Copyright© 2019 by André Karam Trindade & Henriete Karam Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros
André Karam Trindade Henriete Karam Editores
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
NARRATIVAS CONSTITUCIONAIS MITO - HISTÓRIA - FICÇÃO
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
N189
Narrativas constitucionais : mito - história - ficção [livro eletrônico] Editores André Karam Trindade ; Henriete Karam. 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2019. 1Mb ; ebook
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Marcelo Cattoni Alberto Vespaziani Lenio Streck Hilda Bentes Vera Karam de Chueiri
Jorge Douglas Price Douglas Pinheiro Luis Meliante Garcé Angela Espíndola Henriete Karam
ISBN: 978-85-9477-429-3 1. Direito e literatura. 2. Direito constitucional. I. Título. CDU: 342
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N189
Narrativas constitucionais : mito - história - ficção Editores André Karam ; àHenriete Karam. – Todos os direitos desta ediçãoTrindade reservados Tirant lo Blanch. Avenida–Nove Julho nº 3228, sala ed. First2019. Office Flat 1.ed. São dePaulo : Tirant lo404, Blanch, Bairro Jardim Paulista, São Paulo - SP 172 p. CEP: 01406-000 www.tirant.com.br - editora@tirant.com.br ISBN: 978-85-9477-428-6
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
1. Direito e literatura. 2. Direito constitucional. I. Título. CDU: 342
Direito e Arte
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Prof. Dr. André Karam Trindade Profa. Dra. Henriete Karam
PARTE I SALVAMENTO DE NÁUFRAGOS – A CONSTITUIÇÃO COMO FICÇÃO FUNDADORA: RUINAS CIRCULARES? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Jorge Douglas Price
MESA DE DISCUSSÃO I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 EXPOSIÇÃO – JORGE DOUGLAS PRICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 INTERVENÇÕES – 1ª. RODADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 Douglas Pinheiro Luis Meliante Garcé Angela Espíndola Henriete Karam
RÉPLICA – JORGE DOUGLAS PRICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 INTERVENÇÕES – 2ª. RODADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Henriete Karam Angela Espíndola Luis Meliante Garcé Douglas Pinheiro
TRÉPLICA – JORGE DOUGLAS PRICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
PARTE II SABERES LOCALIZADOS, NARRATIVAS OUTRAS: NOTAS PROGRAMÁTICAS PARA UMA NOVA HISTÓRIA E TEORIA DO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO BRASILEIRO NO MARCO DA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . 89 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
MESA DE DISCUSSÃO II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 EXPOSIÇÃO – MARCELO CATTONI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 INTERVENÇÕES – 1ª. RODADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Alberto Vespaziani Lenio Streck Hilda Helena Soares Bentes Vera Karam de Chueiri
RÉPLICA – MARCELO CATTONI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
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NARRATIVAS CONSTITUCIONAIS: MITO - HISTÓRIA - FICÇÃO
INTERVENÇÕES – 2ª. RODADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Vera Karam de Chueiri Hilda Helena Soares Bentes Lenio Streck Alberto Vespaziani
TRÉPLICA – MARCELO CATTONI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
NOTA SOBRE OS COLABORADORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 EDITORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 CONFERENCISTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 ARGUIDORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
NOTA SOBRE A RDL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
APRESENTAÇÃO Há muitas formas de contar uma história, assim como há outras tantas para recontá-la, sem nenhuma garantia de que as narrativas produzidas não sejam conflitantes. Isso também se aplica – como não poderia deixar de ser – à história do constitucionalismo. Até mesmo a própria noção de Constituição pode ser investigada a partir de diferentes perspectivas (jurídica, histórica, sociológica, antropológica, política, normativa etc.). No campo do Direito e Literatura, a Constituição é tema suscetível a inúmeras abordagens, podendo – enquanto construção narrativa – ser analisada a partir de distintos aportes da teoria literária, recorrendo a conceitos como palimpsesto (Genette), polifonia (Bakhtin) superinterpretação (Eco), intertextualidade (Kristeva), estrutura narrativa (Todorov), semiosfera (Lotman), por exemplo. Todavia, essas articulações ainda são pouco frequentes no Brasil, apesar do universo de possibilidades que descortinam. É no âmbito dos estudos e pesquisas em Direito e Literatura que o presente livro – cujo eixo central são as narrativas constitucionais – pretende discutir a Constituição brasileira de 1988. Considerando a memória de um passado de opressão, de exclusão e de lutas políticas e sociais, a Constituição de 1988 foi promulgada pela assembleia constituinte mais participativa e democrática da história constitucional brasileira, após um longo período de ditadura civil-militar, e assumiu o desafio de instituir um Estado Democrático de Direito, fundado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político, em que todo poder emana do povo que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente. Nas últimas décadas, essa Constituição foi muito criticada e rotulada como “analítica”, “ingovernável”, “ultrapassada”, “irrealista”, “garantidora demais” e “sempre em crise”, não apenas por parte dos ex-integrantes do regime autoritário com o qual ela procurou romper, em meio a uma disputa permanente entre narrativas sobre o seu sentido constituinte e constitucionalista.
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Após 30 anos, a questão que se coloca hoje poderia ser formulada do seguinte modo: O que, de lá para cá, essa Constituição construiu social e politicamente? Constituição do quê? Constituição de quem? É inegável que existem muitas narrativas em disputa sobre o sentido de Constituição brasileira que perpassaram as últimas décadas. Tais narrativas decorrem, por um lado, da exigência, por parte da sociedade e do Estado, de se posicionarem em relação a um passado pré-constitucional que se faz ainda presente e que teima em não passar, a fim de se romper com tradições autoritárias. Por outro, elas também resultam da exigência de se enfrentarem os desafios de um futuro que se já faz presente, em razão dos problemas sociais, econômicos, culturais que se colocam para uma sociedade de massa, acelerada e cada vez mais complexa, num contexto globalizado. Uma forma de buscar responder a essas questões é recuperar e problematizar, a partir das abordagens proporcionadas pelo Direito e Literatura, essas narrativas em disputa que, entre sonhos e desilusões, ceticismos, cinismos e esperanças, são constitutivas da história de uma Constituição que completa seus 30 anos. Uma Constituição, por assim dizer, balzaquiana, cujas memórias e desafios, nesse impasse que representa o presente, remetem, portanto, não apenas ao passado, mas também ao futuro. Honrando seu compromisso de fortalecer as bases teóricas e estabelecer os pressupostos metodológicos das diferentes correntes do Direito e Literatura, a Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL) – sociedade científica sem fins lucrativas, cujo objetivo é promover os estudos e pesquisa dessa área do conhecimento – produziu mais um importante e inovador debate acadêmico, desta vez no âmbito do VII Colóquio Internacional de Direito e Literatura: narrativas e desafios de uma constituição balzaquiana. Diferentemente das dinâmicas tradicionais, em que um tema é proposto e os palestrantes o desenvolvem livremente, a Mesa de Discussão se distingue pela possibilidade efetiva de interlocução: um conferencista é convidado a elaborar uma tese, e seu texto é previamente encaminhando aos quatro professores que, com ele, irão compor a mesa; no evento, o conferencista apresenta oralmente sua tese e é arguido pelos quatro professores, com direito a réplica e a tréplica. A presente publicação contém tanto os dois textos que foram objeto de exame quanto as intervenções que ocorreram durante o VII CIDIL, realizado de 30 de outubro a 2 de novembro de 2018, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, MG. Esta obra reúne, assim, a produção
APRESENTAÇÃO
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de dez pesquisadores, vinculados a centros de investigações e programas de pós-graduação de importantes universidades brasileiras e estrangeiras. Na primeira parte, temos a tese de Jorge Douglas Price (UNCOMA/ Argentina), intitulada Salvamento de náufragos: a Constituição como ficção fundadora, que foi discutida por Douglas Pinheiro (UNB), Luis Meliante Garcé (UDELAR/Uruguai), Angela Espindola (UFSM) e Henriete Karam (UNIFG). Na segunda parte, temos a tese de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (UFMG), intitulada Saberes localizados, narrativas outras, que foi discutida por Alberto Vespaziani (UNIMOL/Itália), Lenio Luiz Streck (UNISINOS), Hilda Bentes (RDL) e Vera Karam de Chueiri (UFPR). Em ambos os casos, estamos publicando o texto redigido pelo conferencista e as transcrições de sua apresentação, das arguições, da réplica e da tréplica. Esperamos que todos desfrutem da leitura desses instigantes debates. Agradecemos a Karoline de Oliveira Silva, Ana Luiza Bezerra Chagas e Tiago Silva Rodrigues, pelo apoio logístico na degravação das intervenções; a Adwaldo Peixoto, pela colaboração nas traduções; e à CAPES, pelo aporte financeiro que tornou tudo isso possível.
Prof. Dr. André Karam Trindade Profa. Dra. Henriete Karam Editores
PARTE I
SALVAMENTO DE NÁUFRAGOS – A CONSTITUIÇÃO COMO FICÇÃO FUNDADORA: RUINAS CIRCULARES? Jorge Douglas Price
PROVOCAÇÃO Pediram-me para incitar estes debates com um texto que celebre, comemore, destitua, critique, louve, recupere, ou nada de tudo isso, ou muito mais, a chamada Constituição balzaquiana, a constituição política da República Federativa do Brasil, de 1988. André Karam Trindade me desafiou a refutar a seguinte tese: “A constituição de 1988 não existe”. A contratese que pretendo demonstrar poderia ser reformulada assim, com a devida permissão do Chief Justice Hughes: “Na República Federativa do Brasil existe uma Constituição, mas a Constituição é o que O Globo diz que é… e os juízes repetem, contrariam, desiludem…, mas não só os juízes”. Tal proposição nos leva a apresentar, entre muitas outras possíveis, três questões que, na literatura de Balzac, poderíamos considerar: Qual é a relação entre o direito e os outros sistemas da sociedade? Que papel exerce nisso esse instrumento que denominamos Constituição? É esse um instrumento demasiado importante para que a deixemos à disposição dos juízes?
