda precisa de falar a linguagem das classes trabalhadoras. (…) Ao esquecer a problemática das classes sociais, a esquerda torna-se supérflua.” Talvez por isso – é uma ideia minha… – por toda a Europa, esta esquerda supérflua (os partidos socialistas e sociais-democratas) parecem entidades em vias de extinção.

II

AS CRISES DO PETRÓLEO, A CONTRA-REVOLUÇÃO MONETARISTA E O CONSENSO DE WASHINGTON 2.1. – As políticas keynesianas não explicam tudo, mas deve atribuir-selhes algum crédito pelos resultados positivos dos famosos trinta anos gloriosos, posteriores ao termo da 2ª Guerra Mundial. Foram os tempos áureos do que Wolfgang Streeck (2011) chamou “capitalismo democrático do pós-Guerra” (o “capitalismo moderno” de que fala Andrew Shonfield). No entanto, a confiança nas capacidades da ciência económica para ‘curar’ as doenças estruturais do capitalismo rapidamente esmoreceu. Com efeito, em agosto/1971, a Administração Nixon rompeu unilateralmente o compromisso assumido pelos EUA em Bretton Woods de garantir a conversão do dólar em ouro à paridade de 35 dólares por onça troy de ouro. Daqui resultou a adoção do sistema de câmbios flutuantes, primeiro entre os EUA e os seus parceiros comerciais, e pouco depois à escala mundial. Esta circunstância marcou um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. As taxas de câmbio (i. é, o preço das divisas, das moedas utilizadas nos pagamentos internacionais) escapam ao controlo das autoridades nacionais ou de uma agência da ONU (papel que cabia ao FMI) e ficam na inteira dependência dos ‘mercados’ (ou seja, dos especuladores). Pode dizer-se que começa então, na prática, a ascensão do monetarismo, a contra-revolução monetarista. 2.1.1. – No ensaio de 2011, atrás referido, W. Streeck defende que aquilo que é representativo das condições normais de funcionamento do capitalismo democrático não são os ‘êxitos’ temporários dos trinta anos posteriores à Guerra, mas as crises que se multiplicaram a partir dos anos 1970. Isto porque estas crises – como crises do capitalismo – decorrem de “um conflito endémico irreconciliável por natureza entre mercados capitalistas e políticas democráticas” e teriam de ressurgir, necessariamente, logo que se esgotassem as condições particularmente favoráveis que proporcionaram um crescimento económico elevado.


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II – As crises do petróleo, a contra-revolução monetarista e o Consenso de Washington 33

As chamadas crises do petróleo (1973-75 e 1978-80) trouxeram um fenómeno novo: situações caraterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e crescente e de taxas decrescentes (por vezes nulas ou mesmo negativas) de crescimento do PNB. Começava a era da estagflação.

Alguns anos mais tarde (1961), o mesmo espetáculo propagandístico foi montado à volta do livro de Milton Friedman Capitalism and Freedom (Liberdade para Escolher, na edição portuguesa), culminando com uma série de programas que ocuparam o horário nobre nas televisões de todo o mundo capitalista.

Apanhados de surpresa, os keynesianos ficaram confusos perante este “dilema da estagflação” (Samuelson), este “paradoxo da estagflação” (J. Stein). As debilidades das políticas keynesianas ficaram a descoberto. A ‘revolução keynesiana’ tinha chegado ao fim. Afinal, os desequilíbrios, a instabilidade e a incerteza são a regra, não a exceção.

Iniciava-se o reinado do grande capital financeiro e do pensamento único, produzido e difundido pelos grandes meios de comunicação de massa, controlados pelo capital financeiro e pelos grandes grupos monopolistas.

