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AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL UMA GENEALOGIA DAS IDEIAS AUTORITÁRIAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Ricardo Jacobsen Gloeckner


Ricardo Jacobsen Gloeckner

Copyright© 2018 by Ricardo Jacobsen Gloeckner Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL: UMA GENEALOGIA DAS IDEIAS AUTORITÁRIAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

G48a Gloeckner, Ricardo Jacobsen Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico] : uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1 / Ricardo Jacobsen Gloeckner. - 1. ed. - Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018. recurso digital ; 2 MB Formato: epdf Requisitos do sistema: adobe acrobat reader Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-9477-187-2 (recurso eletrônico) 1. Direito penal - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título. 18-51089

CDU: 343.2(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439 12/07/2018 19/07/2018

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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V. 1


Dedico este livro à Joseane, Que por intermédio de uma espiral da mais cândida transcendentalidade fosse possível expressar, Sem os sortilégios infecundos de uma pletora de clichês, Através de uma linguagem que fosse mais pregnante de sentido que a própria ancestralidade, Que se não esgotasse em motivos que mimetizam, mas não conseguem criar... Aquilo que para mim é ar...ar que se respira, que se vive e que se pereniza Ar que se articula no infinitivo do verbo amar... Como o infinito do desejo, qual bruma a morrer em cada vez que beija a areia, Que só o amor e que no amor aprisiona, Um tanto de mim, a melhor parte.


APRESENTAÇÃO O presente texto é originário do primeiro encontro do grupo de Extensão “Curso Interdisciplinar de Processo Penal”, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul durante o ano de 2015. Este primeiro encontro, datado de 17 de abril de 2015, foi degravado e posteriormente expandido. A expansão do texto também se deu em virtude de um curso, ministrado junto à Universidade de São Paulo, chamado Autoritarismo e Processo Penal, no ano de 2017, dividindo a fala com o grande professor Dr. Geraldo Prado, a convite do meu grande amigo Maurício Dieter, por quem tenho a mais sincera admiração. Portanto, o texto pretendeu, na medida do possível, manter a forma oral, tanto quanto necessário, com algumas reformas, no intuito de melhor exprimir uma ideia, aclará-la ou ainda, aprofundar determinadas questões. Igualmente, procurou-se utilizar uma linguagem mais simplificada, até mesmo pelo fato de que em tais encontros do grupo havia a presença de acadêmicos da graduação do curso de direito da PUCRS e de outras instituições, muitos ainda se familiarizando com o direito e especialmente, com os limites desta pesquisa. Desta maneira, para evitar um discurso hermético e esotérico, preferi tentar “didaticamente” explorar determinadas categorias, em muitas oportunidades renunciando à verticalização de temas contíguos ou aqueles que de alguma maneira, poderiam não fazer muito sentido imediato aos acadêmicos. Os encontros, que abordaram diversos temas fundamentais do processo penal, dentre eles este que o leitor tem em mãos, chamado “Autoritarismo Processual Penal”, se sucederam a partir de meus grupos de pesquisa “Ressignificações do Autoritarismo Processual Penal” e “Pensamento Político e Criminológico”. Desta maneira, inevitável o caráter interdisciplinar dos estudos, mormente pela confluência, além do processo penal, da criminologia, filosofia e ciência política. Tal abordagem pode ser estranha àquele que espera uma leitura essencialmente processual do fenômeno.


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Esta pesquisa segue, igualmente, outras tantas que vêm ocorrendo no Brasil, a despeito do tema “autoritarismo”. Com efeito, pesquisadores – dos quais sou profundamente devedor – como Geraldo Prado, Rubens Casara, Diogo Malan, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Jacinto Coutinho, Aury Lopes Jr, Rui Cunha Martins, Nereu Giacomolli, Maurício Dieter, Augusto Jobim do Amaral e outros tantos que não caberiam nesta apresentação, promoveram, através de inúmeros diálogos, o “start” necessário que configurou esta interface entre pensamento político (fundamentalmente de onde deriva a categoria “autoritarismo”) e o campo processual penal, que possui relações profundas com a ciência política (e que não deve se esgotar apenas no tratamento doutrinário do tema “sistemas processuais”). O curso originariamente foi idealizado como uma espécie de série de “relatórios de pesquisa”, isto é, a divulgação de resultados que servissem como canal de difusão da produção oriunda dos grupos de pesquisa por mim coordenados na PUCRS. Sem dúvidas, neste ciclo, beneficiei-me de algumas inúmeras observações, críticas e perguntas que me foram endereçadas e que me permitiram refletir melhor e mais profundamente sobre a temática, de forma a aperfeiçoar o campo sobre o qual havia circunscrito meus objetos de pesquisa. Outrossim, não seria possível avançar sem também revelar os meus agradecimentos ao grupo de jovens acadêmicos que participou do curso (dos graduandos aos doutorandos e demais pesquisadores). Em especial, ao Dimytrius Thiago Peixoto Fagundes, Daniela Chies Portal e a Thais Oliveira, que generosa e corajosamente, levaram a cabo a tediosa tarefa de degravar os áudios dos encontros. Agradeço também fortemente aos amigos e professores Yuri Felix, Felipe Lazzari, Roberto Freire e Renzo Orlandi que me auxiliaram com o material bibliográfico, além é claro, do serviço da biblioteca da PUCRS, que foi muito eficiente no rastreamento de todo o material histórico. Agradeço ainda à Tyrant lo Blanch/Empório do Direito, por viabilizar a publicação, cujos agradecimentos faço nas pessoas da Aline e da Fernanda e a PUCRS por garantir a realização do trabalho, oferecendo as condições necessárias de tempo e codições materiais para que a empreitada fosse levada a cabo. Por fim, agradeço à minha família e aos amigos Marco Antonio Scapini e Jeferson Dutra. Certamente ficam de fora muitas pessoas a quem eu deveria nominalmente agradecer. Agradeço de maneira muito viva aos acadêmicos da PUCRS

APRESENTAÇÃO 9

pelas interlocuções. Este livro procura, como objetivo geral, cruzar, de maneira transversal, aquilo que se poderia denominar como “autoritarismo processual penal” no Brasil, colocando em exame a categoria “instrumentalidade” do processo. Com efeito, mais do que um exame exaustivo do assunto, procuraremos demonstrar a penetração das expressões autoritárias no ideário da categoria instrumentalidade. Como o curso, a leitura é endereçada, fundamentalmente, àqueles que se iniciam na pesquisa. Evidentemente, espero, também, colaborar, oferecendo pistas, aos pesquisadores que, na área processual penal, ainda não desistiram de um processo penal democrático. Porto Alegre, julho de 2018.


PREFÁCIO Este prefácio está sendo escrito em tempos de crise da noção de democracia conforme consagrada no período posterior à Segunda Guerra Mundial. O primado exclusivo do governo da maioria provou ser um instrumento manejável em uma sociedade de massas, dispositivo dotado de potência capaz de submeter as pessoas a condições de vida indigna. O governo da maioria é necessário à consolidação da democracia, mas não é o que basta para que ela, democracia, se realize plenamente. O controle do exercício do poder, mesmo do poder em tese legitimado pelo voto da maioria, revela-se imprescindível em contextos nos quais a capacidade de conformar o futuro alheio implica na possibilidade de ampliar formas de dominação que, no extremo, pervertem o conceito de Direito, manipulam a ideia de justo e disseminam a convicção de que a eliminação do Outro está justificada em determinadas circunstâncias, que por evidente são sempre aquelas circunstâncias definidas pelos que exercem o poder. O ponto de equilíbrio entre representação popular, exercício direto do poder e prática de controles antimajoritários orientados à tutela da dignidade de todas as pessoas e à preservação da vida no planeta está concretamente afetado pela tempestade autoritária que parece varrer o globo. O Brasil não está imune à poderosa ventania do arbítrio. A brisa autoritária em realidade nunca esteve ausente. Ao contrário, como as correntes de ar de nosso litoral norte, que permanentemente não dão tréguas às terras que por ironia serviram de inspiração ao clássico «Iracema», do conservador José de Alencar, as práticas autoritárias jamais desapareceram do cenário do nosso cotidiano. O que se experimenta na atualidade, no entanto, é o ressurgimento viril – a violência das práticas do arbítrio renascido é «machista» – preconceituoso – o cárcere e a morte violenta são o destino preferencial de pretas e pretos, conotando o inescondível «racismo» da nossa realidade – e classista das ações


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e da mentalidade autoritárias. Não surpreende que em uma trágica reprodução dos discursos moralistas de Francisco Campos, proferidos nos anos 30 do século passado, com respaldo em um consenso autoritário que tornou possível o Estado Novo, a ditadura Vargas, a perseguição, prisão, tortura e morte por motivos políticos, sejam ouvidas conclamações de importantes autoridades em desfavor da liberdade.

