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RONALD DWORKIN DIREITO, POLÍTICA E PESSOA HUMANA

Adriano Marteleto Godinho Agassiz Almeida Filho Alexandre da Maia Alfredo Copetti Neto Alonso Freire Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque Cláudio Ari Mello Danielle da Rocha Cruz Danilo dos Santos Almeida Doglas Cesar Lucas Edna Hogemann Eduardo Appio Emilio Peluso Neder Meyer Estefânia Maria de Queiroz Barboza Evandro Barbosa Felipe Guimarães Assis Tirado Francisco Carlos Duarte Francisco José Borges Motta George Salomão Leite Georges Abboud Glauco Salomão Leite José Emílio Medauar Ommati Júlio César Rossi Lenio Luiz Streck Lucas Henrique Muniz da Conceição Luis Prieto Sanchís Néviton Guedes Rafael Tomaz de Oliveira Thaís Alves Costa Tassiana Bezerra Ulisses Schwarz Viana

Organizadores:

Agassiz Almeida Filho George Salomão Leite Georges Abboud


Agassiz Almeida Filho George Salomão Leite Georges Abboud Copyright© 2018 by Agassiz Almeida Filho, George Salomão Leite & Georges Abboud Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R675 Ronald Dworkin [recurso eletrônico] : direito, política e pessoa humana / Adriano Marteleto Godinho ... [et al.] ; organização Agassiz Almeida Filho , George Salomão Leite , Georges Abboud. - 1. ed. - Florianópolis [SC] : Tirant Lo Brach, 2018. recurso digital ; 3 MB Formato: epdf Requisitos do sistema: adobe acrobat reader Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia e índice ISBN 9788594771940 (recurso eletrônico) 1. Dworkin, Ronald, 1931-2013. 2. Direito - Filosofia. 3. Livros eletrônicos. I. Godinho, Adriano Marteleto. II. Almeida Filho, Agassiz. III. Leite, George Salomão. IV. Abboud, Georges. 18-51105

CDU: 340.1

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644 12/07/2018 20/07/2018

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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RONALD DWORKIN: DIREITO, POLÍTICA E PESSOA HUMANA


AUTORES Adriano Marteleto Godinho – Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa/Portugal. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal da Paraíba. Agassiz Almeida Filho – Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra/Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca/Espanha. Titular do Diploma de Estudios Avanzados – Universidad de Salamanca. Titular do diploma de pós-graduação em Direito Penal Econômico e Europeu – Universidade de Coimbra. Instância de investigação no Centre de Théorie et Analyse du Droit – Université de Paris Ouest – Nanterre La Défense. Pesquisador convidado do Centre d’Études et de Recherches de Science Administrative – Université Panthéon-Assas Paris II. Professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Professor de Propedêutica Jurídica da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. Integrante do “Comité de los referentes de los proyectos internacionales” do Centro di studi sull’America Latina – Università degli studi di Bologna. Alexandre da Maia – Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre em Teorías Críticas del Derecho y Democracia pela Universidad Internacional de Andalucía/Espanha. Professor do programa de pós-graduação em direito e coordenador do curso de graduação em direito da Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Alfredo Copetti Neto – Doutor em Teoria do Direito pela Scuola Dottorale Internazionale in Diritto ed Economia Tullio Ascarelli – Università di Roma. Mestre em Direito Público pela Unisinos. Tem Estágio Pós-Doutoral CNPq/ Unisinos. Professor da Universidade Estadual do Paraná e UDC. Editor da Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Membro fundador da Rede de Pesquisa Estado e Constituição. Alonso Freire – Doutorando em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Yale Law School Linkage – 2015. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professor de


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Direito Constitucional. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF. Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque – Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ. Mestre em Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor de Direito UFMT e UNEMAT. Cláudio Ari Mello – Doutor em Teoria do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Danielle da Rocha Cruz – Mestre em Direito Penal pela Universidade de Salamanca/Espanha; Titular do Diploma de Estudios Avanzados pela Universidade de Salamanca/Espanha. Instância de investigação no Centre de Théorie et Analyse du Droit – Université de Paris Ouest – Nanterre La Défense. Pesquisadora convidada do Centre d’Études et de Recherches de Science Administrative – Université Panthéon-Assas Paris II. Danilo dos Santos Almeida – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Visiting Research Fellow na Brown University (2014). Doglas Cesar Lucas – Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Roma Tre. Doutor em Direito pela UNISINOS/RS. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor dos Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI e professor no Curso de direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior Santo Ângelo -IESA. Professor visitante no mestrado e doutorado em Direito da URI. Edna Hogemann – Pós-Doutora em Direito pela Universidade Estácio de Sá/ RJ. Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho – UGF. Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho – UGF. Professora do Curso de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UniRio. Professora Permanente do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu, em Direito, da Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ.

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College Brazil Institute. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Membro do IDEJUST. Coordenador do CJT/UFMG – Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (http://cjt.ufmg.br) e da Secretaria Executiva da RLAJT – Rede Latino-Americana de Justiça de Transição (2016-2017). Estefânia Maria de Queiroz Barboza – Doutora e Mestre em Direito pela PUCPR, com estágio doutoral (doutorado sanduíche) e bolsa CAPES na Osgoode Hall Law School (York University). Professora Adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professora do Mestrado em Direito do Centro Universitário Internacional – UNINTER. Evandro Barbosa – Pós-doutor pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Doutor e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Visiting professor na Yale University, sob orientação de Stephen Darwall, com bolsa CAPES, e visiting scholar na University of California sob orientação de David Copp. Professor no Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Felipe Guimarães Assis Tirado – Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pesquisador do CJT/UFMG e da Secretaria Executiva da RLAJT. Francisco Carlos Duarte – Pós-Doutor pela Universidade de Granada/Espanha. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFSC e pela Universitá di Lecce – Itália. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Francisco José Borges Motta – Doutor e Mestre em Direito Público pela UNISINOS/RS. Professor da Faculdade Escola Superior do Ministério Público – graduação e mestrado. Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul. George Salomão Leite – Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires – UCA. Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Advogado.

Eduardo Appio – Pós Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Juiz Federal da 2 Turma Recursal dos JEFs do Paraná. Participou do programa de Filosofia e Direito de Ronald Dworkin na NYU em N York em 2008.

Georges Abboud – Doutor e Mestre em direito pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor de processo civil da Pontificia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e do programa de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP/DF. Advogado sócio do escritório Nery Advogados. Diretor Acadêmico da ABDPRO – Associação Brasileira de Direito Processual.

Emilio Peluso Neder Meyer – Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Visiting Researcher no King’s

Glauco Salomão Leite – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre em Direito pela Pontificia Universidade


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Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor do PPG-D UNICAP. Membro do grupo de pesquisa REC. José Emílio Medauar Ommati – Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Coordenador do Curso de Direito da Pontificia Universidade Católica de Minas Serro – PUC/Minas Serro. Júlio César Rossi – Pós-doutor pelo Ius Gentium Conimbrigae – Universidade de Coimbra e Doutor em Direito Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPRO. Advogado da União em Brasília-DF. Lenio Luiz Streck – Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa – FDUL. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Ex-Procurador de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul. Professor Titular de Direito Constitucional da UNISINOS/RS. Advogado. Lucas Henrique Muniz da Conceição – Membro do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia. Mestrando em Direito Constitucional por Birkbeck College – Universidade de Londres/Inglaterra. Advogado. Luis Prieto Sanchís – Universidad de Castilla-La Mancha. Néviton Guedes – Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra/Portugal. Desembargador do TRF da 1ª Região. Professor da Graduação no Uniceub. Rafael Tomaz de Oliveira – Doutor e Mestre em direito pela UNISINOS-RS. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNAERPSP. Advogado. Thaís Alves Costa – Professora no curso de graduação em Filosofia EAD da Universidade Federal de Pelotas. Tassiana Bezerra – Mestranda do programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Ulisses Schwarz Viana – Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito Constitucional pela Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público – EDB/IDP. Professor na Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público – EDB/IDP. Professor na Pós-Graduação em Direito da Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – FESMPDFT. Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul.

PREFÁCIO Stephen Guest12 Eu fiquei impressionado como ao longo dos últimos 20 anos, em particular, tivemos neste Colégio uma série de pesquisadores brasileiros de alta qualidade. O que especialmente caracterizava-os era um impressionante compromisso com a Constituição Brasileira, uma Constituição emergindo de uma reação a longos períodos de ditadura e, talvez não surpreendentemente, explícita ao empregar princípios morais para sua interpretação. Estes alunos, no início da década de 2000, criaram um grupo de estudos com os nossos estudantes alemães para compartilhar perguntas de interpretação constitucional, uma vez que, entendo, há semelhanças entre ambas as Constituições, brasileira e alemã. Também estou ciente de um grande interesse em Dworkin no Brasil, e gostei bastante de ter uma tradução de meu livro Ronald Dworkin, amplamente divulgado, além de notar que um número significativo de acessos ao meu site – talvez um quarto – vêm do Brasil. Eu estava particularmente satisfeito porque sinto que começo a entender Dworkin “direito” – compreendo a ele – que, em todo o mundo, mas especialmente no Reino Unido, é amplamente mal entendido. Talvez isso já devesse ser esperado no Reino Unido, uma vez que houve o início de uma compreensão precoce e muito articulada do positivismo jurídico, uma doutrina arraigada em indagações acerca da validade da lei, independentemente de verdades sociais empíricas de moralidade. Minha proximidade com Ronald Dworkin começou em 1973. Eu acreditava ser um positivista jurídico comprometido, mas fui dominado por sua habilidade como advogado, seu poder analítico e abstrato e sua visão moral. Grandes juristas – e Dworkin foi um dos maiores – são raros porque precisam possuir vários talentos. i. Eles devem ser capazes de argumentar juridicamente, isto é, eles devem saber como discutir casos reais, 1. 2.

