Revista Toca de Assis JANEIRO de 2016

Page 1

Publicação da Fraternidade de Aliança Toca de Assis - Janeiro de 2016

Brasao - Os sinais de uma identidade


ÍNDICE

Revista

Artigo Especial

Toca para a Igreja 33

Mãe da Igreja

Escritório São José Rua Amador Bueno, 45, Vila Industrial Campinas/SP. CEP: 13035-030 comunicacaocentral@tocadeassis.org.br Fone: (19) 3886-7086

Toca em Ação 44

JANEIRO 2016 Publicada por Fraternidade de Aliança Toca de Assis CNPJ: 02019254/0001-87

11 11

Formação

14 14

De olho na Rua 6

Coração da Toca

SAV- Serviço de Animação Vocacional

88

Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento

16 O Mundo tem Saudades de Francisco

18

vocacional@fpss.org.br

Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento

sav.nacional@filhasdapobreza.com.br Revista Toca de Assis Publicação mensal interna da Fraternidade de Aliança Toca de Assis

Presidente: Ir. Emanuel do Sacramento de Amor, fpss. Departamento Comunicação Ir. Judá, Leonardo de Souza e Anima Comunicação. Editora Chefe: Ir. Judá, fpss Projeto gráfico e Diagramação: Anima Comunicação +55 43 3064-1633 www.animacomunicacao.com Revisão Ortográfica: Larissa Nazário Impressão e tiragem: 10.000 exemplares Colaboradores nesta edição: Ir. Emanuel; Ir. Gabriel; Ir. Sara Maria; Ir. Agraziato; André Nogueira; Ir. Rúbia Maria; Bruno Mendes; Leonardo de Souza; Fernando Nunes; Tamisa Graciano; Daniel Ávila; Gustavo Ávila; Leandro Brasil; Oscar Nascimento. Capa Brasão do Instituto Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento.

EDITORIAL Prezado amigo leitor, paz e bem! “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade.” (Lm 3,22-23). Iniciamos mais um ano na presença do Senhor, e este em particular é marcado pela misericórdia de Deus, como nos recorda o irmão Emanuel, que em nome da Fraternidade Toca de Assis acolhe a todos neste ano que se inicia Janeiro! Como não nos lembrar daquela cuja comemoração se dá no primeiro dia do mês? Na coluna “MÃE DA IGREJA” conheceremos um dos dogmas marianos mais bonitos: MARIA, MÃE DE DEUS. Já o “ARTIGO ESPECIAL” nos apresenta o novo brasão das Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento, nele, através do testemunho da Irmã Rubia, veremos como a arte heráldica pode nos apresentar os sinais de uma identidade. No “DE OLHO NA RUA” refletiremos sobre a necessidade de conhecer uma linguagem utilizada nas ruas e nisso descobrir que o diálogo é a chave que abre as portas para aquilo que temos de mais humano: o amor. ECOLOGIA HUMANA E SEXUALIDADE: o que será que estes temas têm em comum? É o que iremos conhecer na coluna “FORMAÇÃO” desta edição. Em “O MUNDO TEM SAUDADE DE FRANCISCO” vamos contemplar a beleza da opção pelo seguimento do evangelho feito por Francisco. No artigo “TOCA EM AÇÃO” vamos conhecer algumas experiências dos leigos nas pastorais de rua em Brasília. Já o “CORAÇÃO DA TOCA” vamos conhecer uma curiosidade da vida de um servo de Deus, o carioca Guido Shaffer: ELE QUERIA SER DA TOCA!

www.tocadeassis.org.br

Que todos nós acolhamos este novo ano como um dom! Departamento de Comunicação


TOCA PARA A IGREJA

Feliz 2016 Ano Santo da Misericordia

E

Misericórdia de Deus: “Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém.” 1

m 2016 a Santa Igreja, através do Santo Padre, o Papa Francisco, proclamou o Ano Jubilar Extraordinário, centrado na Misericórdia de Deus, que teve início no dia 08 de dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição, e que percorrerá todo este ano e findará no dia 20 de novembro deste ano, na Solenidade de N.S. Jesus Cristo, Rei do Universo.

Como nos ensina São João Paulo II, na bula de abertura do ano jubilar em 2000: “O tempo jubilar faz-nos ouvir aquela linguagem vigorosa que Deus usa, na sua pedagogia de salvação, para impelir o homem à conversão e à penitência, princípio e caminho da sua reabilitação e também condição para recuperar aquilo que não poderia conseguir só com as suas forças: a amizade de Deus, a sua graça, a vida sobrenatural, a única onde podem achar solução as aspirações mais profundas do coração humano.” 2 Portanto, somos chamados a aproveitar as graças extraordinárias deste ano, como uma força divina em meio a nossa fraqueza, a caminhar e viver com autenticidade a nossa vocação de cristãos neste mundo. Assim afirma o Papa: “foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.”3 A misericórdia “é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.” 4 Que neste ano possamos nutrir e alimentar-nos da Misericórdia de Deus, transbordá-la em nosso viver, testemunhá-la no amor ao próximo. Que ela sirva de força para nos transportar acima de nossas dificuldades e sofrimentos, que ela venha dar sentido as nossas relações com o outro, levando-nos a entender verdadeiramente a dimensão da caridade, do amar e ser amado, do perdoar e ser perdoado. Pois, “é Referências Misericordiae vultus, n.25 (Papa Francisco) 2 Incarnationis mysterium, n.2 (Papa João Paulo II) 3 Misericordiae vultus, n.3 (Papa Francisco) 4 Ibidem, n.2 5 Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 30, a. 4. 6 Chiara Lubich 1

próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência”5, se Deus mostra sua onipotência sendo misericordioso, o que poderíamos nós, em nossa pequenez, não imitá-lo? “Jesus quer o amor. E a misericórdia é uma expressão do amor. Ele quer que o cristão viva assim, antes de mais nada porque Deus é assim. Para Jesus, Deus é, acima de tudo, o misericordioso, o Pai que ama a todos, que faz nascer o sol e cair a chuva sobre os bons e sobre os maus. Uma vez que ama a todos, Jesus não tem receio de relacionar-se com os pecadores; e desse modo nos revela quem é Deus. Portanto, se Deus é assim, se Jesus é assim, você também deve nutrir os mesmos sentimentos.”6 Que todos tenham um feliz e santo ano!

Gravação do Clipe Nossa História. Fotografia por Anima Comunicação.

Ir. Emanuel

Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento Presidente da Fraternidade Toca de Assis

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

3


MÃE DA IGREJA

Grande Mae de Deus e nossa Mae “Donde me vem esta honra de vir a mim a Mãe do Meu Senhor?” Saudação de Santa Isabel à Virgem Maria (Lc 1,43)

N

ão é por acaso que a Igreja celebra no primeiro dia do ano civil a Solenidade da Santa Mãe de Deus, mas para que entreguemos toda nossa vida, esperança e trabalhos à Rainha Soberana dos Céus e da Terra. No entanto, devido aos festejos de ano novo, tal celebração corre o risco de passar despercebida, ainda que seja dia santo de guarda. Mas por que a proclamamos Mãe de Deus? O dogma de Maria “Theotokos” (do grego: Mãe de Deus) foi definido pelo Concílio de Éfeso em 431, porém os cristãos sempre a veneraram assim. Prova disso é a oração “Sub tuum præsidium” a mais antiga oração clamando a intercessão de Maria como Mãe de Deus e Virgem. É datada do século II, quando muitos dos primeiros sucessores dos apóstolos - ordenados bispos e presbíteros - ainda eram vivos.

E desta verdade de fé dependem as outras três: porquê é Mãe de Deus, é Imaculada desde a concepção, é Virgem Perpétua e foi assunta ao Céu de corpo e alma. Ora, o Deus Justo e Santo não desceria do Céu para se fazer um de nós sem uma prévia preparação, sem escolher uma digna morada que estivesse à altura de Seu divino e perfeito gosto. E Ela foi a única criatura escolhida para gerar em Seu Ventre Puríssimo o Filho Eterno, sendo a Nova Arca da Aliança, de modo que o Corpo de Cristo que comungamos veio somente do Corpo de Maria. (conf. Santo Agostinho) Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho e Esposa do Espírito Santo... E paradoxalmente é Filha de Seu Filho que é Deus! Ninguém recebeu tais privilégios! Foi a Porta do Céu, pela qual Cristo desceu a nós! Como não ser-lhe gratos? Nossa Senhora do Sagrado Coração. Campinas-SP. Fotografia por Anima Comunicação.

4

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Ela não é somente Mãe da humanidade de Cristo, alguns afirmam. “A Encarnação do Filho de Deus não significa que Jesus Cristo seja em parte Deus e em parte


Cenas do filme JESUS - A história do nascimento.

homem, nem que seja o resultado de uma mistura confusa do divino com o humano. Ele fez-Se verdadeiro homem, permanecendo verdadeiro Deus." (1). Logo, ela é Mãe de Deus Encarnado! Imagine que se ela não lhe desse de comer, Deus ficaria com fome; se não lhe lavasse, ficaria Deus sujo; se não lhe ensinasse a falar, como poderia ensinar Sua Divina Doutrina? Ela ensinou Deus a andar, curou seus ferimentos, enxugou suas lágrimas, viu suas mais belas risadas, recebeu os carinhos do Divino Menino... Colocou Deus para dormir embalando-O em seus braços! Estupendo este mistério tão humano e tão divino! No entanto vieram-lhe as imensas dores profetizadas por Simeão. Particularmente na Cruz, onde permaneceu de pé como Corredentora a oferecer o Divino Cordeiro ao Eterno Pai. Ali ela deu a maior lição de pobreza, pois perdeu além de seu filho, também o seu título materno. Ouve da boca dEle sua nova e inigualável missão: “mulher eis ai teu filho, filho eis ai tua mãe.” (Jo 19, 26-27), precisou desapegar do título de Mãe de Deus e acolher na pessoa de São João a toda a Igreja que ali nascia e a

todos nós, surge então a Mãe da Humanidade. “Se ela gerou Cristo, e este inteiro: cabeça e membros, nós que somos membros do Corpo Místico de Cristo fomos gerados também nela, afinal nenhuma mãe gera a cabeça separada dos membros” (2). Certa vez perguntaram a Santa Terezinha: “Se pudesses escolher, quem serias? A Grande Mãe de Deus, Maria Santíssima, ou a pequena Terezinha”? E responde: “Gostaria de ser simplesmente a pequena Terezinha. Pois a Grande Mãe de Deus, Maria, não tem uma mãe no céu como Terezinha tem”. Esta fala simples de uma doutora da Igreja mostra que todos os privilégios que recebeu a Mãe de Deus, não foram para si, mas para a humanidade. Quanto maior o Dom, maior o serviço. Que não nos cansemos de agradecer a Deus pelos privilégios que concedeu a esta mulher incomparável, pois temos junto a Santíssima Trindade uma Poderosa Advogada, uma Mãe Admirável, uma Intercessora Onipotente e um Amparo Eficaz. Cristo abriu a Porta e veio a nós e por essa mesma Porta voltaremos a Cristo e ao Pai.