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identificam em uma legislação «hipergarantista», legislação essa que nada mais seria que a própria Constituição. Na mesma toada e com igual intensidade, princípios e regras constitucionais de limitação do poder punitivo foram despejados das práticas penais, recuperando-se, em alguns casos literalmente, as normas jurídicas do período mais autoritário de nossa história republicana.

As dolorosas páginas de um extraordinário trabalho de arqueologia do saber jurídico-penal brasileiro e de rastreio da genealogia do poder inscrito em nossa vida republicana não podem iniciar sem que, no seu preâmbulo, o prefaciador chame atenção para as semelhanças discursivas entre passado e presente e os riscos à democracia que tais semelhanças implicitamente carregam.

A prisão automática do acusado que responde a processo perante o tribunal do júri, abolida formalmente em 2011, mas pelo menos desde 2008 considerada incompatível com a Constituição pós-ditadura, foi restabelecida para o condenado em moldes quase idênticos aos da época do Estado Novo e do Decreto-lei nº 167, de 1938.

Aos magistrados recentemente fez-se convocação para «combater a corrupção e os privilégios de uma minoria muito bem protegida... os corruptos... pessoas que são libertadas a granel de maneira que desprestigia os juízes de primeiro grau que enfrentam essa cultura de desigualdade que sempre protegeu os mais ricos.»1

O episódio da repristinação da prisão automática do condenado pelo Tribunal do Júri é um exemplo das estratégias de argumentação que na obra prefaciada identificam-se com métodos de ressignificação por meio da «eufemização de certas categorias e usos no direito processual».

Aqui não se trata somente de fustigar a liberdade – como princípio, como regra e como ideal. Colocado o discurso em seu contexto e analisadas as decisões em matéria criminal proferidas no âmbito dos tribunais superiores do Brasil, hoje é visível a tendência a não aplicar as garantias que a Constituição da República de 1988 consagrou em nosso presumido retorno ao seio das comunidades de tradição democrática. A degeneração autoritária revelou-se paulatinamente pelo prestígio à figura do juiz inquisidor, representado de modo quase teatral por magistrado que, rebelando-se contra as vigentes regras do direito processual penal, tomou para si a tarefa de investigar, processar e punir «os corruptos», categoria esgarçada na qual cabem e descabem pessoas a critério exclusivo de quem exerce o poder. O princípio da separação dos poderes, caro à República, aos poucos foi convertido em desejo utópico de idealistas inconformados com os «desafios» que a contemporânea criminalidade de Estado e de Mercado supostamente impunha aos juízes, em uma nova ordem messiânica, política, jurídica e econômica, encarregando-se os neomissionários da Justiça – alguns magistrados e membros do Ministério Público – de corrigir as «falhas naturais» que 1. AMAERJ. Barroso elogia trabalho de juízes no combate à corrupção. Data: 25 de maio de 2018. Disponível em: http://amaerj.org.br/noticias/luis-roberto-barroso-elogia-trabalho-de-juizes-de-primeiro-grau-no-combate-a-corrupcao/. Consultado em 30 de maio de 2018.

A soberania dos jurados que a Constituição alberga no inciso XXXVIII do artigo 5º é um direito individual do imputado que se caracteriza por colocar o titular em uma posição jurídica favorável em face do exercício do poder punitivo. Sua história no Brasil remonta à reação liberal posterior às estratégias políticas autoritárias que levaram à modificação instituída no júri em 1842, pela Lei nº 261. Naquela oportunidade o objetivo era assegurar o controle político dos julgamentos dos rebeldes da insurgência denominada «Balaiada» pelo poder central (1838-1841 – Maranhão). Na ocasião o júri, como dispositivo de punição, harmonizou-se com os amplos poderes que o governo central havia concedido a Luís Alves de Lima e Silva, em 1840/1841, para conter os liberais Bem-te-vi e os escravos que se aliaram contra os desmandos conservadores dos Cabanos, desmandos que em alguma medida recebiam o incentivo do governo central. A recuperação do júri como garantia individual e sua significação histórica neste preciso sentido são obra da Constituição de 1988. No entanto, neste campo a tradição autoritária, como se vê, deita raízes no século XIX, escora-se no silêncio da Constituição do Estado Novo (1937), para ser amenizada somente em 1973, ironicamente em benefício de um conhecido torturador. Na opinião do prefaciador, a operação recentemente levada a cabo pelo

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Supremo Tribunal Federal (STF),2 de conversão do júri de dispositivo de tutela da liberdade do acusado em mecanismo de instrumentalização do poder de punir, em desfavor do titular da garantia, ilustra o acerto das teses sistematizadas no presente livro, pois que a mencionada operação é paradigmática do performativo jogo de linguagem associado à pretensa neutralidade da técnica jurídica.

“A CF/88 é insistente na proteção da liberdade não só no seu conjunto, como já analisado, como nas suas partes. Já no “Preâmbulo” ela institui um Estado Democrático de Direito, destinado a garantir a liberdade. E no capítulo dos direitos e das garantias individuais inicia garantindo aos cidadãos a inviolabilidade do direito à liberdade para, em seguida, instituir uma série de direitos mais específicos (liberdade de manifestação do pensamento, de consciência e de crença, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de associação para fins lícitos) e de garantias destinadas à efetivação da liberdade (recebimento de informação dos órgãos públicos, impetração de mandado de segurança ou de habeas corpus).”4

O método técnico-jurídico em voga em meados do século passado na Itália, via pela qual chegou ao Brasil, como elucida o autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro», esbarra, porém, nas disposições constitucionais, que não apenas conferem status normativo aos princípios como reorientam os critérios de interpretação e aplicação das normas jurídicas em nosso ordenamento, conferindo à liberdade a preponderância que as democracias modernas reconhecem, em oposição aos valores coletivistas que inspiraram os autoritarismos do século vinte.

A hermenêutica autoritária, no entanto, volta às costas às perspectivas teóricas que se desenvolveram no círculo da dogmática do nosso processo penal de 1988 em diante.

À «segurança jurídica», no contexto dessa nova tradição democrática inspirada nas condições político-jurídicas do processo Constituinte de 1987-1988, importa o elemento material. O que, afinal, se «assegura» é no mínimo tão relevante quanto a própria condição de asseguramento.

Reinstaura-se a dimensão pragmática no nível que colonizou o processo penal brasileiro em seu período mais rudimentar, que remonta ao século XIX. A instauração dessa dimensão pragmática, todavia, tem notas que absorvem experiências autoritárias de diversas épocas, incorporando a ideologia da «instrumentalidade do processo» e as vertentes neoliberais que, no plano da circulação das ideias processuais penais, em contexto de globalização jurídica, confere aura de «moderno» ao que objetivamente é atrasado.

Ao tratar do tema à luz das premissas clássicas, em obra de referência, Humberto Ávila colocou em destaque a perspectiva tradicional da «segurança jurídica». São suas palavras:

O autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» lança luz acerca das condições de constituição de um «saber praxista, divorciado da experiência acadêmica, intuitivamente repetindo a fórmula dicotômica law in books e law in action».

“De outro lado, porém, pode-se defender que a segurança jurídica exige a elevada capacidade do cidadão de compreender os sentidos possíveis de um texto normativo, a partir de núcleos de significação a serem reconstruídos por meio de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. É nesse sentido que se fala em determinabilidade e certeza (relativa) do Direito. É igualmente nessa acepção que parte da doutrina qualifica a segurança jurídica como algo a ser progressivamente atingido. O mesmo Kelsen, em estudo posterior, não mais utiliza o termo ‘ilusão’, porém emprega o termo ‘ficção’ para descrever um ideal que pode ser ‘aproximadamente realizável’ (annährungsweise realisierbar). É também nesse sentido que a doutrina, notadamente tributária, refere-se ao princípio da legalidade ‘estrita’ ou tipicidade material ‘aberta’.3

Sem dúvida que pelo ângulo funcional o «praxismo processual penal» é expoente de uma «determinada governamentalidade criminal» que o autor do livro, a nosso juízo de maneira adequada, no caso brasileiro filia à perspectiva ideológica de Francisco Campos. Seu reaparecimento em cena, conforme o prefaciador, inscreve-se no mesmo registro autoritário. À diferença – parcial – dos tempos do Estado Novo, a ruptura entre dogmática do processo penal sob a inspiração da Constituição de 1988 e o law in action atual, que corre dos tribunais superiores para a base da magistratura e do Ministério Público, mas também segue na direção oposta, de Curitiba para Brasília, está ancorada na chamada «circulação simbólica de modelos».

Ao examinar o conceito de «segurança jurídica» pelo prisma material mais uma vez é Humberto Ávila quem discorre acerca da preponderância da proteção da liberdade. 2. 3.

Habeas Corpus nº 118.770/SP. Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Redator do acórdão: Min. Luís Roberto Barroso. Paciente: Marcel Ferreira de Oliveira. Impetrante: Marcel Ferreira de Oliveira. Data de julgamento: 07 de março de 2017. ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 137.

