George Salomão Leite Copyright© 2018 by George Salomão Leite Editor Responsável: Aline Gostinski Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros
(Coordenador)
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO: TÉCNICA, DECISÃO, DOMINAÇÃO
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ I48 Introdução ao estudo do direito [recurso eletrônico] : técnica, decisão e dominação / coordenação George Salomão Leite. - 1. ed. - Florianópolis [SC] : Tirant lo Blanch, 2018. recurso digital Formato: epdf Requisitos do sistema: adobe acrobat reader Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia e índice "Em homenagem a Tércio Sampaio Ferraz Jr." ISBN 978-85-9477-233-6 (recurso eletrônico) 1. Direito - Estudo e ensino (Superior). 2. Livros eletrônicos. I. Leite, George Salomão. 18-52298
EM HOMENAGEM A TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
CDU: 340.11:378
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439 04/09/2018 06/09/2018 É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Av. Embaixador Abelardo Bueno, 1 - Barra da Tijuca Dimension Office & Park, Ed. Lagoa 1, Salas 510D, 511D, 512D, 513D Rio de Janeiro - RJ CEP: 22775-040 www.tirant.com.br - editora@tirant.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Manuais
COLABORADORES Adriano Sant'Ana Pedra–Doutor em Direito Constitucional (PUC/SP); Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV); Mestre em Física Quântica (UFES); Pós-doutorado realizado na Universidade de Coimbra; Professor do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública – Mestrado Profissional – da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Procurador Federal Agassiz Almeida Filho–Mestre em Ciências Jurídico-Políticas–Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional–Universidad de Salamanca. Titular do diploma de pós-graduação em Direito Penal Econômico e Europeu–Universidade de Coimbra. Titular do Diploma de Estudios Avanzados (Universidad de Salamanca).Professor de Direito Constitucional da UEPB e da UERN. Arruda Alvim–Doutor e Livre Docente. Professor Titular da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado. Beclaute Oliveira Silva–Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas. – UFAL. Cláudia Toledo–Pós-Doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela Christian-Albrechts Universität zu Kiel, Alemanha. Professora de Teoria e Filosofia do Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Cleyson de Moraes Mello–Professor Adjunto do Departamento de Teoria e Fundamentos do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro– UERJ. Coordenador do Curso de Graduação em Direito da UERJ. Diretor
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO: TÉCNICA, DECISÃO, DOMINAÇÃO
Adjunto da Faculdade de Direito de Valença–FAA/FDV. Professor Permanente do PPGD da Universidade Veiga de Almeida – RJ. Professor Colaborador do PPGD da UERJ. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Gabriel Ivo–Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas–UFAL. George Salomão Leite – Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires – UCA. Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/ SP. Advogado. Gustavo Filipe Barbosa Garcia–Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo–USP. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo–USP. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Professor Titular do Centro Universitário do Distrito Federal. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Advogado. Henrique Garbellini Carnio–Doutor e mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado pela PUC/SP. Pesquisador Colaborador no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas– UNICAMP, com pós-doutorado em filosofia. Professor permanente do programa de mestrado e doutorado em direito da Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. João Maurício Adeodato–Professor da Faculdade de Direito de Vitória. Pesquisador 1-A do CNPq. Ex-Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife. Jonathan Hernandes Marcantonio–Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC/SP. Pesquisador convidado do Instituto de Filosofia da Universidade Livre de Berlim (2008). Professor de programas de Graduação e Pós- graduação em Direito. Advogado. Manoel Messias Peixinho–Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Realizou pós-doutorado na Universidade de Paris Ouest–Nanterre la Défense. Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio e do Programa de Mestrado da UCAM-RJ. Advogado. Paulo de Barros Carvalho–Professor Titular e Emérito FD-USP e PUC-SP.
COLABORADORES 7
Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia. Torquato Castro–Doutor em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Ulisses Schwarz Viana–Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Constitucional pela Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Introdução ao Estudo do Direito na Escola de Direito de Brasília (EDB/IDP). Professor da Pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul. Presidente da Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do DF. Valéria Ribas do Nascimento–Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos–UNISINOS, com período de pesquisa na Universidade de Sevilha (US). Pós-doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSM (PPGD); Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM; Coordenadora do Núcleo de Direito Constitucional da UFSM. Victor Augusto Estevam Valente–Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Coordenador da Especialização em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor convidado do Curso de Pós-Graduação (“Lato sensu”) em Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/COGEAE) e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMP/SP). Vitor Kumpell–Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutorando em Direito Notarial e Registral pela Universidade de Coimbra/Portugal. Juiz de direito titular II–Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
SUMÁRIO NOTA DE AGRADECIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 DIREITO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
1 - A COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO . . . . . . . . . . . . . . . 27 1.1. Palavras introdutórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 1.2. O conteúdo prescritivo do direito positivo e o papel da ciência do direito . . . 30 1.3. O direito como linguagem empregada na função pragmática de regular condutas intersubjetivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 1.4. Notas sobre os diferentes enfoques teóricos empregados na compreensão do fenômeno jurídico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 1.5. O direito como sistema comunicacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 1.6. O conteúdo axiológico do direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 1.7. A inesgotabilidade da interpretação no processo de construção normativa . . . 40 1.8. Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
2 - O DIREITO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO: PERFIL
HISTÓRICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 2.1. Direito e conhecimento do direito: origens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 2.2. Jurisprudência romana: o direito como diretivo para a ação . . . . . . . . . . . . . 54 2.3. Dogmaticidade na Idade Média: o direito como dogma . . . . . . . . . . . . . . . . 55 2.4. Teoria Jurídica na Era Moderna: o direito como ordenação racional . . . . . . . 60 2.5 Positivação do direito a partir do século XIX: o direito como norma posta . . 64 2.6. Ciência dogmática do direito na atualidade: o direito como instrumento decisório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
3 - CIÊNCIA DOGMÁTICA DO DIREITO E SEU ESTATUTO
TEÓRICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 3.1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 3.2. Direito e Ciência do Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 3.3. Dogmática e tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76 3.4. Decidibilidade de conflitos como problema central da Ciência Dogmática do Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 3.5. Modelos da Ciência Dogmática do Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 3.6. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
4 - DOGMÁTICA ANALÍTICA OU A CIÊNCIA DO DIREITO
COMO TEORIA DA NORMA JURÍDICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 4.1. Identificação do Direito como Norma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 4.1.1. Conceito de norma: uma abordagem preliminar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 4.1.2. A concepção dos fenômenos sociais como situações normadas, expectativas cognitivas e normativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO: TÉCNICA, DECISÃO, DOMINAÇÃO
4.1.3. Caráter jurídico das normas: instituições e núcleos significativos . . . . . . . . . . 87 4.1.4. Norma jurídica um fenômeno complexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
4.2. Teoria dos conteúdos normativos ou dogmática das relações jurídicas . . . . . . 88 4.2.1. 4.2.2. 4.2.3. 4.2.4.
Conceito dogmático de norma jurídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Tipos de normas jurídicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Sistema estático de normas: as grandes dicotomias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Direito público e direito privado: origens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 4.2.4.1. Concepção dogmática de direito público e de direito privado: princípios teóricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 4.2.4.2. Ramos dogmáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
4.2.5. Direito objetivo e direito subjetivo: origens da dicotomia . . . . . . . . . . . . . . . 97 4.2.5.1. Concepção dogmática de direito objetivo e subjetivo: fundamentos . . . . . . . . 99 4.2.5.2. Uso dogmático da expressão direito subjetivo: situações típicas e atípicas, direitos reais e pessoais, estrutura do direito subjetivo e outras classificações . . . . . . . . . 101 4.2.5.3. Sujeito de direito, pessoa física e pessoa jurídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 4.2.5.4. Capacidade e competência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 4.2.5.5. Dever e responsabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 4.2.5.6. Relações jurídicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
4.2.6. Direito positivo e direito natural: uma dicotomia enfraquecida . . . . . . . . . . 123
4.3. Teoria do ordenamento ou dogmática das fontes de direito . . . . . . . . . . . . . 124 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 4.3.1. Norma e ordenamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 4.3.1.1. 4.3.1.2. 4.3.1.3. 4.3.1.4.