Referências 1 Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 464, 1992 2 São Luis Maria Grignion de Montfort. Tratado de Verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria, n° 32, pg.37 - 30° edição - 2002

Ir. Gabriel

Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

5


FORMAÇÃO

Ecologia humana e sexualidade "o corpo do homem participa na dignidade da 'imagem de Deus'" (Catecismo 364)

N

este mês proponho uma breve reflexão sobre os assuntos atuais da Igreja. Eles vão de encontro às necessidades da humanidade no nosso tempo. Procurarei associar os temas da Encíclica social Laudato Si’, sobre o cuidado da nossa casa comum através da ecologia (maio de 2015) com o sínodo da família (outubro de 2015) e a proclamação do ano da misericórdia (que teve início em oito de dezembro de 2015 com a bula Misericordiae Vultus). Parecem assuntos desconexos, mas não são. Irei relacioná-los tendo como objeto contestar ideologia de gênero. Essa ideologia procura cancelar as diferenças sexuais afirmando que a sexualidade é algo que se constrói e que cada ser humano tem ‘direito’ a ‘escolher’ a sua orientação sexual. O que parece ser sinal de grande liberdade para os jovens de hoje é na verdade uma ditadura ideológica que põe em crise a identidade do ser humano, desrespeita a verdade objetiva do seu próprio corpo, a sua natureza. Visa destruir, sobretudo, a família que é a célula vital da sociedade como nos ensina a Doutrina Social da Igreja Católica. Ao criar o mundo, Deus o confia aos cuidados do homem e da mulher (cf. Gn 1, 28), e nisso eles se tornam imagem de Deus porque espelham o governo do criador no mundo. Por isso, a ecologia e o cuidado pela criação faz parte da dignidade da pessoa humana. Se o homem desconsidera Deus e o desrespeita, consequentemente desrespeita a criação que fora confiada por Deus: a humanidade. O homem coloca-se assim como a verdade absoluta, faz suas leis injustas usando e abusando da criação segundo seus interesses egoístas. A respeito dessa desenfreada exploração da natureza afirmou o Papa Francisco que “a melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo [...]” (Laudato Si’ n. 75). Esse desrespeito pela criação se reflete também no corpo humano, que é parte integrante da criação. E mais que isso, porque o homem é o ponto culminante da criação (cf. Catecismo 343) e "o corpo do homem participa na dignidade da 'imagem de Deus'" (Catecismo 364). Desrespeitando a natureza, o homem e a mulher deixam de reconhecer

6

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Gravação do Clipe Nossa História. Campinas-SP. Fotografia por Anima Comunicação.

que o corpo faz parte dela como um dom maravilhoso de Deus do qual também terão de prestar contas ao Criador. Seguindo esse abuso pela criação, o corpo também vira objeto de egoísmo e satisfação desenfreada a procura de paixões desordenadas que vão até mesmo contra as verdades da lei natural ‘inscrita’ na criação. Papa Bento XVI mostrou uma estrita ligação entre o cuidado do homem com a criação e o cuidado consigo mesmo: “as modalidades com que o homem trata o ambiente influem sobre as modalidades com que se trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade atual a uma séria revisão do seu estilo de vida que, em muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar os danos que daí derivam” (Encíclica Caritas in Veritati, n. 51).


Homem e mulher são mais ainda imagem de Deus criador quando cooperam com Ele na geração humana. Imitam na carne a generosidade e fecundidade do Criador (cf. Catecismo 2335). A destruição da diferença sexual visa destruir a união do homem e da mulher que são à imagem de Deus criador. Disse o Papa Francisco em audiência geral: “a imagem de Deus é o casal matrimonial: o homem e a mulher; não somente o homem, não somente a mulher, mas todos os dois” (Papa Francisco

2-04-2014). Por isso, a preocupação da Igreja em defender a família não é um fato isolado. A família é considerada a ‘célula vital da sociedade’, se ela é ‘bombardeada’ por ideologias distorcidas temos como efeito algo que podemos comparar aos danos causados por uma explosão nuclear na verdade e valor do ser humano. Dissertar sobre ecologia envolve profundamente o ser humano, também sua sexualidade que faz parte da