Hayek veio a terreiro proclamar que a inflação é o caminho para o desemprego e, parafraseando o título de um célebre opúsculo de Keynes, defende que a inflação e o desemprego são as consequências económicas de Lord Keynes (“the economic consequences of Lord Keynes”), acusando as políticas de inspiração keynesiana de todos os males do mundo e colocando Keynes no banco dos réus, até que os ‘ideólogos dominantes’ (com Robert Lucas no papel de inquisidor-mor) decretaram a morte de Keynes. Abandonado há muito o padrão-ouro sem qualquer hipótese de recuperação e esgotado o sistema monetário internacional saído dos Acordos de Bretton Woods (1944), a “irmandade dos bancos centrais” (James Tobin) colou-se à ortodoxia monetarista, na esperança de encontrar nas suas receitas instrumentos de defesa perante as pressões políticas dos governos, o que ajudou ao êxito da “contra-revolução”. Paralelamente, uma enorme operação de propaganda assegurou a ‘vitória’ do “ideological monetarismo”, “sistematicamente difundido – escreve Nicholas Kaldor – a partir do outro lado do Atlântico por um crescente grupo de entusiastas que combinam o fervor dos primeiros cristãos com a delicadeza e a capacidade de um executivo de Madison Avenue.” Pouco depois da publicação de O Caminho da Servidão (1944), de que o Reader’s Digest divulgou um resumo, Hayek foi convidado por entidades americanas para uma série de conferências públicas por todo o país. O próprio Hayek reconhece a natureza do seu ‘trabalho’: “O que eu fiz na América foi uma experiência muito corruptora. (…) Tornamo-nos atores e eu não sabia que tinha essa qualidade em mim. Mas, tendo a oportunidade de jogar com uma audiência, comecei a gostar.”

Foi neste contexto que o neoliberalismo monetarista se transformou na ideologia do império e do pensamento único, com o apoio dos grandes centros de produção ideológica, de todas as fundações ‘protetoras’ da atividade científica e até dos responsáveis pelo chamado Prémio Nobel da Economia (atribuído a Milton Friedman em 1976, ano do bicentenário da primeira edição de Riqueza das Nações). O recurso às técnicas mais sofisticadas de manipulação das audiências transformou o neoliberalismo numa espécie de ‘religião’, para cuja “única fé verdadeira” se diz que não há alternativa. Como escreve Nicholas Wapshott, “as ideias de mercado livre adquiriram uma dimensão quase religiosa que levaria alguns aderentes a parecerem discípulos de uma seita secreta em vez de investigadores da verdade.” As experiências corruptoras como a de Hayek multiplicaram-se ao longo dos anos, graças à ação dos mesmos agentes em representação dos mesmos interesses. Referindo-se à ‘conversão’ ao novo credo monetarista/ neoliberal de muitos economistas universitários que “arrecadaram uma série de Prémios Nobel (…) e receberam recompensas mundanas”, escreveu o Prémio Nobel Paul Krugman: “as preferências de mecenas universitários, a disponibilidade de bolsas de estudo e lucrativos contratos de consultoria, etc. devem ter encorajado esses profissionais académicos não só a distraírem-se das ideias keynesianas, mas a esquecerem grande parte daquilo que se aprendeu com as décadas de 1930 e 1940.” Foram estes os caminhos que conduziram à elaboração da dogmática neoliberal, caminhos que assentam numa exibição de “manifestações de ignorância”, de “argumentos ignorantes e destrutivos”, que levaram à “idade das trevas da macroeconomia.” 2.1.2. – As ditas crises do petróleo trouxeram ainda à luz do dia um outro fenómeno, o da tendência para a baixa da taxa média de lucro nos setores produtivos, diagnosticado e estudado em algumas das economias capitalistas mais desenvolvidas. E, perante ele, os ‘comandos’ do capitalismo à escala mundial


