Narrativas criminais diagramado

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Organização Luiza Lusvarghi

Autores Helen E. N. Suzuki Luiza Lusvarghi Rosana Mauro Ruth Barros Sílvia Góis Dantas Tomaz Penner Wellington Luiz Salgado

Narrativas Criminais na Ficção Seriada da América Latina

1ª edição São Paulo ECA – USP

2016 1


Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo N234 Narrativas criminais na ficção seriada da América Latina | organização Luiza Lusvarghi; autores Helen Suzuki ... [et al.]. – São Paulo: ECA/USP, 2016. 122 p. ISBN: 978-85-7205-145-3 Edição: 1 Ano da Edição: 2016 Tipo de Suporte: E-book | PDF Local de Edição: São Paulo Editora: ECA – USP Organizadora: Luiza Lusvarghi Autores: Helen Suzuki et al. 2


Ficha Técnica Organizadora: Luiza Lusvarghi Preparação, Revisão e Edição de Texto: Editora Com-Arte Jr. Capa: Anna Serykiaku Projeto Gráfico e Diagramação: Tomaz Penner 3


SUMÁRIO Apresentação..........................................................................................................6 Hibridações interculturais e novos formatos nas narrativas criminais de TV da América Latina Luiza Lusvarghi............................................................................................................8

O Caçador: análise do primeiro episódio Helen E. N. Suzuki.....................................................................................................25 A imagem da mulher em Rosario Tijeras: a construção discursiva feminina na telessérie latino-americana Rosana Mauro.............................................................................................................41

Mulheres Assassinas: homicídio no feminino Ruth Barros................................................................................................................57 Entre a realidade e a ficção: conflitos e didatismo na série Conselho Tutelar Sílvia Góis Dantas......................................................................///.........................68 Narrativas criminais e transmidiação: o caso Dupla Identidade Tomaz Penner.....................................................................................///................ 87 Televisão e educação: um diálogo das séries criminais no Ensino Médio Wellington Luiz Salgado...................................................................///./.............106 Sobre os Autores...........................................................................;..................120

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Dos sete artigos reunidos neste livro, seis foram desenvolvidos no âmbito de uma disciplina de pós-graduação ministrada como parte de um projeto de pesquisa de pósdoutorado sobre a ficção seriada criminal na América Latina no período de 2000 a 2015. O sétimo artigo foi resultante do relatório final dessa pesquisa, concluída em abril de 2016. Os objetivos da disciplina eram analisar a relação da ficção de gênero criminal regional com a ficção televisiva contemporânea, discutindo o modelo narrativo dessas produções sob uma perspectiva ancorada na concepção de gênero como categoria cultural e, portanto, decorrente de mediações sociais. Seria impossível analisar as relações entre a produção desse gênero de séries sem discutir a tradição do gênero criminal no modelo hollywoodiano clássico, no noir e nos seus desdobramentos contemporâneos – o néo-noir, o neopolicial e o drama negro. A discussão de gêneros ficcionais televisivos, que ocupa neste momento um espaço privilegiado dentro da produção estadunidense, bem como nas plataformas de streaming, é uma das possíveis chaves para discutir as tendências da ficção seriada na pós-modernidade em função de suas formas de produção e de circulação. A partir de um panorama histórico das séries e filmes do gênero criminal, foi proposta uma reflexão sobre essa ficção no espaço interdisciplinar da comunicação, com a finalidade de situá-lo no contexto televisivo latino-americano. O pré-requisito para a elaboração dos artigos que constam nesta edição era relacionar o tema do curso e sua bibliografia referencial com seus objetos de pesquisa, explorando a metodologia proposta para essa finalidade ao longo das aulas e de seminários realizados em sala. O artigo Hibridações interculturais e novos formatos nas narrativas criminais de TV da América Latina, de Luiza Lusvarghi, traz o resumo da pesquisa que originou o curso e esta publicação. Em O Caçador: Análise do Primeiro Episódio, Helen E. N. Suzuki se propõe a analisar a importância do primeiro episódio para o desdobramento da trama seriada. Em A Imagem da Mulher em Rosario Tijeras: a Construção Discursiva Feminina na Telessérie Latino-americana, Rosana Mauro discute a representação do feminino no contexto regional hispano-americano a partir de uma série rotulada como “narco”. Já em Mujeres Asesinas: Homicídio no Feminino, Ruth Barros explora o formato em sua estética especificamente hispano-americana, mas também em sua relação com o modelo hollywoodiano do gênero. O artigo Entre a Realidade e a Ficção: Conflitos e Didatismo na série Conselho Tutelar, de Sílvia Góis Dantas, discute a estrutura dramática da ficção seriada da Rede Record em decorrência de sua relação com o conteúdo social, voltado para uma discussão sobre o papel dos conselheiros tutelares dentro da sociedade brasileira. No artigo Televisão e Educação: um Diálogo das Séries Criminais no Ensino Médio, Wellington Luiz Salgado aborda o impacto das séries criminais nacionais e estrangeiras nos alunos do ensino secundário e propõe um projeto de educomunicação em que elas possam ser vistas como ferramentas de ensino. As estratégias de interatividade das séries televisivas nacionais são avaliadas pelo artigo Narrativas Criminais e Transmidiação: o Caso Dupla Identidade por Tomaz Penner, a partir da narrativa criminal da série criada por Glória Perez para a Rede Globo.