Ao apresentar a obra de Elisabetta Grande sobre imitação de modelos, Luís Fernando Sgarbossa cuida de chamar atenção para o que, na nossa opinião, exprime uma das mais dolorosas estratégias de governo criminal em curso, que é a manipulação conceitual e semântica de ferramentas teóricas que fazem parte do repertório de outras culturas jurídicas e que, a pretexto da 4.

ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 233.

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globalização e com o objetivo de punir estamentos historicamente imunizados contra a persecução criminal, faz circular a «idealização» de regras, institutos e teorias jurídicas estrangeiros e não as próprias regras, institutos e teorias. Convém mencionar a passagem da apresentação ao «Imitação e Direito»: “Conforme a Professora Elisabetta Grande demonstrará neste livro [Imitação e direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos], a circulação de regras, institutos ou teorias jurídicas em cada um destes âmbitos de uma cultura jurídica está sujeita a dinâmicas próprias e é impulsionada por fatores específicos, podendo um sistema ser importador e exportador, simultaneamente, em diferentes âmbitos de sua cultura jurídica e em diferentes áreas do direito. E, talvez o aspecto mais interessante abordado nesta obra, pode a circulação dar-se apenas simbolicamente – circulação simbólica, hipótese na qual o que circula não são as regras propriamente ditas, mas sua idealização, como se verá.”5

O êxito contemporâneo da empreitada hermenêutica autoritária ao menos até o presente momento revela-se em intercâmbios semânticos e idealizações flagrantemente equivocadas, como o tomar-se a «eficácia preclusiva» como equivalente ao conceito de «trânsito em julgado», no contexto da presunção de inocência, ou aplicar as noções de «inferência da melhor explicação» em detrimento do exigente standard de prova que o direito constitucional brasileiro impõe no âmbito do processo penal, em virtude da adoção entre nós do princípio da culpabilidade jurídica, e ainda o de expandir os poderes do Ministério Público à margem e em oposição às exigências do princípio da legalidade processual penal, como se verifica na hipótese das interceptações telefônicas.6 Parte desse sucesso é creditável à legitimação de «um discurso neoliberal, que acaba por emprestar forma às práticas autoritárias conduzidas pelo sistema de justiça criminal», recorrendo-se igualmente por empréstimo à expressão empregada pelo autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro». A obra prefaciada, a par de outros expressivos méritos, identificará na ideia de «instrumentalidade do processo» um dos marcos de legitimação do pensamento autoritário no Brasil. Também neste campo as simetrias entre passado e presente são visíveis. Mas é ao passado que o prefaciador recorre para apontar para a necessidade de 5. 6.

SGARBOSSA, Luís Fernando. Nota prévia do tradutor. In: GRANDE, Elisabetta. Imitação e direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos. Tradução de Luíz Fernando Sgarbossa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009. p. 14. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4263/DF. Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 25 de abril de 2018.

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situar as pessoas em seus círculos políticos, conforme as ideias que professam e praticam na arena pública. Assim, por exemplo, não se pode ignorar que o período de maior virulência da ditadura empresarial-militar de 1964 foi o tempo da produção das teorias de base do autoritarismo contemporâneo brasileiro nos campos político, econômico, social e também jurídico. A tese de doutorado em sociologia de Sebastião André Alves de Lima Filho, sobre «O que a Escola Superior de Guerra (ESG) Ensinava», dirige os olhos ao «diálogo autoritário» entre estes diferentes campos, interlocução que buscou aportar elementos teóricos ao autoritarismo da ocasião, o justificando à luz das circunstâncias e moralidades da época. A presença de juristas na turma de 1975 é indicativa de uma pista muito relevante na esfera do corpus conceitual do processo (p. 269). Pessoas, organizações e instituições são elementos imprescindíveis quando se trata de conhecer o sistema de justiça criminal, suas bases e as tendências em disputa em determinado momento. Alberto Binder chama atenção para o fato de o processo penal ser um «saber prático», que não pode ignorar a realidade das organizações e instituições que compõem o denominado «Sistema Penal» de arbitramento de responsabilidade.7 Existem Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados, Defensoria Pública e Polícia. São organizações com história, cultura e características próprias. Há também governos, o Poder Legislativo e personalidades cuja atuação igualmente opera no âmbito da adjudicação de responsabilidade penal no seio da instituição Justiça Criminal. Os procedimentos adotados em conjunto ou separadamente obedecem ao padrão de interpretação vigente em cada uma das organizações acerca do desenho institucional que corresponde às funções que lhes são atribuídas, de forma expressa ou tácita. Tomando as coisas por este ângulo, entende-se a afirmação de Ellen Immergut, em «As regras do jogo»,8 de que «a mudança é um problema essencial para a análise institucional». A Constituição de 1988 propôs uma mudança 7. 8.

BINDER, Alberto M. Derecho Procesal Penal. Tomo I. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2013. p. 13-29. Disponível em https://pmcspraca.files.wordpress.com/2013/01/immergut-1996-regras-do-jogo-na-polc3adtica-de-sac3bade.pdf. Consultado em 29 de julho de 2016.

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em termos de organização e funcionamento do sistema de justiça criminal e quanto aos critérios de orientação que haveriam de vigorar dali em diante. Este processo de mudança não somente foi interrompido, como o que se experimenta na atualidade é a sua reversão. É inegável que dinâmicas institucionais e cadeias de decisão política extremamente complexas tenham peso no processo decisório, algo que não é apropriável, analiticamente, pelo exame isolado da atuação e do propósito dos atores envolvidos. Salienta Immergut que «instituições devem ter uma espécie de capacidade de permanência». As instituições que se desenvolveram no Brasil à sombra da mentalidade autoritária exercitam agora sua extraordinária capacidade de permanência nestes termos, deixando à vista de todos o quanto estavam impermeáveis ao projeto de democratização simbolizado pela Constituição. Quando se cogita de um setor significativo do Estado e da sociedade, como é o caso da Justiça Criminal, independentemente da inclinação inquisitória do modelo vigente e de sua recriminação por toda uma geração de juristas com formação e profissão de fé no Estado de Direito, as forças de resistência à mudança estão presentes e atuam em todos os âmbitos. Isso leva a acreditar que, se mudanças institucionais «ocorrem durante períodos de tempo mais longos», como adverte Wolfgang Streeck,9 fato é que a tendência no sentido das transformações confronta-se com «causas contrariantes que as desaceleram». Vivemos tempos de aparente hegemonia das «causas contrariantes» em benefício da prevalência da mentalidade autoritária. Ainda que não fosse pela excelência da obra em si, sendo «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» o resultado de uma rica, profunda e cuidadosa pesquisa das matrizes do processo penal brasileiro, a verdade é que o conhecimento das «causas contrariantes» à redução do grau de autoritarismo de nosso sistema de justiça criminal já estaria a justificar a leitura deste precioso livro. Claro que a história nos orienta quanto às decisões presentes e nos permite conhecer os dilemas enfrentados por nossos antepassados e as motivações das soluções adotadas. 9.

Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy. Lisboa: Conjuntura Actual Editora, 2013, p. 16-18.

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Mas não são apenas estes «guias de leitura» a recomendar vivamente o mergulho nesta complexa investigação de história das ideias e da cultura jurídico-penal brasileiras. Existe um quê de encontro/reencontro com o que temos de melhor e de pior nas relações intersubjetivas. «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» percorre os desvãos de nossa alma inquisitória, revelando passo a passo as estratégias pelas quais o autoritarismo de nossas práticas penais escamoteou sua real natureza. O concurso de esforços de intelectuais do direito e de fora do direito para, ora sonegando, ora expondo claramente o viés autoritário de nossas práticas penais, constituir as organizações e institutos jurídicos em conformidade com a mentalidade autoritária está à vista de quem quiser ler. A nossa inteira responsabilidade aqui, não importa quanto de fato nos apropriamos das estratégias igualmente autoritárias desenvolvidas em Portugal no século XIX e na Itália no século XX, é tributária de decisões políticas orientadas ao exercício da dominação. Mentalidade autoritária, linguagem autoritária, expropriação e, além disso, apropriação de institutos autoritários de outras culturas foram objeto de rigorosa análise conceitual, precedida de competente e sincera pesquisa em fontes pouco manejadas pelos juristas brasileiros. O que temos de melhor nas relações intersubjetivas aparece na obra pelo ângulo da qualidade da análise a revelar a grandiosidade teórica deste jurista que é Ricardo Jacobsen Gloeckner. Desde o cuidado metodológico quanto ao exame conceitual dos «autoritarismos», em suas diversas vertentes e em sua inevitável confrontação com a perspectiva dicotômica «autoritarismo e totalitarismo», à decisão de não sonegar ao leitor os múltiplos marcos teóricos que viabilizam a aproximação ao tema, passando pela coragem de desnudar as contradições presentes nos discursos dos juristas e políticos, especialmente os brasileiros, o livro faz muito mais que suprir uma lacuna real em nossa bibliografia processual penal. Lendo privilegiadamente «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» não tive como deixar de lembrar do título do romance biográfico de um querido escritor mineiro. A obra de Ricardo Gloeckner desponta como nosso «Encontro Marcado»,