Ordenamento como sistema dinâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Ideia de sistema normativo e aparecimento do Estado moderno . . . . . . . . . . 127 Teorias zetéticas da validade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 Norma fundamental ou norma origem, unidade ou coesão do ordenamento . 133
4.3.2. Conceptualização dogmática do ordenamento: validade, vigência, eficácia e força . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 4.3.2.1. Dinâmica do sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 4.3.2.2.1. Antinomia jurídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 4.3.2.2.2. Nulidade, anulabilidade e inexistência de normas . . . . . . . . . . . . . . . 140
4.3.2.3. Completude do sistema: lacunas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Conclusões inconclusivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
4.3.3. Fontes do direito em Tercio Sampaio: desafios modernos e contemporâneos para interpretação do tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 4.3.3.1. Aspectos introdutórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 4.3.3.2. Da legislação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 4.3.3.2.1. Constituição, leis, decretos, regulamentos e portarias . . . . . . . . . . . . . 144 4.3.3.2.2. Códigos, consolidação e compilações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150 4.3.3.2.3. Tratados e convenções internacionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
4.3.3.3. Costume e jurisprudência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 4.3.3.4. Doutrina, princípios gerais do direito e equidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Conclusão: Aspectos críticos contemporâneos e a (im)possibilidade de novas fontes . . 156
4.4. DOGMÁTICA ANALÍTICA E SUA FUNÇÃO SOCIAL . . . . . . . . . . . . 158 4.4.1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 4.4.2. Zetética Jurídica e Dogmática Jurídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 4.4.3. A dogmática analítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
SUMÁRIO
11
4.4.4. A função social da dogmática analítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164 4.4.5. Notas conclusivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
5 - DOGMÁTICA HERMENÊUTICA OU A CIÊNCIA DO
DIREITO COMO TEORIA DA INTERPRETAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 171 5.1. O problema da interpretação: uma investigação zetética . . . . . . . . . . . . . . . 172 5.1.1. 5.1.2. 5.1.3. 5.1.4. 5.1.5.
Função simbólica da língua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174 Desafio kelseniano: interpretação autêntica e doutrinária . . . . . . . . . . . . . . . 174 Voluntas legis ou voluntas legislatoris? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 Interpretação e tradução: uma analogia esclarecedora . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178 Interpretação jurídica e poder de violência simbólica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 5.1.5.1. Noção de uso competente da língua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.1.5.2. Língua hermenêutica e legislador racional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.1.5.3. Interpretação e paráfrase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.1.5.4. Interpretação verdadeira e interpretação divergente: códigos fortes e códigos fracos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
180 181 182 183
5.1.6. Função racionalizadora da hermenêutica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
5.2. Escolas, Métodos e Tipos Dogmáticos de Interpretação . . . . . . . . . . . . . . . 185 5.2.1. Escolas Hermenêuticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 5.2.1.1. Escola Jusnaturalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.2. Escola da Exegese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.3. Escola dos Pandectistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.4. Escola Analítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.5. Escola da Livre Investigação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.6. Escola do Direito Livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.7. Realismo Norte-Americano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.8. A Tópica Jurídica de Thedor Viehweg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.9. A Lógica do Razoável de Recaséns Siches . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1.10. Hans-Georg Gadamer e Paul Ricouer para interpretação do Direito . . . . . . . 5.2.1.11. A contribuição de Lenio Streck Para Hermenêutica em “terrae brasilis” . . . . .
187 189 191 192 193 194 195 197 199 202 204
5.3. Métodos Hermenêuticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 5.3.1. Interpretação Gramatical, Lógica e Sistemática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 5.3.2. Interpretação Histórica, Sociológica e Evolutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 5.3.3. Interpretação Teleológica e Axiológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
5.4. Tipos de Interpretação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 5.4.1. Interpretação Especificadora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 5.4.2. Interpretação Restritiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 5.4.3. Interpretação Extensiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
5.3. Interpretação e Integração do Direito: notas a Tercio Sampaio Ferraz Júnior . . . 219 5.3.1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 5.3.2. Linguagem e seu reflexo na intepretação e integração do direito . . . . . . . . . . 220 5.3.3. A interpretação antecede o caminho da integração do direito . . . . . . . . . . . . 223 5.3.4. A interpretação e os modos de integração do direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 5.3.4.1. Instrumentos quase-lógicos: analogia, indução amplificadora, interpretação extensiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
12
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO: TÉCNICA, DECISÃO, DOMINAÇÃO
5.3.4.2. Instrumentos institucionais: costumes, princípios gerais do direito, equidade . . . 230
5.3.5. A integração pressupõe limites: palavras à guisa de conclusão . . . . . . . . . . . . 231
5.4. Função social da hermenêutica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
6 - DOGMÁTICA DA DECISÃO OU TEORIA DOGMÁTICA DA
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 6.1. TEORIA DA DECISÃO JURÍDICA COMO SISTEMA DE CONTROLE DO COMPORTAMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 6.1.1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 6.1.2. Decisão e processo de aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 6.1.3. Decisão jurídica e conflito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248 6.1.3.1. Conflito é lide? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248 6.1.3.2. Conflito como posições antagônicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
6.1.4. Motivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252 6.1.5. Decisão e poder de controle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254 6.1.6. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
6.2. TEORIA DOGMÁTICA DA APLICAÇÃO DO DIREITO – APLICAÇÃO E A SUBSUNÇÃO DA LEI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258 6.2.1. Aplicação e subsunção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258 6.2.2. Prova jurídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262 6.2.3. Programação da decisão e responsabilidade do decididor . . . . . . . . . . . . . . . 266
6.3. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271 6.3.1. 6.3.2. 6.3.3. 6.3.4.
Demonstração e Argumentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271 Argumentação e tópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275 Procedimento argumentativo dogmático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278 Exemplos de argumentos jurídicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282 6.3.4.1. Argumento ab absurdo ou reductio ad absurdum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.2. Argumento ab auctoritate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.3. Argumento a contrario sensu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.4. Argumento ad hominem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.5. Argumento ad rem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.6 . Argumento a fortiori . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.7. Argumento a pari ou a simile . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.4.8. Argumento exemplar ou exempla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
282 283 283 284 285 285 286 288
6.4. FUNÇÃO SOCIAL DA DOGMÁTICA DA DECISÃO: DIREITO, PODER E VIOLÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289
7 - A MORALIDADE DO DIREITO SOBRE SENTIR O JUSTO . . . . . . 295 7.1. Direito e Fundamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296 7.2. Direito e Justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 7.3. Direito e Moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
NOTA DE AGRADECIMENTO Em 1993, comecei a cursar Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. O primeiro contato que tive com a Ciência Jurídica foi através das lições na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito – IED. Naquele momento, não havia uma difusão muito grande da literatura jurídica e a internet era raramente utilizada. Deste modo, quem tivesse interesse em estudar, ou comprava o livro ou tentava a sorte de estar disponível na biblioteca algum exemplar pretendido. No meu caso, o acesso ao Introdução ao Estudo do Direito não se deu de nenhuma das formas mencionadas, mas sim através de sucessão acadêmica, haja vista que meu pai era advogado e meus dois irmãos mais velhos também estudavam Direito na mesma instituição. Em decorrência disto, encontrei na biblioteca da minha casa um livro azul escuro, com título em letras maiúsculas na cor branca, onde se lia o seguinte: Tercio Sampaio Ferraz Jr – Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. Devo dizer que tentei ler a obra, mas confesso também que pouco entendi do que estava sendo lido. Não era fácil... A obra e sua linguagem eram complexas, sobretudo para quem tentava estabelecer seu primeiro contato com a Ciência Jurídica. Não é a toa que nunca esqueci de uma palavra utilizada pelo Professor Tercio Sampaio Ferraz Jr e que só vim ter conhecimento acerca do seu significado tempos depois: criptonormativo1. Superado o trauma e aprovado em IED, segui a graduação em Direito. 1.