criação e está impressa na natureza do corpo humano, do seu ser psíquico e espiritual. Distorcer a sexualidade é desorientar o ser humano, e deixá-lo a tal ponto desnorteado que se torne incapaz de cuidar da criação, pois “[...] uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes sutil, de domínio sobre a criação” (Laudato Si’ n. 155). Trata-se portanto, de uma autêntica ecologia humana. Expressão usada pelo Papa Francisco na recente Encíclica: “Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente ”(Enc. Laudato Si’ n. 155). Relacionando o tema da Encíclica social sobre o cuidado da criação com o ano da misericórdia o Papa Francisco mostrou que o abuso da criação por parte do homem ofusca o ‘rosto’ da misericórdia do Criador (Deus Pai) e Redentor (Deus Filho) (cf. Misericordiae Vultus n. 11). A relação do homem com Deus, Pai misericordioso, está ligada a sua relação com o mundo criado (cf. Dives in Misericordia n. 2). Ao sínodo da família relacionamos com o ano da misericórdia porquê na Sagrada Escritura o amor misericordioso de Deus Pai é comparado por vezes, ao amor do homem-pai e da mulher-mãe. “Em suma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe [...]” (Misericordiae Vultus n. 6). A relação do homem e da mulher no matrimônio é à imagem de Deus Pai Criador. Portanto, quando a relação entre homem e mulher é pervertida “[...] o acesso ao rosto de Deus corre, por sua vez, o perigo de ficar comprometido” (CDF n. 7). Termino essa breve reflexão com o mesmo questionamento do Papa Francisco: será que a crise atual da desconfiança em Deus, e de sua misericordiosa paternidade, não está relacionada a crise entre homem e mulher? (cf. FRANCISCO, audiência geral 14-04-2015).

Referências CDF: Congregação para a Doutrina da Fé em Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo.

Ir. Sara Maria

Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

7


Guido Shaffer. Fotografia por Surffoto.

CORAÇÃO DA TOCA

Ele queria ser da Toca "Movido por sua vocação natural a fazer o bem"

E

com essas palavras nos acolheu Maria de Nazaré, mãe do servo de Deus Guido Shaffer, médico, seminarista e surfista, no dia da abertura do processo diocesano em vista de sua beatificação e canonização.

De fato, assim que a Toca chegou a Madureira, esse jovem não mediu esforços para nos ajudar na Santa Casa de Misericórdia, onde exercia sua profissão, e por diversas vezes conseguiu internação para nossos acolhidos. A última imagem que tenho dele é justamente no bandejão da santa Casa, onde eu acompanhava um irmão internado, ele passou, me saudou e seguiu

8

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

para sua mesa com colegas, com os quais certamente falava de Deus, seu assunto constante. Nascido numa família católica da Zona Sul carioca, Guido conheceu na adolescência a Renovação Carismática com a qual se identificou. Frequentador do Mosteiro de São Bento teve sólida formação por parte dos monges que o acompanhavam. Porém, atribui à leitura do livro O Irmão de Assis, de fr. Ignácio Larrañaga, sua “conversão”. Movido por sua vocação natural a fazer o bem, foi cursar medicina sempre com o objetivo de ajudar


o próximo. Quando organizou a Pastoral da Saúde da Santa Casa pôde dedicar-se com mais força aos mais abandonados unindo-se a Toca de Assis e as Missionárias da Caridade. Foi nessa época que, lendo o Irmão de Assis, pensou em se consagrar a Deus na Toca de Assis. Desaconselhado pelo abade de São Bento, acabou ingressando no Seminário São José, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, buscando, além da cura física, a cura da alma dos pobres que tanto amava. Mas esse sonho não se concretizaria... adepto do surf , saiu um dia com seu irmão e um colega para pegar onda e teve seus planos interrompidos por um acidente que lhe ceifou a vida.

Seu sepultamento foi um misto de comoção e exultação, pois aos lamentos dos que sofriam com o impacto da notícia repentina somavam-se os testemunhos e atos de louvor a Deus daqueles que tiveram suas vidas transformadas pelo testemunho e profetismo desse jovem. Hoje, Guido Shaffer é proposto aos jovens como exemplo de amor a Deus e ao próximo no seguimento de Jesus Cristo. Oxalá seu exemplo possa atrair muitos a uma vida de oração e entrega pelos mais necessitados. E que do céu ele possa interceder por nossa fraternidade e pelas vocações a nosso carisma, afinal, “ele queria ser da Toca”.

1

2

3

4

LEGENDA DA FOTO 1- Guido Shaffer no dia de sua primeira eucaristia acompanhado dos pais, em 1982. 2- Guido Shaffer com os pais. 3- Guido Shaffer, seminarista na procissão de Corpus Christi, em 2008.. 4- A família reunida no dia da Bodas de Rubi, em 2008. Fotografias de arquivo familiar.

Ir. Agraziato

Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

9


Brasão do Instituto Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento Arte por Anima Comunicação 10

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016


ARTIGO ESPECIAL

Brasao - Os sinais de uma identidade "Depositei minha confiança na intuição artística. No final das contas percebo que deu muito certo, bem mais do que eu poderia imaginar."

Q

uando foi? Não lembro nem o dia nem o mês, apenas recordo que foi numa quinta-feira de 2013; a Vigília Eucarística colabora para me situar. Foi tudo tão rápido... Como comecei? Comecei acessando a internet em pesquisas sobre brasões de várias congregações e institutos religiosos femininos, também de algumas comunidades, como a Canção Nova. Percebi uma infinidade de variedades. Sem formação ou instrução alguma em heráldica, admito ter ficado um tanto confusa. O que sabia eu? Talvez o essencial: a necessidade de expressar OS SINAIS DE UMA IDENTIDADE. Acima de tudo, eu ansiava conceber algo original em sua essência e belo. Enfim, tomei um “formato ordinário” e fui para não demorar mais. Jesus ao centro , o Sol Eucarístico. Nenhuma dúvida tive ao destacar o Santíssimo Sacramento, no centro com seus esplendores. Como tudo parte dEle a composição do brasão não trilhou caminho diferente. Tudo começou do centro . Os trigos de nossa pobreza surgiram logo. Com muitos motivos e sem tanta necessidade de explicação eles permanecem essenciais em minha consideração.