Professor Emérito de Filosofia do Direito da University College London/Inglaterra. Ex-aluno de Ronald Dworkin na University College Oxford/Londres, em 1973. Tradução realizada por George Salomão Leite.


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a compreensão da lei, tanto do ponto de vista particular, quanto judicial. Eles devem saber como ler um caso e, também, compreender a legislação. Não adianta fingir que a argumentação jurídica, na práxis judicial, não faz parte da “teoria”, embora esta seja uma opinião generalizada entre nós (Posner e outros) e no Reino Unido (a escola de Oxford de jurisprudência em Raz). ii. eles devem ter as habilidades necessárias para análise lógica. Isto é diferente da capacidade de participar em algo chamado “jurisprudência analítica”; uma vez que não se pode ‘analisar’ práticas legais de forma independente de avaliar a ação humana e a construção ou interpretação dos fins (‘Jurisprudência Analítica’ é um nome – um termo de rotulagem – e não uma descrição de um método coerente). Mas requer a compreensão das idéias de verdade, de inferência, de vinculação, da relação entre a linguagem e o mundo, a estrutura lógica de proposições de valor, a lógica da descoberta científica; para entender as diferenças entre, digamos, contraditórias, contrárias e incoerentes posições. Mas, para além destas duas habilidades, que Dworkin possuía em grau notável e invejável, há uma terceira possibilidade, que é necessária, iii. a de elevada percepção moral que eu acredito que Dworkin realmente possuía a um grau muito intenso, de fato. Muito poucos intelectos desenvolvem estudos nestas três áreas. A Ciência do Direito exige deles. H. L. A Hart foi um excelente e atuante advogado durante muitos anos no Chancery Bar, conhecido pela sua praticidade e atenção aos detalhes verbais; ele também era hábil na lógica (suas aulas conjuntas com J. L. Austin sobre a filosofia da linguagem); possuia, também, maior percepção moral (ver sua obra Direito, Liberdade e Moralidade e, para o seu reconhecimento explícito, a base moral para o positivismo jurídico, Cap. IX, do Conceito de Direito). Jeremy Bentham foi um advogado perspicaz, escreveu sobre a lógica da linguagem, e foi uma das mais importantes figuras da reforma social no século 19. Há agora, no entanto, muitos que se chamam de juristas, mas que falta um ou até mesmo todos os três destes atributos. Muitos são vagamente a favor da “lei natural”, e têm a confiança de percepção moral decente, mas carecem de rigor intelectual. Muitos falta competência em discutir um caso judicial. Talvez a maioria não tenha conhecimento da profundidade da disciplina e varredura da filosofia. Muitos, penso Joseph Raz e seus seguidores, em Oxford, em especial, são excelentes em análise lógica, mas falta conhecimento seguro com argumentos legais, e só têm percepção moral média.

PREFÁCIO DE Stephen Guest 11

A minha convicção é a de que Dworkin trouxe a jurisprudência para seu melhor tom, e isso ainda não foi plenamente reconhecido. Quando suficiente trabalho – trabalho como evidenciado por alguns excelentes ensaios nesta coleção – se acumula sobre os escritos de Dworkin, a minha esperança é que ele vai ser devidamente entendido não apenas como o jurista que criou o original e brilhante argumento mostrando a fraqueza e inutilidade do positivismo jurídico, mas como alguém que era um descendente natural dos grandes positivistas, Bentham e Hart. Todos eram advogados, todos eram habilidosos na análise lógica, todos eram reformadores morais. E, eu acrescentaria, todos eram intensamente práticos e, ao mesmo tempo, capazes de um pensamento altamente abstrato. Todos os três, por exemplo, pensavam que a estrutura do positivismo jurídico, para ter qualquer sentido, deveria ser motivada pela moralidade. Na introdução ao seu Fragmento de Governo, Bentham afirma que o princípio moral da utilidade deve governar a distinção entre formas sociais, como a moral, a história e a lei; no Cap. IX do Conceito de Direito, Hart disse que o positivismo jurídico era uma maneira moralmente preferível de submeter os tiranos à possibilidade de que suas reivindicações careciam do selo de autoridade; e Dworkin em Justiça para Ouriços argumenta que todos os juízos de valor, incluindo os de moralidade, sua política de subespécies e sua sub-sub-espécie lei só poderia ser justificado por outros julgamentos de valor. Eu tenho defendido Dworkin em outros lugares, sob diferentes aspectos de sua teoria geral. A minha principal queixa é a de que a crítica é superficial. Eu realmente tenho a sensação de que há muitos críticos que não leram nada dele. Dworkin é difícil e profundo. Mas ele não é obscuro, muito menos confuso e escreve claramente. Duas coisas militam contra sua ampla aceitação. A primeira, qualquer pessoa familiarizada com a minha própria escrita saberá, é a sua crença de que há respostas certas às questões avaliativas (interpretativas). As pessoas ficam maravilhadas com essa idéia radical. Mas não é radical. Aqueles que pensam que Dworkin está errado ao pensar que há respostas certas se contradizem. Dworkin sempre ficou intrigado com o ponto cego aparente em pessoas que pensam que podem dizer que isso ou aquilo está errado, ou certo, e depois dizer “mas não há respostas certas para essas questões”. Devo dizer que estou intrigado também. Dworkin costumava dizer “é como bater numa parede de tijolos”. Existe uma diferença entre gosto/


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capricho etc, e julgamento. Obviamente. Obviamente, você acha que é verdade que a tortura de crianças pequenas para o divertimento está errada. Que podemos provar essas coisas ou não, é irrelevante. E, famosa, não pode provar que a prova é necessária para a verdade. Caso contrário, por que não ser consistente e dizer: não é necessária nenhuma prova, caso em que ... O outro é a coincidência, em alguns casos, de seus pontos de vista com o que são consideradas posições extremamente libertárias. Muitas pessoas não conseguem sustentar a sua opinião de que existe um “direito à pornografia”. Mas eu considero, em vez disso, essa visão como prova de sua maior percepção moral. Ele leva a sério o respeito que devemos ter pela pessoa humana. Esse respeito exige que não interfiramos com a própria determinação de uma pessoa sobre o que é bom para eles. Não é nosso negócio interferir. Ao ser humano é negado o reconhecimento de sua dignidade como um auto-criador, um auto-iniciador, de sua própria vida. É a própria essência do que a liberdade significa. Essa penetração no ponto mais abstrato é típica de Dworkin. A justificativa para a liberdade de expressão, assim apresentada, é livre de justificativas utilitárias, como aquelas que ajudam a verdade (JS Mill), ou justificativas deontológicas, que reconheçam nossa racionalidade inerente (Scanlon). A liberdade de expressão, portanto, liga à liberdade de pensamento – e, de resto, à privacidade – e à justificativa mais abstrata da democracia, que reside no respeito das características duplas da moralidade política: a liberdade individual e o reconhecimento genuíno que são seres moralmente iguais. A obra Ronald Dworkin: Direito, Política e Pessoa Humana, que tenho a honra de prefaciar, apresenta aos leitores uma visão densa e profunda do pensamento dworkiano, constituindo-se em fonte obrigatória de leitura no tocante ao tema proposto. Londres, Inglaterra, 2018.

SUMÁRIO

I PARTE - DIREITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 O DIREITO NO PENSAMENTO DE DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Ulisses Schwarz Viana

CRÍTICA DE RONALD DWORKIN AO POSITIVISMO JURÍDICO. . . . . . . 37 Danilo dos Santos Almeida

A IRRETROATIVIDADE E A TEORIA DAS NORMAS EM RONALD DWORKIN: UMA ANÁLISE CRÍTICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Néviton Guedes

A TEORIA DA INTERPRETAÇÃO DE RONALD DWORKIN E O DIÁLOGO ENTRE INTERPRETAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO NA FILOSOFIA DE PAUL RICOEUR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 Alexandre da Maia Tassiana Bezerra

PRINCÍPIOS E PRECEDENTES: COMO A TEORIA INTERPRETATIVISTA DE RONALD DWORKIN CONTRIBUIU PARA UMA EFETIVA TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL.. . . . . . . . . . . . . . . . 87 Júlio César Rossi

RONALD DWORKIN E A INTEGRIDADE COSMOPOLITA DO DIREITO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 Alonso Freire

INTEGRIDADE E COERÊNCIA: UMA LEITURA A PARTIR DO DIREITO COMPARADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 Estefânia Maria de Queiroz Barboza Lucas Henrique Muniz da Conceição

RELENDO O DEBATE ENTRE HART E DWORKIN: UMA CRÍTICA AOS POSITIVISMOS INTERPRETATIVOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 Lenio Luiz Streck Francisco José Borges Motta