Em sua obra, diz o Professor Tercio Sampaio Ferraz Jr: “Os enunciados da Ciência do Direito que compõem as teorias jurídicas têm, por assim dizer, natureza criptonormativa ...”. Introdução ao Estudo do Direito, 4ª Ed. São Paulo: Atlas, pg. 89. Cf. também “O Oficial e o Inoficial – ensaio sobre a diversidade de universos jurídicos temporal e especialmente concomitantes”, quando expõe a seguinte idéia: “À falta de uma terminologia, chamaríamos o “direito” inoficial, de que estamos falando, de uma articulação desarticulada do direito oficial. No fundo, este “direito” vale-se do instrumental oficial mas produzindo uma insuportável importância, de tal modo que o direito oficial, acaba por se articular conforme um padrão que o desacredita e o reforça ao mesmo tempo. Para explicar este paradoxo faz mister retornar uma noção apresentada no início deste trabalho, segundo a qual o universo dos grupos dominantes e, por extensão, o universo socialmente dominante atua sobre a realidade como um padrão ideológico, em dois níveis. Neste sentido, o direito oficial opera, num primeiro plano, de modo a modelar os fatos sociais que não são jamais o que são, mas são, numa unidade difusa, o que devem ser. Num segundo plano, isto se acentua, mas de uma forma inversa, pois aí o direito oficial atua no sentido de modelar os fatos sociais que, então, devem ser o que aparentemente são. No primeiro plano, o padrão tem sentido normativo; no segundo, sob a capa do cognitivo, há um sentido criptonormativo.” in http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/33, acesso em 22.08.18, às 10h43.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO: TÉCNICA, DECISÃO, DOMINAÇÃO
No ano de 1998, ingressei no programa de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Uma vez cursado todos os créditos, chegou o momento de elaborar a dissertação. Tendo em vista minha afeição pela Hermenêutica Constitucional, decidi trabalhar o tema, todavia, não sob uma perspectiva ampla, mas analisando uma techné interpretativa pouco trabalhada na doutrina: a tópica jurídica. O pensamento tópico, que remonta a Aristóteles2, foi retomado pelo filósofo alemão da Universidade de Mainz, Theodor Viehweg, em sua obra Tópica e Jurisprudência3. Segundo Viehweg, “el punto más importante en el examen de la tópica lo constituye la afirmación de que se trata de una técnica del pensamiento que se orienta hacia el problema.”4 O pensamento do jurista deve estar norteado pelo problema. Este constitui o ponto de partida do pensar aporético. Referidas lições penetraram na mente de Tercio Sampaio Ferraz Jr, que teve na pessoa de Theodor Viehweg seu orientador, professor e amigo. O pensar problemático se faz presente, portanto, em boa parte dos trabalhos de Tercio Sampaio Ferraz Jr, a exemplo do Direito, Retórica e Comunicação5 e Introdução ao Estudo do Direito. Este foi, portanto, o momento no qual retomei o diálogo com Tercio Sampaio Ferraz Jr. Prescindindo, pois, das obras do homenageado, devemos destacar que Tercio Sampaio Ferraz Jr é Professor Titular Aposentado de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo – USP e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Nesta tarefa, foi professor e orientador de expressivos nomes da doutrina brasileira, a exemplo do seu discípulo e amigo João Maurício Leitão Adeodato, Professor Titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Recife, que perpetua as lições do Mestre nos bancos acadêmicos. A atuação de Tercio Sampaio Ferraz Jr. não se restringe à Academia. Seu nome está entre os mais importantes advogados do direito empresarial e econômico do País, já tendo exercido os cargos de Procurador-Geral da Fazendo Nacional, Chefe do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP e Diretor Jurídico da Siemens. O trabalho ora apresentado à comunidade acadêmica, que resultou 2. Cf. Organon, Livros V e VI, quando o estagirita se ocupa da velha arte da disputa, domínio dos retóricos e dos sofistas. A Tópica pertence ao terreno do dialético, não do apodítico. 3. Topik und Jurisprudenz, primeira edição publicada em 1953. A obra ganhou uma versão em português, publicada em 1979 pela Editora do Senado Federal e traduzida por Tercio Sampaio Ferraz Jr. 4. Tópica y Jurisprudencia. Madrid: Taurus Ediciones, 1986, pg. 53. 5. Cf. PARTE II, O DISCURSO JURÍDICO, II – O Discurso Judicial, pg. 99.
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de um esforço coletivo de vários Professores do Brasil, tem dois propósitos: homenagear Tercio Sampaio Ferraz Jr., por sua inestimável contribuição à Ciência Jurídica e, também, homenagear o fruto do seu intelecto, consubstanciado na clássica obra Introdução ao Estudo do Direito, que neste ano completou 30 (trinta) anos de existência, servindo de inspiração e ferramenta de trabalho para todos aqueles que têm um compromisso com a Dogmática Jurídica e a Filosofia do Direito. Agradeço, pois, em nome de todos os colaboradores deste livro, ao Professor Tercio Sampaio Ferraz Jr., por suas lições e exemplo de retidão. João Pessoa, 22 de agosto de 2018.
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APRESENTAÇÃO Raymundo Magliano Filho 6 É com muita honra e satisfação que aceitei o gentil de convite de escrever algumas linhas de apresentação para este livro em homenagem ao meu amigo e professor, Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Naturalmente, enquanto homem “do mundo dos negócios”, não posso aqui resumir com o devido rigor todas as inestimáveis contribuições que o Prof. Tercio nos deu. Sem dúvidas, os leitores encontrarão nos textos que seguem inúmeras referências dos mais variados campos que atestam o legado que esta brilhante pessoa construiu, academica e profissionalmente. Ainda assim, gostaria de destacar alguns pontos biográficos que, acredito, contribuem para a consolidação de uma outra fotografia do sentido que a palavra legado adquire quando associada a Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Eu o conheci há mais de quarenta anos. Naquela oportunidade, mesmo já trabalhando no mercado de capitais, estava interessado em iniciar meus estudos sobre filosofia. Por intermédio de João Scantimburgo, cuja perspicácia e vivacidade do pensamento me encantavam, reunimos um grupo de pessoas que se encontravam na Federação do Comércio de São Paulo para discutir filosofia com um jovem professor recém-chegado da Alemanha. Éramos oito interessados sob os comandos do Prof. Tercio. No entanto, ao final, somente eu senti a necessidade de continuar os estudos de filosofia. Era o início de um longo percurso de 19 anos, em que tive o privilégio de semanalmente aprender com ele os mais variados temas da filosofia, começando pelo pensamento de Aristóteles. Primeiramente nos encontrávamos em sua casa, mas nossas aulas também aconteceram na FIESP, na Folha de São Paulo, e mesmo quando ele ficou na Alemanha por um ano, trocávamos cartas toda a semana sobre temas filosóficos. 6.
Ex-presidente da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Conselheiro do Instituto Ethos e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Fundador do Instituto Norberto Bobbio, instituição que se dedica a divulgar os conceitos de direitos humanos, democracia e cultura.
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O Prof. Tercio sempre insistia que ensinar filosofia não era algo meramente enciclopédico, mas constituía uma forma de pensar e agir no mundo, uma maneira de compreender a complexidade do nosso cotidiano que nos oriente no dia a dia. Também foi a partir de suas aulas que tive contato com o pensamento de Norberto Bobbio, uma de minhas principais referências teóricas em minha própria trajetória profissional. Todos esses anos fizeram com que nossa proximidade fosse muito além da relação professor-aluno. Nós criamos um vínculo afetivo que nos fez amigos, companheiros de vida, compartilhando momentos de nossas vidas. Por isso mesmo não posso deixar de destacar uma de suas características mais notórias, a simplicidade com a qual sempre conseguiu angariar amigos e admiradores com a maior facilidade. O Prof. Tercio é uma pessoa que não tem inimigos, mesmo atuando quase durante toda a vida em uma área (a acadêmica) em que a vaidade e o ego constituem fatores de divergência entre as pessoas. Ele, no entanto, não se orienta por esses valores. É um privilégio constitutivo dele, com o nível intelectual que possui, saber se comportar a partir do espírito democrático mais reluzente, compartilhando conhecimento e desenvolvendo as aptidões das pessoas. Por isso mesmo, o Prof. Tercio sempre foi uma pessoa muito aberta, atenta às minha questões. Seu interesse genuíno em temas aparentemente distintos de sua trajetória de estudos fez com que inclusive escrevêssemos dois artigos conjuntamente sobre a bolsa de valores e o mercador de capitais, mais uma prova de seu caráter e alteridade ímpares. Todas essas referências podem passar a impressão inicial de que nossa aproximação deu frutos apenas pessoais, para mim e para ele. Mas o exato oposto é que deve ser destacado. Toda essa formação filosófica está na base de minha própria trajetória profissional, como mencionei. Destaco aqui minha atuação como superintendente do Conselho dos Jovens Empresários da Associação Comercial de São Paulo, momento em que difundi a necessidade do estudo da filosofia entre aqueles jovens. Além disso, jamais teria avançado posições no Conselho da Bovespa sem este embasamento teórico que me permitia compreender melhor a complexidade das situações aparentemente somente econômicas. Foi a construção desse rico diagnóstico – pautado pelas ideias de visibilidade, acesso e transparência de Bobbio – que me permitiu compreender a necessidade de vincular a Bolsa à sociedade, ideia motriz que fundamentou todos os programas que consolidei durante meu cargo de
APRESENTAÇÃO 19
Presidente da Bovespa. Não por acaso, a criação do Centro de Estudos Norberto Bobbio, em 2005, foi um primeiro legado decorrente de todos esses anos de estudo com Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Por intermédio de suas aulas, ele não só contribuiu para o processo de legitimação da Bovespa, como transformou uma instituição até então elitista, em uma Bolsa popular e aberta à sociedade civil. Por fim, a criação do Instituto Norberto Bobbio como uma instituição autônoma, em 2009, constitui o segundo legado desse rico encontro. Suas publicações, grupo de estudos, seminários e atividades culturais estão hoje solidamente fincados na sociedade civil brasileira. Mas a raiz estruturante disso necessariamente remete aos ensinamentos de filosofia que tive durante todos esses anos com Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Sem dúvidas, poderia dizer que tive o privilégio de passar por tudo isso. Mas o mais importante – e tenho certeza que meu primeiro professor concordaria com isso – é saber que essas conquistas inicialmente pessoais transformaram-se em um legado aberto à sociedade civil. É este espírito democrático, este pensar e agir pelo fortalecimento da democracia, esta contribuição social que encontrei no porto-seguro das aulas com o Professor Tercio que dão conteúdo à estas poucas (mas sinceras) linhas em sua homenagem.