Como nossa fundação se comemora no dia de Nossa Senhora do Rosário (07 de outubro), algum sinal preci-

saria ser inserido para comunicar a presença da Virgem Mãe, sua materna intercessão. Tentei rapidamente trazer à memória símbolos que conhecia. Lembrei-me da Medalha Milagrosa, de Nossa Senhora das Graças, que traz um “M” coroado com a Cruz; é para mim o mais conhecido; só que não cabia em conformidade. De repente foi como se o “M” sumisse e permanecessem as doze estrelas que o cercam na medalha; de imediato veio a mim a imagem da passagem do Apocalipse 12, 1: “Um grande sinal apareceu no céu: uma mulher vestida de sol, a lua sob os pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas.”. Tive a certeza: Sim, seria esta a forma de representar a Virgem Mãe de Deus, a Esposa do Espírito Santo! As estrelas se encaixaram ao redor do Santíssimo Sacramento para significar a Virgem Grávida, sacrário vivo, e ao mesmo tempo a Virgem Adorante, Mestra que nos ensina a adorar, que nos conduz à adoração, que sempre e sem cessar leva-nos a seu Filho Jesus. As doze estrelas são para mim muito especiais nesta composição, outras iluminações foram se apresentando neste sinal e falando comigo, além da sugestão mariana. Uma delas trouxe à intuição os doze Apóstolos. Falou-me do ministério apostólico, do envio à missão, da identificação com Aquele que envia. Mesmo feio, eu contemplava em oração o rascunho. Desconfiei se esta intenção seria compreendida. Para minha surpresa foi. JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

11


A flor de lis quis brotar no rascunho quando, na verdade, mais nada cabia. Foi tão forte que superou minha inclinação à perfeição; e ela ficou ali, meio apagada, meio “sem lugar”. Penso ser interessante o que vou contar. Quando o Padre Rodrigo refez o brasão utilizando como referência o esboço que eu havia feito, a flor de lis “desapareceu” e se destacaram dois lírios de outro tipo. Eu, ao mesmo tempo em que “sofri”, encontrei conformação, a final de contas, nem eu mesma compreendia, com plena propriedade, o que ela fazia ali. Conformei-me com certo incômodo e deixei pra lá. Tempos depois, no estudo das Fontes Franciscanas, eis que a flor de lis volta a aparecer, cheia de beleza em seu sentido. Agradou-me mais uma vez, mais e mais, fazendo-me sentir saudades do que ela seria no brasão, caso eu já soubesse do comentário que lia naquele momento. Mais um bom tempo se passou, e numa reunião, que a Irmã Nínive também participava, o Anima Comunicação me mostrou meu rascunho; eu já nem lembrava mais como era, a lembrança que eu trazia dele era desbotada, não era clara. Levei até um susto. Perguntou-me sobre a flor de lis, e eu de imediato, quase sem pensar, se é que pensei, respondi: “Se quiser pode tirar!” Só de lembrar me dá vontade de rir! Entretanto, tranquilamente, ele foi me explicando o motivo da pergunta e do interesse. Eu esclareci mais ou menos, e no decorrer da conversa chegamos à referência presente nas Fontes Franciscanas: “São Francisco e seus companheiros recebem a investidura no Rei dos reis, Jesus Cristo crucificado, simbolizado na flor de lis, que é também uma espada; espada que une as demais, isto é, os empenhos de São Francisco e seus companheiros, a formar o início de uma caminhada que veio até nós como o movimento e a espiritualidade franciscana.” A flor de lis está no brasão porque assim o Divino Artista quis. 12

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Esboço do brasão, feito pela Irmã Rúbia.

O Tau e a cruz, no caso um ou outro, tentava expressar o seguimento dos passos de Francisco, passos que nos levam a Jesus... Meu tempo já se esgotava, a ideia continuou indefinida. Fechei os olhos para pensar nas cores. As estrelas seriam douradas ou prateadas, eu pendia mais para o prata; o fundo seria vermelho ou azul, eu pendia para o vermelho. Voltei à internet para mais uma vez buscar explicações. Decidi escolher prata, e encontrei o vermelho carmesim: um vermelho forte, brilhante, vivo e profundo. “As palavras do Senhor são palavras sinceras, prata pura saindo da terra, sete vezes refinada.” (Sl 12, 7). Prata relaciona-se com a redenção e com a expiação. O vermelho carmesim é a cor do sacrifício, do sofrimento; é uma cor cheia de riquezas espirituais, remete ao manto posto em Nosso Senhor antes de Sua crucifixão por nossa redenção, ao Seu Sangue Preciosíssimo derramado na Cruz, oferecido em sacrifício mais uma vez a cada Santa Missa, só por amor, livremente. Escolher a cor da borda foi a decisão que mais me custou, causando grande divergência interior: dourado ou marrom? Sugeri as duas possibilidades e deixei esta escolha aos cuidados das irmãs. Essa, como outras inspirações, permaneceram incertas. Fiz poucos rascunhos, todos os que fiz não eram muito diferentes entre si. Mesmo se quisesse, não tive nem tempo, nem material suficientes para aperfeiçoar qualquer “esboço final”. Minha intenção diante dessa situação era ao menos deixar registrada uma ideia básica, uma essência a ser aprimorada. Reconheço não possuir capacidades técnicas, apenas a aptidão de um dom natural pouco aperfeiçoado. Depositei minha confiança na intuição artística. No final das contas percebo que deu muito certo, bem mais do que eu poderia imaginar.