EM QUE SENTIDO BALZAQUIANA? Propuseram-me que falasse da constituição balzaquiana, e como todos vocês sabem essa qualificação da atual Constituição do Brasil é uma referência ao romance A mulher de trinta anos, de Honoré de Balzac (2017), que descreve cruamente – a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo conservadora e crítica – o status da mulher na França da primeira metade do século XIX. Até aqui a metáfora poderia ser considerada linear; e, num primeiro sentido em que a utilizo, ela é; mas, a partir da leitura desse romance e de outros do mesmo Balzac, procurarei traçar outras metáforas mais sugestivas sobre o
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NARRATIVAS CONSTITUCIONAIS: MITO - HISTÓRIA - FICÇÃO
papel da literatura e da Constituição, em relação à sociedade. Então, para começar, pergunto: em que outro sentido esta constituição é balzaquiana? Será, por exemplo, porque se denuncia seu “esvaziamento” mediante as políticas públicas em curso? O que significa esvaziamento, desvio de sentido? Mas não é isso o que fatalmente ocorre na constituição da constituição da sociedade? Será porque em sua “maturidade” esta Constituição já é outra, devido às sentenças dos juízes, em particular as do Supremo Tribunal Federal, árbitro último do seu sentido? Mas é o STF seu último árbitro? Será que a Constituição não pode prometer esse “instante de eternidade” que sugeria a modernidade na glória de sua juventude? Será que não se realiza o instante de diferenciação entre política e direito, como propõe a teoria sistêmica? Alopoiese no lugar de autopoiese, como sugeria Marcelo Neves (1994, p. 113 e segs.)?
ANTES, UMA PERGUNTA SOBRE A METÁFORA Por que um francês, burguês, iluminista? Por que não uma negra, pobre e “favelada”, com segundo ano primário de escolaridade? Já estava trabalhava neste texto, quando tive o prazer de conhecer, no Rio de Janeiro, César Carvajal1, em razão de um atraso nos voos. Ao escutar minhas primeiras ideias sobre o tema, ele me fez algumas perguntas inquietantes e enriquecedoras, que após meu próprio filtro restaram assim formuladas: a primeira, por que escolher um autor varão, erudito, francês, ao mesmo tempo reacionário e conservador, um legitimista monárquico, para nos referirmos a uma Constituição contemporânea, uma constituição do “tempo dos direitos”, como dizia Bobbio?; a segunda, por que qualificar uma constituição brasileira com uma sorte de gentilício francês? Por que não explorar, como me propôs César, o que nos diz sobre a constituição do Brasil, uma mulher, para mais negra e pobre, com somente (somente?) dois anos de instrução primária, tal qual Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo (1961)? Por que não nomeá-la como a Constituição “favelada” ou “descartada”? Antes de qualquer coisa, imponho respeito próprio: trata-se de um campo, de um espaço de ação de pessoas que são próximas de mim e irmãs, ainda que não possa deixar de pensar como estrangeiro (ou estrangeira), ou, talvez melhor, como trânsfuga2. 1 2
Especialista em Direito Constitucional pela Universidad Nacional de Colombia, Mestre em Argumentação pela Universidad de Alicante, Magistrado Adjunto da Corte Constitucional Colombiana. Estou pensando no conceito que descreve Albert Memmi no Retrato do colonizado (2001, p. 45): “É assom-
PARTE I 15
Porém, minha condição, como a condição dos colonizadores daquele ensaio de Memmi, não me restringe o acesso aos bens, tal como é negado a alguns brasileiros ou argentinos, supostos “concidadãos e concidadãs” em seus (nossos) próprios países. A cidadania, essa criação moderna inventada para incluir a todas e todos, não funciona assim. Quando a inclusão universal foi declarada, a exclusão prospera como um vírus que se espalha ao longo de toda a “rede”. Estrangeira em seu próprio país, Carolina Maria de Jesus, quando escrevia seu diário, suas notícias “faveladas”, não “fabuladas”, de mulher, negra e “papeleira”, descrevia uma realidade que contrastava claramente com o relato do direito, não importando que, na época, era outra a Constituição vigente (a de 1946). Outras Carolinas poderiam, hoje, escrever “notícias faveladas” tão distantes da Constituição balzaquiana como aquelas. Audálio Dantas, o editor dos cadernos de Carolina, conta no prefácio do livro que entrou na história com a ilusão e a certeza de quem acreditava poder mudar o mundo (tal qual Quixote), mas acrescenta: Em sua rotineira busca da sobrevivência no lixo da cidade, ela descobriu que as coisas todas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os animais – ficavam amarelas quando a fome alcançava o limite do suportável... O cenário onde foi escrito o livro já não é mais o mesmo. Parte deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada Marginal. A Marginal Tietê, que passa por ali onde por volta dos anos 60 se erguia o caos semiurbano e sub-humano da favela do Canindé em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, organizadas, limpas, montadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outras margens da cidade, para outros quartos de despejo (Jesus, 1961, p. 3).
“Construção” é, justamente, a primeira palavra que evoca em minha brosa a violência dos colonizadores contra aquele dentre eles que coloca em perigo a colonização. É claro que não podem considerá-lo senão como um traidor. Ele põe em xeque os seus, sua própria existência, ameaçando a pátria metropolitana toda, à qual eles pretendem representar e à que, definitivamente, representam na colônia. A incoerência não está do lado deles. Qual seria, com todo rigor, o resultado lógico da atitude do colonizador que rechaça a colonização? É possível desejar seu desaparecimento, ou seja, o desaparecimento dos colonizadores como tais? Como não iram se defender diante de uma atitude que desembocaria na sua imolação, talvez sobre o altar da justiça, mas finalmente em seu sacrifício? Inclusive se reconhecem complemente a injustiça de suas posições. Mas são eles, precisamente, aqueles que aceitaram, aqueles que se acomodaram a elas graças a mecanismos que veremos mais adiante. Se não pode aquele se sobrepor a esse insuportável moralismo que o impede de viver, se se creem tão fortes em sua posição, que comecem por se irem: provará assim a seriedade de seus sentimentos e solucionará seus problemas… e deixará de cria-los para seus compatriotas. Se não o faz, não deve esperar poder continuar os importunando com toda tranquilidade. Passaram ao ataque e o devolveram golpe por golpe; seus camaradas se tornarão agressivos; seus superiores o ameaçarão; até sua mulher se intrometerá e chorará – as mulheres têm em menor medida a preocupação com a humanidade abstrata – e lhe confessará que os colonizados não são nada para ela, que não se sente confortável senão entre os europeus. Não existe então outra saída além da submissão ao seio da coletividade colonial ou a partida? Sim, há uma mais. Desde que sua rebelião lhe fechou as portas da colonização e o isolou no meio do deserto colonial, por que não golpear a do colonizado a quem defende e que, seguramente, lhe abriria os braços reconhecido? Descobriu que um dos campos é o da injustiça; o outro, consequentemente, é o do Direito. Que faça um pouco mais, que leve até o fim sua rebelião. A colônia não se limita aos europeus! Rejeita aos colonizadores e é condenado por eles: que adote os colonizados e se faça adotar por eles, que se converta em trânsfuga” (Tradução Livre).
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NARRATIVAS CONSTITUCIONAIS: MITO - HISTÓRIA - FICÇÃO
PARTE I 17
memória a máquina de associações livre quando falamos de constituição, sejam as Constituições do Brasil, de 1946 e de 1988, mas não apenas delas. Da referência à estrutura do ser humano, ou do universo inteiro, pela mão incrível de um deus ou a do acaso, ou qualquer dos nomes substitutos para contingência, é de onde provavelmente Aristóteles extrairá a metáfora inicial. “Constituição” é, desde então, uma palavra que evoca o modus vivendi de uma sociedade, ainda que pelas operações da mente ocidental, já desde Platão, tornou-se projeto, plano ou desenho de si mesma. E, como disse Cristiano Paixão (2017), constituição é uma condensação de sentido que contém muitas metáforas e, por isso, também pode ser des-construída e res-significada mediante uma metáfora. A ambiguidade está instalada no imaginário. A sociedade inteira se autoinstitui, se autosefunda, se constrói-se, autopoieticamente3, através de comunicações que, como a que opera a mesma constituição escrita, pretendem ser autodescrições, mas, ao contrário do que ocorre em A pele de onagro (Balzac, 2010) ou O retrato de Dorian Gray, conservam a beleza de seu relato ao custo da feiúra do “outro lado do espelho” ou do “quarto de despejo”. Paradoxal – ou não – é que despejar em espanhol significa tanto eliminar a névoa como as dificuldades do cálculo. Então, a recordação inesquecível de uma canção tão brasileira (e tão latino-americana) como esta Constituição que observamos, filtrou-se em minha memória: Amou daquela vez como se fosse a última Beijou sua mulher como se fosse a última E cada filho seu como se fosse o único 3
Aludindo ao conceito criado por Humberto Maturana e Francisco Varela – ao qual já me dediquei em outra oportunidade (Douglas Price, 2012) – , que também fora adotado por Niklas Luhmann em sua teoria da sociedade e que significa, basicamente, que o sistema está constituído pelos próprios componentes que ele constrói, trata-se de uma rede de processos de produção, transformação e destruição de seus próprios componentes, a partir de processos que definem suas própria interações e transformações que regeneram e realizam, continuamente, os mesmos processos, processos que servem para definir o sistema como tal, para “diferenciá-lo” do ambiente. São sistemas homeostáticos caracterizados por seu fechamento operacional (o que significa que somente tratam o que provém do ambiente com base em suas próprias operações) e sua abertura cognitiva (isto é, que “apreendem” das irritações que provém do entorno, entorno que , no caso dos sistemas sociais, sã os outros sistemas da sociedade). Os sistemas sociais são sistemas de constituição de sentido. Nesse sentido, a “auto-observação” é uma condição da reprodução do próprio sistema. O fechamento é, por sua vez, condição de possibilidade da abertura cognitiva que lhe permite reproduzir-se e, ao mesmo tempo que conserva a autonomia, variar. Teubner acrescentará a esses conceitos o de “enlace hipercíclico”... A comunicação é a unidade elementar de todos os sistemas sociais. No meio ambiente de todos os subsistemas da sociedade, como o Direito, há comunicação. Nesses sistemas, desenvolvem-se comunicações sobre o meio ambiente, porém também com o meio ambiente (isso é o que se chama irritações). A vigência jurídica, assinala Neves a propósito do tema, das expectativas normativas não está determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem sequer por proposições científicas; isso depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do próprio sistema jurídico, baseado no código binário lícito/ilícito.