DIREITO Tercio Sampaio Ferraz Junior Solicitam-me uma palavra sobre o tema “direito”: jus, de-recto, droit, derecho, diritto, Recht, right? Talvez uma tarefa impossível, ao menos, em uma única palavra. Talvez ao tema seja mais apropriado não a reflexão sobre o que é, mas sobre o que se torna em nossos dias. Veja-se, por exemplo, ao observarmos o mundo em que vivemos, o profundo paradoxo gerado pelo tema: direitos humanos, anunciados por Mireille Delmas-Marty7 como uma tentativa contemporânea nem sempre exitosa de recriar, em nosso mundo, um jus commune. De um lado, vemos que o tema da definição e da garantia dos chamados “direitos humanos” tornara-se, de fato, um tema de alta relevância política nas declarações solenes, no direito constitucional e no diálogo entre as nações. De outro, a crise das concepções do homem, na trilha do espaço de questionamento aberto pelo advento das ciências humanas e pelo predomínio da ideologia individualista, torna difícil para nossa sociedade, altamente politizada no sentido organizacional e técnico (sem falar no ideológico), referir-se a uma imagem coerente do homem: ser humano e, então, reconhecer-se num paradigma fundamental: o direito. O que se percebe é, de um lado, uma fragmentação da imagem do homem na pluralidade dos universos culturais nos quais ele se socializa e se politiza efetivamente: o universo da família, do trabalho, do bem-estar, da realização profissional, da política nacional e internacional, da fruição cultural e do lazer. O que, de outro, torna problemática e difícil a percepção do que seja direito, ademais no mundo informatizado de nossos dias, em que a adequação das convicções do indivíduo e de sua liberdade a ideias e valores universalmente reconhecidos e legitimados num sistema de normas e fins aceito pela sociedade 7.
Por um direito comum, São Paulo, 2004.
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se dispersa numa cacofonia de que é exemplo vivo a internet. E aí reside a raiz provável do paradoxo de uma sociedade obsessivamente preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de direitos humanos, mas impotente para fazer descer esses direitos do plano de um formalismo abstrato e inoperante e levá-los a uma efetivação concreta nas instituições e práticas sociais. Basta pensar na profunda desigualdade (interna e externa) dos povos, nas diferenças afloradas pelas migrações forçadas, nas guerras sem fim a parir terror como finalidade. Na verdade, entre a universalidade do direito e as decisões singulares, a relação permanece abstrata e, no espaço dessa abstração, desencadeiam-se fórmulas que acabam por consumar no mundo contemporâneo a cisão entre jus et lex: aquele confiscado por ponderação de princípios e interesses, essa, exilada na abstração normativa, confiscada por um decisionismo redivivo. Na verdade, isso remete a algumas premissas. Como bem assinalaram Hardt e Negri8, o mundo contemporâneo vem marcado pela economia da informação. A distinção entre fabricação e serviço se torna difusa, quer porque os processos de fabricação são, hoje, uma conjugação de produção informatizada, isto é, de tarefas analíticas, computorizadas, com criação de bens materiais, quer porque o planejamento da produção se comunica imediatamente com o mercado, quer porque as decisões de produção são, simultaneamente, decisões de mercado. Com isso, a noção do que é público se altera: ao invés de ser aquilo que é comum e transparente (cujo paradigma sempre foi a praça, o ágora), passa a ser o espetáculo, o show, “lugar” meramente simbólico, um aparato integrado e difuso de imagens e mensagens que regula o discurso e a opinião, e cujo paradigma foi da TV à tela do computador. Se na praça os homens saem de suas casas e se confrontam, na TV e na tela dos computadores, a praça e a casa se confundem. E dessa confusão, quando se pensa nas redes sociais, resulta quase uma identificação: o discurso social, por mais que se veja nele uma troca de ideias, uma apresentação de críticas, projetos e expectativas, torna-se uma jogada para vendas articuladas, tornando-se a participação social uma escolha entre diferentes imagens consumíveis. Com isso, ao invés da coletividade dos indivíduos, mesmo dos indivíduos coletivizados diante da TV, perante a qual estamos todos juntos 8.
Império, São Paulo, 2005.
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(consumidores das mesmas notícias, das mesmas novelas, dos mesmos filmes, do mesmo espetáculo) e, ao mesmo tempo, separados, (cada um no silêncio do seu olhar), temos indivíduos isolados e difusos e, simultaneamente, integrados e uniformes, situação altamente reforçada diante da pequena tela do aparelho celular. Isso traz consequências. Há poucas décadas, a família era a via de chegada de informações sobre o mundo. A escola era uma experiência até “tardia”, em geral após os 6 anos. Hoje, com TV a cabo, DVDs, aparelhos de games, “baixar” programas com o celular, acesso fácil à internet, nem a família nem a escola conseguem serem os filtros da informação. “Vivemos uma época na qual modelos de identidade bem definidos estão falidos. Ninguém sabe dizer com precisão hoje o que seja ser homem, mulher, adulto, adolescente etc.”9. O que, então, nos remete a uma questão nuclear de ordem antropológica: quem é o homem da sociedade informática ou pantécnica na expressão de Martin Buber, sujeito de algo que chamamos direito? A crise das concepções do homem, na trilha do espaço de questionamento aberto pelo advento das ciências humanas e pelo predomínio da ideologia individualista, torna difícil para nossa sociedade, altamente informatizada, quer no sentido organizacional e técnico, quer no sentido comunicacional (internet), a capacidade de reconhecer-se num perfil antropológico fundamental ou de referir-se a uma imagem coerente do homem. Por consequência, essa fragmentação da imagem do homem na pluralidade dos universos culturais nos quais ele se socializa e se politiza efetivamente – o universo da família, do trabalho, do bem-estar, da realização profissional, da política, da fruição cultural e do lazer – torna problemática e difícil a adequação das convicções do indivíduo e de sua liberdade a ideias e valores universalmente reconhecidos e legitimados num sistema de normas e fins, aceito pela sociedade. Em suma, pelo direito. Com efeito, essas transformações alteram sua percepção. No lugar das estabilidades do mundo das leis surge um mundo de decisões, sem substância permanente e sem vínculo funcional, sem orientação fixa, sem conclusão e sem definição, apenas conduzido pela mão do acaso, por assim dizer, the magic hand of chance. O que acaba por se refletir nos sistemas jurídicos da atualidade, cujas “certezas” parecem girar em torno delas 9.
Pedro Luiz Ribeiro de Santi: Uma reflexão sobre os jovens rumo à universidade do futuro, em Revista ESPM, vol. 18, nº 5, setembro-outubro 2011, p. 49 ss.
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Tercio Sampaio Ferraz Junior 25
mesmas. Ao invés de sistemas fundados em uma base centrífuga de validade, tornam-se sistemas ao sabor de atos operacionais, que se estabilizam por mútuas e ocasionais vinculações, tal como se observa no desfalecimento do poder constituinte diante do poder constituído de interpretá-lo e julgá-lo.
institucionalização de mecanismos normativos de efetivação (direito fundamental como direito às correspondentes prestações positivas), adquire, num segundo momento, com base num prognóstico social, um estatuto de legitimação em transformação constante.
O direito, assim, parece ir-se fragmentando cada vez mais, o que faz pensar na metáfora do sistema em rede (Mario Losano10), em que a organização do conjunto não obedece, porém, à antiga fragmentação na forma de “ramos”, mas parece apontar para essa “lógica” diferente, que aparenta estar na raiz da globalização e da pós-modernidade. Na verdade, pode-se ousar, nem mesmo um modelo em rede, pois o que se observa é uma tendência para um modelo de “rizomas”, noção adotada da estrutura de algumas plantas, cujos brotos podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar ou transformar-se em um bulbo ou tubérculo na formulação de Deleuse/Guattari11. Isto é, nem uma árvore que, do tronco, se expande em seus ramos, nem uma rede de nós, como um entrelaçado de linhas, mas pequenas raízes de caules em crescimento, nos quais núcleo e ambiente estão em permanente relação. Donde um “sistema” não monádico, mas nomádico, uma estrutura que não deriva de primeiros princípios, sendo consequentemente flexível, e mais, instável, e daí a busca de linhas de solidez irredutíveis a um grande conjunto12.
