MORTOS SEM FUNERAIS

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MORTOS SEM FUNERAIS Eis que lá estava diante de um grupo de jovens na periferia. Idealistas, sonhadores, ousados, simples cidadãos, mas com a presunção de mudar a história que se passa diante de seus ouvidos e olhos. Os desejos enunciados não eram nenhuma novidade para aqueles conscientes do caos que nos envolve, mas percebi que suas falas declaravam algo mais que simplórios discursos. Eles já estavam agindo muito além dos escritos no papel. Podem ser passos pequenos no momento, mas são ousados nos horizontes traçados. Entretanto ao deixar o grupo entrei em uma armadilha sórdida, cheia de escárnio, onde a hipocrisia é pública e paga com nossos recursos. A tal rede que me prendeu foi uma transmissão de depoimentos que compõe os cenários da atual pandemia. Enquanto antes lá estava eu diante de jovens, ainda estudantes do segundo grau, e agora deglutia falas incoerentes e inconsistentes de uma médica com claro viés politiqueiro e nojento. Ela não refletia nenhum sentimento de pesar pelos quase meio milhão de mortos em nosso país. Nem declarou ações pontuais e práticas quanto a valorização dos profissionais de saúde.


Somente estatísticas As centenas de médicos mortos, outras centenas de enfermeiros e outros tantos de ACS Agentes Comunitários não são traduzidos em preocupações eficazes por parte dos governos. Governos de todos os níveis. O Conselho Federal de Medicina divulgou que desde março/2020 já somam 624 médicos já perderam a vida para a doença no Brasil. Mas eles são agora somente números esquecidos nos arquivos desta história dramática. Eles, entre quase meio milhão de mortos já não causam os mesmos sentimentos que o atropelamento de um cão ou de um gato, embora nenhum deles seja desejável. Este meio milhão, que em breve poderá ser um milhão, já nem faz parte das reportagens de ratos, macedos e datenices globais, pois não dão audiência. E por aqui nem mesmo secretário de saúde sabemos quem é. E nem os políticos se importam com isto. Saiu um competente discursador de oratórias de R$0,50, mas incompetente para gerenciar o cargo e pior ainda, abandonando o barco sem ser transparente ou convincente em suas justificativas. Deu as costas aos mortos e foi cuidar de seus próprios afazeres financeiros, claro. Então temos a corrupção dos mortos. A corrupção sim, já que nenhum governo teve a hombridade e respeitabilidade de implantar um programa de Educação Comportamental para o Enfrentamento Pandêmico. Nenhuns destes bastardos políticos se dispuseram a contar, por exemplo, com o entusiasmo e idealismo de jovens como os do grupo citado no início desta matéria. Uma ferramenta educativa que deveria ser prioridade preventiva para o condicionamento postural dos cidadãos até agora não foi construída, sendo que deveria catalisar a juventude como fonte de encadeamento e conexões. Isto é crime de omissão para com a saúde pública!


Educação Comportamental Imagine um país todo cativado por conceitos e paradigmas práticos e proativos na criação de cenários desejáveis. Falar e fazer discursos não basta, veja como exemplo o discurso do exsecretário da saúde, aquele tal dos R$ 0,50 que logo nos minutos seguintes foi jogado no lixo diante de uma cancela do hospital. Um Programa de Educação Comportamental para o Enfrentamento Pandêmico, PECEP, que deveria ser matéria de iniciativa e responsabilidade dos gestores da saúde, com a parceria dos responsáveis da educação. Mas onde estão secretários da educação e da saúde? Se estes agentes públicos não tivessem visões tão toscas certamente incluíram em seus currículos um projeto formatado sob os prismas da simplicidade, interatividade, criatividade, reflexões e principalmente com a responsividade. Aliás, justamente a responsividade é o ingrediente corrompido no repertório dos gestores públicos, aos políticos em geral, aos detentores do poder executivo. É um modismo eleitoreiro de ‘lives’, de discursos, de achismos, de desfiles de motos, de aglomerações desde a posse, também de inaugurações despropositais ou da criação de calculadora digital para diagnóstico, enquanto o governo federal abriu em março um concurso para 3.000 médicos, diante de um país com 5.565 cidades. Então provavelmente 2.565 cidades não serão atendidas. Pra que acolhimento? Este é somente um recorte do cenário escabroso ou áspero que prepara o aumento da lista de óbitos sem direito a velório e sob o risco de um luto invisível com sequelas que não são registradas nas planilhas de viagens a Israel e nem a Brasília. Não temos conhecimento de outro programa, isto é de um sistema de acolhimento, apoio, acompanhamento e atendimento psicológico às vítimas da pandemia e se seus ‘órfãos’, alguns ainda crianças já sem pai e mãe. O poder corrompe. O poder submete ao ostracismo os idealistas jovens.


O poder é materialista, financeiro, consumista, de ostentação e em grade parte é nojento. Ouvir uma médica mentir diante das câmaras oficiais, sendo que a mesma se omitiu covardemente diante de comportamentos nada dignos de autoridades, é um quadro estarrecedor, para os quais só cabem os silêncios dos mortos. É uma espécie de assassinato da honra e do papel do agente público. Este assassinado propagado aos quatro ventos tem princípios similares aos propostos pelo pastor-assassino Jim Jones na Guiana, no qual mais de 900 pessoas morreram. Síndrome dos perseguidos No país já se projeta no final do ano algo próximo de um milhão de mortos sem funerais e com sequelas. Os toscos dirão que é menção de conspiradores. Os maníacos que se sentem ‘perseguidos’ por opositores em geral são crentes de uma fé inabalável a ponto de causarem cegueiras obtusas. Não há argumentos que os convença disto. Isto cabe para todos os vieses politiqueiros, de direita, de esquerda, de achismos, de analfabetismo político, etc. Quanto se instala a arrogância da polaridade em detrimento do outro a ponto de desejar a extinção do oposto, já estaremos assim plantando um imperialismo tosco e inútil, pois todos sofrerão as consequências dos ditadores do poder. O ‘poderoso chefão’ então se tornará uma realidade, sem música, sem lei, sem transparência, sem justiça, sem dignidade; mas com mais mortos sem direito a velórios. E assim então os jovens terão seus sonhos enterrados por uma camiseta de uma seleção corrupta. Eles nem mesmo sabem das figuras de Havelange e Marin. “Pra frente Brasil, salve a seleção”, logo seremos milhão (de mortos). Amparo, SP 26 mai 2021 Tito, psicólogo


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