E atravessou a rua com seu passo tímido Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro paredes sólidas Tijolo com tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Foi a partir da lembrança dessa canção aliada a de uma antiga leitura de Marx e Engels que me propus a reler Honoré de Balzac, em paralelo com Carolina Maria de Jesus, para pôr em prática uma inversão da proposta de Dworkin, isto é, observar “como a literatura se assemelha ao Direito”, ou como a literatura “constrói sociedade”. Ou dito de outro modo: como a deriva de sentido jamais se detém; e como a generalização congruente de expectativas normativas está perpetuamente ameaçada pelos mesmos jogos de linguagem. Assim, depois de recordar a poesia de Chico Buarque, é possível entender porque escolhi como subtítulo uma imagem de A pele de Onagro: quando o atribulado e jovem personagem do romance dirige-se ao Sena – caminhando pela mesma rua em que, no ano de 1793, conduzia-se ao cadafalso todos aqueles que caíam durante a caça às bruxas que sistematicamente se apodera das sociedades quando não podem entender a si mesmas (tal como parece acontecer hoje no Brasil e na Argentina) – , esse jovem, prevenido por uma velhinha que lhe disse que era um mau dia para se suicidar, vê ao longe “sobre o quebra-mar das Tulherias, o barraco coberto por um papelão, com o seguinte rótulo, em letras grandes: «salvamento para náufragos»” (Balzac, 2010, p. 13). É nesse momento, em que ele decide doar suas últimas moedas – as moedas que haviam sobrevivido ao jogo no Palais Royale – a dois mendigos, um jovem e um ancião, que lhe é oferecido um trato que, da mesma maneira como ocorre em Fausto ou em O retrato de Dorian Gray, constitui um pacto para alcançar a satisfação dos desejos, um pacto irracional e “mágico”, que lhe proporciona uma ponte momentânea em direção ao “futuro”, uma ponte que parte e retorna à mesma margem de rio, como aquela de Macedonio Fernández4. Apesar de Balzac ser reconhecido como o fundador do “realismo”, é claro que A pele de onagro inaugura uma espécie de realismo mágico, que muito tempo depois a literatura, sobretudo latino-americana, vai desenvolver. Da mesma forma que, por sua vez, ao ler Quarto de despejo, as Tulherias mudaram para o Canindé, o Sena virou o Tietê e um diário pessoal transformou-se no reverso (ou anverso?) daquela história “balzaquiana”, no Quarto de espelhos da oitava economia do mundo, o quarto que constitui talvez seu cartão-postal 4
Já trabalhei esta soberba ironia do referido autor, a quem Borges reconhecia uma enorme influência, num texto publicado na Revista da Faculdade Mineira de Direito (Douglas Price, 2007).
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mais autêntico, muito mais do que o Pão de Açúcar ou o Cristo Redentor. Cidade de Deus.
BREVE DIGRESSÃO SOBRE “PONTOS DE PARTIDA” Não disponho do espaço e tempo necessário para refletir sobre o espaço e o tempo em que habitamos; precisamos de outros observadores. Por isso, com o intuito de provocar os leitores e arguidores, explicitarei alguns pontos de partida filosóficos, que servirão para analisar a assim chamada Constituição Balzaquiana e para tentar responder ao desafio “Andresiano”. Utilizarei, para anto, duas fórmulas, se quisermos “literárias”: a primeira, parafrasear o próprio Balzac; a segunda, remeter-me à sociologia e à filosofia do direito para ensaiar mais algumas perguntas dos que algumas respostas sobre o papel da Constituição na sociedade e, para isso, me valerei de Luhmann e de Carolina Maria de Jesus. Uma sociedade não pode se referir a outra coisa que não seja a ela mesma. Quando parece se referir a “outras coisas”, como a Deus ou ao universo, só está metaforizando sua própria “autodescrição”. Assim é no direito, como na literatura... e vice-versa. A sociedade ocidental costuma pensar a si mesma como dotada de um telos com fundamento fora dela (Castoriadis, 1993, p. 9). Para corroborar tal afirmação, basta observar o preâmbulo de muitas das Constituições modernas. Esse não é um pensamento estranho para aqueles que buscavam o ponto fixo, ainda que pudessem ficar presos na Ilha do dia anterior (Eco, 1995). É claro, então, o porquê de “Salvamento para náufragos”; ou, se preferirmos, “sonho eterno dos jusnaturalistas” (clássicos ou contemporâneos, agora chamados neoconstitucionalistas, ainda que o deus de Balzac pudesse desiludilos5); ou “modesto ponto fixo dos positivistas” (includentes ou excludentes). Pela mesma razão, essa sociedade imagina ter um destino, um fim, uma meta. Imagina que navega em direção a “algum lugar”, ainda sem compreender seu caráter de stultifera navis. Nisso não encontraremos diferenças entre Marx e Hegel, porque, como já se disse, nisso também Marx é firmemente hegeliano, 5
Paradoxalmente (ou não) Balzac, como sugeria Cícero (1984), em Sobre la naturaleza de los dioses, inclina-se pela existência de um Deus que não revela seu propósito e que muda, como pensavam Guillermo de Ockham e Juan Duns Scoto, seus mandamentos: “Deus, que, com frequência, põe sua vingança no seio das famílias, e se serve eternamente dos filhos contra as mães, dos pais contra os filhos, dos povos contra os reis, dos príncipes contra as nações, de todos contra todos; substituindo no mundo moral os sentimentos pelos sentimentos como as folhas novas substituem as velhas na primavera; atuando com vista a uma ordem imutável, a uma finalidade somente por ele conhecida. Sem dúvida, cada coisa vai, ou melhor ainda, volta ao seu seio” (Balzac, 2017, p. 166).
PARTE I
quer dizer, moderno, ou seja, otimista; a embarcação vai a algum lugar... A busca de um lugar no cosmos ou de uma “mansão” para a existência poderia remontar a Aristóteles ou Tomás de Aquino; o desassossego e a incerteza, a Kierkegaard ou Sartre6. No espaço entre ambas “locações”, mas muito mais próximo da segunda (ali onde também se encontraria Camus), poderia se colocar esse breve ensaio, que também poderia ter se chamado: «Ensaio sobre uma ilusão» ou «A constituição é um sonho eterno»7.
AS “PROMESSAS NÃO-CUMPRIDAS” DAS CONSTITUIÇÕES A invenção das Constituições parece surgir como aquela “embarcação dos loucos” (Foucault, 1990), que percorre o mesmo rio num sentido e noutro, sem que possamos saber se mantém mais a salvo aqueles que ficavam na margem, ou aqueles que navegavam com ela. A Constituição como “salvamento para náufragos”, como ponto de partida, como contrato de sobrevivência, como monumento, como comando de origem (Paixão, 2017). Então, no que uma Constituição se parece com uma mulher de trinta anos? Podemos atribuir um gênero à Constituição? É essa uma Constituição que se encarrega da condição das mulheres? Não está na hora de uma constituição “queer”? Ademais, seja qual for seu gênero, se é que o tem: poderíamos dizer – retornando à metáfora – que ela já tem experiência suficiente para enfrentar as vicissitudes da vida cotidiana e os seus desencantos, como sugere Balzac? Não é verdade que a Constituição desiludiu a promessa que supõe para a vida cotidiana e que existem hoje muito mais favelas e Carolinas espalhadas pelo Brasil? Não é verdade que os direitos não estão protegidos apesar de sua prioridade? Não é verdade que a resposta à pergunta de Marshall8 parece ser, hoje, a 6 7
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Esta metáfora me ocorreu a partir do extraordinário ensaio de Martin Buber, O que é o homem? (1964), ainda que não concordo com ele sobre qual dos lados do par que propõe para as antropologias filosóficas (segurança/insegurança) se inclina. Parafraseio, deliberadamente, o título do romance de Andrés Rivera, La revolución es un sueño eterno, em cuja sinopse editorial consta: “Em La revolución es un sueño eterno, Andrés Rivera interroga o passado argentino e mostra alguns dos traços pelo quais nasce nosso país no início do século XIX. A conclusão é dramática: há capítulos de nossa história que parecem se repetir sem remédio. Talvez por isso, apesar da grande distância temporal que nos separa dele e de sua época, Castelli parece ser hoje nosso contemporâneo. Os turbulentos dias de maio de 1810 ficaram distantes. Depois de ser um dos representantes da Primeira Junta e o grande orador da revolução, Juan José Castelli está confinado em sua casa, derrotado como homem político e consumido por uma enfermidade que o levará à norte. Já não há lugar para as acaloradas polêmicas entre adversários. É que “o inverno chega às portas de uma cidade que extermina a utopia, mas não sua memória”. E esse desejo malogrado de forjar entre todos um país livre e justo se converterá na obsessão de seus últimos dias: por acaso há alguma revolução que possa compensar a pena dos homens ou se trata, simplesmente, de um sonho impossível?” Refiro-me, obviamente, à interrogação feita pelo Chief Justice John Marshall, no célebre precedente Marbury v. Madison, em que – como já assinalei anteriormente, seguindo uma advertência de Paula Viturro – inventou a um só tempo o “controle de constitucionalidade”, ou “judicial review”, e seu limite: as questões políticas não judicializáveis. No parágrafo que nos importa, Marshall diz: “A pergunta acerca de se uma
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negativa? Ou, não é verdade que as promessas de transformar a vida das pessoas que formulavam os revolucionários franceses parece estar “na outra margem”? É a Constituição uma stultifera navis? Será, então, que a Constituição é “um ídolo vazio, destinada a proteger a seu protetor, pobre criatura que, como salário por um contínuo sacrifício, é arremessada ao amor egoísta” (Balzac, 2017, p. 36) de seus pais fundadores, burgueses, patriarcas, seguramente machistas, homofóbicos, violentos, partidários de normalizar a desigualdade como resultado “natural” do mercado? A Constituição, poderíamos seguir parafraseando a Balzac, é continuamente extrapolada, esvaziada, reprovada, desviada, “pelas mesmas deploráveis imperfeições nas instituições sobre as quais se baseia a sociedade” (Balzac, 2017, p. 55), porém são seus próprios desenhos, colocada como está no ponto tangencial entre direito e política (voltarei a falar sobre isso), que facilitam o oximoro, isto é, de como a constituição desconstitui. Surpresa: será que o autor reacionário, varão, burguês, branco e francês, aproxima-se da contestadora, mulher, pobre, negra e favelada? Marx e Engels diriam que sim; e isso fica bastante claro quando lemos Carolina Maria de Jesus: Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas (Jesus, 1961, p. 76). lei contrária à Constituição pode se converter em lei vigente do país é profundamente interessante para os EUA, mas, felizmente, não tão complicada quanto interessante. Para resolver essa questão, parece necessário tão-somente reconhecer certos princípios que se supõem estabelecidos como resultado de uma prolongada e serena elaboração. Todas as instruções fundamentais do país baseiam-se na crença de que o povo tem o direito preexistente de estabelecer, para seu governo futuro, principios que considera mais adequados para sua própria felicidade. O exercício desse direito supõe um grande esforço, que não pode, nem deve, ser repetido com muita frequência. Os princípios assim estabelecidos são considerados fundamentais. E, desde que a autoridade da qual procedem seja suprema, e possa raramente se manifestar, estão destinados a ser permanentes. Essa vontade originária e suprema organiza o governo e confere aos diversos poderes suas funções específicas. Pode fazer somente isso, ou ainda bem fixar limites que não poderão ser ultrapassados por tais poderes. O governo dos EUA é desse último tipo. Os poderes da legislatura estão definidos e limitados. E, para que esses limites não sejam confundidos ou esquecidos, a Constituição é escrita. Com que objetivo são limitados os poderes e para que se estabelece que tal limitação seja escrita se ela pode, a qualquer momento, ser deixada de lado pelos mesmos que resultam sujeitos passivos da limitação? Se tais limites não restringem aqueles que estão alcançados por eles e não há diferença entre atos proibidos e atos permitidos, a distinção entre governo limitado e governo ilimitado fica abolida. Há somente duas alternativas demasiado claras para ser discutidas: ou a Constituição controla qualquer lei contrária a ela; ou a Legislatura pode alterar a Constituição mediante uma lei ordinária. Entre essas alternativas, não há meio termo: ou a Constituição é a lei suprema, inalterável por meios ordinários; ou se encontra no mesmo nível que as leis, de tal modo que, como qualquer delas, pode ser reformada ou tornada sem efeito sempre que o Congresso assim entender. Se é certa a primeira alternativa, então uma lei contrária à Constituição não é lei; se em lugar disso for verdadeira a segunda alternativa, então as constituições escritas são absurdos criados pelo povo para limitar um poder ilimitável por natureza. (Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch, Secretary of State of the United States. U.S. Supreme Court, 24 de Febrero de 1803).