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dos juristas práticos e teóricos brasileiros, com a densidade autoritária que o processo penal expõe mesmo em tempos de democracia, praticamente a cobrar dia a dia a coerência e sinceridade das opções pessoais de apreço ou desapreço à democracia. Neste teste de coerência e sinceridade relativamente à adesão aos princípios democráticos, a realidade é que, recorrendo às categorias expostas com especial brilho pelo autor, hoje muitos juristas estão definitivamente reprovados. Vitoriosos circunstanciais no exercício do poder, pois que podem ditar as decisões e sentenças, dificilmente serão aprovados no teste da história. Ponto comum ao pensamento autoritário é a crença na «unidade do povo», uma visão limitada e irreal de «comunidade». A ideia de igualdade neste caso apela apenas retoricamente ao enfrentamento à desigualdade, mas na prática ela confronta mesmo é a diferença e ignora de propósito o caráter seletivo e estigmatizante do Sistema Penal. Não se trata de reduzir a desigualdade até porque a pena criminal não é redutora de desigualdades. Trata-se de dominação pura e simples, exercida a partir das velhas conhecidas noções de catastrofismo, cientificismo, antiliberalismo e nacionalismo político, muito bem tratadas no livro, articuladas entre si sob a guarda da confortável posição elitista. O ódio à democracia manifesta-se pela censura pública à liberdade e aos defensores da liberdade. «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» era para ser – e é – uma obra prima da história das ideias e cultura jurídico-penais brasileiras e por essa razão seu autor está de parabéns. O livro, porém, diz muito sobre o nosso presente. Que o tomemos como lição, porque se há algo que a história nos ensinou é que o futuro está sempre em aberto. Congratulo-me com o leitor pela oportunidade de ler um dos melhores livros de processo penal de nossa literatura jurídica. Em 01 de junho de 2018.

Geraldo Prado

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

PREFÁCIO “Antígona: Estou em tuas mãos. Mata-me. Que mais queres? / Creonte: Eu? Nada. Tenho o que desejo. / Antígona: Então, o que esperas? A mim, em tuas palavras, não me agrada nada nem jamais poderá, nem há nada que te possa causar prazer. Contudo, onde poderia procurar renome mais fulgente do que na ação de dar a meu irmão sepultura? Todos estes o aprovam, e o declarariam se o medo não lhes travasse a língua. Mas a tirania, entre muitas outras vantagens, tem o privilégio de fazer e dizer o que lhe apraz”. – g.n. – . (verso 505). SÓFOCLES. Antígona. Trad. de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 37. Este livro, “Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro”, do Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner, é um monumento histórico do Direito Processual Penal brasileiro! Ele, o livro, será, para sempre, o arrimo de todo e qualquer acerto de contas que se deva fazer com o autoritarismo (que poderia ser chamado de totalitarismo, ou mesmo tirania) do processo penal brasileiro. Eis, desde logo, a sua importância fundamental. Sua leitura, portanto, é obrigatória. Quando o Ricardo, hoje um fraterno amigo, convidou-me para o ler e fazer o prefácio, fiquei muito contente, porque sempre me pareceu que as questões do autoritarismo e da genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro tinham uma importância que transcende uma avaliação normal que dos temas se possa fazer e faz, embora, como é evidente, não se exaurem como objetos de pesquisas. Ao prazer de aceitar a tarefa somou-se a preocupação com o tempo, sempre escasso para todos que vivem empenhados na vida laborativa, assim como com a leitura do texto, um tanto grande quanto profundo, com suas 2196 notas e suas impressionantes 839 obras


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indicadas nas Referências, aparentemente todas usadas e citadas. Um trabalho, sem qualquer dúvida, incomum, com uma pesquisa excepcional e digno de todas as honras. Mas há mais, porém, para começar. O texto é limpo e claro; embora profundo, é de fácil leitura. Articulado de forma coerente, empurra o leitor a seguir página por página, de modo a que se tem prazer em cada uma delas e se quer mais e mais. O autor parece um guia de castelo que a cada pedra, a cada porta que abre, a cada novo salão que adentra, faz do ambiente um infinito discursivo que se não quer largar. A leitura amolda-se ao conceito lacaniano de gozo porque é impossível o sujeito não se implicar. É como se ele (leitor) estivesse – e de certa forma está – na trama narrativa metido até o pescoço, sendo envolvido a cada passo, sendo cobrado a cada frase e, por isso, vê-se ali, questionando-se porque, em tantas e tantas vezes foi, de certa forma, enganado pelas imagens falsas de uma dogmática de gente consciente do que fazia e, portanto, fazia, mesmo sabendo o que estava fazendo. O livro, portanto, é um primor. A melhor coisa de processo penal que li nos últimos tempos. No capítulo I, trata o autor de situar o autoritarismo, e o faz desde a perspectiva de alguns ideólogos brasileiros, dentre os quais se destaca Francisco Campos, justo para permitir a ligação com o processo penal fascista dos italianos de Mussolini. Pensa o autor aí encontrar a genealogia das ideias autoritárias, o que, de certa forma, vai complementado com o passo anterior necessário, ou seja, as fontes italianas. Por seu turno, o capítulo II vai às matrizes fascistas do Codice Rocco de 30 e mostra um panorama da situação dele, inclusive depois da chamada Riformeta de 1955, quando, como se sabe, ter-se-ia expresso o que, depois da Costituzione (1946), passou a ser, segundo alguns, um sistema processual penal inquisitório garantista, se é que isso pudesse dizer alguma coisa diante de práticas fascistas emergentes de entranhas fascistas do código e de mentes fascistas. Isso tudo garantiu a “fascistização” do processo penal brasileiro. Eis por que o capítulo III se dedica a mostrar como os institutos fascistas italianos (eles se expressavam assim, ou seja, com esse “espírito”, se fosse possível dizer para simplificar as coisas) penetraram no Brasil, tendo uma elaboração com aquela inspiração, razão por que muito se fala de se ter copiado (o que não seria correto, embora usado, em geral, como

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metáfora) o Codice Rocco. Sem um referencial definido (a base legislativa usada à época – 1941 – , era o Código do Império, de 1832, deformado pelas reformas que sofreu e, inclusive, na maneira como apareceu nas legislações estaduais, após a Constituição republicana de 1891), estruturou-se um CPP à imagem e semelhança daquele italiano. Existem, porém, diferenças gritantes, dentre elas – e talvez, para este efeito, a mais significativa – seja a manutenção, no Brasil, do Inquérito Policial, conforme nascido na Reforma de 1871 e mais autoritário que o Juizado de Instrução europeu e adotado na Itália. Por isso, os institutos que haviam tão bem sido, no livro, visitados na Itália, pela lei e princípios, voltam à baila no que dizem com o Brasil, agora sob o influxo do que havia sido adequado. O resultado não poderia ser outro: eles vieram para ser assim e assim o são. Per faz et nefas foram penetrando no campo processual penal nacional e se consolidando, inclusive a ponto de serem repetidos – discursivamente – , pela grande maioria, como democráticos, o que sempre foi uma mentira. Afinal, não é possível, pela retórica, transformar um torturador em democrata, ainda que se possa entender a variação de sentido das duas palavras. Ora, de muitas mentiras não se faz uma Verdade, embora o oposto seja verdadeiro: de muitas verdades se faz uma mentira! E isso é assim porque a Verdade é o que é: um discurso vazio no qual o intérprete, como senhor do poder, mesmo sem o significado devido ou aceitável, dá ao sentido a estrutura – sempre ideológica – que quiser. O paralelo entre o Código italiano e o brasileiro, no livro, mostra as vísceras do problema e coloca a pensar de uma maneira tão impressionante que é difícil se manter equilibrado para uma análise equidistante dos interesses que o tema envolve. No capítulo IV, por seu turno, de certa forma para tentar entender o que havia se passado no Brasil em face do disposto nos capítulos anteriores, parte o autor da concepção publicística do processo como espécie de “mito fundante” da instrumentalidade processual. Mas não fica ele tão só na estrutura discursiva e – sim – vai à epistemologia dela, examinando os fundamentos dos fundamentos, ou seja, toma água nas nascentes, visivelmente pelo arsenal que angariou ao mergulhar nas fontes que elegeu. Nas suas palavras, verifica “como a denominada ‘instrumentalidade do processo’, um verdadeiro significante reitor, procedeu à amplificação dos espaços de desformalização, do esvaziamento de garantias, da ampliação de poderes judiciais em um cenário em que tais poderes já eram alargados, ao ponto de se hipertrofiar a atuação do

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Supremo Tribunal Federal, responsável direto por uma regressão relativamente a direitos fundamentais, sem precedentes na história das parcas garantias constitucionais processuais penais no Brasil”.