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foram forçados a adotar uma nova estratégia adequada à luta contra aquela tendência, estratégia que se traduziu em escolhas políticas diferentes das que tinham sido propostas por Keynes e pelos keynesianos. O Consenso Keynesiano foi o fruto do compromisso exigido, depois da derrota do nazi-fascismo, para conseguir o que Wolfgang Streeck chama a “paz democrático-capitalista”: o “capitalismo democrático” substituiu o capitalismo fascista. Nas novas condições de finais da década de 1970, os dirigentes do capitalismo mundial entenderam que a correlação de forças permitia que não continuassem a pagar o preço daquele compromisso, ao mesmo tempo que a salvaguarda das margens de lucro exigia um reforço da exploração capitalista, com sacrifício dos rendimentos e dos direitos dos trabalhadores. E os sociais-democratas europeus não quiseram perder o comboio da História e assumiram, como verdadeiros neófitos, os seus deveres como gestores leais do capitalismo. Talvez tenha começado aqui o processo de neoliberalização da social-democracia. Neste contexto, o Consenso Keynesiano foi substituído pelo chamado Consenso de Washington, que ‘codifica’ a nova estratégia de clara inspiração neoliberal, que pressupõe e afirma a supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo e que talvez possa caraterizar-se deste modo: liberdade absoluta de circulação de capitais à escala mundial (a mãe de todas as liberdades do capital); ‘revelação’ do dogma neoliberal da independência dos bancos centrais, que arrastou consigo a ‘privatização’ dos estados, que, como qualquer cidadão, dependem dos mercados financeiros para o financiamento das suas políticas, porque perderam elementos fundamentais da soberania e da independência nacionais: o controlo do sistema financeiro (da emissão de moeda, das taxas de juro e das taxas de câmbio), com a consequente perda do controlo sobre o destino da poupança nacional; aplicação do princípio da banca universal, em nome do qual os bancos podem desenvolver quaisquer operações financeiras, incluindo atividades puramente especulativas nas quais comprometem os depósitos dos seus clientes (a poupança nacional); privatização da banca, dos seguros e da generalidade das empresas públicas, por puros preconceitos ideológicos; prioridade no combate à inflação, porque a inflação destrói a ‘racionalidade’ dos mecanismos do mercado e porque a estabilidade traz consigo o crescimento e o emprego; políticas de arrocho salarial, que entregam ao capital os ganhos

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da produtividade, apesar de esta estar cada vez mais ligada ao homem trabalhador (enquanto produtor, depositário e utilizador do conhecimento), e que promovem a baixa dos salários (o aumento do trabalho não pago), para tentar compensar a subida dos custos financeiros (fator que potencia a baixa tendencial da taxa média de lucro); ataque às organizações sindicais e à contratação coletiva; sistemas fiscais favoráveis aos titulares de rendimentos da capital e aos titulares de grandes fortunas (na UE, a taxa média de tributação dos lucros baixou de 36% em 1995 para 24% em 2018); asfixia do estado social. Inverteu-se claramente o sentido das políticas públicas em favor do grande capital. Uma importante corrente do neoliberalismo, os “monetarists mark II” (James Tobin), defensores da chamada teoria das expectativas racionais (J. F. Muth, Robert Lucas, Thomas Sargent, Robert Barro, Herschel Grossman, Edward Prescott, Neil Wallace) vão mais longe, defendendo que os agentes económicos privados dispõem da mesma informação que as autoridades públicas, pelo que, como agentes económicos racionais, são capazes de prever as políticas que estas possam levar a cabo, antecipando os seus resultados e adotando comportamentos que os anulem. É a tese da neutralidade da política económica, da ineficácia da política económica, o que abre caminho à proposta da morte da política económica. Robert Lucas anunciou a “morte de Keynes”, antecipando, deste modo, a declaração da morte da política económica. Porque, segundo os monetaristas de segunda geração, a política económica, além de ser ineficaz, ela é completamente inútil. Posteriormente, as teorias da “public choice” (a que se encontram associados, como nomes mais marcantes, James Buchanan e Gordon Tullock) vieram defender que as crises são o resultado da intervenção política nos mercados motivada por objetivos sociais, intervenção (um excesso de democracia) que distorce o funcionamento normal dos mercados livres, segundo leis naturais. Estas são as únicas leis que podem regular a economia e só elas podem assegurar o equilíbrio geral em todos os mercados (incluindo o mercado de trabalho). É a sequência natural das teses segundo as quais a economia de mercado livre impõese não apenas pela superior eficiência económica que lhe é atribuída, mas também por razões de ordem política: “sem o poder difuso e a iniciativa associada a estas instituições [a propriedade privada e o mercado de concorrência], é difícil imaginar uma sociedade em que a liberdade possa ser efetivamente salvaguardada”, proclama a famosa Declaração da