A sensação é mais de angústia do que de conforto. Mas uma angústia fecunda, não pessimista, que nos faz repensar o mundo e as coisas, sem esmorecer nem fenecer.
O que se observa, afinal, é que, entre a proclamação formal de direitos (vida – saúde -, liberdade – igualdade – propriedade) e o real estatuto político dos indivíduos e dos grupos, com suas diferenças, estende-se um vasto espaço ocupado por formas de tensão política, a exigir do que chamamos de direito uma espécie de função legitimadora e não, propriamente, de reconhecimento validador (no sentido antigo para controle da constitucionalidade e da legalidade). Por extensão, pode-se dizer que os procedimentos jurídicos de sistematização e interpretação, nas sociedades consumistas contemporâneas, não visam mais inteiramente àquela congruência rígida de normas constitucionais e legais, mas passam a buscar uma legitimação social propiciada pela real efetivação dos direitos em vista de uma consecução prospectiva. Não se olham, assim, os direitos fundamentais como um passado inaugurador, mas como um ponto jogado no futuro, como meta a ser atingida. Essa transformação, num primeiro momento, com base na 10. Sistema e Struttura nel Diritto, Milano, 2002. 11. Mil Platôs, Editora 34. 12. Ino Augsberg: Die Lesbarkeit des Rechts, Göttingen, 2009, p. 169.
Para isso é importante essa impressão realista de que viveremos, cada vez mais, um mundo sem sujeitos. E o direito de que se fala ainda hoje, sempre visto como subjetivo (direito subjetivo), um poder dispor, usufruir, gozar alguma coisa, por exemplo, na propriedade contemporânea vira quota, ação, participação, administração, gerência. A figura do “dono” (proprietário) se esvanece. Não há sujeito (persona) do direito, apenas uma organização, dirigida por profissionais, que distribui dividendos para acionistas, que gerencia finanças para o depositante, que não se definem como sujeitos livres, mas que são, muitas vezes, outras organizações do mesmo tipo. Se isso vier a recrudescer no futuro, à propriedade sem sujeito começará acrescer-se a liberdade sem sujeito: “sujeito livre” será apenas um ponto geométrico de confluência de imposições normativas. E à liberdade sem sujeito, a responsabilidade sem sujeito. Donde direito, não como o que obriga, mas como o que é “indicado” para satisfazer um interesse programático. E dele devemos nos ocupar, desde já. Por fim, uma palavra de agradecimento. Ao atender, em última hora, a esse convite para escrever algumas palavras sobre o direito, neste livro escrito como uma homenagem, mas que vai muito além, pois presta ao pensar humano o sentido que lhe é próprio – ninguém está só no mundo -, desejo expressar uma sentida gratidão de reconhecimento. Falo de gratidão como expressão vocabular de algo verdadeiramente inefável, que é dado à sensibilidade e que nela se recolhe como um refúgio da intimidade: uma espécie de alegria que inunda a alma e nos torna mudos. Mas, ao mesmo tempo, uma alegria que acaba por se abrir publicamente, porque obriga a uma exposição perante alunos, colegas, amigos, conhecidos, algo que expõe afinal alguma coisa que alguém tenha
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acalentado de modo mais ou menos consciente como suas metas, suas expectativas, seu objetivo de vida. E que se vê iluminado pela perspectiva do outro, fazendo-nos perceber que se somos o que pensamos, nunca pensamos apenas o que somos.
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A COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO Paulo de Barros Carvalho13
1.1. PALAVRAS INTRODUTÓRIAS A intensidade da comunicação jurídica, simples parcela do fenômeno maior da comunicação social, acelerou significativamente os aspectos positivos e negativos que envolvem a produção dos atos de fala nos domínios do direito, de tal modo que suas virtudes e seus defeitos ficaram expostos à visitação pública, com a transparência e a nitidez das manifestações evidentes. Aquele quantum de mistério que envolvia a prescritividade própria do jurídico pode, agora, ser explorado por ciências como a Semiótica ou devassado pelas especializações cada vez mais numerosas das ciências da linguagem, projetadas pela difusão do “giro linguístico”. Penso que a filosofia da linguagem, tanto na versão do estruturalismo, mais conectado com a linguística, quanto na proposta da filosofia analítica, em ligação mais estreita com a lógica e com a matemática, navega a velas pandas no que há de mais fino e elaborado do pensamento ocidental. As duas vertentes avançam, na forma da terminologia tradicional, aparecendo como pós-estruturalismo e pós-analítica, para convergir na perspectiva hermenêutica, interpretativa, deitando raízes na fenomenologia e no existencialismo. A noção de horizonte hermenêutico, concebida na amplitude de uma tradição, e, sobretudo, a de fusão de horizontes mediante o diálogo desembocam inapelavelmente no reconhecimento da linguagem, constitutiva do saber, do mundo em que vivemos e de nós mesmos, entes humanos jogados na existência como seres finitos, carentes, prisioneiros de nossas incontáveis limitações. Sobre essas premissas, penso que nos dias atuais seja problemático tratar do jurídico sem atinar a seu meio exclusivo de aparição: a linguagem. Refiro-me à linguagem verbal-escrita, em que se estabilizam as condutas intersubjetivas, ganhando padrão de objetividade no universo do discurso. E o pressuposto do cerco inapelável da linguagem nos conduzirá, certamente, 13. Professor Titular e Emérito FD-USP e PUC-SP. Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia.
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a uma concepção semiótica dos textos jurídicos, em que as dimensões sintáticas ou lógicas, semânticas e pragmáticas funcionam como instrumentos preciosos do aprofundamento cognoscitivo. Há um fenômeno jurídico subjacente ou sobrejacente (como preferirmos) ao modo pelo qual o direito escrito aparece à nossa intuição sensível. O jurista, atento à linguagem técnica empregada pelo legislador – seja ele o Parlamento, o Poder Judiciário, o Poder Executivo ou o próprio setor privado – , constrói o sentido que outorga ao documento normativo. A compostura dos institutos, categorias e formas do direito posto advêm dessa relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto do qual se aproxima14. É obra do espírito humano, premido pelas circunstâncias, apresentando-se como objeto cultural. Convém observar que toda matéria eleita como objeto de especulação científica ou filosófico-científica encerra o objetivo de compor uma unidade estabelecida linguisticamente e idônea para transmitir mensagem determinada, que se apresenta, nos domínios do jurídico, como tese, assentada sobre pressupostos suficientemente esclarecidos e, portanto, aptos para sustentar o eixo das proposições finais, nas quais se demoram as conclusões. Esse é o esquema noético por excelência, apto para presidir o fluxo da análise científica a respeito do direito. Eis o itinerário de um verdadeiro exegeta do ordenamento prescritivo. Sua consistência repousa na boa articulação dos argumentos, na acuidade do raciocínio, na busca incessante da precisão semântica e, como corolário, no surgimento da estrutura que conduz o pensamento aos enunciados pretendidos. Percebe-se que o grande desafio de quem pretende desvelar o conteúdo, sentido e alcance das regras de direito radica na inafastável dicotomia entre a letra da lei e a natureza do fenômeno jurídico subjacente. A única forma de se entender o fenômeno jurídico, conclusivamente, é analisando-o como um sistema, visualizado no entrelaçamento vertical e horizontal dos inumeráveis preconceitos, que se congregam e se aglutinam para disciplinar o comportamento do ser humano, no convívio com seus semelhantes. O texto escrito, na singela expressão de seus símbolos, não pode ser mais que a porta de entrada para o processo de apreensão da vontade da lei, jamais confundida com a intenção do legislador. Sem nos darmos conta, adentramos à análise do sistema normativo sob o enfoque semioticista, recortando, como toda análise mais séria pede, a realidade jurídica em seus 14. VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2005, p. 39.