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Hibridações interculturais e novos formatos nas narrativas criminais de TV da América Latina Luiza Lusvarghi

No es fácil estar con Dios y con el Diablo, ¿sabés?

Angélica Bolena (Verónica Ilinás) em cativeiro falando a seu sequestrador Alejandro Puccio (Chino Darín), oitavo episódio de Historia de um Clan (Argentina, 2015).

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Introdução: a cena do crime Embora o formato telenovela ainda seja o predominante na produção de ficção seriada da América Latina, entre 2012 e 2015, o número de séries cresceu em cerca de 60%, tanto no Brasil como nos vizinhos Argentina e Chile. A produção ficcional é o nosso maior trunfo no quesito exportação em TV. Os formatos de temporadas e temática adotados, mesmo quando semelhantes ao modelo hollywoodiano, o mais influente, mesclam técnicas narrativas de séries e de telenovela, que é a narrativa mais popular. A telenovela original, oriunda do rádio, e no caso do Brasil, da radionovela cubana1, sempre deu ênfase a grandes questões morais e românticas. No entanto, os temas abordados já a partir de 2000, sobretudo na ficção televisiva brasileira, passaram a enfatizar a cena contemporânea, acompanhando as mudanças políticas e sociais, com grande tendência ao realismo. O Anuário Obitel (produzido pelo Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva) de 2007 registra o crescimento da temática relacionada à violência e a crimes nas metrópoles (VILCHES, 2007, p. 96). O enfoque em narcotráfico, delitos – temas pouco usuais na TV em passado recente – e na crise moral das instituições, naturalmente, atinge a corporação policial. Essa tendência também está relacionada a demandas do mercado internacional, que comercializa os formatos em feiras como a Napte (The National Association of Television Program Executives), nos Estados Unidos, mas também atende a aspirações democráticas de cidadania plena, ainda que matizadas por soluções violentas como forma de restaurar a ordem. A característica realista se acentua no caso das narrativas criminais, embora atinja a produção como um todo. Na verdade, a tendência à mudança de formatos ficcionais já foi saudada inclusive por publicações especializadas, como a Variety (HOPEWELL, 2015), que fez matéria especial sobre os novos formatos da televisão latino-americana, enfatizando as séries de curta duração e a diversidade de temas. Ao longo de 2015, os títulos lançados e anunciados por produtoras como TVN, RCN, Telemundo, Sony, Televisa e Netflix estiveram bastante ligados à temática do narcotráfico, que deve seguir tendo destaque. Parte dessa tendência pode ser explicada pelo contexto em que ocorre a retomada e expansão da produção audiovisual na América Latina, ainda em meados 1

A cubana Gloria Magadan, que trabalhou no departamento de publicidade da Colgate-Palmolive, principal patrocinadora de telenovelas, foi a responsável pela produção de telenovelas na extinta Rede

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da década de 1990. Na virada do milênio, em função do grande sucesso alcançado por narrativas criminais como Cidade de Deus (2002) e Nueve Reinas (2000) no mercado internacional, e da retomada da produção audiovisual até mesmo em países com pouca tradição, como Chile, Paraguai, Colômbia, Costa Rica, começaram a surgir séries de televisão que buscavam distanciar-se do bem-sucedido formato telenovela. Os produtos de ficção são a maior fonte de exportação televisiva da região. Se a década de 1970 viu crescer a produção de conteúdos ficcionais nacionais, a de 1990 assinalou a queda do índice de importação desses conteúdos, com participação de empresas transnacionais e a formação de um mercado geocultural regional (COSTA, 2013, p. 32). Apesar das diferenças entre os países hispano-americanos, entende-se que eles fazem parte de uma região que apresenta afinidades nos aspectos linguísticoculturais. A partir de estudos como os de Joseph Straubhaar e John Sinclair (apud COSTA, 2013, p.60) seria válido afirmar que muitas negociações se dão levando em c a nacionalidade do produto, visto que os telespectadores preferem programas que não apresentem dificuldades de interpretação impostas por outra cultura ou idioma (COSTA, 2013, p. 18). A expansão da web e as segundas telas possibilitaram a países de economia menos desenvolvida expandir seus domínios. No cinema, as coproduções são recorrentes, mas na televisão elas começam a surgir a partir de alguns acordos, e das majors – MTV, AXN, Fox e HBO. A lei das cotas no Brasil e alguns editais específicos em países como Argentina, Chile e México têm estimulado essa produção nas emissoras estrangeiras privadas, mas também nas públicas. No Brasil, em 2014, a produção de séries empatou com a de telenovelas, e, na Argentina, México e Estados Unidos, cresceu 30% nos três últimos anos (segundo OBITEL 2015)2. Na Colômbia, as séries ultrapassaram as tradicionais telenovelas, mesmo porque o formato local compreende as bionovelas, das quais se originaram as novelas sobre o narcotráfico. As narrativas criminais colombianas, entretanto, superam o êxito do gênero melodramático usual no formato, embora seus traços estejam presentes. A produção que versa sobre o narcotráfico, forte na Colômbia e nos Estados Unidos, é classificada como narcossérie pela crítica, que considera em alguns casos a 2

Os dados do o Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL), não incluem as emissoras públicas regionais. Esta pesquisa sobre as séries criminais incluiu esses dados pela importância de algumas emissoras, caso da TV Cultura, com produções retransmitidas pelas emissoras educativas e pelas demais emissoras públicas da América Latina. Até 2014, o OBITEL não incluía os dados referentes às TVs pagas, o que, nesta pesquisa, foi incluído desde 2000. Dessa forma, o dado mencionado é uma estimativa aproximada.