ARTIGO ESPECIAL

As irmãs entraram em contato conosco para que fizéssemos alguns pequenos ajustes no Brasão. A princípio fizemos como o solicitado, mas depois pedimos às irmãs a oportunidade de desenvolvermos a nossa versão.

Primeiros esboços da reformulação do brasão. Arte da Anima Comunicação em parceria com Eberty Cruz.

Confirmo o que escrevi há algum tempo atrás no texto da notícia do site da Fraternidade Toca de Assis, quando apresentamos o brasão. Foi uma incumbência enorme, difícil de expressar em palavras, assumir esta missão, para mim muito significativa. “Como expressar um carisma? Como “desenhar” uma identidade, mais do que isso, uma espiritualidade, um chamado a ser, uma vocação? Eis o desafio que me foi proposto em 2013. Fiquei surpresa diante do pedido e audaciosamente dei meu ‘sim’ mais uma vez”. Tudo se concluiu, contudo, dentro de mim ecoam estas palavras, esta reflexão e decisão. Renovo meu agradecimento a cada Filha da Pobreza do Santíssimo Sacramento, que os laços da verdadeira fraternidade nos sustentem neste carisma, neste ideal comum que se faz identidade, consagração, e nos chama à unidade em Cristo . Deixemo-nos conduzir! Aproveito para expressar aqui minha gratidão e louvor ao Senhor que me escolheu bem antes de qualquer acerto ou erro que cometa, me quis e me amou com um amor que nunca findará! O Senhor me viu, Seu olhar me alcançou. Por algum motivo Ele me percebeu e fez questão de mim, fazendo-me instrumento Seu. Darei meu “sim” sempre que o Senhor me pedir, por mais desafiador, conflituoso ou confuso pareça seu pedido. Pois aí, na Sua Vontade, estará a minha felicidade, o meu bem. Por que duvidar?

Foi então, que em parceria com outro amigo, Eberty Cruz, demos início a um novo projeto, uma releitura na versão do Brasão projetado pela Irmã Rúbia. Um projeto muito especial, além dos conhecimentos semióticos aplicamos as regras de heráldica, o que foi algo muito novo e por mais que admiremos a arte medieval tivemos que submeter-nos ao aprofundamento neste estudo. Queremos agradecer as Filhas da Pobreza por confiar em nosso trabalho, em especial a algo tão íntimo como o vosso Brasão Institucional. Desejamos sinceros votos de prosperidade ao Instituto, que cada dia cresça mais para honra e Glória do Senhor.

Em Jesus e Maria,

Ir. Rúbia

Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

13


TOCA EM AÇÃO

No crepitar da chama “[...] já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito.” (Mateus 25,21 )

Convivência jovens de Assis.

A

tualmente, a Missão Brasília segue como lema a passagem do Evangelho de São Mateus: “[...] já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito”. Passamos por momentos muito delicados, onde a Missão encontrava- se com sua chama enfraquecida. Com o passar do tempo, o Senhor concedeu-nos situações as quais percebemos Sua misericórdia e Seu enorme amor para com o Carisma. Carisma que carregamos em nosso peito, e a vontade de levar até o fim essa Missão de ser Toca de Assis, fez com que fôssemos fiéis no pouco, e hoje, Deus nos concede muito.

14

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Hoje, a Missão Brasília é composta por menos de dez leigos, temos o apoio dos Religiosos e Religiosas, que sempre nos mostram a verdadeira entrega e amor ao carisma, dos benfeitores e também dos Jovens de Assis. Estamos reinflamando a chama da Missão com Cenáculos, Adorações ao Santíssimo Sacramento, Pastorais de Rua, Convivências e eventos junto à Arquidiocese de Brasília. Todas essas atividades nos prova a cada dia o tamanho da missão que ainda temos a cumprir aqui, o tanto que temos a beber deste Carisma, e Jesus mostrando-Se tanto na Hóstia Consagrada quanto no pobre, sempre nos ressalta a nossa vocação.


Em cada pastoral de rua feita aqui em Brasília, o nosso Senhor se faz presente de diversas formas e nos grita a cada instante que devemos ser inteiramente Dele. Em uma das nossas primeiras pastorais com os Jovens de Assis, algo simples, porém muito belo aconteceu ao final. Um irmão de rua nos abordou de forma bem extrovertida, pedindo comida, mas já havia acabado o lanche que tínhamos levado, e então ele brincou novamente, “Não tem nem um pastel? Um caldo de cana?” Com isso todos nós fomos conversando e nos encantando com a alegria e o amor à vida que aquele irmão tinha. Em meio a conversa, ele pediu um terço de presente e demonstrou enorme interesse em aprender a rezá-lo, e uma jovem deu um terço e explicou como rezar, e víamos muito a felicidade daquele irmão ao receber o presente e em estar conosco. No meio da conversa, me ausentei despercebido para comprar um pastel para ele. Voltei com um pastel de carne e um copo de caldo de cana e entreguei para ele. Na hora ele ficou bastante agradecido e emocionado, e para não perder o costume ele brincou: “É de queijo? Amo pastel de queijo... Ah é de carne, mas gosto do mesmo jeito.” Caímos na gargalhada e nos despedimos dele.