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Não obstante, outra pergunta pela relação entre Literatura e Direito se impõe: de que modo essa literatura se filtrou (se filtra) no Direito?
O DIREITO COMO CONSTRUTOR DE VÍNCULOS COM O FUTURO Até aqui a desilusão, mas esse ídolo vazio também pode funcionar, todavia, como um “salvamento para náufragos”, tal como propõe Cárcova ao se referir àquela que denomina a função paradoxal do direito: Adiantamos a ideia para tratar de fundá-la brevemente. O direito, na sua substância, cumpre um papel formalizador e reprodutor das relações sociais estabelecidas, ao mesmo tempo que desempenha um papel na eliminação e transformação dessas relações. Cumpre, portanto, uma função conservadora e reformadora. Essa aparente contradição se resolve na medida que se resgata para a análise, o papel da ideologia e a concepção relacionista do poder (Cárcova, 2009, p. 139).
Quando se vê como o direito opera, então se vê que ele opera na fronteira entre passado e futuro, em um presente que, como tal, não existe, como assinala Raffaele De Giorgi, mas opera como uma ponte similar à de Macedonio. A Constituição atua como uma promessa, que pretende diferenciar o direito da política, submeter o poder e, assim, construir vínculos com o futuro, ainda que exista entre nós um mal suficientemente assassino para estrangular, ao mesmo tempo ,o passado, o presente e o futuro, para não deixar nenhuma parte da vida em sua integridade, para desnaturalizar para sempre o pensamento, inscrever-se inalteravelmente nos lábios e na frente, romper ou relaxar os estímulos do prazer, introduzindo na alma um princípio de tédio em direção a todas as coisas do mundo. Ademais, para ser imenso, para de tal modo pesar sobre a alma e sobre o corpo, esse mal deveria chegar em um momento da vida no qual todas as forças da alma e do corpo fossem jovens, e fulminar um coração cheio de vida. O mal ocasiona, então, uma grande chaga; grande é o sofrimento; e nenhum ser pode sair dessa enfermidade sem certa mudança poética: ou toma o caminho do céu; ou, se permanece aqui embaixo, volta a entrar no mundo para mentir ao mundo [...] Perecemos menos por causa dos efeitos de um pesar certo do que pelas esperanças frustradas (Balzac, 2017, p. 68-72).
A Constituição, denuncia-se no Brasil, como em quase todos os países do mundo, está sendo continuamente esvaziada, desprovida de sentido. Isso é o que levou Marcelo Neves – há muitos anos, quando a Constituição tinha apenas seis anos e, portanto, era uma infante – a afirmar que, quando se dá o que ele denomina reprodução alopoiética do sistema do direito, isso é o que se reconstitui predominantemente por critérios do meio ambiente (quer dizer, critérios de outros subsistemas) e, portanto, negando sua autonomia, o que
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se afeta não é somente o próprio sistema do direito, mas também o sistema da política, uma vez que, se toda decisão pode ser tomada a partir do código superioridade/inferioridade, o condenado a implodir, por excesso de demanda, é o próprio sistema político. Com isso, Neves referia-se à frequente sobreposição dos sistemas econômico (ter/não-ter) e político (poder/não-poder) sobre o código lícito/ilícito próprio do sistema do direito, em detrimento da sua eficiência, funcionalidade e racionalidade. Tal processo se realiza mediante o recurso ao que ele denomina de constitucionalização simbólica, que implica incluir no texto constitucional disposições pseudoprogramáticas própria do Estado de bem-estar, que são utilizadas pelos agentes políticos para legitimar a ordem, porém são letra morta na prática social, o que poderia ser interpretado como uma “promessa inautêntica”, em termos de teoria dos atos de fala (Searle). A construção de vínculos com o futuro, certamente, pode basear-se apenas na existência do sistema, porém, se toda expectativa congruentemente generalizada vem desiludida, o sistema perde sua autonomia e, com isso, desaparece. Em razão disso, vale uma reflexão sobre as próprias técnicas constitucionais e o modo como os códigos de recepção das irritações funcionam. Assim, por exemplo, os métodos de emenda ou controle constitucional. O que significa, em termos de análises política e sistêmica, uma Constituição que tenha trinta anos, com noventa e nove emendas ordinárias e seis emendas de revisão? Sob essa perspectiva, o que implica advertir que uma dessas emendas tenha “desconstitucionalizado” as regras básicas do direito previdenciário, permitindo o aumento da idade para aposentadorias, o que levaria a uma violação ao princípio da progressividade (de não-retrocesso) dos direitos fundamentais? Isso faz alguma diferença? Se confrontamos as cento e cinco reformas da Constituição do Brasil, ao longo de seus trinta anos, ou as quase setecentas reformas9 que modificaram o texto original da Constituição Mexicana de Querétaro de 191710, com a ausência de modificações no caso da Constituição da Argentina, ou as pouquíssimas na Constituição dos Estados Unidos. O que temos?
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passou-se a chamar, de outro lado, a fricção do direito11, seja pela via das emendas, ou pela via de interpretações constitucionais. Isto quer dizer que essas medidas também são adotadas naqueles países onde a Constituição não é reformada mediante operações de modificação do texto (emenda), mas, sim, através de operações de alteração de sentido, onde exercem um papel altamente sensível os tribunais superiores que ostentam um papel de “último intérprete constitucional” (recentes experiências no Brasil e na Argentina, assim o demonstram). Vê-se, agora, com clareza, aquilo que nem os revolucionários franceses, nem os mexicanos, nem os constituintes brasileiros, nem John Marshall ao formular sua célebre pergunta, advertiam: que a Constituição é ressignificada em cada ato de aplicação, seja ele judicial ou administrativo. Mas esta não é uma via de sentido único. Voltemos a Cárcova e à função paradoxal do Direito. A metáfora da pirâmide que Kelsen tomou de Merkl, de modo didático, ainda circula hoje pelo mundo, sendo aceita, ao menos no uso, inclusive por seus críticos, porém, ainda que potente, ela não é uma boa metáfora, porque sugere uma ordem unidirecional do processo de produção. Kelsen como todos, como nós, é filho da epistemologia de sua época, e disso não se pode escapar... A Constituição é um ato de comunicação, como tudo o que constitui a sociedade, pelo que ela está sujeita à perpétua (e circular) “deriva de sentido”, uma vez que o intérprete é, por sua vez, um signo, como propunha Peirce. Portanto, uma metáfora mais adequada do que pirâmide é aquela do nó borromeano12, que permite recorrer ao que De Giorgi chamou – seguindo Hofstadter – loops estranhos: O texto que se fixa como constituição apresenta a característica que Douglas Hofstadter atribui às hierarquias intrincadas. Trata-se de sistemas nos quais estão presentes loops estranhos. Com esta fórmula, Hofstadter define aquele fenômeno que consiste no fato de reencontrar-se inesperadamente, subindo ou descendo ao longo dos graus de qualquer sistema hierárquico, com o ponto de partida. Um fenômeno representado maravilhosamente por Escher em muitos de seus quadros: pensa-se na Cascata, ou também em Mãos desenhando. Imagens esplêndidas de
De um lado, observamos que boa parte das reformas “sensíveis” das constituições foram efetuadas para amparar as políticas neoliberais que encontravam nas Constituições aquilo que, parafraseando os próprios economistas, 9 10
No total, foram 229 decretos de reformas da Constituição para um total de 699 modificações do texto. Dos 136 artigos contidos no texto original, somente 22 mantêm-se intactos, sendo notável que 257 dessas modificações realizaram-se nos últimos dez anos. Ademais, alguns autores sustentam que, no caso do México, nem todas as emendas foram bem redigidas e tão intrincado se tornou o texto em algumas de suas partes que se chegou a propor uma espécie de “Texto Ordenado” da Constituição.
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É comum encontrar, nessa literatura, referências ao que denominam “a fricção do território”, isto é, aos obstáculos que o direito local opõe à expansão do mercado no início do Estado moderno. Na psicanálise, a partir das lições de Lacan, utiliza-se o nó borromeano para indicar a estatura que formam os três registros do ser falante, tal como se apresentam na experiencia analítica: o registro do Real, o registro do Imaginário e o registro do Simbólico, cujo triplo enlace define o objeto a, «causa do desejo».
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estruturas que retornam sobre si mesmas. Que se referem a si, que falam consigo mesmas. Como a linguagem, como cada estrutura autorreferente. Como cada estrutura que está incompleta e é indescritível, justamente porque estas são suas características. O texto constitucional é um texto jurídico. Mas é um texto que fala de si, que se escreve a partir de si. Isso parece um algo que se programa por si mesmo. A mão esquerda desenha a mão direita que desenha a mão esquerda. Observando o quadro esquecemos a existência de Escher, daquele que o desenhou. Assim como observando a constituição esquecemos seu caráter autológico, esquecemos o tempo, esquecemos o paradoxo constitutivo daquele que se vincula para ficar privado de vínculo. Cometemos o erro topológico que nos leva a não ver o paradoxo da soberania como um estranho anel e, então, a não ver que “qualquer coisa que estava dentro do sistema sai do sistema e atua sobre o sistema, como se estivesse fora do sistema”, como disse Hofstadter. O sistema é aqui, naturalmente, a constituição. Aquilo que está dentro e sai para fora é a soberania, mas poderia também ser a razão, a linguagem. Aqui interessa a soberania, uma ideia, um conceito-chave, como dizem os constitucionalistas, um conceito que conclui num modo pouco glorioso uma grande história semântica. Termina como tautologia, a soberania diz de si que é soberana; ou talvez termina como paradoxo: uma construção que funciona só se for escondida, se não se vê, se se oculta. Ao chegar a este ponto, então, impõe-se com insistência uma suspeita: não é que o guardião da lei, o guardião que está diante da lei, quer esconder propriamente isso: o paradoxo da soberania e a autologia da constituição? E os guardiões da lei, então, comportam-se sempre assim todos do mesmo modo?13 (Giorgi, 2015a, p. 61).