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classificação como um subgênero da ficção policial e de suspense, caso de Rosario Tijeras (RCN, 2010), Pablo Escobar, o Senhor do Tráfico (RCN, 2012), e Narcos (Netflix, 2015). Nesta pesquisa evitou-se a adoção dessa expressão como categoria, pois, do ponto de vista da estrutura narrativa e estética, Rosario Tijeras e Narcos são distintas. Os dados deste artigo são parte integrante do relatório final da pesquisa de pós-doutorado Transmidiação, transnacionalismo e interculturalismo: a lei, o crime e a nova ordem na ficção seriada da América Latina, que realizou um levantamento compreendendo o período de 2000 a 2015. Métodos de investigação A primeira etapa do estudo foi um levantamento das séries criminais que adotavam o formato estadunidense, de temporadas temáticas com arco definido, mesclando histórias fechadas com episódios abertos, muito comuns neste tipo produção, que normalmente gira em torno de uma equipe de investigação (policiais, advogados, cientistas, psicólogos, jornalistas) que resolve casos. No início considerava-se serem elas a grande inovação do gênero com enfoque local. Assim como algumas séries europeias, as narrativas criminais deste modelo enfatizavam o papel da corporação policial, tradicionalmente vista na região como um braço de regimes militares, violentas e corruptas. Mas numa segunda etapa, foi feita a constatação de que o modelo híbrido que mescla o formato da telenovela a dramas criminais e de ação se tornou extremamente popular. A inclusão de telefilmes expandiu a discussão, pois muitos cineastas participam de editais de séries, minisséries e telefilmes, e se apropriam desses conteúdos, para depois lançá-los no cinema, ou vice-versa. Os filmes do filão narco, sobretudo os mexicanos, nem sempre puderam ser incorporados, uma vez que embora constem de algumas relações como telefilmes, são lançados em serviços de streaming, pay-per-view e vídeo home, o que torna difícil a catalogação. A maioria está disponível na web, mas não é seguro afirmar a data de estreia, e se teve exibição regular em alguma emissora ou mesmo plataforma. Por outro lado, as coproduções são uma constante, o que muitas vezes impossibilita a atribuição de nacionalidade, ainda mais no caso das hispano-americanas. Há ainda o caso de estreias simultâneas, caso de redes associadas como Telemundo e Caracol. O conceito de mapeamento da América Latina privilegiou a questão cultural, e não necessariamente a organização política. Desta forma as produções do mercado 11


hispânico dos Estados Unidos fazem parte do corpo do trabalho. Já o Canadá francófono, por exemplo, não foi considerado pelas barreiras linguísticas, mas também culturais, que o vinculam mais à França do que à América Latina. O Canadá possui séries muito semelhantes às telenovelas brasileiras, mas também narrativas criminais que remetem às produções francesas e inglesas, com um contexto histórico bastante ancorado no final do século XIX, quando começam a surgir a corporação e as leis. O Canadá anglófono, com problemas específicos de identidade cultural, conhecido como a Hollywood North, produz remakes de algumas dessas séries. As narrativas criminais se revelaram ao longo do processo como indiciais de um movimento em busca de nova inserção no mercado externo, apresentando temas e formatos que pudessem atingir diferentes culturas e países, sem perder o traço local. No caso, em especial, da Argentina, um polo tradicional de produção cinematográfica e televisiva, a tradição das narrativas criminais vem do período de ouro do cinema daquele país, ainda nos anos 30, influenciado diretamente pelo noir, que naquele momento, ainda não havia sido classificado como tal pela crítica francesa, e se apresentava como um cinema autoral dentro de Hollywood, com estrelas como Humphrey Bogart. No México, o primeiro filme mudo mexicano foi uma série criminal, El automóvil Gris (1919), sobre um grupo que assaltava joalherias, sendo as narrativas de suspense e terror bastante populares também naquele país. Na televisão aberta, entretanto, prevalecem as séries e telenovelas que abordam relações de gênero, o melodrama. As obras do circuito narco, na verdade thrillers de ação em linguagem popular, se assemelham bastante às produções cinematográficas da Boca do Lixo no Brasil na década de 70, com uma diferença importante. Como são produções baratas, feitas para serem inseridas imediatamente no mercado de Home video, Pay-per-view, costumam surgir nos portais com a classificação de telefilmes.