O ATIVISMO JUDICIAL NA VISÃO DE RONALD DWORKIN . . . . . . . . . . 193 Eduardo Appio

HÁ UM PROCEDIMENTO CAPAZ DE GARANTIR REGULARIDADE E SEGURANÇA ÀS DECISÕES JUDICIAIS? CONFIGURAÇÕES POSSÍVEIS PARA PROJETAR A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 926 DO CPC A PARTIR DE UMA INSPIRAÇÃO DWORKINIANA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209


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Georges Abboud Rafael Tomaz de Oliveira

O DEBATE RONALD DWORKIN E RICHARD POSNER: NOTAS SOBRE O DIREITO COMO INTEGRIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 Alfredo Copetti Neto Glauco Salomão Leite

CUATRO PREGUNTAS A PROPOSITO DE LA TEORIA DEL DERECHO DE DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 Luis Prieto Sanchís

II PARTE - MORAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283 DIREITO, MORAL E LIBERDADE EM RONALD DWORKIN. . . . . . . . . . . 285 Agassiz Almeida Filho

A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305 Cláudio Ari Mello

A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL EM DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . 333 Emilio Peluso Neder Meyer Felipe Guimarães Assis Tirado

A VERDADE NO DIREITO: REFLEXÕES A PARTIR DA TESE DA ÚNICA RESPOSTA CORRETA DE RONALD DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . . 351 José Emílio Medauar Ommati

O DIREITO ENTRE LEGALIDADE E LEGITIMIDADE: A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375 Doglas Cesar Lucas

O OURIÇO (IN)DEFESO ANTE A (DES)INTERPRETAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NA OPERAÇÃO LAVA-JATO: REESTABELECENDO DWORKIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 397 Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque

A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM RONALD DWORKIN. . . . . . . . . 409 Francisco Carlos Duarte

AÇÃO AFIRMATIVA EM DWORKIN: O DIREITO AO TRATAMENTO COMO IGUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427 Thaís Alves Costa

III PARTE - PESSOA HUMANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445 A PESSOA COMO FIM EM SI E A CONCEPÇÃO DE DIGNIDADE

SUMÁRIO 15

HUMANA EM RONALD DWORKIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447 Evandro Barbosa

DIREITO A MORTE DIGNA EM RONALD DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . . . 461 George Salomão Leite

ENTRE A VIDA E A MORTE: A QUESTÃO DA EUTANÁSIA E O PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483 Adriano Marteleto Godinho Edna Hogemann

DIREITO À AUTONOMIA REPRODUTIVA E ABORTO EM RONALD DWORKIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501 Danielle da Rocha Cruz

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515


O DIREITO NO PENSAMENTO DE DWORKIN Ulisses Schwarz Viana1 RESUMO: o presente texto tem por escopo produzir breve estudo sobre a concepção do direito de Ronald Myles Dworkin. Na introdução esboçam-se anotações biográficas com o relato da contraposição de Dworkin aos fundamentos teóricos do positivismo jurídico. No segundo tópico é analisada, em forma sintética, a interlocução teórica entre Ronald Myles Dworkin e Herbert Lionel Adolphus Hart. Ainda no segundo tópico, introduzem-se os conceitos iniciais de Dworkin sobre a questão do sistema jurídico. No terceiro tópico são desenvolvidas as teses dworkianas sobre o direito como interpretação e a teoria do direito como integridade. No tópico conclusivo é registrada a importância do trabalho teorético desse polêmico e questionador pensador do direito. PALAVRAS-CHAVE: Ronald Myles Dworkin. Positivismo jurídico. Pós-positivismo jurídico. Direito. Princípios. Regras. Normatividade. SUMÁRIO: I. Introdução II. Princípios e o conceito de Direito: Dworkin v. Positivismo Jurídico III. Direito como interpretação e como integridade IV. Considerações Finais. Bibliografia.

I. INTRODUÇÃO Um dos temas mais controversos e polêmicos na evolução do pensamento jurídico contemporâneo é sempre o da determinação da natureza do direito, de sua gênese, de seus fundamentos e de sua teleologia, assim como de sua normatividade. Muitas correntes teóricas se formaram nesse percurso evolutivo, dentre elas o denominado positivismo jurídico, não obstante este rótulo não designe uma corrente totalmente homogênea de pensamento. O assim chamado positivismo jurídico teve o auge de seu prestígio no decorrer do séc. XX, fundando em síntese nos pressupostos da teoria do formalismo jurídico, da teoria da coatividade do direito, teoria da legislação como 1.

Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Constitucional pela Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (EDB/IDP). Professor na Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (EDB/IDP). Professor na Pós-Graduação em Direito da Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul. E-mail: ulisses.schwarz@terra.com.br


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fonte proeminente do direito, da teoria imperativística do direito, da teoria da completude e coerência do ordenamento jurídico, teoria da interpretação mecanicística do direito, dentre outros2. No contexto dos teóricos positivistas do direito, chega-se ao alto grau de sofisticação da teoria jurídica de Herbert Lionel Adolphus Hart (H. L.A. Hart). Hart elabora uma teoria juspositivista baseada na compreensão do direito como conjunto de regras jurídicas cujo pertencimento a um sistema normativo constituído por regras jurídicas, cujo admissão como tal seria resultado da aplicação de uma regra de reconhecimento (recognition rule), aceita convencionalmente, bem como que os princípios seriam simples guias de uma aplicação discricionária do direito pelos juízes3, ou seja, não deteriam carga normativa. No movimento de contraposição ao positivismo jurídico, surgem propostas pós-positivistas no cenário do pensamento jurídico no abrir das cortinas do fim do séc. XX, dentre as quais a de Ronald Myles Dworkin, uma das figuras centrais na constelação dos grandes e destacados teóricos contemporâneos do direito. Dworkin é hoje reconhecido como um dos mais qualificados interlocutores com a teoria de H. L. A. Hart; na verdade, um dos mais inteligentes e argutos contestadores dos fundamentos basilares de seu positivismo jurídico expostos na obra The Concept of Law (1961). Merece registro, ainda, como breve anotação biográfica, que Ronald Myles Dworkin nasce em Worcester, Massachusetts, aos 11 de dezembro de 1931, falece em Londres, ais 14 de fevereiro de 2014. Dentre suas principais obras sobre o direito estão Taking Rights Seriously (1977), A Matter of Principle (1985), Law’s Empire (1986), Justice in Robes (2006) e Justice for Hedgehogs (2011). Não há dúvida quanto à relevância e a influência de seus textos no pensamento jurídico na parte final do século passado, persistindo de forma duradoura até os presentes dias nos debates jurídicos, mormente no ponto em que se discute o que é o direito, sua estrutura, seus fundamentos e seu papel na sociedade hodierna, complexa e plural, com efetivo destaque para 2. 3.

BOBBIO, Norberto. Il positivismo giuridico. Turim: G. Giappichelli Editore, pp. 130-132. Para a compreensão do pensamento de H. L. A. Hart leia-se The Concept of Law (2ªed. Oxford: Oxford University Press).

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sua compreensão da carga normativa dos princípios. Dworkin, como bem registra Ronaldo Porto Macedo Júnior4, era um liberal convicto, chegando a desenvolver aquilo que denomina de concepção do liberalismo igualitário, o que bem demonstra a fonte de inspiração dworkiana para sua ideia de direito. Dentro dos estreitos limites deste texto, cujo propósito não é produzir estudo crítico ou elaborar visão compreensiva e cabal do pensamento jurídico de Dworkin, nem de esgotá-lo. Na verdade, o texto se estrutura em tópicos dispostos com intuito estritamente didático, como painel contendo os pontos e as premissas centrais da concepção dworkiana do direito para orientar os que iniciam seus passos pelas sendas dworkianas e, ainda, esperando seja útil de algum modo aos estudiosos familiarizados com o autor.

II. PRINCÍPIOS E O CONCEITO DE DIREITO: DWORKIN V POSITIVISMO JURÍDICO Não se poderia deixar em texto voltado ao estudo da ideia de direito no trabalho teórico de Ronald Myles Dworkin sem mencionar de início o seu ataque intelectual aos fundamentos do positivismo jurídico, centrado na figura do também extraordinário H. L. A. Hart. A esse confronto intelectual a teoria e a filosofia contemporâneas do direito têm inestimável débito, isto porque, de modo inquestionável, tanto Hart quanto Dworkin representam dois eixos importantíssimos na busca do sentido e da natureza do direito, mais ainda do direito como um sistema normativo. Para adentrar essa instigante confrontação intelectual de Dworkin com o positivismo jurídico de H. L. A. Hart, devemos mencionar o célebre texto dworkiano intitulado “The Model of Rules I”, em que Dworkin desenvolve a linha de ataque inicial a três teses nas quais se fundam grande parte dos positivistas jurídicos, assim sintetizadas por Scott J. Schapiro5: “The law of a Community... can be identified and distinguished by specific criteria, by tests having to do not with their content but with their pedigree or the manner in which they were adopted or developed. “The set of these valid legal rules is exhaustive of “the law”, so that if someone´s 4. 5.

MACEDO JR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin – Teórico do Direito. In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, Tomo I, pp. 18-21. SCHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (Ed.). RONALD DWORKIN. 2007. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 24-25.