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Por um lado, a citação retoma o desafio de Marshall e, por outro, nos leva a compreender algo que Balzac entendia muito bem (tanto quanto Lassalle, a quem voltaremos): que a organização da sociedade de cada tempo corresponde a algum modelo; daí o burguês, capitalista, machista, que – no entanto – é ressignificado continuamente na prática, tanto pelo simples cidadãos (não se falava na época de movimentos sociais) como pelo juízes: – Senhora, devemos obedecer a ambos: a lei é a palavra, e os costumes são as ações da sociedade. – Obedecer à sociedade?…retomou a marquesa deixando escapar um gesto de horror. Nossos males vêm todos daí, meu senhor! Deus não fez nenhuma lei de infelicidade; mas os homens, ao reunirem-se, falsearam sua obra. Nós, mulheres, somos mais maltratadas pela civilização do que o seríamos pela natureza. A natureza nos impõe sofrimentos físicos que os homens não suavizaram, e a civilização desenvolveu sentimentos que eles atraiçoam incessantemente. A natureza elimina os seres fracos, os homens os condenam a viver para entregá-los a uma constante infelicidade. O casamento, instituição sobre a qual se apoia hoje a sociedade, impõe seu peso somente a nós, mulheres: para o homem a liberdade, para nós os deveres. Dedicamos a eles toda a nossa vida, eles dedicam a nós apenas raros instantes. Enfim, o homem faz uma escolha enquanto submetemo-nos cegamente. Oh! Para o senhor posso dizer tudo. Pois bem, o casamento, tal como é praticado hoje, parece-me uma prostituição legal [...] Ah!, eu queria fazer a guerra contra este mundo para renovar suas leis e seus costumes, para rompê-los! Acaso ele não me feriu em todas minhas ideias, em todas as minhas esperanças, no futuro, no presente, no passado? (Balzac, 2017, p. 75-78).
Uma mulher nessa idade se inclina sob os fardos com que sua memória a devasta; uma mulher que desde muito tempo desespera pelo porvir e por ela mesma; uma mulher desocupada que confunde o vazio com o nada (Balzac, 2017, p. 87). Ao ler estes parágrafos, contra minha primeira impressão, confirmava que Balzac e Carolina de Jesus não se contrapõem, mas, ao contrário, se complementam:
Drawing hands, de Mauritz Cornelis Escher. Litografia, 1948. Todos os direitos reservados, www.mcescher.com. 13
Tradução do Autor, revisada por De Giorgi, por ocasião de sua palestra no Tribunal Constitucional, no México.
Levantei-me […] Fui buscar agua. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comesse carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu sai e fui ao seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. E ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos, que eu
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pretendo comprar uma máquina de moer carne. E uma máquina de costura [...] eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo (Jesus, 1961, p. 17-41).
Ao mesmo tempo, Carolina de Jesus descobre que a ameaça de publicar em seu livro aquilo que suas vizinhas invejosas fazem surte efeito: com isso, elas se afastam e deixam-na em paz. De algum modo, ela descobre algo acerca do poder performativo da palavra, assombra-lhe “a eficiência da língua humana para transmitir uma notícia”. A Constituição é, então, um símbolo que “sobe e desce” ao mesmo tempo, para retornar ao mesmo ponto de partida, mas em um nível diferente, que não aparece no desenho, como na Cascata “impossível” de Escher14, ou o hiperciclo de Teubner, no qual a função paradoxal do direito “pode ser vista”.
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vê o que não vê: aquilo que temos à vista são “resultados” porque lhes atribuímos a condição de ser “consequências do anterior”, ou seja, uma das múltiplas variações da célebre falácia «post hoc ergo propter hoc». Então, qual classe de comunicação é a que proporciona a Constituição? Por que se chama assim? Qual demanda ontológica oculta? Trata-se da velha compreensão organicista? Qual teukhos esconde esse eidos e vice-versa? Trata-se de um relato que permite a instituição imaginária da sociedade, um substituto funcional dos grandes textos fundadores da religião, ela mesma uma narração contada em tom de “Decálogo”? Se é uma narração, então é uma invenção? Então muda? Então tem história? Então pode fazer aniversários? E completar trinta anos, por exemplo? Como ler, então, uma Constituição? Qual é sua sequência lógica? Se a lógica ontológica herdada é questionada, a visão simplesmente explode (Castoriadis, 1993, p. 13) e o romance tem uma leitura imprevisível como a que propõe Cortázar em O jogo da amarelinha15; e, tal como poderia ser aquela que realizam os juízes a medida que escrevem seu romance, sob o risco de incorrer – como recentemente no Brasil – em “licenças poéticas exageradas”, que, como já propus em outro texto (Douglas Price, 2012), simplesmente ensaiam escrever um “cadáver esquisito”16, do que A mulher de trinta anos pode ser um primeiro exemplo. A meu ver, essa mulher de trinta anos, essa Constituição, existe como 15
Waterfall, de Mauritz Cornelis Escher. Litografia, 1961. Todos os direitos reservados, www.mcescher.com.
ENTÃO: O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? Segundo Hegel, o espírito do mundo e as astúcias da razão desdobram-se para obter os resultados que temos à vista, porém Hegel, como todos nós, não 14
Trata-se de Waterfall (Cascata), 1961. John Tones afirmou, em El País, de 15/07/2015, a propósito de uma mostra de Escher que se realizaria na Escócia: “Uma das ilusões de ótica mais simples de Escher e, ao mesmo tempo, uma das mais efetivas e significativas, como Belvedere. Sua perfeição é tal que o espectador pode ficar perdido no incrível efeito visual que produzem as duas torres da cascata: o curso da água aciona um moinho e, fluindo por três canais em declive que atravessam as torres, a água desemboca de novo na borda da cascata. A litografia está baseada numa construção geométrica impossível, o Triângulo de Penrose, desenvolvido de forma independente por Oscar Reutersvärd, em 1934, e por Roger Penrose em 1958. Veja também as construções geométricas sobre as torres: três cubos entrelaçados à esquerda e três octaedros irregulares (uma forma conhecida como Sólido de Escher) à direita. Todas as imagens desta reportagem pertencem a: Collection Gemeentemuseum Den Haag, The Hague, The Netherlands. © 2015 The M.C. Escher Company – Baarn, The Netherlands. Todos os direitos reservados. www.mcescher.com”
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Na célebre obra do autor argentino, lê-se como aviso inicial: “TABULEIRO DE DIREÇÃO: À sua maneira este livro é muitos livros, mas sobretudo é dois livros. O primeiro deixa-se ler na forma corrente e termina no capítulo 56, ao pé do qual há três vistosas estrelinhas que equivalem à palavra Fim. Por conseguinte, o leitor prescindirá sem remorsos do que se segue. O segundo deixa-se ler começando pelo capítulo 73 e seguindo logo na ordem que se indica ao pé de cada capítulo. Em caso de confusão ou esquecimento, bastará consultar a lista seguinte: 73 – 1 – 2 – 116 – 3 – 84 – 4 – 71 – 5 – 81 – 74 – 6 – 7 – 8 – 93 – 68 – 9 – 104 – 10 – 65 – 11 – 136 – 12 -106 – 13 – 115 – 14 – 114 – 117 – 15 – 120 – 16 – 137 – 17 – 97 – 18 – 153 – 19 – 90 – 20 – 126 – 21 – 79 – 22 – 62 – 23 – 124 – 128 – 24 – 134 – 25 – 141 – 60 – 26 – 109 – 27 – 28 – 130 – 151 – 152 – 143 – 100 – 76 – 101 – 144 – 92 – 103 – 108 – 64 – 155 – 123 -145 – 122 – 112 – 154 – 85 – 150 – 95 – 146 – 29 – 107 – 113 – 30 – 57 – 70 – 147 – 31 – 32 – 132 – 61 – 33 – 67 – 83 – 142 – 34 – 87 – 105 – 96 – 94 – 91 – 82 – 99 – 35 – 121 – 36 – 37 – 98 – 38 – 39 – 86 – 78 – 40 – 59 – 41 – 148 – 42 – 75 – 43 – 125 – 44 – 102 – 45 – 80 – 46 – 47 – 110 – 48 – 111 – 49 – 118 – 50 – 119 – 51 – 69 – 52 – 89 – 53 – 66 – 149 – 54 – 129 – 139 – 133 – 40 – 138 – 127 – 56 – 135 – 63 – 88 – 72 – 77 – 131 – 58 – 131. Com o objetivo de facilitar a rápida localização dos capítulos, a numeração vai se repetindo na parte superior das páginas correspondentes a cada um deles”. Na década de 20 do século passado, os surrealistas se reuniam para jogar um jogo, derivado de outro denominado “Consequências”; cada um dos presentes, segundo André Breton, fundador do movimento, aportou sua palavra seguindo a regra substantivo – adjetivo – verbo, surgindo a seguinte oração composta: “Le cadavre – exquis – boirá le vin – nouveau” (o cadáver esquisito beberá o vinho novo), de onde se derivará o “nome” do jogo. Nas oficinas literárias, é muito utilizado e consiste em escrever algo numa folha branca, dobrar, passar a folha para o jogador ao lado e continuar o escrito sem ver o que realizou o anterior, e assim, sucessivamente, até que todos os jogadores tenham participado. Breton sustentava: “O emocionante, para nós, nesse tipo de produção era a certeza de que, para o bem ou para o mal, representavam algo que não era possível pelo trabalho de apenas uma mente”. Reforçava-se, com isso, o modo coletivo, espontâneo e intuitivo da criação artística cujos resultados aproximavam ao onírico, procurando fazer emergir o subconsciente. O produto final não era previsível e deixava as redes livres para interpretações surreais ou “hiperreais” que aludiam, em seu conceito, a demonstrações intuitivas das mentes “por detrás do papel”.