“como foi – e continua sendo – possível defender e mais que isso, aplicar um código de processo penal essencialmente autoritário após o advento da Constituição de 1988?”

Mas não é só isso. O autor vai além e, no capítulo IV, desde outra perspectiva (por demais interessante), mostra como a ideologia da segurança nacional penetra no processo penal brasileiro pela via da instrumentalidade, mormente no que diz com a chamada teoria geral do processo. Aqui, quem estava lá – e de certa forma está – , consciente ou inconscientemente, vai acabar por acertar as contas com a história, o que é inarredável. Como disse o autor, “Não se deve atribuir aos intelectuais brasileiros, independentemente dos argumentos, que tais juristas simplesmente ‘não sabiam o que faziam´. Não se trata de intelectuais que operavam alienados pelo véu da ideologia, como autômatos ou marionetes. Deve-se retomar a crítica ideológica para se compreender que tais juristas e intelectuais sabiam o que faziam mas mesmo assim o faziam! Essa mudança de rumos na valoração da crítica ideológica é fundamental para que as responsabilidades pelas eleições dos caminhos da democracia brasileira sejam imputados a todos aqueles que deram a sua parcela de contribuição na perpetração do autoritarismo processual penal.”

At last but not at least, a seção 5, do capítulo IV, trata de “processo penal e liberalismo brasileiro: para uma crítica da razão cínica”. É, sem embargo de sua situação topográfica, uma conclusão. Retoma o autor o contido no texto e partindo de Sloterdijk, Zizek e outros recupera as discussões travadas nele, além de apontar para uma realidade que se vive hoje: “Da mesma maneira, as categorias processuais penais se encontram num regime de hibridismo: de um lado, a velha tradição liberal brasileira; de outro, novas categorias que foram surgindo, em especial através das globalizações processuais entre distintos regimes jurídicos, especialmente a penetração de categorias processuais norte-americanas, como a adoção de teorias e exceções às provas ilícitas, a introdução de uma justiça negocial (do juizado especial criminal à colaboração premiada), isso sem falar na introdução de teorias também norte-americanas, como a cegueira deliberada (willfull blindness), a abdução de provas, os deveres inerentes ao compliance, etc.” Com isso, chega no que chama de “lógica da excepcionalização”, as quais “se notabiliza por intermediar e custodiar um discurso de compatibilidade destas categorias processuais, apontadas como autoritárias, e os direitos fundamentais ou humanos. (...) Em palavras ainda mais simples se trata de perceber como a ‘lógica da excepcionalização’ é uma prática, corroborada em grande medida pela doutrina brasileira e seguida vivamente pelos tribunais pátrios, consistente em cindir os enunciados jurídicos de sua concretização. Ou ainda, criar tantas exceções não declaradas aos direitos e garantias fundamentais que o resultado final é exatamente o seu oposto: a exceção é justamente se obedecer um direito fundamental”.

Por outro lado, as deformações que a instrumentalidade – quem sabe se poderia dizer: à brasileira – ajudou a causar, geraram um processo penal visivelmente entrópico, como venho chamando. Há uma desordem generalizada, algo que se vê quando se percebe que a lei, hoje, começando pela Constituição da República, vale – ou só vale – quando interessa ao intérprete, mormente quando tem ele poder. Daí, também, as críticas do autor ao que chamou de processo penal “pós-acusatório”, ou seja, uma interpretação dele ligada à “aparente concretização do acusatório, pela Constituição da República, tornando desgastadas e descartáveis as discussões sobre a acusatoriedade ou inquisitoriedade do sistema processual penal”, mesmo porque “Com a Constituição e o modelo democrático de processo penal, já não caberia se falar em autoritarismo, que estaria relegado ao passado político brasileiro não-democrático”. Trata-se, por evidente, de uma fraude argumentativa; e pior: muito usada; principalmente por aqueles que querem que tudo se mantenha como sempre esteve, ou seja, um processo penal inquisitório a serviço de um direito penal seletivo e, antes de tudo, contra os que menos têm. Nesta altura, vale a pergunta fundamental que o autor mesmo formula:

Com este quadro é possível lançar, ao autor, um desafio – sem pretender ser deselegante em um espaço como este, tão especial, e que vai, tão só, pela amizade de um irmão mais velho – , sobre dois temas, mesmo porque são eles demais importantes para restarem alheios à discussão e, a mim, são, particularmente, vitais ao conteúdo do livro. O primeiro tema do desafio diz com aquilo que foi o sustentáculo da construção do Code Napoleón, de 17.11.1808, depois espalhado para os demais países da Europa continental, de um modo ou de outro. Em outro texto, Democracia e sistema inquisitório: a farsa do combate à corrupção no

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Brasil (apresentado em Puebla, México, em 09.02.18, ainda inédito), tive a oportunidade de fazer um arremedo do problema que aqui interessa: “Pensando assim, todos os sistemas que se conhece no mundo são mistos, isto é, aglomeram elementos dos dois sistemas: acusatório e inquisitório. Mas tão só formalmente assim o são. E isso porque, por evidente, não é possível, diante do conceito kantiano de sistema, ter-se uma divisão da “ideia única”. Eis, então, por que se não tem um princípio reitor misto, sendo certo que se trata, sempre, daquele inquisitivo (ou inquisitório) ou dispositivo (ou acusatório), respectivamente vinculados ao sistema inquisitório ou ao sistema acusatório. Há, nesta matéria, uma considerável discussão. Os autores mais antigos indicavam os dois sistemas, nas suas formas primitivas, como puros, embora isso fosse mera opinião, mesmo porque alguns elementos de um sistema sempre apareceram no outro, por variados motivos, a começar pelo contraditório e sua extensão. A designação de um terceiro sistema (como se isso fosse possível) acontece com a formulação do Code Napoleón, de 17.11.1808 e com vigência em 01.01.1811. Nele, por razões ideológicas, manteve-se a Instruction (fase preliminar da persecução penal) do modelo inquisitorial adotado pelas Ordonnance Criminelle, de 1670, e a ela se agregou uma segunda fase (Jugement), processual, realizada conforme o modelo inglês e aplicada a partir do Decreto de 1629.09.1791, logo ajustado pelo Code des délits et des peines, de 25.10.1795. Com contraditório e outras características típicas do sistema acusatório, vem à luz como um processo misto, também conhecido como reformado ou napoleônico; e assim se espalhou pela Europa continental toda. Como conclui Cordero: “E così, dalla l. 17 novembre 1808, nasce il processo cosiddetto misto, mostro a due teste: nei labirinti bui dell’instruction regna Luigi XIV; segue una scena disputata coram populo.” (CORDERO, F. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 73: “E assim, pela l. de 17 de novembro de 1808, nasce o processo dito misto, monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instruction reina Luís XIV; segue uma cena disputada publicamente.” Tradução livre). No fundo, era uma farsa aquele arremedo de democracia processual, embora tenha sido justo isso que teria sido desejado pelo imperador e seu arquichanceler, Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, interessados que estavam em manter o controle político da situação também através do processo penal. Ora, como se sabe, aquilo que era produzido na Instruction secreta, podia ser usado – e é e segue sendo – no

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Jugement e na maioria dos casos penais define o processo; pela condenação, naturalmente. “I verbali degli atti istruttori pesano sulla decisione: non esiste più una formula correspondente all’art. 365 code des délits et des peines, secondo cui ‘il ne peut être lu aux jurés aucune déposition écrite de témoins non présents à l’auditoire’; (...)”. (CORDERO, F. Guida... cit., p. 72: “Os termos dos atos da instruction pesam sobre a decisão: não existe mais uma fórmula correspondente ao art. 365 do code des délits et des peines, segundo o qual ‘não pode ser lido aos jurados nenhum depoimento escrito de testemunhas não presentes no tribunal’”. Tradução livre). Continua vivo – sem dúvida – Inocêncio III”. O Code Napoleón, como se sabe, era o código de um governante autoritário, em que pese seja despiciendo discutir sobre isso, embora seja possível em face das razões históricas e outras que cercam a matéria. Com ele, porém, nasce esse monstro de duas cabeças, como referido por Cordero; e se espalha, como modelo, para a Europa continental, inclusive para a Itália. Assim, os códigos italianos que sucederam o código napoleônico de 1808 (salvo o atual, de 1988), foram, todos, adaptações daquele. Mutatis mutandis, eles fizeram com o Code Napoleón o que nós, no Brasil, fizemos com o Codice Rocco. Desde esta perspectiva, o desafio é ir além das bases do livro e, naquilo que transborda, mergulhar, decisivamente, mas matrizes do referido Código francês. Comecei a fazer isso em um singelo Curso oferecido, como professor convidado, em junho de 2018, a convite da estimada Profª Drª Ruth Chittó Gauer, no Programa de Pós-graduação em Direito da PUCRS, mestrado e doutorado, intitulado As ideias por trás do code d’instruction criminelle, de 17.11.1808 (Código de Napoleão). A partir de Adhémar Esmein, Fautin Hélie, Franco Cordero, Henri Charles Lea – e outros nomes importantes – , foi possível penetrar, um pouco, no jogo das escamoteações levadas a efeito pelo próprio Napoleão e seu – mais tarde – arquichanceler, Jean-Jacques-Regis de Cambacérès e, em face disso, perceber o porquê dos chamados modelos mistos serem sempre defendidos por aqueles que têm uma visão autoritária do processo penal; e por que não, da vida. O curso em Porto Alegre, sem embargo do meu grande esforço e do interesse maiúsculo dos alunos e professores que me horaram com suas presenças, foi só um start. A missão, quem sabe, pelo background conquistado na faina de construção deste livro (inclusive com um curso na PUCRS e outro na USP), pode – e deve – ser encomendada ao