Ano Tabela 1: 2012 2013 2014 TOTAL

BRASIL Total de Ficções ficções criminais Ficções e ficções criminais no Brasil. 39 7 (18%) 56 4 (7%) 68 12 (18%) 163 23 (14%)

Tabela 1: Ficções e ficções criminais no Brasil. 12


No Brasil, os filmes policiais sempre foram alimentados pelo fait divers das manchetes policiais, como O Crime da Mala (1908), que teve pelo menos três versões, ocupando brechas na programação já dominada pela produção estrangeira, ainda na era muda. Quase sempre desprezados pela crítica, à exceção da Argentina, em que intelectuais como Jorge Luis Borges e Bioy Casares, fãs do gênero, estimularam o surgimento de uma literatura voltada para o tema, nos filmes policiais, no entanto, sempre conquistaram público. Na televisão brasileira os temas exclusivamente ligados à criminalidade não são predominantes, constituem na atualidade apenas 14% do total, mas são bastante expressivos, e atraem a audiência. Na verdade, a classificação por idade na televisão aberta sempre dificultou a aceitação, o que se modificou a partir do surgimento da televisão a cabo em 1991. No cinema, a maior bilheteria da história do cinema brasileiro pertence à Tropa de Elite: O inimigo agora é outro (2010) thriller policial e de ação3. A ênfase nas séries criminais é dada à corporação, e à luta contra interferências políticas e casos de corrupção. A maioria das séries segue o formato estadunidense com temporadas entre oito e doze episódios, caso da brasileira Dupla Identidade (2015). Em Cuba, o que vemos é o surgimento de um modelo híbrido, com uma produção seriada constituída por unitários, como as cubanas Tras la Huella (20052015), UNO Unidad Nacional Operativa (2014). Unitários são programas de ficção que podem ter uma única história, desenvolvida num único episódio, também conhecidos no Brasil como especiais, mas também aqueles que são apresentados uma vez por semana, e não são divididos por uma temporada temática, nem possuem uma estrutura de minissérie. No caso de Tras la Huella, o policial mais popular de Cuba, o caso é exatamente o último. A série dura há onze anos, narrando um caso diferente a cada episódio sobre atuação da Polícia cubana, baseado em fatos reais. O boom da literatura regional de obras neopoliciais, que inclui autores como Rubem Fonseca, Leonardo Padura, o PIT, na década de 1980, iria afetar a cinematografia do final dos anos 1990, e, consequentemente a da ficção criminal na TV. Foi o caso da minissérie chilena Heredia & Asociados (2005), baseada nos casos do Detetive Heredia, personagem da obra de Ramón Diaz Eterovic, e da série 3

Foram 11.023.475 espectadores que assistiram ao filme nos cinemas, contra o até então campeão Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), que foi visto por 10.735.525, de acordo como Informe Anual Ancine de 2010. A bilheteria foi ultrapassada pelo filme Os Dez Mandamentos (2015), com aproximadamente 11,205 milhões, porém, foi exibido com muitas salas vazias, uma vez que a Igreja Universal, patrocinadora do filme produzido pela Record, estimulou a compra coletiva de ingressos entre seus membros (PESSOA, 2016).

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Mandrake (HBO, 2005), baseada em personagem de Rubem Braga. No âmbito de uma Colômbia estigmatizada pela legislação dos Estados Unidos 4 , surgem as narrativas sobre o crime e o narcotráfico que possuem como protagonistas o marginal, o fora da lei, bastante assemelhadas dramaturgicamente às telenovelas. Em termos percentuais, as séries criminais não constituem a maioria da produção. As séries voltadas para o tema do narcotráfico, no entanto, em termos de horas de exibição, ocupam cada vez mais um espaço de destaque, pois são mais longas – podem ter até cem capítulos por temporada. Seu êxito entre o público hispano-americano certamente levou o canal de streaming Netflix a produzir Narcos (2015-2016) com duas temporadas de doze episódios. A adoção da estética colombiana das bionovelas adaptada para o formato hollywoodiano foi bem-sucedida ao agradar tanto aos iberoamericanos, quanto aos hispano-americanos. Dirigida pelo brasileiro José Padilha, e com Wagner Moura no papel de Pablo Escobar – criticado pelo sotaque, mas reconhecido pela atuação – a série tem elenco integrado por costarriquenhos, argentinos, espanhóis, peruanos, chilenos. O castelhano estandardizado dessas produções evidencia o objetivo maior, o de criar uma série latina global, que não tem como alvo preferencial apenas o seu país de origem. Para avaliar os modelos e formatos, inicialmente foram levados em conta os estudos de Jason Mittell (2004) sobre a origem das séries policiais, os cop shows, nos Estados Unidos, bem como os estudos de James Naremore (2001) e Frank Krutnik (1991) sobre o noir, e os de Steve Neale (2000) sobre a classificação de gêneros no cinema hollywoodiano. Mesmo levando em conta as especificidades culturais, os Estados Unidos contribuíram em muito para popularizar o gênero, e são uma referência de formato para a América Latina, em maior escala do que a produção europeia, por exemplo. Os formatos ficcionais televisivos, por sua vez, embora possuam características próprias, são tributários do cinema. Na medida em que essas narrativas se mesclaram a formatos locais como as bionovelas, autores como Lorenzo Vilches, Vassallo de Lopes e García Canclini foram incorporados, pois embora não se refiram especificamente a estudos de gênero, realizaram abordagens que favoreceram essa classificação. 4

Em 1982, foi aprovada a Defense Autorization Act, que permitiu ao exército norte-americano participar da luta contra as drogas, e em abril de 1986, o governo Reagan incorporou à doutrina de segurança nacional a National Security Decision Directive (NSDD), estabelecendo a aliança entre terrorismo de esquerda e narcotráfico como ameaça letal para a segurança nacional dos EUA. O desenrolar dos fatos acabou por suscitar uma intervenção militar americana que se daria em 2000.