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case is not clearly covered by such a rule (because there is none that seem appropriate, or those that seem appropriate are vague, or for some other reason) then that case cannot be decided by “applying the law”. It must be decided by some official, like a judge, ‘exercising his discretion’. “To say that someone has a ‘legal obligation’ is to say that his case falls under a valid legal rule that requires him to do or to forbear doing something.”6

Dentro dos limites deste texto, analisaremos os dois primeiros contrapontos de Dworkin a cada uma dessas ‘teses positivistas’, sendo que nos concentraremos, no primeiro momento, na questão relacionada com a tese do pedigree. Dworkin utiliza no texto “Is Law a System of Rules?”7 o caso por ele celebrizado Riggs v. Palmer, para demonstrar os limites e as deficiências da tese de que o direito seria um sistema de regras cujo pertencimento a sistema normativo do direito seria ‘certificado’ por meio da aplicação de uma recognition rule (regra de reconhecimento), sendo que para Dworkin resultaria desta noção hartiana a assunção da existência de uma “master rule for law”8. Neste mesmo texto, Dworkin9 observa o modelo teórico de Hart, anotando que: “Most rules of law, according to Hart, are valid because some competent institution enacted them. Some were created by a legislature, in the form of statutory enactments. Other created by judges who formulated them to decide particular cases, and thus established them as precedents for the future.10”

Porém, Dworkin formula o questionamento em torno de investigação de se esta noção hartiana de rules of law (regras de direito) permitiria aos princípios passar pelo teste de pedigree. A esta master rule for law (regra jurídica Tradução livre: (1) “O direito de uma comunidade… pode ser identificado e distinguido por critérios específicos, por testes que não têm a ver com seu conteúdo, mas com seu pedigree ou ao modo pelos quais eles foram adotados ou desenvolvidos. (2) O conjunto dessas regras legais válidas esgota o que é “o direito”, então se o caso de alguém não está abrangido por uma regra tal (porque nenhum parece apropriado, ou aquele que parecem apropriados são vagos, ou por alguma outra razão), então o caso não pode ser decidido pela “aplicação do direito”. Isto deve ser decidido por algum agente oficial, como um juiz, “exercendo sua discricionariedade”. (3) “Para se afirmar que alguém tem uma ‘obrigação legal’ é dizer que seu caso se subsome a uma regra válida de direito que exige dele que faça ou se abstenha de fazer alguma coisa” 7. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. 1977. Oxford: Oxford University Press, pp. 60-61. 8. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. 1977. Oxford: Oxford University Press, p. 60. 9. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. 1977. Oxford: Oxford University Press, pp. 60-61. 10. Tradução livre: “A maior parte das regras de direito, de acordo com Hart, são válidas porque alguma instituição dotada de competência as expediu. Algumas são criadas pelo Legislativo, na forma de leis formais. Outras são criadas pelos juízes que as formulam para decidir casos em particular, e assim as estabelecem como precedentes para o futuro”.

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mestra), segundo Dworkin, escaparia a dimensão dos princípios, ou melhor posto, a dimensão normativa dos princípios como normas integrantes do conceito de sistema jurídico-normativo, visto que o próprio Hart explicitamente declarava o sistema jurídico como um conjunto de regras. Dworkin apresenta o caso Riggs v. Palmer. Neste caso, decido por Tribunal de Nova Iorque, em 1889, Elmer E. Palmer apresenta-se como herdeiro de seu avô, pois havia um testamente que expressamente lhe conferia o direito à herança, mas havia um curioso e sórdido detalhe: Elmer havia assassinado seu avô com o propósito de receber a herança (!). Ou seja, pelas regras aplicáveis ao caso, o jovem Elmer teria direito a receber a herança segundo as regras legais e testamentárias. Contudo, o Tribunal ao decidir o caso afastou as regras ao argumento de que os contratos e as leis podem ser limitados por ‘máximas gerais’ e ‘fundamentos do direito costumeiro’, por fim, aplicou o princípio de que ninguém poderia lucrar com sua própria fraude ou beneficiar-se por meio de atos ilícitos. Assim, decidiu que o jovem Elmer E. Palmer não poderia ter reconhecido judicialmente seu direito à herança deixada pelo avô assassinado (por ele mesmo). Como se depreende, o Tribunal deixou de aplicar uma regra para prestigiar um princípio. Como explicar esse caso à luz da teoria positivista do direito como conjunto de regras jurídicas? Passaria esse caso pelo critério da rule of recognition a partir das compreensões hartianas do reconhecimento de regras? Para dar resposta a estas indagações, Dworkin passa a delinear e expor sua tese de que os princípios possuem carga normativa, ou, simplesmente, elabora a tese de normatividade dos princípios. Dworkin, em nossa leitura, propõe a passagem de uma perspectiva unidimensional do sistema jurídico (sistema de regras) para uma dimensão bidimensional (sistema de princípios e de regras). Mas, antes de tudo, o que seriam os princípios11 para Dworkin? Ele 11. Em outro trecho, Ronald Dworkin (in: Taking Rights Seriously. 1977. Cambridge: Harvard University Press, p. 28) enfatiza a diferença e a relevância maior dos princípios sobre as regras, dizendo: “Once we identify legal principles as separate sort of standards, different from rules, we are suddenly aware of them all around us. Law teachers teach them, lawbooks cite them, legal historians celebrate them” (Tradução livre: “Uma vez que identificamos os princípios jurídicos como uma espécie separada de standards, diferentes das regras, tornamo-nos repentinamente conscientes de que eles estão a nossa volta. Professores de direito os ensinam nos livros, livros jurídicos os citam, historiadores do direito os celebram”).


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mesmo nos dá essa eloquente resposta12: “I call a ‘principle’ a standard that is to observed, not because it will advance or secure an economic, political or social situation deemed desirable, but it is a requirement of justice or fairness or some dimension of morality.13”

Chama atenção aqui o fato de que para Dworkin os princípios trazem para o interior do sistema jurídico a dimensão da moralidade, superando o postulado positivista da separação entre direito e moral, como se vê também em H. L. A. Hart14. Outro problema que a teoria dworkiana traz à cena da teoria geral do direito e para teoria hartiana é que mesmo que se pudesse afirmar que a regra de reconhecimento serviria para ‘reconhecer’ os princípios dentro do sistema normativo, haveria o intransponível obstáculo de natureza fática, exposto por Dworkin do seguinte modo15: “If, instead, we tried actually to list all the principles in force we would fail. They are controversial, their weight is all important, they are numberless, and they shift and change so fast that the start of our list would be obsolete before we reached the middle.16”

Os princípios como standards em Dworkin também trazem consigo outro aspecto teórico desse autor, a questão da weight dimension (dimensão de peso). Sobre as diferentes dimensões de peso entre princípios e regras jurídicas, Dworkin explica17: “The first difference between rules and principles entails another. Principle have a dimension that rules do not – the dimension of weight or importance. When principles intersect (…), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each.18”

Importante aqui registrar que enquanto a intersecção entre princípios 12. DWORKIN, Ronald M. Taking Rights Seriously. 1977. Cambridge: Harvard University Press, p. 22. 13. Tradução livre: “Eu denomino um princípio um standard que deva ser observado, mas não porque ele promove ou assegura uma situação econômica, política ou social que se considere desejável, mas como requerimento de justiça ou equidade ou alguma dimensão da moralidade” 14. HART, H. L. A. The Concept of Law. 2ª ed. 1994. Oxford: Oxford University Press, pp. 185-212. 15. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. 1977. Oxford: Oxford University Press, p. 64 16. Tradução livre: “Se, em vez disso, nós realmente tentássemos listar todos os princípios em vigor não teríamos sucesso. Eles são controvertidos, seu ‘peso’ é totalmente importante, eles são inumeráveis, e eles se transformam e mudam tão rápido que se começarmos nossa lista, esta já estaria obsoleta quando alcançássemos a metade”. 17. DWORKIN, Ronald M. Taking Rights Seriously. 1977. Cambridge: Harvard University Press, p. 26. 18. Tradução livre: “A primeira diferença entre regras e princípios abrange outra. O princípio detém uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se cruzam (...), tem-se que resolver o conflito tomando-se em conta o peso relativo de cada um deles.