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caro Prof. Dr. Ricardo Gloeckner. O segundo tema do desafio, por certo mais fácil ao ilustre professor, diz com o futuro e, por ele, já veio uma promessa, estampada na nota nº 2181 do livro (“Futuramente, pretende-se investigar esta segunda fase do autoritarismo brasileiro”.), a qual tenta dar conta, no texto, daquilo que se vive hoje no processo penal, pela influência estrangeira, mormente norte-americana: “Tal hibridação esgarça ainda mais os limites e parâmetros para a construção de um processo penal democrático, pois as novas categorias aparecem e são direcionadas no seio deste conhecido ambiente inquisitório que é o sistema de justiça criminal brasileiro”. À importação de institutos estrangeiros, em especial do Common Law norte-americano, tenho chamado de Americanização à brasileira. Impossível, desde logo, por razões óbvias que partem da cultura e outros fundamentos, aquilo que pretensiosa e arrogantemente querem alguns vizinhos do norte e seus sequazes locais, quase vassalos: uma legal transplant. Já é difícil – muito difícil – aceitar como viável a proposta mais humilde de Máximo Langer (LANGER, Máximo. DOS TRANSPLANTES JURÍDICOS ÀS TRADUÇÕES JURÍDICAS: A GLOBALIZAÇÃO DO PLEA BARGAINING E A TESE DA AMERICANIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL. DELICTAE: Revista de Estudos Interdisciplinares sobre o Delito, [S.l.], v. 2, n. 3, p. 19, dez. 2017. ISSN 2526-5180. Disponível em: <http://delictae.com.br/index.php/revista/article/view/41>. Acesso em: 04 mar. 2018. doi: https://doi.org/10.24861/2526-5180. v2i3.41), inclusive em texto traduzido por Ricardo Jacobsen Gloeckner e Frederico C. M. Faria, ou seja, de uma legal translation. As razões, para tanto, são simples, mas começam pelas diferenças entre os sistemas. Entre Common Law e Civil Law há um abismo que se não pode superar como se fosse inexistente, embora seja justo o que se está a fazer. As tentativas de transplante e mesmo de tradução/adaptação, como se sabe, têm sido desastrosas, seja porque se legisla mal, seja porque isso se faz propositadamente, quiçá para se permitir que se possa dizer qualquer coisa naquilo que são os vazios das leis, com frequência o Poder Judiciário indo além da interpretação e, legislando, tentando fazer – ou fazendo – , inadvertidamente, o papel do Legislativo. Por evidente que institutos assim (do Common Law enfiados no Civil Law) são estranhos e, como não poderia deixar de ser, causam entropia. A bagunça é de tal monta que tem sido muito difícil

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ensinar direito processual penal, a não ser que se seja desonesto ao ponto de esconder a realidade. Pior ainda, sem embargo, é o dia-a-dia da aplicação das leis processuais penais, muitas vezes erroneamente substituídas por uma moral duvidosa, tanto quanto inconstitucional. E quem sofre são os cidadãos, que vêm escorrer, como água pelas mãos, seus direitos e garantias constitucionais. Em suma, como venho repetindo há um bom tempo, o Brasil, em termos de processo penal, tem um problema muito sério para resolver e, para tanto, todos precisam ajudar a pensar e solucionar. Aos grandes professores, dentre os quais o ora autor, a missão é maior ainda – eis, então, o desafio – porque não basta ajudar a construir o futuro. Não. É preciso se defrontar, diuturnamente, com os algozes da Constituição e da democracia; dos que ganham com o caos, com a bagunça, com a desordem, com a entropia do sistema, nem que seja para gozar um pouco a partir da sua vaidade, com frequência em face de um exibicionismo desmedido. A promessa do Prof. Dr. Ricardo Gloeckner foi devidamente anotada e, quem sabe, sob o comando dele, algo melhor possa ser investigado, analisado, proposto e adotado. Faz-se ora de terminar. O livro, instigante como é, levou-me a outras revisões e estudos (que sempre tomam tempo) e, por conta deles, havia preparado anotações de O cidadão, de Thomas Hobbes; de Diálogo entre um filósofo e um jurista, de Thomas Hobbes; de As origens do totalitarismo, de Hannah Arendt; de Quel che resta di Auchwitz, de Giorgio Agamben; de Ódios, de Mauro Mendes Dias; de Fuerza de ley: el fundamento místico de la autoridad, de Jacques Derrida; assim como várias passagens de meu Direito e psicanálise: interlocuções a partir da literatura. Não as usei, mas elas, por certo, não foram em vão, e me ajudaram a dialogar com o autor sobre o livro e seu tema, que é fantástico. Deixo ao caro amigo Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner a perspectiva de novos estudos e grandes desafios, como se o presente livro fosse tão só uma passagem. A vida é assim, sem fim para as coisas que importam. Mas devo dizer – como já referi – que tenho muito orgulho de poder estar nele e, com ele, ficar para a história. O trabalho que fica, porém, é daquele que mata a fome. Isso me lembrou do inesquecível António Aleixo, o grande poeta popular português; e que segue nos ensinando a cada verso:

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“Quem trabalha e mata a fome

SUMÁRIO

Não come o pão de ninguém Quem não ganha o pão que come Come sempre o pão de alguém”.

INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

(ALEIXO, António. Este livro que nos deixo... 11ª ed., Lisboa: Editorial Notícias, 2000, volume II, p. 23)

CAPÍTULO I - AUTORITARISMO PROCESSUAL PENAL. . . . . . . . . . 45 1.1. Autoritarismo(s) e Processo Penal: formação discursiva do pensamento “pós-acusatório” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 1.2. Um Breve Percurso Sobre Usos do Autoritarismo e do Totalitarismo: a transversalidade do autoritarismo e as múltiplas tentativas de apreensão do fenômeno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 1.3. Linguagens Autoritárias: introdução a uma semântica política do autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 1.4. Processo Penal Autoritário na Democracia Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . 84 1.5. O Autoritarismo Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado). Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS

1.5.1. O Autoritarismo Brasileiro: Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106 1.5.2. Francisco Campos e o Pensamento Político Autoritário: mito e massa . . . . . 117 1.5.3. Francisco Campos: democracia Formal e democracia substantiva . . . . . . . . . 124 1.5.4. Francisco CAMPOS e as Reformas Legislativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

1.6. Autoritarismo e Processo Penal no Brasil: o panorama contemporâneo 136 1.6.1. Autoritarismo Processual Penal: a necessidade de substantivação do conceito autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 1.6.2. Modos de se Pensar o Autoritarismo Processual Penal . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

INTERLÚDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172

CAPÍTULO II - NOÇÕES FUNDAMENTAIS DO AUTORITARISMO PROCESSUAL PENAL – DA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL ITALIANO NO FASCISMO À ABSORÇÃO DAS CATEGORIAS PROCESSUAIS NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 2.1. Razões do Processo Penal Fascista na Itália: o liberalismo reacionário e o sincretismo discursivo como condicionantes epistemológicas . . . . . . . . 193 2.2. A Prolusão Sassarese de Rocco e o Tecnicismo Jurídico Como Continuidade: permanências e involuções no pensamento processual penal italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 2.3. Tecnicismo Contra o Fascismo? A Impropriedade da Tese do Freio e a Participação (Indireta?) de Importantes Processualistas nas Atividades do Regime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 2.4. A Reforma de 1955: a sobrevida do Código Rocco . . . . . . . . . . . . . . . 259 2.5. A Estrutura Legal do Código Rocco: linhas gerais . . . . . . . . . . . . . . . . 275

2.5.1. A Investigação Preliminar (Istruzione Formale e Sommaria): os poderes excessivos do Ministério Público, o segredo instrutório e a audência de defensor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284 2.5.2. A Compreensão do Direito à Liberdade e a Custódia Preventiva: linhas gerais291


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2.5.3. 2.5.4. 2.5.5. 2.5.6. 2.5.7.