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O maior público das séries que se debruçam sobre o narcotráfico, tema marcadamente regional pela questão social e econômica que representa, se encontra nas comunidades hispano-americanas, notadamente na Colômbia, Venezuela e Estados Unidos. Algumas dessas produções se dão em parceria entre grupos locais e grandes grupos, como no caso do Mundo Fox, que reúne Caracol e Fox, formado em 2012. Como existe a ideia de conquistar mercados externos, a questão das hibridações multiculturais e interculturais (CANCLINI, 2001, p. 15) se coloca na produção criminal de forma quase natural, no enredo, nos personagens, na estrutura narrativa. Séries televisivas como Dupla Identidade não objetivam representar apenas a nação (VASSALLO DE LOPES, 2003), como ocorreu com as primeiras telenovelas, mas o mundo global, e os conflitos decorrentes da urbanização do mundo. O resultado final da pesquisa sobre as séries criminais computou a existência de 313 produtos de ficção televisiva, incluindo minisséries, séries, telenovelas policiais e telefilmes, no período entre 2000 e 2015, em onze países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Estados Unidos, Equador, México, Peru, Venezuela e Uruguai. O período mais intenso de produção se dá entre 2012 e 2015, liderados pela produção da Colômbia, com 37 produtos, seguida pelo Brasil, com 34, Argentina, com 23 ficções, num total de 94 produções (conforme tabela a seguir). 12 10 8 ARG

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BRA

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COL

2 0 2012

2013

2014

2015

Figura 1 – Classificação de países quanto a séries e telefilmes criminais entre o período de 2012 a 2015.

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Os dados foram coletados a partir de tabelas divulgadas pelo OBITEL, de artigos e teses publicados, e divulgados em eventos específicos como Asaeca (Associação Argentina de Estudos de Cinema e Audiovisual), Socine (Associação Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), entrevistas com jornalistas especializados, de jornais e blogs, diretores, roteiristas, portais especializados de emissoras, e de plataformas de dados como Affinity, IMDB, e de instituições de fomento como o INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes da Argentina), no caso a Odeon - e CDA (Contenidos Digitales Abiertos), vinculada ao Ministério de Planejamento Argentino. Desenvolvimento: corpo de delito 1. O crescimento da ficção de gênero na TV Embora o formato telenovela ainda seja o predominante na produção de ficção seriada de 2012 a 2014, isso não significa necessariamente que elas tenham o mesmo formato e o mesmo gênero ficcional. Na verdade, muitas telenovelas argentinas possuem entre 60 e 100 capítulos, se aproximando mais do formato das séries colombianas, e com abordagens que mesclam técnicas narrativas de séries e de telenovela. No ano de 2014, a produção de séries do Grupo Globo, ainda a maior referência brasileira de produção ficcional, praticamente empatou com a de telenovelas. Por outro lado, as telenovelas produzidas são cada vez mais curtas, caso de O Rebu (2014), que teve apenas 36 capítulos, com a possibilidade de reedição como minissérie para venda no Exterior. Essa tendência, aliada a novas fórmulas narrativas, cada vez mais ancoradas em enquadramentos cinematográficos, tem a ver com demandas do mercado internacional. Em 2015 a Globo lançou o projeto “Luz, Câmera, 50 anos”, para festejar seus 50 anos, e exibiu 12 telefilmes, cinco deles criminais, extraídos de séries, minisséries e seriados da televisão brasileira. Essa estratégia permite a comercialização em feiras internacionais, como a Napte (The National Association of Television Program Executives). A única emissora que investiu em produção específica de telefilmes e minisséries foi a Cultura, mas seus autores vêm adotando a mesma estratégia, como por exemplo Tata Amaral, que transformou a minissérie Trago comigo (2009) em filme homônimo (2013).

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Na verdade, a tendência à mudança de formatos ficcionais, que só se consolidou em 2015, já foi saudada, inclusive, por publicações estrangeiras, como a Variety (Hopewell, 2015), que fez matéria especial sobre os novos formatos da televisão latino-americana, enfatizando as séries de curta duração e a diversidade de temas. As publicações especializadas dos Estados Unidos vêm chamando atenção ainda para os novos títulos lançados em 2015 por produtoras como TVN, RCN, Telemundo, Sony (parceria com a Televisa), e Netflix, ligados à temática conhecida como “narco”, que teve destaque neste ano. 2. O crescimento do formato policial e a narrativa criminal Nos últimos três anos a presença da produção seriada de gênero que não tem como principal característica o melodrama associado à telenovela aumentou em toda a América Latina. A ficção criminal não é a predominante nas telas da televisão aberta, mas se amplia na televisão pública e na paga, bem como nos serviços de streaming, e surge envolta em polêmica. As obras que tematizam o narcotráfico, e trazem sicários como protagonistas, com frequência são acusadas de estetizar a violência (RINCÓN, 2009) e glamurizar o comportamento criminoso. Outras mesclam thriller de ação, suspense e política. No levantamento inicial, foram identificados, quanto à temática, dois grandes modelos: a) Modelo estadunidense clássico, realista, semidocumental, com narrativa centrada na solução dos casos, e não na vida dos personagens, com uma visão que de modo geral enaltece o papel da polícia como corporação que combate o crime e promove a segurança e a consolidação da cidadania; b) Modelo de crítica social, de inspiração noir ou neopolicial, em que o personagem principal deve romper com o bem, para poder combater o mal. O protagonista não é necessariamente policial, ele personifica com frequência o “marginal romântico”, e é muitas vezes um delinquente, injustiçado pelo sistema. Muitos protagonistas são mulheres. Com relação ao formato e à estrutura narrativa, as narrativas criminais e policiais estão presentes em três tipos predominantes de séries:

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a) Formato latino ou neo-telenovela. Estrutura híbrida, com elementos da narrativa policial e detetivesca clássicas, porém aliadas à estrutura de melodrama da telenovela, caso das chamadas narcosséries, mas também de dramas e comédias policiais, com até cem capítulos por temporada, e minisséries5. b) Formato estadunidense ou hollywoodiano. Temporadas com arco dramático definido, de oito a treze episódios, com uma história fechada, por vezes combinando a episódios com casos a serem solucionados a cada episódio. c) Formato telefilme. Os elementos da narrativa cinematográfica estão presentes neste formato que pode incluir hibridações do gênero, mais melodramático e assemelhado à telenovela, ou mais próximo ao thriller de ação e suspense. O formato pode ter capítulos, e pode ainda ser convertido em minissérie, ou série. Pode ser ainda resultante da condensação de uma minissérie, e ser lançada como um projeto integrado. As séries sobre tráfico, por vezes nomeadas como narco, se enquadram claramente na primeira, e, portanto, apesar de não serem muitos títulos, ocupam muitas horas na grade televisiva, mais do que a produção estrangeira que segue o modelo hollywoodiano. A Argentina, que possui uma tradição noir que vem do cinema, e mais precisamente com El Fuera de La Ley (1937), de Gabriel Romero, quando a indústria do cinema daquele país se profissionaliza e vive um período de grande desenvolvimento, possui tanto telenovelas, como “telecomédias policiais”, ou seja, as narrativas policiais televisivas passam por hibridação de gêneros. De forma geral, o formato telenovela, em quase todos os países, vem passando por transformações, e vem sendo cada vez mais influenciado pelo cinema. Em 2014, o Grupo Globo lançou três dramas policiais e de suspense - A Teia, O Caçador e Dupla Identidade. O modelo de produção de ambos é o dos seriados policiais estadunidenses, com temporadas de dez a treze episódios, com protagonistas de arco dramático definido, que são mocinhos/mocinhas em busca da verdade, doa a quem doer. As séries ressaltam o papel da corporação, a luta contra a corrupção e a violência, dentro das próprias organizações e fora delas, as pressões políticas, e o 5

Melanie Mouseler, da The WIT (World Information Tracking), agência especializada em pesquisa de TV, chamou esse formato de Super Série durante palestra no evento International Academy Day, realizado em 2015 no Projac (STYCER, 2015).

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empenho pessoal dos protagonistas policiais em desvendar crimes, punir marginais. Embora com linguagem mais próxima do cinema, O Caçador possui um desenvolvimento típico de melodrama, com o mocinho sendo traído pelo próprio pai, namorando a cunhada, em conflito com o irmão. Já A Teia e Dupla Identidade buscam efetivamente centrar a trama na investigação policial, rompendo totalmente com a cultura de telenovela, sendo que Dupla Identidade, com segunda temporada confirmada, foi a primeira gravada com tecnologia 4K, voltada para o mercado internacional. A Teia, assim como outros produtos do grupo Globo do formato minissérie e série, foi transformada em telefilme para ser comercializada no Exterior. A Record mudou de estratégia, e vem trabalhando em parcerias com grupos internacionais, como a Fox, produzindo para a televisão a cabo, e disponibilizando suas produções no catálogo da Netflix. A série Fora de Controle (2012) foi relançada pela Universal, e o canal FX, da Fox, exibiu em 2014 o telefilme Na Mira do Crime, que precedeu o lançamento da série homônima em 2015. A primeira teve quatro episódios, a segunda teve cinco. A narrativa é absolutamente moldada nos formatos estadunidenses da ficção seriada do gênero. Em Cuba, embora a coprodução e o crowdfunding venham contribuindo para a diversificação da produção cinematográfica, na televisão é o governo cubano quem produz as séries. O policial Tras la Huella, criado em 2005, e ainda em exibição, é transmitido nos domingos à noite, através da emissora Cubavisión. O canal é aberto e de propriedade do governo cubano. Existe uma versão para TV a cabo, exibida na Cubavisión Internacional. Seu formato segue o modelo estadunidense celebrizado por CSI, mostrando a infalibilidade da corporação policial.