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um “cadáver esquisito”, ou seja, é o produto da escritura, do processo de atribuição de sentido, de uma cadeia de escritores togados e togadas, advogados e advogadas, afogados e afogadas, suspeitos e suspeitas, de movimentos sociais de massas e meios de comunicação de massa, de presos e presas, de um jogo que não manipulam, senão na única regra que conhecem, aquela de escrever na linha em branco aquilo que lhes cabe escrever. Um cadáver que consegue “sobreviver”, a partir de um fenômeno agudamente denunciado pelo mesmo Cárcova há duas décadas: a opacidade do direito. O desconhecimento do direito, afirma Cárcova (1998, p. 23 et seq.), afeta a sociedade em seu conjunto, com efeitos mais deletérios quanto maior for o grau de vulnerabilidade social, cultural, laboral. A fictio iuris do conhecimento do direito é aceita como constitutiva do mesmo sistema, porém, pergunta-se Cárcova, “deve ser aceita?” Como ela afeta os grupos mais vulneráveis? Em que medida ela afeto os “favelados”, os “sem terra”, os “posseiros”? Embora haja grupos que alcançaram um alto grau de conhecimento do direito17, o certo é que, em termos quantitativos, resultariam estatisticamente pouco relevantes, posto que, nos grandes números, o desconhecimento, a incompreensão do direito, segue sendo uma constante generalizada. A incompreensão, que tem a ver com a profusão normativa, com as complexidades técnicas dos institutos, com fatores sócio-estruturais, com mecanismos de manipulação e ocultamento que exercem um papel na constituição e reprodução das hegemonias sociais, com os conteúdos ficcionais do direito, com a variedade e o cruzamento de pautas culturais que constituem as visões sociais fragmentadas de nossas grandes cidades de fim de século, etc. (Cárcova, 1998, p. 43).
O quarto de despejo como o quarto dos espelhos opacos?
A CONSTITUIÇÃO SIMBÓLICA OU A INVENÇÃO DE “UMA” CONSTITUIÇÃO Neste ponto, podemos admitir aquilo que já é óbvio: a Constituição é uma ficção fundadora, como disse Cristiano Paixão18; e, se existe algo que define as constituições modernas, é o fato de que se trata de construções conscientes (no sentido de deliberadas) e, para isso, foram utilizadas muitas metáforas. Cláusulas como as cláusulas pétreas, vale a redundância, que buscavam imobilizar o sol, ou as cláusulas do sistema de “freios e contrapesos” (checks and balances), do qual se deriva uma das maiores invenções jurisprudenciais, 17 18
O que significa esse conhecimento? Trata-se da conferência realizada pelo autor nas XXXII Jornadas Argentinas de Filosofia Jurídica e Social, organizadas pela Associação Argentina de Filosofia do Direito. A versão citada é a disponibilizada na ocasião pelo autor.
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provavelmente a mais significativa, que é o controle de constitucionalidade, são todas variáveis de uma mesma metáfora: de como a sociedade controla a si mesma, fórmula que sintetizara Hobbes no Leviatã. Ou seja: “invenções sobre invenções”, ou como o Direito se assemelha com a Literatura. Marcelo Neves – num sentido similar ao de Cárcova, ou talvez complementar – propôs examinar a relação entre os textos constitucionais, abordando o seu significado social, exatamente na relação inversa à de sua concretização jurídico-normativa. Afirma que o problema não se reduz à tradicional discussão sobre a ineficácia das normas constitucionais. É nesse sentido que discute a função simbólica de textos constitucionais carentes de concretização normativo-jurídica (Neves, 1994, p. 9) ou, como já se indicou, a situação paradoxal do aumento da atribuição de deveres para o Estado com a paralela redução da capacidade do Direito para regular a conduta social (Neves, 1994, p. 31). A falta de concretização, fática e jurídica, do texto constitucional, afirma Neves, está associada a sua função simbólica; o modelo é alegado pelos governantes como “álibi”, transferindo a culpa para a sociedade desorganizada, o que permite, por sua vez, deslocar o momento do cumprimento para o futuro (Neves, 1994, p. 161), mantendo a ilusão da promessa. Mas – ele também advertiu – , embora certa legislação-simbólica, ou legislação-álibi, sirva como elemento para cooptar a legitimação das massas, essa situação não se transporta diretamente aos casos de constitucionalização simbólica, porque nos casos dos estados periféricos, nos casos de extrema discrepância entre o texto e a realidade jurídica, é o mesmo discurso da Constituição o que legitima os movimentos sociais na direção de um sistema democrático, inclusivo, efetivo; diante disso, as elites inclinam-se aos recursos do “constitucionalismo instrumental”, formas veladas de autoritarismo que vedam a crítica do exercício do poder. Esse é o caso que pudemos observar na Argentina, com a incorporação dos Tratados de Direitos Humanos pela Constituição de 1993 e seu papel nos processos movidos em seguida contra os autores de crimes de lesa humanidade praticados na última ditadura cívico-militar (1976/83).
DIREITO E MUTAÇÃO Então, que resposta damos ao desafio de André Karam Trindade? O direito sofreu uma mutação, se diz. E isso é certo e não é. O sistema
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continua operando como operava; somente os argumentos mudaram. Agora, os argumentos são argumentos sobre a argumentação. A “busca da segurança perdida” transportou-se do Código para a Constituição, das leis para os princípios, do silogismo para a ponderação. Há diversas formas de se negar a “insuportável leveza” (Douglas Price, 2012).
que seja tomada no futuro indicará como devemos nos comportar, ainda que não saibamos qual ela poderia ser, considerando as condições da modernidade líquida.
Como disse Raffaele de Giorgi, o primeiro fato que suscita perplexidade na desconfortável incerteza do presente é o neoconstitucionalismo, a teoria dos princípios e seu instrumento subsequente, a teoria da argumentação.
Então, nesse ponto, a pergunta do debate Kelsen-Schmitt retorna: quem (ou qual) é o guardião da Constituição? “A primeira consequência é esta: o guardião da Constituição é o Tribunal Constitucional” em seu caráter de «Tribunal sui generis da sociedade (em sua totalidade)».
O neoconstitucionalismo não é uma teoria da Constituição, nem uma teoria do direito, nem uma da política, como podia se presumir. Trata-se de uma linha de horizonte que divide aquilo que sabe daquilo que não se sabe, uma busca para exorcizar o passado, que é designado como o lugar de mal, e para construir vínculos com o futuro, onde se encontra o bem. Do passado do holocausto (dos holocaustos) poderia emergir, “mediante a expectativa de um futuro, a universal razão cosmopolita [que] poderia ter garantido o agir dos indivíduos frente aos Estados, o direito frente ao poder, as diferenças frente às homologações, o igual acesso de todos aos bens sociais, o espaço de uma comunicação livre” (Giorgi, 2015b, p. 91). No tempo do “tempo dos direitos”, o futuro que se podia inventar era o futuro presente da Constituição, daí que interpretar a Constituição e realizá-la eram os problemas do século breve. A subordinação de todos, incluídos os poderes do Estado até a Constituição, era a promessa da realização da própria Constituição. Mas não se via o que não se pode (ou não se quer) ver: à interpretação constitucional lhe era imposto o objetivo de encontrar uma interpretação confiável, racional e controlável, que permitisse realizar as promessas de certeza e previsibilidade do direito (Giorgi, 2015b, p. 93). Trata-se da certeza de que cada decisão será adotada com base no direito, e aqui repousa a tese de Dworkin: existe uma resposta correta, ainda que a última pergunta de Asimov siga tendo a mesma resposta19. Mas, é justamente essa certeza o que permite saber que qualquer decisão 19
No inesquecível relato de um dos mestres da ficção científica, no ano 2061, dois assistentes de Multivac, o famoso computador projetado para resolver as necessidades da humanidade, formulam à máquina a última pergunta: “Adell estava bêbado o bastante para tentar, e sóbrio o suficiente para construir uma sentença com os símbolos e as operações necessárias em uma questão que, em palavras, corresponderia a esta: a humanidade poderá um dia sem nenhuma energia disponível ser capaz de reconstituir o sol a sua juventude mesmo depois de sua morte? Ou talvez a pergunta possa ser posta de forma mais simples da seguinte maneira: A quantidade total de entropia no universo pode ser revertida? Multivac mergulhou em silêncio. As luzes brilhantes cessaram, os estalos distantes pararam. E então, quando os técnicos assustados já não conseguiam mais segurar a respiração, houve uma súbita volta à vida no visor integrado àquela porção de Multivac. Cinco palavras foram impressas: dados insuficientes para resposta significativa. A pergunta se repetirá no relato, como num contínuo e perpétuo loop, como aquele das hierarquias de Hofstadter, cada vez mais complexas, recebendo a mesma resposta.
A Constituição oferecia (e oferece) inúmeros e múltiplos – mas necessariamente incompletos, quando não contraditórios – recursos que possibilitam lidar com a contingência.
Através do Tribunal, a sociedade interpreta a si mesma, mas não sozinha, assinala De Giorgi, citando Haberle: “as Constituições viventes são obras de todos os intérpretes constitucionais da sociedade aberta” (Giorgi, 2015b, p. 95). Carolina Maria de Jesus também interpretou a constituição de sentido da Constituição de seu tempo.
A ESCRITA EM CADEIA OU A CADEIA DE ESCRITORES E ESCRITORAS Com efeito, não só os juízes (as juízas) ou os advogados (as advogadas) reescrevem o texto constitucional; também escrevem, como parece concordar Neves, as negras faveladas (ainda que tenham onze anos a mais do que Julia D’Aiglemont, a heroína de Balzac, tal como tinha Carolina Maria de Jesus no dia do primeiro relato de seu diário). Elas encaixam os pedaços de papelão que recolhem para viver (e escrever) e “ameaçam” a suas vizinhas agressivas e invejosas com o ato de “publicar” suas misérias por meio de diário pessoal, escrito sobre o mesmo papelão, tal como pode fazer a Corte Suprema da Nação, ou o Supremo Tribunal Federal. Esse romance, o romance da Constituição, deve ser escrito como Cortázar propõe a leitura de seu O jogo da amarelinha (ou como Kafka escreveu O processo20). Não é casual, a meu ver, que a nota do editor sobre como foi a composição final de A mulher de trinta anos possa fornecer-nos um indício de como os juízes exercem sua função. E, se Dworkin tivesse lido essa nota (ou dela recordado), provavelmente teria enriquecido sua ideia do “romance em cadeia”: É possível que A mulher de trinta anos haja produzido em seus leitores certa impressão de incoerência. Para dissipá-la, vamos tecer algumas observações sobre o singular processo de formação desse romance. No princípio, eram seis relatos 20
Ver o capítulo “Se presume culpable”, publicado em La letra y la ley (Ruiz; Douglas Price; Cárcova, 2014), que pode ser consultado em: http://www.bibliotecadigital.gob.ar/items/show/1561.