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se resolve, segundo Dworkin, pela diferença de peso entre eles, pela tese da dimensão de peso. Já as regras encontram o problema do conflito entre elas no plano da validade. Se uma regra está em conflito com outra, umas delas não é válida. Ou seja, no conflito entre regras entra em cena o conceito de “all-or-nothing” (tudo ou nada)19. Outro ponto de divergência entre Dworkin e os positivistas se centra na questão da discricionariedade dos juízes em suas decisões. No estudo das regras jurídicas, H. L. A. Hart20 formula a tese da open texture do direito que permitiria em face da não existência ou incompletude de uma regra específica, o que representaria um caso de difícil solução, situação em que não haveria uma resposta (solução), mas sim respostas (soluções), o que resultaria da discricionariedade21 na escolha de soluções para casos ‘omissos’, com a fundamentação argumentativa dessas repostas (escolhas) feitas sem uma regra preexistente, desde que essas soluções passem positivamente pelo teste da regra do pedigree (recognition rule). Nesta moldura teórica, Dworkin se contrapõe à ideia de H. L. A. Hart da open texture do sistema jurídico, com a tese em que nas maior parte dos casos há “one-right-answer” (uma-resposta-correta), visto que a teoria da integridade do direito – a ser desenvolvida no tópico seguinte – exige coerência em um sistema único de justiça e equidade. Dworkin acrescenta a sua crítica da open texture hartiana, o fundamento de que, segundo ele, há grave deficiência do positivismo hartiano ao não tomar em conta a existência de princípios legais 22, devendo ser rejeitada a proposta de um “modelo de e para um sistema de regras” como paradigma do direito. Nessa linha de raciocínio, Dworkin rejeita a tese admitida pelos positivistas da possibilidade de uma discricionariedade forte (strong discretion), mas abre concessões à tese da discricionariedade fraca (weak discretion), como 19. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. 1977. Oxford: Oxford University Press, p. 61. 20. HART, H. L. A. The Concept of Law. 2ª ed. 1994. Oxford: Oxford University Press, pp. 147-154. 21. Sobre a distinção proposta por Dworkin entre weak discretion (discricionariedade fraca) and strong discretion (discricionariedade forte), leia-se: DWORKIN, Ronald M. Taking Rights Seriously. 1977. Cambridge: Harvard University Press, pp. 31-39. 22. SCHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (Ed.). RONALD DWORKIN. 2007. Cambridge: Cambridge University Press, p. 26.


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bem sintetizada Shapiro23, deste modo: “Dworkin is careful to point out that there are several “weak” senses in which judges must exercise discretion even in hard cases. Judges must exercise discretion in the sense that they are required to use their judgment in reasoning from legal principles to legal conclusions. (...) Dworkin denies, however, that judges must exercise what he calls “strong” discretion, namely, the idea that they must look beyond the law and apply extralegal standards to resolve the case at hand. Once one recognizes the existence of legal principles, Dworkin claims, it becomes clear that judges are bound by legal standards even in hard cases.”24

Como se extrai dessa exposição, a questão da admissão da normatividade dos princípios torna-se aguda quando o juiz está diante dos hard cases, para os quais não existem regra a ser aplicada ou precedente a ser seguido. Por sua clareza, colacionamos a lição de Stephen Guest em que este delineia a ideia de hard cases e sua relação com os princípios, do seguinte modo: “In the hard cases, which are those where the existing legal practices do not supply a definitive answer, the judge cannot rely on rules because, by hypothesis, there are no rules. Instead, he must rely on standards of legal argument which Dworkin calls principles, paramount among which is the foundational principle that people must be treated as equals (as is the expression “all people are equal before the law”). Principles, unlike rules, do not apply in an “all-or-nothing” sense, but require argument and justification of a more extensive, controversial sort.25

Os hard cases em Dworkin assumem feições próprias pelo fato de sua teoria ser nascida no interior do sistema do common law, onde operam os casos limites (inovadores e difíceis) em que o juiz não tem sempre uma diretriz legislativa, uma lei (statute), para guiar a solução de um caso, nem mesmo um precedent26, que lhe fornece as balizas de argumentação decisória a partir 23. SCHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (Ed.). RONALD DWORKIN. 2007. Cambridge: Cambridge University Press, p. 27. 24. Tradução livre: “Dworkin é cauteloso ao apontar que há muitos sentidos ‘fracos’ pelos quais os juízes devem exercer a discricionariedade, ainda que em hard cases. Os juízes devem exercer discricionariedade no sentido de que deles se exige que julguem argumentando a partir de princípios para chegar a conclusões. (...) Dworkin nega, entretanto, que os juízes devem exercer o que ele denomina de discricionariedade ‘forte’, nomeadamente, a ideia de que eles devem olhar para além do direito e aplicar standards extrajurídicos para solucionar o caso diante deles. Uma vez se reconheça a existência de princípios jurídicos, Dworkin alega, tornar-se claro que os juízes estão vinculados por standards jurídicos até mesmo nos hard cases”. 25. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Stanford: Stanford University Press, pp. 20-21. 26. O vocábulo não deve ser lido ou compreendido no sentido que se tem utilizado no Brasil após o advento do CPC de 2015, o poderíamos chamar de precedente à brasileira, que, para nós, merece um olhar crítico. Em Dworkin devemos tem em conta a observação de Stephen Guest (in: GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Stanford: Stanford University Press, p. 253 [n4]) de que: “The position of what are known as “persuasive” precedents, where judgments of judges in other jurisdictions are taken into account, fits best with the way I have suggested principles may be captured by a rule of recognition. They are “persuasive” and not “binding” (Tradução livre: A posição ocupada por aquilo que conhecemos como

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de elementos norteadores fundados na força argumentativa do precedente, como decisão anterior. Nos hard cases, por falta em grande parte das vezes de uma regra ou precedente para o caso, como vimos acima, os princípios assumem capital importância como standards para sua solução, os quais, por sua vez, são indetermináveis e enumeráveis a priori, o que dá uma flexibilidade decisória que remete à necessidade de análise da teoria do direito como integridade. O direito como integridade não permite um decisionismo, mas coloca o juiz como participante de uma chain of law (cadeia de decisões e precedentes), que será estudado no tópico subsequente. Portanto, para Dworkin não há como submeter os princípios à recognition rule de H. L. A. Hart, isto porque nos hard cases a juridicidade dos princípios aplicados na decisão depende, pelos menos em algumas situações, tão somente de seu contéudo e não da regra do pedigree. Os princípios utilizados para indicar a correção da solução (principiológica) do caso se ancoram em uma higher order (ordem superior) onde encontram suporte em princípios mais amplos de moralidade política, os quais são binding (vinculantes) para os juízes por suas propriedades morais intrínsecas. Com esses fundamentos, portanto, Dworkin formula a tese da “oneright-answer”, a qual seria aplicável em uma vasta quantidade de hard cases, senão em todos. Como teoria nascida no ambiente do common-law, caberia indagar, ainda, se a teoria de Dworkin encontra problemas ainda a serem devidamente estudados no campo de atuação do modelo do civil law, com sua estrutura composta em larga escala por regras legais (direito legislado), além do fato de que nesse sistema muitos princípios estão em grande parte positivados em textos legais e constitucionais, havendo, sem dúvida, também, princípios implícitos. Talvez ainda mereça investigação, específica sobre a questão, em torno da eventual limitação aplicativa de Dworkin no sistema jurídico brasileiro, como também, por outro lado, o estudo de possíveis relações de sua teoria com a ideia da lacuna legis, a qual ironicamente dialoga com os postulados teóricos do positivismo jurídico. precedentes ‘persuasivos’, nos quais as decisões de juízes de outras jurisdições são tomadas em consideração, enquadra-se melhor com o modo que sugeri em que os princípios deveriam ser captados por uma regra de reconhecimento. Eles são ‘persuasivos’ não vinculantes”).


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III. DIREITO COMO INTERPRETAÇÃO E COMO INTEGRIDADE No texto publicado na forma de um artigo intitulado Law as Interpretation, apresentado originariamente em um simpósio sobre política e interpretação na Universidade de Chicago, no outono de 1981, Dworkin se propõe a analisar qual sentido deve ser atribuído às proposições normativas do direito, sendo que por proposições ele entende as várias asserções que os advogados fazem sobre o que é o direito em algum aspecto particular ou outro 27. Neste aspecto, Dworkin passa a formular forte crítica ao positivismo jurídico, atacando de modo direto o postulado de que as proposições jurídico-normativas contidas em textos normativos seriam completamente descritivas28, como elementos da história legislativa (“...they are in fact pieces of history”29). Nessa linha de crítica, Dworkin delineia seu pensamento em torno do que ele denomina de hard cases (casos difíceis), nos quais esse elemento simplesmente descritivo das proposições jurídico-normativas seria falho e insuficiente. Como exemplo, Dworkin chama a atenção para o problema de uma ação afirmativa específica que tenha sido reconhecida como constitucionalmente válida, sendo que neste caso sua validade não poderia decorrer simplesmente do texto da Constituição ou do fato de decisões judiciais anteriores neste sentido, isto porque pode haver sempre o problema do dissenso, da discordância quanto a sua validade, a partir de perspectivas diversas30. Então, Dworkin passa a propor, em contraposição a essa concepção descritivista do positivismo jurídico, que as proposições jurídico-normativas não são meramente descritivas de uma história legislativa e legal, como também não seriam simplesmente proposições valorativas a partir do encadeamento da história legal (legislativa). Para ele haveria na verdade uma combinação de elementos descritivos e valorativos. Deste modo, no pensamento dworkiano o direito é uma questão de interpretação, premissa sobre a qual desenvolve sua teoria interpretativista 27. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), pp. 527-550. 28. Dworkin volta seu questionamento contra a compreensão do positivismo jurídico de que as proposições jurídico-normativas sejam caracterizadas como descritivas, ou seja, como descrições de como são as coisas no e para o direito. 29. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 528. 30. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, pp. 3-6.