1

2

Em outra pastoral de rua, um irmão de rua foi a voz de Deus para o leigo Maurício, onde em meio a conversa o irmão de rua disse : “Ganha em Deus aquele que escolhe perder em Deus.” Isso foi muito forte para o Maurício que partilhou depois esta frase com os leigos e com os Jovens de Assis e que com certeza foi muito edificante em nossas vidas. Em uma das nossas últimas pastorais, conversei com um irmão de rua que estava em Brasília fugido do Rio de Janeiro, pois ele havia cometido um crime lá, e na conversa ele me contou toda a sua história de vida, conversamos bastante sobre toda a situação, sobre a presença de Deus na vida dele. No final da conversa, ele demonstrou profundo arrependimento pelo que havia feito e me pediu um abraço como forma de agradecimento por aquela conversa, e naquele abraço pude sentir fortemente o nosso Senhor me abraçar.

3

Por essas e tantas outras experiências aqui na Missão, é que temos a certeza de que mesmo que a chama ainda possa estar branda, ela é capaz de aquecer os nossos corações e mantê-los ardentes com o desejo de sermos Toca de Assis.

LEGENDA DA FOTO 1- Leigos e Jovens de Assis na Pastoral de Rua no Hospital Regional de Taguatinga. 2- Leigos e Jovens de Assis na Pastoral de Rua do Plano Piloto. 3- Irmão Francisco da Cruz e Vocacionado Daniel na Pastorla de Rua na Rodoviária do Plano Piloto. Fotografia por Dênis Tavares.

André Nogueira

Leigo da Missão Brasília-DF

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

15


NATAL DOS POBRES DE OLHO NA RUA

Dialogando com a rua "O trabalho mais sério e mais profundo se faz da periferia até o centro. Se o trabalho não vem das periferias ao centro, não tem efeito.” (Papa Francisco em discurso aos prefeitos reunidos em Roma)

Q

uando pensamos em diálogo, pensamos em um dos movimentos mais naturais da vida, que é o de ir ao encontro do outro e nos relacionar com ele. Nessa relação podemos nos deparar com o quanto o outro é diferente de nós, e embora as diferenças por vezes nos cause algum desconforto, o diálogo é a chave que abre as portas para aquilo que temos de mais humano: o amor. Ao nos abrir a essa diferença é como que se abríssemos a porta para outro universo diferente do nosso, apresenta suas particularidades, com suas riquezas e belezas próprias. Ao buscarmos esse contato com a rua, adentramos em um mundo que certamente se difere do nosso, principalmente quando olhado na perspectiva sociocultural, o que pode ser constatado através de uma gama de expressões, mecanismos e de comportamento alheios ao nosso, como por exemplo: a linguagem, alimentação e o próprio conceito de organização de vida. Conhecer essa realidade torna-se o aspecto principal para que essa relação aconteça, estabelecendo assim o respeito e quebrando as barreiras dos préjulgamentos de realidades muitas vezes opostas a nossa. A rua quase sempre é vista como um universo obscuro e marginal à vista daqueles que se restringem em contemplá-la pelo retrovisor de seu carro ou mesmo pela varanda de seu apartamento, o desconhecido nos traz insegurança que beira o medo e a repulsa, muros sem tijolos vão sendo construídos a nossa volta para dividir

16

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Pastoral de Rua Rio de Janeiro-RJ. Fotografia por Anima Comunicação.

realidades quase vizinhas em nossas cidades, a distancia faz gerar julgamentos de vidas que na maioria das vezes são ignoradas no seu universo pessoal e social, sendo mais fácil concordar com a mídia discriminatória e higienista a buscar conhecer quem são estes que vivem nas calçadas de nossas cidades. Por esse motivo se faz necessário entrar neste mundo para de fato podermos conhecer os mecanismos de comunicação que existem entre estas pessoas, e assim, construir um diálogo que colabore na humanização das mesmas. Com base no respeito recíproco se enriquecem ambos os lados, quebrando muros de universos que, possam se descobrir mais próximos. A linguagem da rua é marcada por um vocabulário forjado pela necessidade de estar sempre improvisando a vida e tentando assegurar a sobrevivência, que são expressas com certa ligeireza, característica muito presente em realidades de grandes vicissitudes.


Quando se houve falar em expressões como, “manguenho” ou “vou ali charcar”, refere-se ao modo como se esmola na rua, outra expressão muito popular na rua é “mocó ou maloca” usada para se identificar o tipo de moradia na rua. Conhecer a rua e sua linguagem própria é o que ajuda-nos a construir esse vínculo que é tão essencial para ajudar quem está em situação de rua, proximidade e conhecimento é a porta para estabelecermos o tão necessário diálogo. Ao contrário do que se pode pensar, o uso de tais expressões não é a promoção de uma realidade excludente, mas creio ser o elo da construção da dignidade, que primeiramente busca valorizar o que de rico as pessoas de maior vulnerabilidade trazem de seu universo seja ele qual for. Como pensar na construção de uma realidade diferente a partir de estereótipos que são os promotores da exclusão? A mudança, caso apareça, será a partir de mudanças interiores que serão exteriorizadas e não ao contrário. Essa realidade pode ser percebida também em outras culturas, como é triste ver um índio que aprendeu tão bem o português, mas não sabe falar mais a língua de sua tribo porque se distanciou de suas raízes. O desafio é poder ver esse diferente não como uma agressão a mim, mas como a expressão cultural existente nesse meio, e que traz consigo todo um significado de experiências vividas nesse “universo rua”. Não tenhamos medo de abrir mão de nossos vocabulários as vezes tão elitistas para poder sentar no chão de uma calçada ao lado de um grupo de moradores de rua e aprender com eles a cultura da sobrevivência, você não vai deixar de ser um cidadão de respeito na sua cidade por isso, mas passará a ter uma cidadania que não se restringe ao seu mundo.