Conclusões Como resultado, verificamos que o tema narcotráfico não é o único encontrado nas narrativas criminais latino-americanas, apesar das notícias na mídia levarem a crer o contrário, mas é, sem dúvida, emblemático de problemas reais que espelham os grandes conflitos sociais e políticos da região latino-americana. Com relação às drogas, o tema é recorrente, uma vez que a violência que cerca a região é em parte causada por este fenômeno, o do crescimento do narcotráfico. Nem todas as séries adotam o mesmo formato para abordar o tema, e não necessariamente o traficante é o protagonista dessas produções. A ideia do marginal romântico, bastante presente na 19


literatura latino-americana (BRAHAM, 2009, on-line), do bandido Robin Hood representado pelo bandolerismo mexicano, e pelo cangaço no Brasil, influencia o surgimento de uma produção que tem caráter ambíguo na discussão do bem e do mal, fronteiras borradas. As corporações policiais, muitas vezes envolvidas com o crime, ou com ditaduras militares, reforçam o mito do bandido como vingador dos oprimidos e excluídos. Ao mesmo tempo, os métodos empregados pela lei nem sempre estão contrapostos com aqueles utilizados pelas organizações criminais. A partir dos dados, percebemos que em termos de títulos, a produção no formato hollywoodiano é mais expressiva e bem aceita pela crítica, mas a produção que enfatiza aspectos melodramáticos é mais popular. Em termos de horas de exibição, a produção que mescla ação criminal e melodrama, não necessariamente tendo como tema o comércio de drogas, possui temporadas com mais episódios e ocupa espaços maiores na tela. Nos últimos anos, o Grupo Globo vem transformando algumas de suas séries, inclusive as criminais, nas quais vem investindo com destaque, em telefilmes, para comercialização no Exterior. O contrário também ocorre. No Chile, a TVN exibiu a minissérie No (2014), baseada no filme homônimo (2012), com trechos inéditos. Em termos de linguagem de vanguarda, no entanto, a HBO latina, que atua em sistema de coprodução, e agora a Netflix, continuam oferecendo produtos de maior qualidade. Os estudos sobre audiência e segmentação em ambiente de convergência dos meios que enfatizam a importância de obras que não necessariamente espelham a audiência massiva são essenciais para entender o surgimento de séries que, aparentemente, não dão a mesma audiência que as telenovelas na medida em que dão conta de uma mudança na forma de consumo da ficção audiovisual. O papel da produção audiovisual como articuladora desse novo modelo de negócios e como produtora de sentidos, aliado às redes sociais, telefonia e web é fundamental (BENDASSOLI et al., 2009, p. 12). Nesse processo de comoditização, observa-se que a cultura é tratada na forma de objetos culturais. Esses objetos são definidos pela carga dos sentidos socialmente compartilhados que carregam, derivando seu valor de tal carga. As indústrias criativas transformam esses significados em propriedade intelectual e, portanto, em valor econômico. O impacto se faz sentir no mundo inteiro, e favorece a regionalização da produção e a segmentação, pois com o mundo conectadoas estratégias de narrowcasting se fazem presentes, bem como a individualização do consumo, que 20


cada vez mais passa a ser operado em múltiplas telas. As estratégias de transnacionalização são apropriadas para esse momento em que se verifica uma expansão deste tipo de produção por meio de plataformas de streaming, como Netflix. A televisão “como janela para outros mundos e como comunidade fechada autodeterminada são claramente fenômenos próprios da televisão de nicho (narrowcasting) (CARLÓN, 2013, p. 119)”.

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Referências bibliográficas BENDASSOLLI, Pedro F.et al. Indústrias criativas: definição, limites e possibilidades. Rae, São Paulo, v. 49, n. 1, p. 10-8, jan./mar. 2009. BRAHAM, Persephone. Crimes against the State, crimes against persons: detective fiction in Cuba and Mexico. 2006. Edição Kindle. CARLÓN, Mario. Contrato de fundação, poder e midiatização: notícias do front sobre a invasão do YouTube, ocupação dos bárbaros. Matrizes, São Paulo, ano 7, n. 1, p. 107-26, jan./jun. 2013. COSTA, Ana Paula Silva Ladeira. Fluxos internacionais da comunicação: a circulação de formatos televisivos franqueados na América Latina. 2013. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013. GARCÍA-CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2006. GLOBO. Glória Magadan. G1, [s.d.]. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/gloria-magadan.htm>. Acesso em: 29 maio 2016. HOPEWELL, John. Latin America broadcasters play up drama with high-end event series. Variety, 3 abr. 2015. Disponível em: <http://variety.com/2015/tv/global/latinamerica-broadcasters-play-up-drama-with-high-end-event-series-1201464801/>. Acesso em: 17 abr. 2016. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. KRUTNIK, Frank. In a lonely street: film noir, genre and masculinity. New York: Routledge, 1991. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. In: Revista Comunicação & Educação, São Paulo, ECA-USP, n. 26, p. 17-34, jan./abr. 2003. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/comueduc/artigos/26_1734_01-04_2003.htm>. Acesso em: 15 dez. 2015. MITTELL, Jason. Genre and television. From cop shows to cartoons in American culture. New York; London: Routledge, 2004. NAREMORE, James. More than night. Film Noir in its context. Updated and expanded edition. Berkeley: University of California Press, 2001. NEALE, Steve. Genre and Hollywood. London: BFI, 2000. OBSERVATÓRIO IBERO-AMERICANO DA FIÇÃO TELEVISIVA (Obitel). Anuário Obitel 2012: transnacionalização da ficção televisiva nos países iberoamericanos. Porto Alegre: Editora Sulina, 2012. 22


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O Caçador : análise do primeiro episódio Helen Emy Nochi Suzuki

Como posso ser caçador e presa ao mesmo tempo? Será que sou um caçador que não sabe para onde a mira está apontada? André Câmara (Cauã Reymond), personagem principal de O Caçador (Brasil, 2014).