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do direito. Mas, já de início, deve ser posto em relevo que em Dworkin o termo interpretação não pode ser visto do modo tradicional, mesmo porque ele contesta, por ex., a clássica ideia da interpretação como busca da mens legislatoris31, sendo que o mesmo autor chega a ser provocativo ao asseverar que os advogados “... say that whenever judges pretend they are discovering the intention behind some piece of legislation, this is simply a smoke screen behind which the judge impose their [sic] own view of what the statute should have been”32 (... dizem que toda vez que o juiz fazem crer que eles estão descobrindo a intenção sob um trecho legislativo, isto é simplesmente uma cortina de fumaça atrás da qual o juiz impõe sua própria visão sobre o que a lei deve ter sido”). Em acréscimo, Dworkin propõe que a ideia da interpretação não deve servir como um registro geral da verdade de proposições normativas do direito, sendo que somente seria aceitável a interpretação quando esta seja separada de associações de intenção ou do sentido que lhe dá aquele que fala33. Como já visto no exemplo da interpretação que busca a descoberta da intenção ou do sentido normativo pretendido pelo ‘legislador’34, a mens legislatoris. A concepção interpretativista do direito por Dworkin, a partir do até aqui estudado, é resumido de modo primoroso por Ronaldo Porto Macedo Junior do seguinte modo: “O direito, para Dworkin, é uma prática interpretativa porque seu significado enquanto prática social normativa é dependente de condições de verdade das práticas argumentativas que o constituem”35. A partir deste ponto, Dworkin apresenta sua proposta de uma teoria mais inclusiva da intepretação, tratando-a como uma atividade geral, como um modo de conhecimento, o que remete a outros contextos da atividade interpretativa, como aquela relacionada com a atividade artística, é dizer, formas de interpretação artística. Daí porque Dworkin insere a hipótese estética em sua teoria 31. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, pp. 18-19. 32. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 529. 33. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), pp. 529. 34. A própria ideia da intenção do “legislador” é uma contradição porque no processo legislativo, por seu aspecto deliberativo, não se pode falar de uma mente de um “legislador” personificado, mas sim de um aglomerado de mentes que integram um corpo legislativo (colegiado), de pessoas que participam de uma deliberação no processo legislativo. 35. MACEDO JR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin – Teórico do Direito. In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, Tomo I, p. 15.


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interpretativista. Dentro desse projeto teórico, Dworkin argumenta que no campo dos estudos literários, os estudantes fazem muitas atividades sob o título de “interpretação” ou “hermenêutica”, mas que ele não se interessa pelas atividades interpretativas que se desenvolvem em torno da busca do sentido em que determinado autor teria utilizado uma palavra em específico, mas que ele se interessa por “... arguments that offer some sort of interpretation of the meaning of a work as whole”36 (“argumentos que ofereçam algum modo de interpretação do sentido do trabalho como um todo”). De modo que estes argumentos assumam uma importância geral, como elemento auxiliar para a compreensão de “partes importantes do ambiente cultural”. Assim, a hipótese estética implica na distinção entre “reações subjetivas” a uma obra literária e a interpretação que constrói um propósito, porque “Interpretation is an enterprise, a public institution, and it is wrong to assume, a priori, that the propositions central to any public enterprise must be capable of validity”37(Interpretação é um empreendimento, uma instituição pública, e é equivocado assumir, a priori, que as proposições centrais a um empreendimento público sejam capazes de validade). Na obra Law´s Empire, Dworkin menciona o conceito de interpretação criativa, mas afastando-a de uma concepção metafórica de uma interpretação conversacional, em que não ouvimos a obra de arte em si, mas sim seus verdadeiros autores humanos, tentando desvelar suas intenções, passando a uma compreensão da interpretação criativa como interpretação construtiva. Na moldura de uma interpretação construtiva tanto a intepretação de obras de arte, como também de práticas sociais, Dworkin argumenta a preocupação essencial está no propósito e não nas causas. Sobre a interpretação construtiva, vale transcrição de trecho em que Ronald Dworkin conclui38 que: “Roughly, constructive interpretation is a matter of imposing purpose on an object or practice in order to make it the best example of form or genre to which it is taken to belong. (…) For the history or shape of a practice or object constrains the available interpretation of it, though the character of that constraint needs careful account, … Creative interpretation, on the constructive view, is 36. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 530. DWORKIN, Ronald M. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, pp. 149-154. 37. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), pp. 535. 38. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, p. 52.

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a matter of interaction between purpose and object. (…) A participant interpreting a social practice, according to that view, proposes value for the practice by describing some scheme of interests or goals or principles the practice can be taken to serve or express or exemplify”.39

A interpretação, em sentido amplo, seja no campo da arte ou do direito (como em outros), dever ser regida por um propósito que cria um foco construtivo do objeto interpretado, construção que resulta da interação entre propósito e objeto em que são propostos valores à prática segundo esquemas de interesses, finalidades ou princípios. Dworkin também afasta a ideia do consenso40 como elemento indispensável à prática interpretativa, mormente ao envolver práticas sociais, porque como mesmo nas obras de artes não existe uma fórmula de consenso do que seria uma obra de arte superior ou inferior. No direito do mesmo modo não há consenso sobre a melhor interpretação jurídica. O que fazer? Na esfera das práticas sociais, sua interpretação se liga à ideia de intencionalidade, mas não no sentido de práticas individuais e isoladas, mas no sentido de “...discovering the purposes of the Community that houses the practice, conceived as itself having some forma of mental life or group conciousness”41. Dworkin mais adiante agrega que42: “We should first study a variety of activities in which people assume that they have good reasons for what they say, which they assume hold generally and not just from one or another individual point of view. We can then judge what standards people accept in practice for thinking that they have reasons of that kind.43”

De volta à teoria de intepretação da arte, Dworkin postula que um 39. Tradução livre: “Grosso modo, a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática para torná-la o melhor exemplo de forma ou gênero ao qual é levada a pertencer. (...). Porque a história ou forma de uma prática ou objeto restringem a intepretação disponível para eles, apesar de que o caráter daquela restrição necessita de uma atenção cuidadosa, ... Intepretação criativa, na visão construtiva, é uma questão de interação entre propósito e objeto. (...) Um participante interpretando uma prática social, de acordo com sua perspectiva, propõe valor para a prática pela descrição de algum esquema de interesses ou finalidades em face doas quais a prática é tomada para servir ou expressar ou exemplificar”. 40. Esta compreensão de Dworkin sobre o caráter não integralmente consensual da intepretação recebe detalhada crítica de Jürge Habermas em Between Facts and Norms. 1996. Cambridge: MIT Press, pp. 225-229. 41. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, p. 63. 42. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 535. 43. Tradução livre: “Devemos estudar primeiramente uma variedade de atividades nas quais as pessoas consideram que elas têm boas razões para o que dizem, as quais eles adotam e não somente de um ou outro ponto de vista individual; daí então julgar quais standards as pessoas aceitam na prática para pensar que eles possuem razões deste tipo”.


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approach particular e individual da interpretação seria inevitavelmente “forçado a confiar em aspectos mais gerais da teoria da arte, dando conta disso ou não”44, como um fato ligado à dependência mútua da cadeia de interpretações. Da relação entre direito e literatura, Dworkin elabora a teoria do The chain of Law. A ideia do The Chain of Law poderia ser traduzido de forma livre como “encadeamento de decisões jurídicas”, o que traz para nosso texto outro aspecto a ser explorado em sequência, o do law as integrity (direito como integridade). Talvez um dos aspectos mais interessantes da teoria dworkiana, segundo nossa compreensão, resida nesta ideia do encadeamento de decisões jurídicas (chain of law), a qual parte da analogia com a interpretação literária, do split entre o trabalho do artista que cria sua obra e o do crítico que a interpreta posteriormente. Pois, segundo Dworkin, o artista nada poderia criar sem ao mesmo interpretar o que cria; ao criar ele tem que ter ainda que seja de modo tácito a teoria que explique o motivo que o levou a criar arte, uma forma de arte e não outra. Por sua vez, o crítico de arte cria enquanto interpreta. Há, portanto, uma distinção, para Dworkin, entre interpretar enquanto se cria e criar enquanto se interpreta: a diferença entre artista e crítico. A partir desta digressão a partir da interpretação literária e artística, Dworkin parte para seu modelo central de sua análise do direito. Dworkin retorna ao conceito de hard cases para, falando do encadeamento de decisões jurídicas (chain of law), prelecionar que45: “Deciding hard cases at law is rather like this strange exercise. The similarity is most evident when judges consider and decide “common-law” cases; that is, when no statute figures centrally in the legal issue, and the argument turns on which rules or principles of law “underlie” the related decisions of other judges in the past. Each judge is then like a novelist in the chain. He or she must read through what other judges in the past have written not simply to discover what these judges have said, o their state of mind when they have said it, but to reach an opinion about the collective novel so far written. (…) Each judge must regard himself, in deciding a new case before him, as a partner in a complex 44. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 536. 45. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982), p. 542. DWORKIN, Ronald M. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, p. 159.