Conheça alguns vocábulos próprios da rua: • MANGUENHO: esmolar, pedir dinheiro ou outras coisas. • BOCA DE RANGO: local onde se consegue comida. • GALO: a mochila de seus pertences. • RATO DE MOCÓ: pessoa que furta outra na rua. • BARRIGUDINHA OU COROTI: garrafa pequena de pinga. • LENÇOL OU MANTA: cobertor. • SECA POÇO: cobertor de qualidade inferior.

Ir. Romero

Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento Pastoral de Rua Rio de Janeiro-RJ. Fotografia por Anima Comunicação.

JANEIRO 2016

|

TOCA DE ASSIS

17


O MUNDO TEM SAUDADES DE FRANCISCO

Francisco, na contramao do mundo de sempre "Aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus" (Mt 18:4)

P

róximo ao Papa Inocêncio III, Francisco de Assis, esfarrapado, sujo e de singular humildade suplica: “Santo Padre, venho a seus pés para pedir-lhe o privilégio de viver ao pé da letra o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” . Pode parecer um tanto óbvio alguém desejar viver o que ensinara Jesus, mas até então não havia uma ordem religiosa dentro do seio da Santa Igreja de Roma que vivesse tão ao pé da letra o que Francisco – por intervenção divina - propunha ao sucessor de Pedro. Causava espanto alguém declarar com tanta sobriedade o desejo do total desprendimento das coisas do mundo, sendo por vezes chacota daqueles que o observavam. No entanto, Deus parecia ter escolhido o Pobre de Assis, o menor de todos, como o pilar que sustentaria “as paredes da Igreja que viria ao chão” no pontificado que ficou marcado pela importância no combate a heresia, cruzadas e resgate do poder papal.

o Bispo respondeu “Olhe aqui e leia!” – apresentando-lhe uma folha de papel. Sem conseguir entender nada do que estava escrito e tentado decifrar de todas as formas possíveis, o Bispo resolve ajudá-lo: “vire o papel ao contrário”. Dom Bosco, tentando entender o que via, foi interrompido com a explicação “Sabe por que é necessário ler ao contrário? Porque os juízos do Senhor são completamente distintos dos do mundo. O que os homens julgam sabedoria é tolice aos olhos de Deus”. Olhando apenas o evangelho de Mateus encontramos algumas passagens que apresentam o mesmo padrão antagônico com as coisas mundanas “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 20:16); “aquele que quiser salvar a sua vida, perderá, e quem perder a sua vida por amor a mim, ganhará” (Mt 16:25); “aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus” (Mt 18:4).

Essa preferência pelas coisas contrárias ao mundo é própria do evangelho e na história de todos os santos. São João Bosco, em um de seus sonhos , visitou o purgatório e lá encontrou um Bispo que havia falecido há dois anos. Confuso por ver alguém que ele conhecia naquele lugar, Dom Bosco apressou-se logo a fazer todas as perguntas possíveis sobre a morte “Quanto tempo ainda devereis estar no Purgatório?”,

O católico que entende esta mensagem clara de Deus se vê diante de uma ruptura inevitável: renuncio ao mundo por amor a Deus ou renuncio a Ele e opto pelo mundo? São direções opostas e não há outra forma. Não há negociação aqui como fazemos em uma padaria ou em uma feira na hora de comprar as frutas e legumes para nossa casa, precisamos aceitar ou recusar, pegar ou largar. Somos livres para escolher e, descobrimos ao renunciar, que a verdadeira liberdade sempre esteve na obediência, a riqueza estava na pobreza, a alegria nas coisas pequenas e os maiores ganhos nas perdas. Este privilégio não se restringe somente aos Filhos e Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento que levam por carisma o fardo leve de Francisco, mas nós, leigos, também provamos deste sabor quando atendemos ao chamado de Deus pelo desprendimento em nossas vidas. Viver no mundo sem ser do mundo e seguirmos como Santa Teresinha nos ensinou: pela “pequena via”. Caminho da infância espiritual que consiste em reconhecer nossa pequenez e amar a Deus com toda confiança, sendo fruto desta ternura, a perfeição dos nossos atos no dia a dia.

Pregação de São Francisco aos animais e aos homens, 1452. Convento de São Fortunato, Montefalco por Benozzo Gozzoli.

Referências 1 O Irmão de Assis de Inácio de Larrañaga (2ª edição, página 186) 2 Sonhos de São João Bosco - Céu, Inferno e Purgatório (8ª edição, página 74)

18

TOCA DE ASSIS

|

JANEIRO 2016

Bruno Mendes

Leigo na Missão Rio de Janeiro


TOCA PRODUTOS Adquirindo nossos produtos você colabora em nossa missão com os pobres, ajuda a manter nossas casas fraternas e nossas missões que mais necessitam. AJUDE-NOS A EVANGELIZAR!

ACESSE www.tocaprodutos.com.br


Selo FSC

“É maior alegria dar que receber.” Atos 20,35


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.