O Sistema das Provas: o princípio da liberdade da prova . . . . . . . . . . . . . . . 299 O “Livre Convencimento do Magistrado” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 A Verdade Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306 O Contraditório Deformado do Código de 1930 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308 A Expulsão da Presunção de Inocência e o Encontro com a Escola Positiva: um discurso híbrido a serviço da defesa social . . . . . . . . . . . . . . . . 310 2.5.8. A Publicidade dos Atos e a sua Excepcionalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 316 2.5.9. A Supressão das Nulidades Absolutas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317 2.5.10. Naha Mihi Factum Dabo Tibi Jus: ou de como se pode condenar apesar de uma acusação inidônea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320 2.5.11. O Ônus da Prova no Código Rocco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

2.6. Conclusões Provisórias do Capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323

CAPÍTULO III - A CODIFICAÇÃO PROCESSUAL PENAL DE 1941 NO BRASIL: AS BASES AUTORITÁRIAS DO PROCESSO PENAL E AS REFORMAS PARCIAIS POSTERIORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333 3.1. O Projeto Vicente Ráo: a concepção “social” do direito e a retórica do “justo equilíbrio” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336 3.2. O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941: a “civilística processual penal” brasileira e a construção do “processo penal social” . . . . . . . . . . 345 3.2.1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Tecnicismo “Apolítico” Brasileiro, Isenção de Responsabilidades dos Juristas e a Perenização de seus Ensinamentos: como manter viva a chama do autoritarismo em regimes democráticos . . . . . 359 3.2.2. Reprises do Liberalismo Reacionário no Brasil: categorias fundantes do processo penal: relação jurídica, direito subjetivo de punir, pretensão punitiva e ação penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368 3.2.3. Um Código “Liberal” Para uma Tradição Liberalista: o discurso da continuidade do Código de Processo Penal de 1941 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 377

3.3. A Estrutura do Código de Processo Penal Brasileiro: um código “liberal” para juristas que o eram tão pouco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383 3.3.1. A Investigação Preliminar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 3.3.2. Prisão Cautelar e Um Direito Mínimo à Liberdade Ou Se a Liberdade é Provisória, a Prisão é a Regra... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398 3.3.3. O Princípio da Liberdade das Provas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 406 3.3.4. O Livre Convencimento do Magistrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409 3.3.5. A Verdade Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 415 3.3.6. O Contraditório Deformado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 420 3.3.7. Presunção de Inocência ou de Culpabilidade? O Tecnicismo Processual Penal Brasileiro e a Inspiração Autoritária de Base Fascista . . . . . . . . . . . . . . 423 3.3.8. A Publicidade dos Atos Processuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 430 3.3.9. A Supressão das Nulidades Absolutas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431 3.3.10. A Emendatio Libelli e o Julgamento “Ultra Petita” no Panorama do Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433 3.3.11. O Ônus da Prova no Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436

3.4. O Anteprojeto Tornaghi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442 3.5. O Projeto Frederico Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447

SUMÁRIO

33

3.6. 3.7. 3.8. 3.9.

O Anteprojeto Novíssimo: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456 O Projeto Sálvio de Figueiredo Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458 A Comissão Grinover . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461 O Guardião da Constituição: o contributo do Supremo Tribunal Federal na Manutenção de Decisões Congruentes com a Estrutura Autoritária do Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 471 3.10. “Os Múltiplos Corpos” do Código de Processo Penal: é mais fácil alterar a Constituição do que a estrutura autoritária de processo . . . . . . . . . . . . 481

CAPÍTULO IV - A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL: UM SIGNIFICANTE-REITOR NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO AUTORITÁRIO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 487 4.1. A Concepção Publicística (ou Social) de Processo Civil: uma teoria geral do processo autoritário? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 490 4.1.1. Uma Questão de Técnica (ou de Política?): o processo social e a crítica ao neoprivatismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514

4.2. A Instrumentalidade do Processo Penal: das matrizes clássicas ao giro autoritário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525 4.3. Uma “Fase” do Processo Brasileiro: a instrumentalidade do processo . . 540 4.4. A Instrumentalidade do Processo Penal Brasileiro Após a Constituição de 1988: um exame de suas facetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546 4.4.1. 4.4.2. 4.4.3. 4.4.4.

Instrumentalidade e Metodologia do Processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 547 Teoria Geral do Processo e a Perspectiva Instrumentalista: . . . . . . . . . . . . . . 552 Desformalizar e Punir: jurisdição e processo penal no instrumentalismo . . . 553 Os Escopos da Jurisdição e a Instrumentalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 560

4.5. Jurisdição Como Poder: a penetração da doutrina da Escola Superior de Guerra no Processo Penal e a continuidade do autoritarismo no “pósacusatório” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .567 4.6. Um Processo Penal Modelado Segundo a Escola Superior de Guerra: é este o processo penal que se deseja em uma democracia? . . . . . . . . . . . . . . 583 4.7. Abandonar a Instrumentalidade, Repensar o Processo Penal . . . . . . . . 605 PROCESSO PENAL E LIBERALISMO BRASILEIRO: PARA UMA CRÍTICA DA RAZÃO CÍNICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 616

REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 629


INTRODUÇÃO Nesta brevíssima introdução, pode-se afirmar que o presente trabalho tem por objetivo suprir uma lacuna. São incontáveis os estudos que se ocupam da doutrina processual brasileira e que apresentam suas linhas gerais sem qualquer espécie de contextualização política, por mais imprescindível que fosse1. Ou ainda, que inscrevem períodos de exceção em uma espécie de normalidade política, em nada afetando práticas, institutos ou leis produzidos nos períodos de convulsão política2. No Brasil, o atual código de processo penal, embora atingido por uma plêiade de reformas legislativas, não teve o seu núcleo modificado. Não se pode perder de vista que o código de processo penal brasileiro tem uma história. E esta história, infelizmente, conecta-o à doutrina italiana predominante nas décadas de 20 a 40 do século passado. Mas que não se esgota num mero influxo doutrinário. O Estado Novo brasileiro, sob a tutela de Francisco CAMPOS e outros importantes juristas, edificou uma legislação que em suas linhas gerais está claramente inspirada no modelo italiano do Codice Rocco, “o mais fascista dos códigos”, como o descrevia o Ministro da Justiça do governo de MUSSOLINI, Alfredo ROCCO. Isso não é pouca coisa, apesar do pouco interesse de nossa processualística penal na história da codificação brasileira. Somente tal circunstância seria suficiente para se irradiarem debates, discussões e, muito para além disso, um movimento forte para a sua revogação total. Não é o que aconteceu no Brasil. Optou-se – os motivos serão apresentados no capítulo III, por reformas parciais. O resultado é a sobrevivência do código estadonovista, já não mais o mesmo, evidentemente. Mas um código carregado de alterações, que se por um lado, 1. 2.

Como exemplo, dentre outros tantos, ao comentar as bases do Código Buzaid MITIDIERO, Daniel. O Processualismo e a Formação do Código Buzaid. In Revista de Processo. v. 35. n. 183. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 166-194. “Sinceramente, não vi problemas, na justiça civil, ligados aos militares. Sempre me preocupei muito com as turbulências militares, mas nunca a percebi no plano do exercício da jurisdição”. DINAMARCO. Entrevista. p. 21. DINAMARCO, Cândido Rangel. Cândido Rangel Dinamarco e a Instrumentalidade do Processo. (uma entrevista). In Cadernos Direito GV. v. 7. n. 34, 2010.


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AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

retiraram algumas normas absolutamente infensas ao regime democrático, por outro, deixaram intacto o coração do sistema. E, nesse ponto, como se poderá perceber nos capítulos II e III, se procurou traçar um parelelo entre os dois códigos, de modo a deixar mais claras as linhas de continuidade e afinidade entre um e outro modelo. Esta tarefa foi executada a fim de que o trabalho não caísse numa espécie de mantra letárgico (muito embora correto em seu diagnóstico de advertência), de que nosso código é uma “cópia” do código de processo penal italiano de 1930. Não se trata de uma cópia. Cuida-se de uma legislação similar em todas as questões centrais, o que na verdade dificulta sobremaneira uma análise meramente estrutural entre os artigos (até mesmo pelo rito diferenciado, pela regulemantação de matérias em livros distintos, segundo uma sequência também não idêntica). Mesmo assumindo a diversidade dos códigos em seu estilo (o processo italiano, mantendo o assim chamado “modelo misto” e o brasileiro tratando de justapor diversas categorias processuais sem separar-se irrevogavelmente da tradição lusitana – exemplo claro disso é a manutenção do inquérito policial, originário do Basil Império), o código de processo penal brasileiro inspirou-se claramente no trabalho de MANZINI, intelectual encarregado da elaboração do projeto. O estudo não trata exclusivamente de apontar as simetrias entre um e outro código. Trata de apresentar o cenário dogmático em que isso foi possível. Este estudo não constitui um trabalho de direito comparado (embora pressuponha alguma metodologia comparatística). Insere-se no que se poderia denominar como uma “genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro”. A fim de poder compreender a penetração destas representações, categorias, universos linguísticos, foi preciso em primeiro lugar, identificar as formações discursivas na Itália, isto é, quais foram os conceitos e categorias que marcaram a experiência italiana na passagem do século XIX para o XX, investigando-se inclusive, as reformas que se sucederam após a queda do fascismo (fundamentalmente a de 1955). Não se poderia iniciar o estudo pela doutrina brasileira. Isto porque as categorias aqui utilizadas, em sua imensa maioria, marcam o espírito da irradiação do pensamento tecnicista, que da Itália aportou ao Brasil. O método técnico-jurídico, portanto, foi uma hipótese identificada como um fator que isentou de responsabilidade os intelectuais italianos em seu processo de colaboração na feitura da legislação fascista. Esta compreensão de que a