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chain enterprise of which innumerable decisions, structures, conventions, and practices are the history; it is his job to continue that history into the future through what he does on the day.46”

Prossegue Dworkin em sua exposição, delineando o argumento de que é dever do juiz o de interpretar a cadeia histórica de decisões judiciais como ele a encontra, sem deixar levar-se pela tentação de criar uma história melhor. Momento em que Dworkin formula a teoria do fit47 decisório, ou seja, do encaixe da decisão, serve de critério para o juiz, ao proferir a decisão, orientar-se no sentido de que sua intepretação do direito aplicável ao caso em julgamento se filie à cadeia histórica de decisões, a uma string decisions (linha decisória). A teoria do fit decisório traz consigo outro aspecto da mais alta relevância para a compreensão da ideia dworkiana sobre o direito, qual seja a questão do direito como integridade (integrity in law)48 e da coerência do direito (coherence of law), sendo a propósito Stephen Guest sintetiza de modo observar que49: “Integrity means that law should always be created, or interpreted, to form an integral whole. This injunction expresses the virtue of integrity, which is distinct from, but, according to Dworkin, on the same plane as, the twin virtues of justice and fairness.50”

A interpretação dentro da atividade jurisdicional também é proposta por Dworkin em sua analogia literária, como vimos estudando, como uma escrita que se apresenta como um “romance em cadeia”, visto que as decisões judiciais são escritas por diversos ‘autores’, por diversos juízes, os quais 46. Tradução livre: “Decidir hard cases jurídicos é antes de tudo este estanho exercício. A similaridade resta mais evidente quando os juízos consideram e decidem casos do common-law; ou seja, quando nenhum texto legislado figura centralmente na questão jurídica, e o argumento se volta sobre saber qual regras ou princípios jurídicos “subjazem” às decisões relacionadas proferidas por outros juízes no passado. Cada juiz é então igual a um novelista em uma cadeia (encadeamento). Ele ou ela deve ler atentamente o que outros juízes no passado escreveram, não simplesmente para descobrir o que esses juízes disseram, ou seu estado mental quando o disseram, mas alcançar uma opinião sobre a novela até este ponto escrita. (...) Cada juiz deve tomar em consideração a si mesmo, ao decidir um caso novo que está diante dele, como um parceiro em uma complexa empresa em cadeia da qual inumeráveis decisões, estruturas, convenções e prática são história; seu trabalho é continuar aquela história para o futuro por meio daquilo que faz no dia de hoje”. 47. O vocábulo fit em língua inglesa expressa a ideia de algo que serve (roupa, por ex.), algo que cabe, algo que se encaixa em algo. Por isso, traduzimos de forma como teoria do encaixe decisório. 48. Para um estudo mais completo do tema integrity in law and the chain of law, leia-se DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, pp. 228-275. 49. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Stanford: Stanford University Press, p. 78. 50. Tradução livre: “Integridade quer significar que o direito deve ser sempre criado, ou interpretado, para formar um todo. Esta injunção expressa a virtude da integridade, a qual se distingue de, mas, de acordo com Dworkin, está no mesmo plano das virtudes gêmeas da justiça e equidade”.


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se colocam na cadeia decisória em que se fixaram atividades interpretativas por juízes que os antecederam. Ainda no tópico do direito como interpretação, não se pode deixar de anotar neste texto aquilo que Ronaldo Porto Macedo Junior denomina de hipótese política na ideia dworkiana do direito como interpretação, no qual, segundo este autor, a intencionalidade pressuposta no processo interpretativo do direito em Dworkin, como visto em momento anterior neste tópico, não é de ordem estética, mas sim política51. Em apoio à leitura apresentada por Ronaldo Porto Macedo Junior, deve anotado que o tema surge nos textos dworkianos como uma questão da relação ou interferência da política na intepretação, sendo que o próprio Dworkin coloca sua concepção de que há efetivamente um papel da política na interpretação legal, tanto que ele a posiciona a partir da equal protection clause da Constituição estadunidense que não produziria qualquer interpretação útil sem recurso a uma teoria política da igualdade ou da igualdade como requisito da justiça. Mais explícita ainda fica na obra Justice for Hedgehogs que para Dworkin o direito é um subset do pensamento político, que, por sua vez, é um subset do pensamento moral. Fato que coloca Dworkin mais uma vez em confronto direto com o positivismo jurídico, em seu postulado fundamental da separação entre direito e moral. Esta postura teórica de Dworkin, como era de se esperar, tornou-se alvo das mais variadas críticas dos positivistas jurídicos. Já no contexto das concepções do direito como integridade e como coerência surge uma figura central nas reflexões dworkianas: o juiz Hércules. O juiz Hécules52 surge como a metáfora do juiz que por sua alta capacidade reflexiva e autoconsciência promove a integridade e a coerência do direito, tanto que Dworkin assim o descreve53: “Hercules is useful to us just because he is more reflective and self-conscious than any real judge need be or, given the press of work, could be. No doubt real judges decide most cases in a much less methodical way. But Hercules shows us the hidden 51. MACEDO JR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin – Teórico do Direito. In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, Tomo I, p. 18. 52. Em estudo direcionado à teoria de Niklas Luhmann, fizemos uma correlação analógica entre o juiz Hércules e o sistema autopoiético do Direito, a qual se encontra em VIANA, Ulisses Schwarz. Direito e Justiça em Niklas Luhmann: contingência e complexidade no sistema jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2015, pp. 213-214. 53. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, p. 265.

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structure of their judgments and so lays these open to study and criticism. (…). He works so much quickly (and has so much time available) than he can explore avenues and ideas they cannot; (…).54”

Prosseguindo com a figura do juiz Hércules deve ser explorada sua relação com a teoria do direito como integridade, quando devemos também analisar o conceito de “gravitational force” no modelo do common-law e sua relação com a ideia da integridade do direito. A força gravitacional está relacionada às práticas do juiz Hércules, que devem ser entendidas pela teoria geral do direito como sua preocupação com a integridade do direito, tanto que Dworkin relaciona a gravitational force dos precedentes com o dever de observar a equidade tratando casos iguais igualmente, ao esclarecer que: “The gravitational force of a precedente may be explained by appeal, not to the wisdom of enforcing enactments, but to fairness of treating like cases alike”55. Merece transcrição a lição de Stephen Guest sobre a gravitational force dos precedentes e sua estreita ligação com o direito como integridade, quando preleciona56: Previous decisions exert gravitational force directly through integrity; it requires the account of the previous case that forces the best argument for showing that the law treats all its subjects in the relevant aspects alike.57

Toda as perquirições de Dworkin sobre o direito como integridade e a tese da coerência faz perceber que ele insere o direito em um espectro de observação mais amplo, em comparação com os postulados do positivismo jurídico, ao confrontá-lo com problemas políticos da igualdade e da equidade (fairness), como instrumentos heurísticos de seus princípios estruturantes. A hipótese da democracia liberal como elemento metodológico para pensar o que é o direito, no final das contas.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há como deixar de reconhecer que o fenômeno jurídico sempre 54. Tradução livre: “Hércules nos é útil somente porque ele é mais reflexivo e autoconsciente do que qualquer juiz real precisa ser ou, pela pressão do trabalho, deva ser. Nenhuma dúvida de que os juízes reais decidem a maior parte dos casos de um modo menos metódico. Mas Hércules nos mostra a estrutura oculta de seus julgamentos e assim os deixam abertos para o estudo e crítica. (...). Ele trabalha tão mais rápido (e tem tanto mais tempo disponível) que então ele poder explorar novos caminhos e ideias que aqueles outros não podem: (...). 55. DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, p. 113. 56. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Stanford: Stanford University Press, p. 89. 57. Tradução livre: “Decisões prévias exercem uma força gravitacional direta por meio da integridade; o que requer tomar em conta o caso prévio que impõe os melhores argumentos para demonstrar que o direito trata todos seus súditos de modo igual nos aspectos relevantes”.


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foi refratário a respostas “finais”, concepções definitivas talvez sejam inatingíveis, isto porque a ‘verdade’ da ideia do direito, de seu conceito e da descrição de sua estrutura é algo que se imbrica com a própria complexidade e a contingência histórica da sociedade e dos processos e estágios evolutivos do pensamento jusfilosófico, da sociologia jurídica e da teoria geral do direito. O embate teórico entre Ronald Myles Dworkin e Herbert Lionel Adolphus Hart talvez represente um dos capítulos recentes mais instigantes do processo evolutivo dos projetos teóricos que visam a apreender e compreender a natureza complexa, paradoxal e talvez inabarcável do direito, seja na prática social seja na teoria.

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contemporâneo, seja em suas versões inclusiva ou exclusiva58, não há como pensar o direito em nossos dias sem compreender os elementos centrais básicos do pensamento dworkiano, para o que se espera possa ter este texto trazido alguma contribuição.

REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Il positivismo giuridico. Turim: G. Giappichelli Editore, 1996. DWORKIN, Ronald M. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977. DWORKIN, Ronald M. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald M. (Ed.). The Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1977. DWORKIN, Ronald M. Law as interpretation. In: Texas Law Review, vol. 60 (1982). DWORKIN, Ronald M. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

A leitura de Dworkin é hoje um must para os estudiosos da teoria geral e da filosofia do direito, ainda que se o leia para criticar ou refutar, não há como deixar de reconhecer que se está diante de uma estrutura teórica cheia de complexas correlações, como, por ex., entre direito, política e moralidade.

DWORKIN, Ronald M. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1986.

Mas o que chama atenção na leitura de Dworkin é sua preocupação teórica em avançar na discussão e no debate democrático sobre o direito, regido por uma perspectiva liberal explicitamente defendida, com honestidade teórica e intelectual.

MACEDO JR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin – Teórico do Direito. In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, Tomo I. Acessível em: <www.enciclopediajuridica.pucsp.br>.