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Mont-Pélerin Society (1947), inspirada por Hayek. E Hayek sustenta que “a civilização é o resultado de um crescimento espontâneo e não de uma vontade.” As políticas públicas que se propõem intervir na “ordem espontânea” consubstanciada no mercado constituem o caminho para a servidão (título de um livro de Hayek), pondo em causa a “free society”. A esta luz, o mercado (o capitalismo) é considerado a outra face da democracia. Os neoliberais mais ‘puros’ (ou mais duros) não admitem sequer políticas públicas que visem apenas corrigir injustiças. Porque são irracionais as pretensões de direitos sociais e de direitos políticos fora do quadro definido pelas leis naturais do mercado. A única justiça real é a justiça do mercado. Regressa-se ao século XVIII: o que é natural é justo; o injusto está fora da natureza (era a tese dos fisiocratas). O filósofo austríaco fala mesmo da “miragem da justiça social” e defende que a expressão justiça social deveria ser abolida da linguagem dos economistas (e de todas as pessoas de bem, por certo…): “a expressão ‘justiça social’ não é, como a maioria das pessoas provavelmente sente – escreve ele –, uma expressão inocente de boa vontade para com os menos afortunados, (...) tendo-se transformado numa insinuação desonesta de que se deve concordar com as exigências de alguns interesses específicos que não oferecem para tanto qualquer razão autêntica.” É uma ‘leitura’ que assenta no ‘dogma’ liberal que proclama o mercado como um mecanismo natural (regido por leis de validade absoluta e universal) capaz de uma arbitragem ‘neutral’ dos conflitos de interesses, uma instituição que garante a distribuição natural dos rendimentos entre o capital e o trabalho, uma instituição que, segundo Hayek, “não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não são planeados nem previstos e dependem de uma multidão de circunstâncias que não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja.” O filósofo-economista pressupõe que os mercados são sempre mercados de concorrência pura e perfeita (só assim é possível admitir que as soluções do mercado não são o resultado da ação deliberada de alguma pessoa ou grupo de pessoas), apesar de todos sabermos que tais mercados nunca existiram e nunca hão-de existir. Raciocina-se com base em modelos que pressupõem parâmetros fixos, indiferentes à História e às diferenças culturais, quando

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se sabe que tais parâmetros não existem, porque a realidade e socialmente determinada e historicamente flexível. Vários seguidores de Friedrich Hayek passaram a defender que o capitalismo só pode funcionar (isto é, só pode proporcionar aos donos dos meios de produção as condições para extraírem a maior vantagem possível do seu poder de mercado) se a política económica se pautar por regras rígidas; se os mercados e os direitos de propriedade tiverem proteção constitucional contra as interferências discricionárias da política; se a regulação da economia for separada do estado e confiada a agências reguladoras independentes; se os bancos centrais forem independentes, inteiramente livres das pressões eleitorais (isto é, fora do controlo das instâncias políticas democráticas). Wolfgang Streeck (2011) acrescenta ainda outra exigência, a pensar na UE: a presença de “instituições internacionais, como a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça da União Europeia, que não têm que se preocupar com a sua reeleição.” 2.2. – Já se vê como surgiu, no discurso dominante, a tese de que o neoliberalismo é um sistema libertário, que dispensa o estado. Algo diferente, mas com efeitos semelhantes no plano político, é a tese da ‘moderna’ social-democracia europeia, que, prosseguindo um processo iniciado em finais do século XIX, abandonou, em meados do século passado, a tese de que o estado é sempre, nas sociedades de classes, um estado de classe, ‘matando’ desta forma o estado capitalista, que, como dizem que faz o diabo, sempre se esforçou por tentar convencer os ingénuos de que ele não existe. Como salienta um dos seus teóricos em Portugal (Augusto Santos Silva), a esquerda moderna “mudou radicalmente de atitude face ao estado”, ao longo do século XX. Em primeiro lugar, a social-democracia europeia abandonou a “posição libertária de querer destruí-lo [ao estado capitalista], como dominação e fator de dominação burguesa.” Por mim, creio que quem confessa ter abandonado o propósito de destruir o estado capitalista, só pode querer dizer que desistiu de construir uma sociedade socialista. Esta é a opção dos socialistas europeus, certamente por entenderem que não há alternativa ao capitalismo. Em segundo lugar, o autor proclama uma mudança no que toca à “arquitectura institucional do estado.” Os socialistas ‘mataram’ o estado de classe, transformando o estado