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diferentes campos cognoscitivos: sintático, semântico e pragmático. Bem verdade que não se pode priorizar qualquer das dimensões semióticas, em detrimento das demais. Todavia, o momento semântico numa análise mais apurada chama a atenção pelo modo intenso como qualifica e determina as questões submetidas ao processo dialógico que prepara a decisão ou conclusão. Daí a exclamação de Alfredo Augusto Becker, cheia de força retórica, segundo a qual o jurista nada mais seria que o semântico da linguagem do direito. A ele cabe a árdua tarefa de examinar os textos, quantas vezes obscuros, contraditórios, penetrados de erros e imperfeições terminológicas, para captar a essência dos institutos, surpreendendo, com nitidez, a função da regra, no implexo quadro normativo. E, à luz dos princípios capitais, que se situam no nível da Constituição, passa a receber a plenitude do comando expedido pelo legislador, livre de seus defeitos e pronto para produzir as consequências que lhe são peculiares. Se agregarmos a tudo isso o caráter de bem cultural15, que o direito positivo inequivocamente exibe, enquanto objeto linguístico elaborado pelo ser humano para a realização de certa finalidade – a disciplina da conduta nas relações inter-humanas – , encontraremos os valores de que todo ente cultural é portador. É precisamente na textura da unidade normativa que vamos tomar ciência da linguagem jurídico-normativa e, por ela, interpretar e saber dos fatos e das condutas juridicamente relevantes. É nela, norma jurídica, a unidade linguística em que o legislador deposita os valores presentes na especificidade de cada diferente sistema jurídico-normativo. Quero dizer, com tudo isso, que na tarefa de interpretar o sistema brasileiro tomo o direito positivo em vigor como um corpo de linguagem prescritiva que se dirige à região material das condutas humanas, nas suas relações de intersubjetividade. Isso não implica redução do direito à linguagem. Significa, simplesmente, que opto, dentro da pluridimensionalidade com que se apresenta o fenômeno jurídico, pelo segmento linguístico, como algo inerente e indissociável a toda e qualquer manifestação do direito. Se é procedente a proposição afirmativa segundo a qual onde houver direito haverá sempre normas jurídicas, não menos verdade será que, ali onde estiverem presentes regras de direito existirá, necessariamente, uma linguagem que as constitua. E é pelo factum da linguagem que proponho ingressar no presente estudo, para poder observá-lo e conhecê-lo na sua intimidade estrutural. 15. REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000.
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1.2. O CONTEÚDO PRESCRITIVO DO DIREITO POSITIVO E O PAPEL DA CIÊNCIA DO DIREITO Dou por assente que o estudo do direito positivo, como estrato de linguagem, não implica uma tomada de posição redutora do fenômeno jurídico, mas que supõe admitir que o conjunto de símbolos empregados para a comunicação entre os seres humanos, no contexto social, adquira uma das formas particulares de interação simbólica, compatível com a função reguladora do direito, na alteridade substancial que lhe é imanente. E esse modo específico é o da linguagem prescritiva. De fato, tanto o discurso informativo, próprio para as transmissões cognoscitivas; quanto o expressivo de situações subjetivas, como as emoções; e ainda aquele peculiar à formulação de perguntas, que reflete a perplexidade do sujeito, ao pé de realidades que desconhece; essas três funções da linguagem não se ajustam ao fim primordial do direito, na sua missão disciplinadora de relações intersubjetivas. Para realizar tal finalidade ordenadora, o instrumento adequado é a linguagem prescritiva de situações, ou seja, “da linguagem cuja finalidade é alterar a circunstância, e cujo destinatário é o homem e sua conduta no universo social. Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito” como se extrai da lição segura de Lourival Vilanova16. Pois bem, esse caráter prescritivo, vectorial, penetra intensamente toda a textura do sistema do direito posto que se verte sobre a facticidade social, qualificando pessoas, situações e coisas, exatamente para associar-lhes a regulação das condutas inter-humanas. O objeto da Ciência do Direito há de ser precisamente o estudo desse feixe de proposições, vale dizer, o contexto normativo que tem por escopo ordenar o procedimento dos seres humanos, na vida comunitária. O cientista do Direito vai debruçar-se sobre o universo das normas jurídicas, observando-as, investigando-as, interpretando-as e descrevendo-as segundo determinada metodologia. Como ciência que é, o produto de seu trabalho terá caráter descritivo, utilizando uma linguagem apta para transmitir conhecimentos, comunicar informações, dando conta de como são as normas, de que modo se relacionam, que tipo de estrutura 16. VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2005, p. 3 e 4.
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constroem e, sobretudo, como regulam a conduta intersubjetiva. Mas, ao transmitir conhecimentos sobre a realidade jurídica, o cientista emprega a linguagem e compõe uma camada linguística que é, em suma, o discurso da Ciência do Direito. Tal discurso, eminentemente descritivo, fala de seu objeto — o direito positivo — que, por sua vez, também se apresenta como um estrato de linguagem, porém de cunho prescritivo. Reside exatamente aqui uma diferença substancial: o direito posto é uma linguagem prescritiva (prescreve comportamentos), enquanto a Ciência do Direito é um discurso descritivo (descreve normas jurídicas). Tomada com relação ao direito positivo, a Ciência do Direito é uma sobrelinguagem ou linguagem de sobrenível. Está acima da linguagem do direito positivo, pois discorre sobre ela, transmitindo notícias de sua compostura como sistema empírico. Entre outros traços que separam as duas estruturas de linguagem pode ser salientada a circunstância de que a cada qual corresponde uma lógica específica: ao direito positivo, a lógica deôntica (lógica do dever-ser, lógica das normas); à Ciência do Direito, a lógica apofântica (lógica das ciências, lógica alética ou lógica clássica). Em função disso, as valências compatíveis com a linguagem das normas jurídicas são diversas das aplicáveis às proposições científicas. Das primeiras, dizemos que são válidas ou não válidas; quanto aos enunciados da ciência, usamos os valores verdade e falsidade. As proposições que o jurista formula sobre o direito positivo podem ser verdadeiras ou falsas. Paralelamente, há diferença importante no campo semântico e também no pragmático, bastando lembrar que as proposições normativas se dirigem para a região material da conduta, ao passo que as científicas simplesmente descrevem seu objeto, sem nele interferir. É inadmissível, portanto, misturar conceitos desses dois segmentos do saber jurídico, que têm métodos próprios e distintos esquemas de pesquisa e compreensão. Mantenhamos na memória esse critério distintivo de superior relevância, porque diz com a natureza mesma do objeto de que nos ocupamos, além de marcar, com segurança, o tipo de trabalho que havemos de desenvolver: o direito positivo forma um plano de linguagem de índole prescritiva, ao tempo em que a Ciência do Direito, que o relata, compõe-se de uma camada de linguagem fundamentalmente descritiva.