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independentes que se publicaram entre 1831 e 1832 e tinham protagonistas e personagens coadjuvantes completamente distintos. Então, era impossível formar com eles a história de uma só vida porque, ao se iniciar a ação em 1813, quando a protagonista era ainda muito jovem, para alcançar a velhice, inclusive a maturidade dessa mesma protagonista, teria que levar o final do romance a uma época futura. Aqueles seis relatos independentes se correspondem com os atuais seis capítulos do romance, porém apenas dois deles – o segundo e o quarto – receberam desde o primeiro momento o título que possuem hoje. O primeiro se chamava O encontro. O terceiro tinha o mesmo título que agora tem todo o romance. O quinto se dividia em duas partes: A fascinação e O capitão parisiense. O sexto se intitulava A expiação. Na segunda edição de As cenas da vida privada, publicada em 1832, aponta-se pela primeira vez que os cinco primeiros relatos referem-se à vida de uma mesma mulher, ainda que seja «dissimulada sob nomes distintos». Na terceira edição (1834), dá-se um novo passo ao intitular o conjunto Mesma história. Na chamada «edición Fume» de A Comédia Humana (1842), acrescenta-se ao sexto capítulo e se atribui à totalidade da obra o título de A mulher de trinta anos, mas Balzac havia se dado conta muito cedo dos anacronismos que existiam ao final da ação e, quando preparou a edição definitiva de A Comédia Humana – que não se chegou a publicar, segundo se indica em A gênese de A Comédia Humana, à frente desta edição espanhola – , transferiu o começo da ação do sexto capítulo de 1842 a 1844. Na continuação, o texto da Nota do Editor que precedia à edição de 1832, que vem assinado por L. Mame-Delaunay, mas deve ter sido escrito ou, pelos menos, inspirado pelo próprio Balzac, assim como o Prefácio à edição de 1834 (Balzac, 2017, p. 171).
O ENLACE ENTRE COMUNICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO: RUÍNAS CIRCULARES A Constituição é, em suma, uma ordem, e, desde 1787, uma ordem escrita que, como todo escrito, está sujeita – como já dissemos – ao paradoxo da interpretação constante, isto é, que seja o que se diz e não o seja, ao mesmo tempo, porque seu significado será determinado por uma prática que não é possível assegurar ou controlar no futuro, ainda que essa prática tente controlá-lo. Essa era a tensão que percebia Lassalle (1999) entre a constituição “real” e aquela que chamava constituição “folha de papel”. Parafraseando de maneira uníssona Dworkin e Nietzsche, poderíamos dizer “não há leis, há somente interpretações” e, assim, chegamos ao paradoxo de Wittgenstein, que podemos colocar na base desta análise: O nosso paradoxo era o seguinte: uma regra não pode determinar uma forma de acção, por qualquer forma de acção ser conciliável com a regra. E a nossa resposta foi: se qualquer forma de acção é conciliável com a regra, então também qualquer forma de acção contradiz a regra. E por isso não existe aqui nem concordância nem contradição. Que se trata de uma compreensão errada da
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experiência mostra-se logo no facto de, neste raciocínio, fazermos uma interpretação atrás da outra, como se cada uma nos tranquilizasse pelo menos por um momento, até pensarmos numa outra interpretação, que está atrás desta. Com isto, de facto, mostramos que existe uma concepção de uma regra que não é uma interpretação; é antes aquilo que, na sua aplicação em cada caso, se exterioriza no que chamamos “seguir a regra” e “ferir a regra”. Por isso é-se inclinado a dizer: toda acção subordinada à regra é uma interpretação. Mas interpretar só se devia chamar à substituição da expressão de uma regra por outra expressão (Wittgenstein, 2010, § 201).
As próprias Investigações filosóficas poderiam ser vistas como um “cadáver esquisito”, traduzindo a expressão de Wittgenstein: Depois de diversas tentativas mal sucedidas para soldar os meus resultados num tal modo, compreendi que nunca conseguiria fazê-lo. Que o melhor que eu podia escrever ficaria sempre como sendo observações de carácter filosófico; os meus pensamentos paralisavam, logo que eu tentava forçá-los, contra a sua inclinação natural, numa determinada direção. E isto estava, claro, ligado à própria natureza da investigação. De facto, ela força-nos a atravessar um domínio largo do pensamento, cruzando-o em todas as direcções. As observações filosóficas deste livro, são comparáveis a um conjunto de esboços paisagísticos surgidos ao longo destas enredadas e longas viagens (Wittgenstein, 2010, prólogo).
A linguagem, dizia Wittgenstein na mesma obra, é um labirinto de caminhos que se abrem à medida que avanço e não só no espaço – como no memorável relato de Borges, em O jardim dos caminhos que se bifurcam (2007a, p. 567) – , de tal maneira que seguir uma regra é como seguir uma ordem; e compartilho, pois: Qual outra coisa senão uma regra, ou uma ordem, seria uma Constituição? Um contrato? Sim, um contrato. Qual seria a diferença? Não se trataria, por acaso, de um contrato no qual se convenciona um conjunto de ordens, essas que os constitucionalistas chamam, seguindo implicitamente Wittgenstein, de “regras do jogo”? Foucault aponta: “Não há para Nietzsche um significado original. As mesmas palavras não são senão interpretações, ao longo da sua história, antes de se converterem em símbolos, interpretam, e tem significado, finalmente, porque são interpretações essenciais” (Foucault, 1981, p. 30). É a partir desse ponto de vista que devem ser analisados os processos de hegemonia e subordinação na construção de argumentos, observando-se, como indica Maria Elena Bitonte, as situações de simetria e assimetria nos intercâmbios, tanto quanto as modalidades de acesso à palavra e ao posicionamento dos sujeitos, o que resulta completamente útil (ou funcional) para o processo de validação dos mesmos argumentos (Bitonte, 2005, p. 97), permitindo
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corroborar a afirmação de Ost de dar ênfase ao autor e não necessariamente ao juiz, ainda que os juízes se tornem autores privilegiados do sistema. Nada nos garante a coerência, a identidade, o modo de ser dos objetos de uma nova concepção, nem portanto sua lógica e sua ontologia, nem, em particular, as esferas em que (o imaginário social radical e o histórico-social) implicam um questionamento profundo das significações herdadas do que é determinado como existindo e dessa lógica21 como determinação (Castoriadis, 1993, p. 21). O paradoxo é que o mesmo Aristóteles realizou, como adverte Castoriadis, o descobrimento filosófico da imaginação (phantasía), colocando-a entre a sensação e a intelecção, ainda que isso choque contra o que pensa acerca da physis, a natureza, e tanto Kant como Hegel, Marx, ou mesmo Freud (apesar de “descobrir” o inconsciente), não deixarão de buscar explicá-lo sob a cláusula “causa-efeito”, sob o princípio de necessidade escondido no tempo finito e reversível de Newton, de onde podemos extrair que “fisicismo e logicismo, causalismo e finalismo, são apenas maneiras de estender à sociedade e à história as exigências fundamentais da lógica identitária” (Castoriadis, 1993, p. 23). Isso nos leva a advertir, afirma Castoriadis, que nessa sociedade, ao menos, jamais se contemplou a representação, a imaginação, nem o imaginário por si mesma, senão sempre em referência a outra coisa – sensação, intelecção, percepção, realidade – submetida à normatividade incorporada, à ontologia herdada, reduzida ao ponto de vista (à distinção) do verdadeiro/falso que nunca vê, como não pode ver, desde onde está feita esta distinção. É assim porque não se vê que as metáforas sempre são metáforas de algo que está fora do metaforizante, do fabricante de metáforas, que não pode compreender a estrutura do real, uma vez que não consegue suspeitar – nem mesmo – que o imaginário é parte do real, tanto quanto o simbólico, no entrelaçamento do nó borromeano; portanto, não consegue compreender aquilo que o próprio título da obra de Castoriadis propõe: a sociedade está constituída a partir da imaginação. Como advertiu Cárcova, em La opacidade del Derecho (1998), foi o próprio Hans Kelsen, em relação a sua hipótese teórica central – a norma hipotética fundamental, a famosa Grundnorm – , quem reconheceu o estatuto ficcional do direito. Quando se pergunta pela validade das normas, ele chega à conclusão de que elas, desde que são o sentido objetivo de um ato de vontade, não valem pem razão desse ato de vontade, mas sim porque elas são consideradas vigentes. Um exemplo disso é, diz Kelsen, a norma fundamental da moral 21
Poderíamos dizer “aquela lógica identitária do Ocidente”.
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cristã segundo a qual se deve amar ao inimigo como a si mesmo, porém essa norma, que é a base de toda norma cristã – insiste ele – vale porque, a partir de sua vigência, nada mais pode ser perguntado: Não é norma positiva, i. e., nenhuma norma fixada por um real ato de vontade, senão uma norma pressuposta no pensamento cristão, quer dizer, uma norma fictícia [...] A norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positivas – como evidente do que precedeu – não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é pura ou “verdadeira” ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que ela não somente contradiz a realidade como também é contraditória em si mesma. Pois a suposição de uma norma fundamental – como porventura a norma fundamental de uma ordem moral religiosa: “Deve-se obedecer aos mandamentos de Deus, como determina historicamente a primeira Constituição” – não contradiz apenas é a realidade, porque não existe tal norma como o sentido de um real ato de vontade; ela também é contraditória em si mesma, porque descreve a conferição de poder de uma suprema autoridade da Moral ou do Direito e com isto parte de uma autoridade – com certeza apenas fictícia – que está mais acima dessa autoridade. Segundo Vahinger (Die Philosophie des Als-Ob, 7. und 8. Aufl., Leipzig, 1922), uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente (ob. cit., p. 19). O fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação dos sentidos subjetivos dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes de norma. Este fim é atingível apenas pela via de uma ficção. Por conseguinte, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vauhingeriana Filosofia do Como-Se não é hipótese – como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei – , e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou, então, deve ser acompanhada porque a ela não corresponde a realidade (ob. cit., p. 143 e ss.) (Kelsen, 1994, p. 250-252).