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capitalista (é dele que estamos a falar) em um “espaço de integração social e intervenção política para as organizações vinculadas ao movimento operário”, passando a considerá-lo como “expressão da comunidade política nacional”, como “espaço de pertença de toda a coletividade”, como “representação política de toda a sociedade.” E, em certo sentido, ‘mataram’ também as classes sociais, substituindo-as pelos parceiros sociais, que, em vez de alimentarem a luta de classes, praticam o diálogo social, buscando, em conjunto, o bem comum, no seio dos organimos de concertação social, sob a arbitragem do estado, que se afirma como uma entidade neutra, acima das classes. É o regresso às concepções atomísticas da sociedade, que veem nesta um conjunto de indivíduos livres e iguais em direitos, governados por um estado que está acima de todos eles e que a todos trata por igual, apenas preocupado em servir o bem comum. Na sociedade assim entendida não há classes sociais, não há patrões nem trabalhadores (não há capital nem trabalho). Neste espaço de integração social, os indivíduos que o integram (os parceiros sociais) só têm que dar as mãos para prosseguir (em concertação social, em família…) o interesse comum… Não quero (não seria adequado) chamar corporativistas aos que defendem as concepções que venho referindo, mas não me é fácil fugir à ideia de que a identificação do estado como “representação política de toda a sociedade” parece implicar a negação da existência de classes sociais, de classes – escreveu Adam Smith – “cujos interesses não são de modo algum idênticos.” E implica, sem dúvida, a defesa da colaboração de classes no seio de um estado que se diz representar toda a sociedade, um estado capaz de arbitrar acima das classes e dos interesses de classe. Esta é uma das traves-mestras da chamada economia social de mercado, assente na concertação social (que se pretende substitua a luta de classes) entre parceiros sociais (que susbtituem as classes sociais) em busca do bem comum, com o estado, com ares paternalistas, mas sempre amigo do capital, a arbitrar a concertação. Este é um dos traços da ideologia dominante que os socialistas europeus partilham com a ‘direita civilizada’. E é a doutrina inspiradora do chamado sindicalismo reformista, que se afastou dos princípios do sindicalismo de classe. Pois bem. No que me diz respeito, não posso partilhar esta visão do

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estado, sobretudo num tempo, como aquele em que vivemos, em que a atuação do estado capitalista como estado de classe se afirma, todos os dias, aos olhos de toda a gente que não fecha os olhos à realidade. A predominância do grande capital financeiro traduz-se no sacrifício não só dos direitos que os trabalhadores foram conquistando ao longo de séculos de lutas, mas também dos interesses de grandes camadas da pequena e média burguesia ligada às atividades produtivas. O estado capitalista é hoje, claramente, a ditadura do grande capital financeiro. 2.3. – Estas teses sociais-democratas deixam para trás as concepções dos fisiocratas, de Adam Smith, de David Ricardo (os fundadores da ciência económica, no século XVIII) e a lição de Karl Marx, porque todos eles entendem que as classes sociais são os actores da vida económica e da dinâmica social. Esquece-se a lição dos fisiocratas: a. quando defenderam que, nas sociedades em que a propriedade (a propriedade burguesa, que exclui necessariamente a propriedade de outrem) é a base em que assenta todo o edifício social, “a propriedade exclui necessariamente a igualdade” (Mercier de La Rivière) e “a diferença entre os ricos e os pobres torna-se dia a dia mais marcada.” (Dupont de Nemours) b. quando salientaram que “o único fim das instituições sociais” é a defesa da “lei sagrada da propriedade”, que “o estado não tem outro interesse que não seja o interesse dos proprietários”, que “o primeiro dever do soberano é o de punir aqueles que atentam contra a propriedade de outrem, operando pelo magistério dos magistrados e pelo poder político ou militar.”

Esquece-se a lição de Adam Smith: a. quando o filósofo escocês caraterizou com toda a clareza as duas classes essenciais constitutivas da sociedade capitalista emergente: a classe dos proprietários do capital e a classe dos trabalhadores assalariados, classes cujos interesses são antagónicos. Os primeiros dispõem de um “pecúlio previamente acumulado” que lhes permite contratar trabalhadores obrigados a vender o único bem de que dispõem, “a sua força e habilidade de mãos”. Estes últimos vivem do salário (a “recompensa natural” desse trabalho); os “patrões” “vivem do lucro”, uma “dedução ao produto do trabalho” (ao “valor que o trabalho acrescenta às matérias-primas”). b. quando Smith antecipa (é o ponto de vista de Mark Blaug) a teoria


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