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1.3. O DIREITO COMO LINGUAGEM EMPREGADA NA FUNÇÃO PRAGMÁTICA DE REGULAR CONDUTAS INTERSUBJETIVAS Já tive a oportunidade de anotar que, dentre os muitos traços que lhe são peculiares, o direito oferece o dado da linguagem como seu integrante constitutivo. Venho assinalando, também, que a linguagem, típica realização do espírito humano, é sempre um objeto da cultura e, como tal, carregando consigo valores. Como decorrência imediata, o direito positivo se apresenta aos nossos olhos como objeto cultural por excelência, plasmado numa linguagem que porta, necessariamente, conteúdos axiológicos. Sob certo aspecto, torna-se até confortável transitar pelo texto do direito, dado que os enunciados prescritivos — suas unidades — encontram-se soltos, derramados por todo o conjunto, nas mais variadas estruturas frásicas. É preciso registrar, porém, que a forma da linguagem, do texto em sentido estrito, ainda que importante, não será decisiva, porque o predomínio é da função em que esta linguagem é tomada. Para o subsistema do direito positivo, a linguagem estará sempre voltada para a regulação das condutas intersubjetivas. A prescritividade do ordenamento jurídico reside, exatamente, no modo como tal linguagem é empregada, a despeito da composição sintático-gramatical que presidir seu revestimento. Os enunciados do direito positivo não são expressões de atos de objetivação cognoscente. Não pretendem reproduzir o real-social, descrevendo-lhe os aspectos. Longe disso, o vetor semântico que os liga ao “mundo da vida” contém, invariavelmente, um dever-ser, assim no estado neutro, sem modalização, ou operando por intermédio dos functores obrigatório, proibido ou permitido, com o que se exaure o campo material das possíveis condutas interpessoais. O dever-ser, frequentemente, comparece disfarçado na forma apofântica, como se o legislador estivesse singelamente descrevendo situações da vida social ou eventos da natureza, a ela relacionados. O art. 10 do Código Civil, por exemplo, estipula que “A existência da pessoa natural termina com a morte...”. O art. 126 do Código Tributário Nacional, por seu turno, dispõe que “A capacidade tributária passiva independe: I – da capacidade civil das pessoas naturais...”. Em outros momentos, contudo, os modalizadores deônticos vêm à tona, expressando-se, ostensivamente, na linguagem do direito posto, com o que denunciam, de forma evidente, sua função prescritiva. Nesse sentido, observa-se o art. 418 do Código Civil, o qual enuncia que o tutor, antes de assumir a tutela “é
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obrigado” a especializar, em hipoteca legal, que será inscrita, os imóveis necessários, para acautelar, sob a sua administração, os bens do menor. Seguindo a mesma linha, o contribuinte do ITR entregará “obrigatoriamente” em cada ano, o Documento de Informação e Apuração do ITR — DIAT, correspondente a cada imóvel, observadas datas e condições fixadas pela Secretaria da Receita Federal, conforme veicula o art. 8.º da Lei nº 9.393/96. Enquanto se movimenta entre os enunciados, para compreendê-los na sua individualidade, o intérprete dos textos jurídicos deve saber que manipula frases prescritivas, orientadas para o setor dos comportamentos estabelecidos entre sujeitos de direito. É preciso considerá-las na forma em que se apresentam para, posteriormente, congregá-las e convertê-las em unidades normativas, em que o sentido completo da mensagem deôntica venha a aparecer com toda a força de sua juridicidade. E esse “considerá-las na forma em que se apresentam” implica, muitas vezes, a utilização da Lógica Apofântica, com o modelo clássico “S é P”. Nesse intervalo, a tomada de consciência sobre a prescritividade é importante, mas o exegeta não deve se preocupar, ainda, com os cânones da Lógica Deôntico-jurídica, porque o momento da pesquisa requer, tão somente, a compreensão isolada de enunciados que, quase sempre, se oferecem em arranjos de forma alética. Diante da unidade e da integridade constitutiva do direito positivo, tem-se imperativa necessidade de, ao examinar qualquer vocábulo ou locução jurídica, tomar-se em consideração o sentido que o próprio ordenamento lhes confere. Ao definir, o direito positivo prescreve o exato significado que determinado termo terá no discurso jurídico, prestigiando, desse modo, os sobreprincípios da segurança e da certeza do direito. O sistema do direito posto, ante a plurivocidade de sentidos que a expressão suscita, conota pelo menos quatro aspectos: (i) o sistema visto como conjunto de enunciados, tomados no plano da expressão; (ii) o sistema jurídico como o conjunto dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos; (iii) o sistema como domínio de significações articulado na estrutura lógica da norma jurídica; e (iv) o sistema como organização sintática das unidades normativas, seguindo certo critério de pertinência. A conceptualização dessa teoria, que desmembra e explicita a interação dos quatro sistemas, coloca à mostra que o plano de expressão integra o direito posto, independentemente da forma de linguagem com que se apresente o enunciado prescritivo, porque foi veiculado por sujeito competente para produzi-lo.
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As definições do direito, por isso mesmo, não pretendem descrever o real, mas alterá-lo. Por exemplo, a classe das coisas móveis, no sentido jurídico, como referente real, não se apresenta como móvel nem imóvel. Para o direito, pode ser imóvel uma casa, um terreno, um navio ou uma aeronave. O direito cria suas próprias realidades, constrói seus próprios conceitos e define-os para sobre eles poder falar com mais desenvoltura e rigor. Afinal, esse conjunto de objetivações pretende regular condutas em interferência intersubjetiva e seu instrumento é a linguagem. Para isso, há de estar atento ao teor de imprecisão que acompanha, ordinariamente, a linguagem, fazendo cortar a denotação das palavras mediante definições estipulativas, redefinindo, muitas vezes, os signos do real para precisar, desse modo, os traços conceptuais que conformam o tecido normativo.
1.4. NOTAS SOBRE OS DIFERENTES ENFOQUES TEÓRICOS EMPREGADOS NA COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO Toda a ciência pressupõe um corte metodológico. Ao analisarmos o homem do ângulo histórico, por exemplo, colocamos entre parênteses as conotações propriamente técnico-jurídicas, econômicas, sociológicas, éticas, antropológicas etc., para concentrar o estudo prioritário na evolução dos fatos que se sucedem no tempo, e que apresentam a criatura humana como entidade central. Qualquer especulação científica que pretendamos empreender trará consigo essa necessidade irrefragável, produto das ínsitas limitações do ser cognoscente. O conhecimento jurídico não refoge a esse imperativo epistemológico. Ao observarmos o fenômeno existencial de um determinado sistema de direito positivo, somos imediatamente compelidos a abandonar outros prismas, para que se torne possível uma elaboração coerente e cheia de sentido. É certo que o mesmo objeto — um dado sistema jurídico-normativo — pode suscitar várias posições cognoscitivas, abrindo campo à Sociologia Jurídica, à Ética Jurídica, à História do Direito, à Política Jurídica e, entre outras, à Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica. Esta última investiga a natureza do ser jurídico, firmando-se como uma atividade intelectual que postula conhecer de que maneira se articulam e de que modo funcionam as prescrições normativas. Importa acentuar que as diversas propostas cognoscentes do direito positivo (História do Direito, Sociologia Jurídica, Antropologia Cultural do Direito, Dogmática Jurídica etc.) têm, todas elas, a mesma dignidade
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científica, descabendo privilegiar uma, em detrimento das demais. Mas há um ponto que não deve ser esquecido: a cada uma das ciências jurídicas corresponde um método de investigação, com suas técnicas especiais de focalizar o objeto. Quanto à dogmática, ou Ciência do Direito stricto sensu, que se ocupa em descrever o direito positivo tal como ele se apresenta, é necessário observá-lo na sua feição estática e no seu aspecto dinâmico, que se perfaz com o processo de positivação, em que a norma editada hoje será o fundamento de validade de outras regras, até o ponto terminal da cadeia de elaboração, que se consubstancia no último ato de aplicação, norma individual de máxima concretude. Para a Ciência do Direito, em seu sentido estrito, é imprescindível mais um corte metodológico, em que se despreza o direito passado, que deixou de ser válido, e o direito futuro, que ainda não sabemos qual será. Vale para a Ciência do Direito, exclusivamente, a ordem jurídica posta, isto é, o direito positivo considerado hic et nunc. Isso não significa, entretanto, que a Dogmática Jurídica, na acepção em que adoto, limita-se a singelo descritivismo. Como tenho proclamado17, de modo farto e solene, as ciências sociais e, dentre elas, o Direito, apresentam caráter construtivo, sendo inevitável a influência axiológica do intérprete, e, por conseguinte, a inesgotabilidade das possibilidades interpretativas.
1.5. O DIREITO COMO SISTEMA COMUNICACIONAL O direito, tomado como um grande fato comunicacional, é concepção relativamente recente, tendo em vista a perspectiva histórica, numa análise longitudinal da realidade. Situa-se, como não poderia deixar de ser, no marco da filosofia da linguagem, mas pressupõe interessante combinação entre o método analítico e a hermenêutica, fazendo avançar seu programa de estruturação de uma nova e instigante Teoria do Direito, que se ocupa das normas jurídicas enquanto mensagens produzidas pela autoridade competente e dirigidas aos integrantes da comunidade social. Tais mensagens vêm animadas pelo tom da juridicidade, isto é, são prescritivas de condutas, orientando o comportamento das pessoas de tal modo que se estabeleçam os valores presentes na consciência coletiva. O direito como sistema de comunicação – cujas unidades são ações comunicativas e, como tais e enquanto tais, devem ser observadas e exploradas 17. CARVALHO, Paulo de Barros. “Algo sobre o constructivismo lógico-semântico”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Constructivismo Lógico-Semântico, v. 1, São Paulo: Noeses, 2014.