É possível ver, então, que a norma fundamental, aquela suposição epistêmica que permite pensar a Constituição como “dada validamente”, é uma ficção instituinte. Como Axel Hägerström assinalou, os romanos já conheciam o valor constitutivo da linguagem simbólica, dela seu discípulo Karl Olivecrona tomaria a ideia da demiurgia do discurso jurídico, associando a linguagem do direito à linguagem da magia. Laurent Binet, em seu inteligentíssimo romance A sétima função da linguagem (2017), propõe sarcasticamente a existência de uma fórmula desconhecida, descoberta por Roland Barthes, da qual François Miterrand se apropriara para o debate presidencial contra Giscard D´Estaing; em suma, um truque bem desenvolvido, que os tratadistas da retórica tocam
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apenas tangencialmente por temor de desmoronar o encantamento: a sociedade se cria desde si mesma através da palavra, os professores depois de Austin denominam isso de função performativa da linguagem. Balzac e Carolina de Jesus concordam com ele. É por isso que aquilo que chamamos necessidades humanas – para as quais, segundo alguns (fisicalistas ou funcionalistas), teriam sido desenhadas as “funções” sociais como sociais, e não meramente biológicas – , uma vez que inseparáveis de seus objetos, são “construções” da própria sociedade, que se reafirma e se diferencia em cada ato de “instituição”22. Desse modo, as constituições foram percebidas mais como coisas ali-existentes, “descobertas”; não como invenções, criações, ou ficções sobre o que se assenta nosso agir. Tudo isso foi suspeitado por Balzac, não porque Balzac se ocupou das constituições, mas sim porque indagou, como poucos em sua época23, a respeito da constituição ficcional do real. Assim entendia o próprio Engels, na carta Miss Harkness de 1888 (a propósito de seu romance City Girl), ao apontar que, apesar de valer mais para a obra de arte que as opiniões (políticas) do autor permaneçam ocultas, isso não ocorre com a estrutura literária fundamental, uma vez que o realismo de Balzac proporciona uma crítica do velho regime social, não a seu favor, mais sim decididamente contra a posição política do autor: Sem dúvida, politicamente, Balzac era legitimista; sua grande obra é uma elegia perpétua que lamenta a decomposição irremediável da alta sociedade; suas simpatias são pela classe condenada a morrer. Mas, apesar de tudo isto, sua sátira nunca é mais cortante, sua ironia mais amarga, do que quando faz agir esses aristocratas, esses mesmos homens e mulheres pelos quais ele sentia uma tão profunda simpatia. E (afora alguns provincianos) os únicos homens de quem fala com uma admiração não dissimulada são seus adversários políticos os mais encarniçados, os heróis republicanos do Cloitre Saint-Merri24, os homens que nessa época (18301830) representavam verdadeiramente as massas populares. Que Balzac tenha sido forçado a ir de encontro às suas próprias simpatias de classe e de seus preconceitos políticos, que tenha visto a inevitável queda seus queridos aristocratas e que os tenha descrito como não merecendo melhor sorte; que tenha visto os verdadeiros homens do futuro somente onde poderiam ser encontrados naquela época, eu o 22 23
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Tampouco basta, disse Castoriadis (1993, p. 15), pensar no “desejo” e sua repressão (Freud) para explicar a diferença entre objetos e formas do desejo. Vale ressaltar que tanto Victor Hugo, em sua despedida fúnebre, como Marx e Engels, em notas sobre Arte e Literatura, concordam em apontar o caráter revolucionário de sua obra. O autor de O homem que ri dirá frente à tumba de Balzac: “Acredite-se ou não, o autor desta obra imensa pertence à raça dos escritores revolucionários”. Na citação em nota de rodapé, Engels adverte que a rua do Cloitre-Saint-Merri é famosa pela insurreição de 5 e 6 de junho de 1832, depois dos funerais do general Lamarque. Victor Hugo faz dessa insurreição um dos principais episódios de Os Miseráveis.
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considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das maiores particularidades do velho Balzac (Marx; Engels, 1964, p. 183).
Mas, em Marx e Engels habitava, como não poderia deixar de ser, a epistemologia de sua época, que não dava conta daquilo que eles mesmos advertiam, poderíamos dizer, contraditoriamente: aquilo que chamamos de realidade é um produto do próprio relato constitutivo da sociedade, tanto quanto esse relato está condicionado por condições que poderíamos chamar externas quanto não elaboradas humanamente, como o meio ambiente (que, contudo, é afetado – por sua vez – pelas atividades antrópicas resultantes das “ideias” e das práticas produtivas ou extrativistas). Isso é tão certo que as condições materiais de produção afetam as ideias que consideramos nossa realidade, assim como o contrário. Por acaso, em A obra-prima ignorada (Balzac, 1988), numa brevíssima narrativa em que a ideia de arte e criação ficam expostas, demonstra a falsidade do conhecido dilema: é que a arte que imita a vida, ou o contrário, pois a vida é a arte, e a realidade nada mais é do que uma invenção, muitas vezes “artística”. Borges dá conta dessa estratégia em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Um país e um planeta são criados a partir de sua assombrosa inscrição em uma enciclopédia supostamente apócrifa (como certos evangelhos, o que sempre me levou à pergunta de quem é que qualifica o “apócrifo” e o “verdadeiro”). Mas a enciclopédia está incompleta, de tal maneira que Alfonso Reyes propõe a tarefa, por certo ciclópica, de reconstruir Tlön e calcula que bastaria uma geração de “tlönistas” para fazê-lo, porém – adverte Borges – essa arriscada contagem nos conduz ao problema fundamental: Quem são os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um só inventor – de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia – fora descartada unanimemente. Conjectura-se que este brave new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras… dirigidos por um obscuro homem de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subornar a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. No começo pensou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições aparentes do Décimo Primeiro Volume são a pedra fundamental da prova de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zoologia e a topografia de Tlön; acredito que seus tigres transparentes e suas torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para
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seu conceito do universo. Hume notou em definitivo que os argumentos de Berkeley não admitiam a menor réplica e não causavam a menor convicção. Esse ditame é totalmente verídico em sua aplicação à Terra; totalmente falso em Tlön. As nações desse planeta são – congenitamente – idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem – a religião, as letras, a metafísica – pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. (Borges, 2007c, p. 517-518).
A ironia epistemológica desmorona, desmanchando tudo aquilo que, por força de seu efeito, “desvanece no ar”. Contudo, o paradoxo é que, nesse planeta distante, onde a única ciência é a psicologia, em que praticam um tipo de monismo ou idealismo total, que invalidaria qualquer outra ciência (que – como se sabe – consiste em explicar um fato unindo-o a outro), as ciências proliferam-se de maneira incontável. Isso não deveria causar nenhum estranhamento, em princípio, porque a Borges escapa, como ao passar, que Tlön “foi inventado” e, ademais, está o fato de que toda filosofia é, de antemão, um jogo dialético, uma Philosophie des Als Obs, uma filosofia do “como se”, que possibilitou multiplicá-las (Borges, 2007c, p. 520), o que permite entender o postulado da geometria de Tlön, baseada na superfície e não no ponto, geometria que desconhece as paralelas e que “declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam” (Borges, 2007c, p. 523). Como se vê, Borges, em 1941, antecipou Kelsen. Por isso, em Tlön, não existem os autores, ou se vê com clareza que também são inventados. Assim, o Tao e As mil e uma noites podem ser atribuídos a um mesmo autor. Por isso, os livros não estão assinados, nem existe a ideia de plágio. Quem escreve a Constituição? Os pais fundadores? Tem sentido o debate sobre a interpretação originalista? O mistério que se coloca em Tlön, a partir de minha suposição literária, revela-se nas Ruínas circulares. Ali, Borges anota que o protagonista, o homem que vinha do sul, “onde o idioma zend não está contaminado pelo grego”, dorme em um templo circular, um templo antigo devorado pelo fogo. Faz isso para cuidar seu sonho de fazer um homem. Sabe também que, rio abaixo, há outro templo, também circular, com outros deuses. A personagem se sonha a si mesma, num anfiteatro circular que, de alguma maneira, era o templo. O primeiro sonho foi em vão, mas o segundo, com elaborada paciência, resultou-lhe um Adão, como os Adãos vermelhos que antes criavam os demiurgos. No sonho do homem que sonhava, o soldado despertou. Logo após aperfeiçoá-lo e o acomodá-lo à realidade, enviou-o rio abaixo, ao outro templo, de ruínas circulares. Ele temia que esse filho, que havia sonhado, entranha por entranha,
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cabelo por cabelo, descobrisse sua mera condição de simulação, até que um fogo sobreveio, como há séculos para a devorar o templo, tudo, menos a ele, que tampouco era real. Outro o estava sonhando (Borges, 2007b, p. 539-544). A origem do direito e da linguagem se parecem. Ambos se içam desde seus próprios cabelos; ambos se autofundam em círculos concêntricos; ambos nascem de alguma outra coisa, diferenciando-se como sistemas autônomos; ambos se constroem e se destroem contínua e perpetuamente: são ruinas circulares ou “desconstruções em uma casca de noz” (a imagem é de Derrida e Caputo). Outra vez Wittgenstein: “A linguagem é um labirinto de caminhos. Vem de um lado e sabe por onde andas; vem de outro ao mesmo lugar e já não o sabe”. Como assinala John Caputo a respeito de A farmácia de Platão, o primeiro ensaio de Derrida sobre Platão: todo texto, escrito ou oral, é um bastardo ou um órfão, porque seu pai/autor partiu... [e] esta é uma característica estrutural do discurso, que sempre já está entrelaçada com outros textos e que estes a contêm, cujas raízes se fundem em um contexto denso que podemos desentranhar somente em certa medida (Derrida; Caputo, 2009, p. 111).
Assim como um signo derivou de outro, até o surgimento da palavra, que logo chama outra palavra, e parecem construir um mundo tangível; com isso, de uma marca passou-se a uma regra que deriva em outra regra, que deriva em outra... que deriva na primeira. E se obedecem as regras porque elas são tomadas como tais, tanto em Quarto de despejo quanto na Mansão Constitucional; um ato de fé, diria Derrida; a confiança é autorreflexiva, para De Giorgi; isso é o que é, sempre confiança na confiança.
A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE OCIDENTAL: CONSTITUIÇÕES COMO GARANTIAS DE FUTURO? Na sociedade ocidental, a história é percebida como uma sucessão de “alterações” que levam ao “fim” premonitoriamente estabelecido, seja pela religião, pela filosofia ou pela ciência. Fica claro que não se trata de nada mais que alterações que observamos a respeito de uma forma política determinada e estável, aquela que condiciona todo nosso exame acerca da “boa forma da cidade boa, mesmo que para negar sua possibilidade”, desde Platão e Aristóteles até Hegel e Marx. O próprio Marx introduz um desvio em sua lógica quando sustenta que a história “deve” conduzir à sociedade sem classes (Castoriadis, 1993, p. 10). Com isso já se pode presumir o que pretendo sustentar: não há fim preestabelecido para a sociedade humana. Nem um início.