Chama atenção a análise e as formulações transdisciplinares, quando a partir de uma hipótese estética Dworkin formula uma hipótese política centrada no princípio da igualdade, seja na proposição de aplicação igual do direito a casos iguais, bem como de proteção igual para pessoas em situações iguais, como se percebe de sua análise da equal protection clause na Constituição de seu País natal, os Estados Unidos da América. São análises como estas que apontam para a busca da integridade de um sistema jurídico autorreflexivo e coerente, personificado na metáfora do juiz Hércules, sempre buscando criar, enquanto nele opera (decide), um sistema único e coerente fundado nos valores da justiça e da equidade.

GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Stanford: Stanford University Press, 2013. HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Cambridge: MIT Press, 1996. HART, H. L. A. The Concept of Law. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 1994.

SCHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (Ed.). RONALD DWORKIN. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. VIANA, Ulisses Schwarz. Direito e Justiça em Niklas Luhmann: contingência e complexidade no sistema jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2015.

Como se depreende de tudo que neste texto foi exposto, a teoria de Dworkin igualmente tem grande significação e se apresenta relevante em seus reflexos no campo da teoria e na prática decisória sobre cases, muitos deles hard cases, na área dos direitos fundamentais e sociais. Mesmo que não se concorde com todas as proposições teóricas de Dworkin, como bem demonstram as críticas e elas dirigidas pelo positivismo

58. Para uma compreensão destes conceitos, leia-se: SCHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (Ed.). RONALD DWORKIN. 2007. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 34-35.


CRÍTICA DE RONALD DWORKIN AO POSITIVISMO JURÍDICO Danilo dos Santos Almeida1 SUMÁRIO: Introdução. 1. Histórico da Crítica de Dworkin ao Positivismo Jurídico 2. Teoria Interpretativista do Direito 3. Interpretação e Direito 4. Conceitos Interpretativos 5. Direito como um Conceito Interpretativo 6. Interpretativismo e Argumentação Jurídica. 7. Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO Introduzir o pensamento de Dworkin em poucas páginas, ainda que se restrinja ao tópico de sua crítica ao positivismo jurídico, é sempre um desafio por algumas razões. A primeira delas é o seu estilo. O Philosophical Lexicon, o famoso dicionário filosófico humorístico, define “dwork” (“dworkear”, talvez?) como “arrastar uma palestra bem preparada, fazendo com que ela pareça fácil e espontânea”2. A descrição funciona também para seus trabalhos escritos. A leitura de suas volumosas obras, prolixas e envolventes, lentamente descortina os argumentos mais sofisticados e controversos como se fossem imediatamente evidentes. O contraste com o estilo direto e árido dos filósofos analíticos do direito foi naturalmente reconhecido por estes, em comentários menos elogiosos que o do Lexicon. Em segundo lugar, o pensamento de Dworkin é vasto e abrange diferentes tópicos do pensamento filosófico normativo. Seu último livro publicado em vida, “A Raposa e o Porco-Espinho: justiça e valor” 3, é um esforço para mostrar como toda sua obra pode ser articulada em uma 1. 2.

3.

Graduado e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Visiting Research Fellow na Brown University, em 2014. E-mail: danilodsa@gmail.com. “dwork, v. (Perhaps a contraction of hard work?) To drawl through a well prepared talk, making it appear effortless and extemporaneous. “I bin dworkin on de lecture circuit” – old American folk song”. DENNETT, Daniel; STEGLICH-PETERSEN, Asbjørn. The Philosophical Lexicon, 2008. Disponível em: <http://www.philosophicallexicon.com/>. Acesso em: 7 out. 2017.. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, EUA: Harvard U. Press, 2011.


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grande teoria filosófica. Suas posições sobre o direito são apenas um capítulo de um sofisticado monumento intelectual. Compreender seus ataques às teses positivistas requer ter ao menos uma noção básica de seu pensamento normativo mais abrangente.

O chamado positivismo jurídico engloba uma enorme quantidade de deferentes posições teóricas, algumas até mutuamente incompatíveis entre si. O que nos permite classificar todas as posições positivistas como tais é a adesão a uma tese específica, que pode ser apresentada da seguinte forma:

Por fim, podemos dizer que ao invés de uma crítica ao positivismo jurídico, Dworkin faz críticas ao positivismo jurídico. Em cada momento de sua carreira, o autor enfatiza diferentes aspectos de sua contraposição o positivismo. Não seria possível fazer jus a todos os vários argumentos articulados no decorrer de sua longa carreira. Por conta disso, o presente capítulo pretende apresentar a objeção dworkiana ao positivismo jurídico nos termos de sua última grande expressão intelectual, o livro “A Raposa e o Porco-Espinho: justiça e valor”.

Para que um determinado sistema normativo receba o nome de direito, ou que uma determinada norma seja qualificada como jurídica, não é necessário que passe pelo escrutínio de critérios ou testes morais. Para identificar uma norma como jurídica e portanto como existente e válida deve-se investigar suas fontes e não o seu mérito7.

O presente capítulo estrutura-se da seguinte forma4. Primeiramente, faz-se uma breve introdução da história da posição de Dworkin sobre o positivismo jurídico. Segue-se a uma introdução da posição do autor, chamada de teoria interpretativista do direito. Posteriormente, o texto discorre sobre o papel da abordagem interpretativa na compreensão do direito. Apresenta-se então a classificação dos diferentes tipos de conceitos para Dworkin, a posição positivista de tratar o direito como um conceito criterial e a posição interpretativista de tratar o direito como um conceito interpretativo. Por fim, demonstra-se como a posição interpretativista decorre da compreensão de Dworkin sobre a prática da argumentação jurídica.

1. HISTÓRICO DA CRÍTICA DE DWORKIN AO POSITIVISMO JURÍDICO As posições de Dworkin foram radicais quando surgiram porque confrontaram o consenso positivista que dominou (e, ainda que em menor medida, ainda domina hoje) o pensamento jurídico analítico5 desde a publicação de “O Conceito de Direito”, do jusfilósofo britânico Herbert Hart6. 4.

5.

6.

O presente trabalho é, em grande medida, baseado no primeiro capítulo da dissertação de mestrado “Uma Crítica ao Interpretativismo de Ronald Dworkin a Partir do Realismo Pragmático de Hilary Putnam”, do mesmo autor. ALMEIDA, Danilo. Uma Crítica ao Interpretativismo de Ronald Dworkin a Partir do Realismo Pragmático de Hilary Putnam. Dissertação de mestrado. Florianópolis: UFSC, 2011. Por filosofia analítica, entenda-se o movimento filosófico que dominou os departamentos de filosofia do mundo anglo-saxão a partir de meados do século XX, uma tendência que se iniciou nas primeiras décadas daquele século. A Universidade de Oxford foi um importante centro de produção de pensamento analítico, reunindo os maiores expoentes em diversos temas filosóficos. Sobre a filosofia analítica, ver MARCONDES, Danilo. Filosofia Analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Hart foi professor de filosofia do direito na Universidade de Oxford e o título de sua maior obra lembra aquele de uma das grandes produções intelectuais da filosofia analítica: “O Conceito de Mente”, de seu colega e amigo Gilbert Ryle. HART, Herbert. The Concept of Law. 2 ed. Oxford: Oxford U. Press, 1994.

Enquanto o positivismo jurídico nega qualquer conexão necessária entre investigação jurídica e juízos de mérito sobre fontes de direito, Dworkin entende que a razão prática, ou a faculdade de produzir juízos normativos em geral, é indispensável para a identificação do direito. As posições morais de Dworkin confrontaram o consenso positivista que se instituiu ao longo do século XX e seu alvo natural foi Hart, o grande jurista do positivismo analítico contemporâneo. Por décadas, repetidas vezes, Dworkin alterou o terreno da filosofia jurídica mundial. Vejamos brevemente como isso se deu. Em seu “Levando Direitos a Sério”8, uma coletânea de artigos publicada na década de 70 sobre o papel da noção de argumentação jurídica e na teoria do direito, Dworkin caracteriza criticamente o positivismo jurídico como uma teoria do direito como um mero sistema de regras. Os casos difíceis, aqueles casos que não podem ser submetidos a uma regra jurídica clara e prévia9, seriam resolvidos discricionariamente pelos juízes. O direito funcionaria como uma partida oficial de algum jogo: as regras em geral estão previamente definidas; para casos extraordinários, dependemos que uma autoridade julgadora crie uma solução nova, extrajurídica. “Os positivistas tratam o direito como o beisebol revisado dessa forma”10. Hart não respondeu Dworkin em vida. No pós-escrito, publicado postumamente, ao seu “O Conceito de Direito”, Hart reconhece que não tratou em detalhes da possibilidade de princípios jurídicos orientarem as decisões judiciais em casos difíceis11. Isso porque seu objetivo com a obra era propor 7.

STRUCHINER, Noel. Algumas ‘Proposições Fulcrais’ Acerca do Direito: o debate juspositivismo vs. jusnaturalismo. In. MAIA, Antônio.; et al. (orgs.) Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 402 e 403. 8. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard U. Press, 1978. 9. Ibid., p. 81. 10. “Positivists treat law like baseball revised in this way”. Ibid., p. 39. 11. HART, Herbert. The Concept of Law. 2 ed. Oxford: Oxford U. Press, 1994, p. 335


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