INTRODUÇÃO

legislação fascista era expressão da técnica jurídica, desprovida de quaisquer marcas que o autoritarismo pudesse lhe empreender se deu sob dois argumentos fundamentais: a) o primeiro, de que o método técnico-jurídico havia impedido uma degeneração do direito. E, nesse sentido, o fascismo teria mantido todas as categorias jurídicas preexistentes no período do liberalismo (o código de processo penal anterior ao fascismo era o Codice Finochiaro-Aprile, de 1913, um código “moderadamente liberal”, na justa advertência de Floriana COLAO3); b) o de que a Itália não pretendeu um novo direito, como procedeu a Alemanha, ao subverter diversos conceitos e categorias dogmáticas. Tais argumentos são os principais eixos do que se poderia denominar como a “teoria do freio” (explicação racionalista baseada na circunstância de que os códigos fascistas, por terem sido elaborados por intelectuais preocupados com a dogmática, haviam evitado o pior e conservado a maior parte dos direitos e garantias existentes em período anterior ao regime político mussoliniano). Portanto, a “teoria do freio” justifica o tecnicismo como uma barreira à politização geral do direito. À esta constatação deve ser agregado um recurso retórico que pode ser encontrado em ambos os lados do Atlântico: o de que a codificação não rompeu definitivamente com as tradições jurídicas, tratando, apenas, de atualizar a legislação frente às demandas de uma sociedade mais complexa e de novas formas de criminalidade4. O Brasil, por seu turno, (após identificar-se a construção das categorias processuais penais, sua transformação, deslocamento e recondução na Itália), experimentou o seu primeiro código de processo penal republicano unitário (o Brasil conheceu durante a fase republicana diversos códigos estaduais). Diversamente do que sucedera na Itália, não existia um código anterior para balizar a manutenção ou não de um sistema respeitoso das 3.

4.

Cf COLAO, Floriana. Características Originárias e Traços Permanentes do Processo Penal: do código “moderadamente liberal” ao “código fascista” e ao “primeiro código da República”. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e na América Latina. v. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Veja-se, neste ponto, as palavras de ALOISI: “os dois códigos (o autor se refere aos códigos penal e processual penal), ao mesmo tempo que se reconectam às mais sãs tradições científicas e jurídicas do passado, constituem para o futuro aquela garantia de tranquilidade fundamental para a nossa gente, que é condição primeira de todo progresso”. ALOISI, Ugo. Le Riforme Fasciste nel Campo del Diritto e della Procedura Penale. Relazione. In Primo Congresso Giuridico Italiano. Roma: Sindacatto Nazionale Fascista Avvocati e Procuratori, 1932. p. 30. O caso de CASATI (primeiro presidente da Corte de Cassação Italiana) é inclusive anedótico. Afirma que não se deveria prestar muita atenção no conteúdo das exposições de motivos das leis publicadas durante o fascismo, porque de forma propagandística, se afirmava, frequentemente e sem muita seriedade, que tudo o que era bom durante o período fascista era produto deste regime político. CASATI, Ettore. Considerazioni e Proposte Sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. 1, 1945. p. 45.

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AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

garantias liberais do processo penal. Porém, centrando-se no espaço doutrinário, percebe-se claramente como as mesmas categorias importantes e caras ao tecnicismo italiano penetrariam e encontrariam no pensamento processual penal brasileiro terreno fértil para se desenvolver, a ponto de influenciarem diretamente na elaboração do código de processo penal de 1941. No capítulo III, verificou-se como diversos institutos do processo penal brasileiro – antes e depois da codificação – são elaborados a partir da inspiração italiana. E cuja argumentação é mantida, de forma intacta e anacrônica, pelo “guardião da Constituição”. Os capítulos II e III, portanto, conflagram a perspectiva de uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal. Contudo, seria insuficiente pretender identificar os regimes de enunciação destas ideias sem atentar-se para duas questões fundamentais: a primeira delas, traçada no capítulo I trata de apresentar um panorama sobre o autoritarismo, especialmente aquele produto dos chamados ideólogos brasileiros. Não é possível compreender como a doutrina processual penal se comporta na década de 40 sem entender como na filosofia, na política e na sociologia, havia se instalado um pensamento autoritário. Aliás, para o exame de algumas categorias utilizadas por Francisco CAMPOS não seria possível abdicar desta breve revisita. O capítulo derradeiro cuida de elaborar a pergunta fundamental: como foi (e continua sendo – possível defender e mais do que isso, aplicar um código de processo penal essencialmente autoritário (por tudo o que foi exposto nos capítulos I, II e III) após o advento da Constituição de 1988? Eis o questionamento fundamental. Pode-se dizer que o estudo, ao procurar examinar o processo penal brasileiro, demonstra a “continuidade de características na descontinuidade constitucional”5. Em outras palavras, procurou-se identificar os “processos de ressignificação” das categorias processuais e do surgimento de novas balizas conceituais, que autorizaram que os institutos presentes tanto no Codice Rocco quanto no atual código de processo penal brasileiro se mantivessem vivos, com uma sobrevida absolutamente incompatível com os ditames extraídos da Constituição da República. O cenário, atualmente, é ainda pior do que aquele de décadas atrás. 5.

SBRICCOLI, Mario. Caratteri Originari e Tratti Permanenti del Sistema Penale Italiano (1860 – 1990). Disponível em http://www.lex.unict.it/sites/default/files/files/Biblioteca/letture/Sbriccoli.pdf. Acesso em 11.09.2015. p. 649.

INTRODUÇÃO

Justamente porque além da manutenção da estrutura básica do código de 1941, as novas leis processuais penais e também as penais) se encarregaram de introduzir lógicas distintas, institutos importados e criações híbridas, capazes de provocar no sistema inquisitório originário de 1941, verdadeiras metástases. Como afirma Jacinto COUTINHO, “a situação atual, sem embargo da desgraça que era antes, é pior, ou seja, convive-se com uma deterioração do sistema inquisitório”6. O capítulo IV procura enfrentar esta temática, verificando como a denominada “instrumentalidade do processo”, um verdadeiro significante reitor, procedeu à ampliação dos espaços de desformalização, do esvaziamento de garantias, da ampliação de poderes judiciais em um cenário em que tais poderes já eram alargados, ao ponto de se hipertrofiar a atuação do Supremo Tribunal Federal, responsável direto por uma regressão relativamente a direitos fundamentais, sem precedentes na história das parcas garantias constitucionais processuais penais no Brasil. Ou ainda, para utilizar a expressão de Anthony PEREIRA, compreender a sobrevivência de uma “legalidade autoritária” que se expressa, cotidianamente, pelas práticas punitivas amparadas no casuísmo, e pela chancela de ilegalidades que correspondem ao âmago de nosso processo penal. A quintessência do processo penal brasileiro é o subsídio emprestado a práticas autoritárias e ilegais, homologadas por todo um imaginário coletivo que atravessa o corpus oligárquico e aristocrático de nosso sistema de justiça criminal. Neste capítulo IV e derradeiro foi examinada a concepção publicística de processo, esta espécie de “mito fundante” da perspectiva instrumentalista, a própria estrutura discursiva e as bases epistemológicas da perspectiva instrumentalista. Contudo, ao invés de se proceder a uma análise que se poderia inserir dentro das quadras do tecnicismo, procurou-se examinar os fundamentos dos fundamentos, ou seja, quais são as fontes que edificam tal perspectiva. Encontrou-se aporte na doutrina da Escola Superior de Guerra, responsável direta pela elaboração da ideologia da segurança nacional. E então, foi preciso identificar quais eram os seus pressupostos e leituras-chave capazes de se esparramar para fora dos cantões políticos e fazer penetrar, no direito, com raízes muito profundas, slogans como 6.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Advocacia Criminal e a Deterioração do Sistema Inquisitório Atual. In ________; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e na América Latina. v. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 112.

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