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– impõe que qualquer iniciativa para intensificar o estudo desses fenômenos leve em conta o conjunto, percorrendo o estudo do emitente, da mensagem, do canal e do receptor, devidamente integrados no processo dialético do acontecimento comunicacional. Tenho a firme convicção de que essa proposta epistemológica é sumamente enriquecedora, oferecendo perspectivas valiosas para quem se aproxima do direito em atitude cognoscente. E o testemunho vivo desse reconhecimento já está consignado em numerosos escritos da dogmática brasileira, principalmente no campo do direito tributário. A investigação do fenômeno jurídico, com os recursos da teoria comunicacional, possibilitou atingir níveis mais profundos de observação e também desenvolver uma análise mais fina e penetrante do trabalho construtivo da Ciência. Tal perspectiva sacode a consciência e mexe com as concepções convencionais que estamos acostumados a encontrar. O direito, no seu particularíssimo modo de existir, manifesta-se necessariamente na forma de linguagem. E linguagem é texto. Posto isso, partindo da premissa de que, ao interpretarmos os textos jurídico-positivos, devemos buscar no discurso científico o conteúdo semântico dos vocábulos, passarei a fazê-lo no que tange ao termo “comunicação”, objetivando explanar a concepção do direito como formador de um grande processo comunicacional. Animado por este propósito, impõe-se observar o significado a ele atribuído pela Semiótica, disciplina que estuda os elementos pertinentes à comunicação, pois essa matéria, na qualidade de Teoria Geral dos Signos, estará mais autorizada a dizer, de forma precisa, que é e como funciona o fenômeno da comunicação. A palavra “comunicação”, assim como a quase totalidade dos termos idiomáticos conhecidos, padece do problema da ambiguidade. No falar quotidiano, e até mesmo em obras que pretendem esclarecer o significado dos vocábulos (dicionários), “comunicação” seria uma palavra utilizada em ocasiões diversas, com sentidos variados. Cientificamente, porém, a situação é outra. “Comunicação” deve ser entendida em conformidade com a Ciência que estuda os signos, isto é, a Semiótica, abandonando-se os sentidos resultantes dos usos comuns. Na acepção mais geral, o termo “comunicação” designa qualquer processo de intercâmbio de uma mensagem entre um emissor e um receptor18. 18. DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Trad. Marina Appenzeller, Campinas: Papirus, 1993, p. 95.
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Para que isso seja possível, porém, necessária se faz a coalescência de determinados componentes que, segundo Roman Jakobson19, são seis: remetente, mensagem, destinatário, contexto, código e contato. Utilizando esses elementos para descrever o processo da interação comunicacional, temos a seguinte situação: O remetente (1) envia uma mensagem (2) ao destinatário (3). Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto (4) a que se refere, apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou susceptível de verbalização; um código (5) total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário; e, finalmente, um contato (6), um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a entrar e permanecer em comunicação. Umberto Eco20 define o processo comunicativo como a passagem de um sinal que parte de uma fonte, mediante um transmissor, ao longo de um canal, até o destinatário. J. Teixeira Coelho Netto21 também adota semelhante definição de processo comunicacional. Segundo esse autor, uma mensagem é elaborada pela fonte, com elementos extraídos de um determinado repertório, sendo transmitida por um canal e decodificada por um receptor, que, para tanto, utilizará elementos extraídos de outro repertório, que tenha algum ponto em comum com o repertório da fonte. Em síntese, o processo comunicacional, seja ele de que espécie for, apresenta os seguintes elementos: emissor, canal, mensagem, código, receptor, conexão psicológica e contexto, devendo ser o significado de cada um deles delimitado: (1) emissor: é a fonte da mensagem, aquele que comporta as informações a serem transmitidas; (2) canal: é o suporte físico necessário à transmissão da mensagem, sendo o meio pelo qual os sinais são transmitidos (é o “ar”, para o caso da comunicação oral, mas pode apresentar-se em formas diversas, como faixas de frequência de rádio, luzes, sistemas mecânicos ou eletrônicos, etc.); (3) mensagem: é a informação transmitida; (4) código ou repertório (comum a ambos): é o conjunto de signos e regras de combinações próprias a um sistema de sinais, conhecido e utilizado por um grupo de indivíduos ou, em outras palavras, é o quadro das regras de formação (morfologia) e de transformação (sintaxe) de signos; (5) receptor: a pessoa que recebe a mensagem, o destinatário da informação; (6) conexão psicológica: é a concentração subjetiva do emissor e receptor na expedição e na recepção 19. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 123. 20. ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 5. 21. COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 123.
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da mensagem; e (7) contexto: é o meio envolvente e a realidade que circunscrevem o fenômeno observado. É forçoso concluir que o processo comunicativo, segundo teóricos da comunicação e linguistas, consiste na transmissão, de uma pessoa para outra, de informação codificada. O esquema da comunicação supõe, portanto, a transmissão de uma mensagem, por meio de um canal, entre o emissor e o receptor, que possuem em comum, ao menos parcialmente, o repertório necessário para a decodificação da mensagem. Eis o conteúdo semântico cientificamente atribuído ao vocábulo “comunicação”.
1.6. O CONTEÚDO AXIOLÓGICO DO DIREITO Tenho no “valor” um dos caracteres indissociáveis do direito. Não é exagero referir que o dado valorativo está presente em toda configuração do jurídico, desde seus aspectos formais (lógicos), como nos planos semântico e pragmático. Em outras palavras, ali onde houver direito, haverá, certamente, o elemento axiológico. A demonstração deste asserto não é difícil e pode ser feita com singelas lembranças das manifestações jurídicas, em pontos diversos da existência desse fenômeno. Vou tecer algumas considerações, a título de exemplo, pois o exemplo sempre foi ponto de apoio fundamental, importantíssimo para a absorção e fixação do conhecimento. Ao escolher, na multiplicidade intensiva e extensiva do real-social, quais os acontecimentos que serão postos na condição de antecedente de normas tributárias, o legislador exerce uma preferência: recolhe um, deixando todos os demais. Nesse instante, sem dúvida, emite um juízo de valor, de tal sorte que a mera presença de um enunciado sobre condutas humanas em interferência subjetiva, figurando na hipótese da regra jurídica, já significa o exercício da função axiológica de quem legisla. Outro tanto se diga no que atina ao modo de regular a conduta entre os sujeitos postos em relação deôntica. As possibilidades são três, e somente três: obrigatória, permitida ou proibida. Os modais “obrigatório” e “permitido” trazem a marca de um valor positivo, porque revelam que a sociedade aprova o comportamento prescrito, ou mesmo o tem por necessário para o convívio social. Caso o functor escolhido seja o “proibido”, fica nítida a desaprovação social da conduta, manifestando-se inequívoco valor negativo. Vê-se que o valor está na raiz mesma do dever-ser, isto é, na sua configuração lógico-formal. Foi Rudolf Hermann Lotze, um dos grandes metafísicos alemães e dos mais representativos pensadores do seu século, que introduziu a categoria valor
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na problemática da filosofia moderna. Haveria uma ordem dos valores distinta da ordem do ser, como o mundo das validades irreais, de uma objetividade puramente espiritual. Newton Sucupira22 apresenta alguns princípios gerais que norteavam a teoria de Lotze e que se encontram na filosofia dos valores do neokantismo de Baden e em outros filósofos: 1) os valores repousam sobre validades irreais; 2) constituem campo autônomo junto e sobre o ser concreto; 3) o valor é sempre uma relação ligada a um sujeito; 4) não é atividade puramente teorética, mas uma faculdade prática que nos conduz à apreensão do valor. Como referiu Tercio Sampaio Ferraz Jr.23, valores são preferências por núcleos de significação, ou melhor, são centros significativos que expressam preferibilidade por certos conteúdos de expectativa. Podemos dizer que é a não-indiferença de alguma coisa relativamente a um sujeito ou a uma consciência motivada. É uma relação entre o sujeito dotado de uma necessidade qualquer e um objeto ou algo que possua qualidade ou possibilidade real de satisfazê-lo. Valor é um vínculo que se institui entre o agente do conhecimento e o objeto, tal que o sujeito, movido por uma necessidade, não se comporta com indiferença, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas. Luiz Fernando Coelho24 salienta a quase unanimidade das opiniões no sentido de que os valores não têm expressão ôntica, isto é, eles não são, não consistem em algo, mas valem, e só se pode predicar sua existência como algo aderente ao ser e não como alguma coisa que tenha um ser. Haveria uma dependência ontológica dos valores com relação ao ser. Registre-se, entretanto, que essa forte inclinação das opiniões filosóficas para o niilismo dos valores recebe o impacto da noção fenomenológica de objeto como correlato intencional da consciência cognitiva. Isso permite que os valores sejam objetivamente pensados como ser-em-si. Podemos, então, focalizar a justiça como dado supremo para o direito, a igualdade, a segurança, a boa-fé e assim por diante. Não é excessivo, porém, falar na inexistência, propriamente dita, dos valores. Seu existir consistiria apenas no ato psicológico de valorar, segundo o qual, atribuímos a objetos, aqui considerados em toda a sua plenitude semântica, qualidades positivas ou negativas. E o que nos dá acesso ao reino dos valores é a intuição emocional, não a sensível nem a intelectual. Tomados, 22. SUCUPIRA, Newton. Tobias Barreto e a filosofia alemã. Rio de Janeiro: Gama Filho, 2001, pp. 149-150. 23. FERRAZ Jr, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 114. 24. COELHO, Luiz Fernando. Aulas de introdução ao direito. São Paulo: Manole, 2004, p. 15.