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Introdução O Brasil foi massivamente influenciado pelos seriados norte-americanos, que exibiam suas produções em horário nobre e condicionavam e instituíam um jeito próprio de entender a lógica das narrativas. Nesse sentido, os Estados Unidos, como presença dominadora no cenário internacional, exportavam, juntamente com a sua produção, também uma forma de aculturação 6 do modo de ver essas ficções televisivas. Até meados dos anos 1970, os seriados norte-americanos dominaram de forma esmagadora a programação de ficção nos canais latino-americanos de televisão. O que, de um lado, significava que a média de programas importados dos Estados Unidos – em sua maioria, comédias e seriados melodramáticos e policiais – ocupava cerca de 40% da programação e, de outro, que esses programas ocupavam os horários mais rentáveis, tanto os noturnos, no meio da semana, como durante o dia todo, nos fins de semana (MARTÍN-BARBERO; REY, 2004, p. 117).

Dessa forma, a presença dos programas norte-americanos na grade de programação da televisão brasileira influencia não somente a maneira como o telespectador entende, vê e codifica a informação, mas também institui uma lógica de produção baseada naquilo que o telespectador se acostumou a reconhecer na telinha. Nesse sentido, “a televisão constitui um âmbito decisivo do reconhecimento sociocultural, do desfazer-se das identidades coletivas, tanto as dos povos como as de grupos” (MARTÍN-BARBERO; REY, 2004, p. 114). Essa presença marcante dentro da realidade brasileira acaba por influenciar ou ditar os parâmetros de produção dos gêneros e formatos da televisão que recorrentemente fazem sucesso entre o público. Foram considerados os estudos de Mattelart e Mattelart para entendermos o gênero.

O gênero é igualmente definido pela maneira pela qual um conjunto de regras se institucionalizam, se codificam, se tornam reconhecíveis e organizam “a competência comunicacional” dos produtores e consumidores, dos emissores e destinatários. Tudo o que faz com que, em um complexo social determinado, os gêneros possam funcionar como elementos articulados sobre o sistema de conhecimento dos habitantes (MATTELART; MATTELART, 1998, p. 191).

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“Fenômeno pelo qual um grupo de indivíduos de uma cultura definida entra em contato com uma cultura diferente e se adapta a ela ou dela retira elementos culturais”. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/acultura%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 10 mai. 2015.

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Nesse artigo, será por gênero o estilo policial e por formato, a serialidade da programação, ou seja, na análise do programa, entenderemos O Caçador (Rede Globo, 2014) como um formato de “série” do gênero “policial”. O artigo analisa a importância do primeiro episódio que estrutura e constrói a série. A série policial O Caçador A série policial produzida pela Rede Globo de televisão entre 11 de abril e 11 de julho de 2014 foi veiculada no horário das 23 horas nas sextas-feiras em única temporada no Brasil. Escrita por Fernando Bonassi, Marçal Aquino e José Alvarenga Júnior e dirigida por José Alvarenga Júnior e Heitor Dhalia, a série contou com elenco principal formado por: Cauã Reymond (André Câmara), Alejandro Claveaux (Alexandre Câmara), Cléo Pires (Kátia Câmara), Aílton Graça (delegado Lopes), Nanda Costa (Marinalva) e Jackson Antunes (Saulo Câmara). A estória narra a trajetória de André, que é acusado injustamente numa trama urdida, a princípio, pelo próprio pai. Depois de passar três anos na prisão, André sai e tenta provar a sua inocência. Com o apoio do delegado Lopes, começa a trabalhar como caçador de pessoas desaparecidas. A série apresenta episódios independentes em que uma trama surge dentro de outra trama e nada é o que parece ser. A estória de André é o elemento que une os episódios a cada semana. A série apresenta temas de um programa policial contemporâneo focado nos crimes que ocorrem no asfalto carioca, em contrapartida aos temas de cinema dos últimos tempos centrados na favela7. O personagem central, André, com apoio do delegado Lopes, torna-se um caçador de recompensas e uma trama pontual se desenvolve a cada episódio. A proposta é apresentar criminosos internacionais foragidos no Rio de Janeiro, como demonstram, por exemplo, os episódios iniciais, que abordam temas como o tráfico de pessoas do Haiti (episódio 2), a máfia italiana (episódio 3) e o nazismo alemão (episódio 4). O episódio de estreia conta a estória maior que perpassa toda a série. Esse episódio estrutura a série, explicando como André se transforma: de policial respeitado da corporação, passando pela penitenciária estadual, até chegar a ser um caçador de recompensas, sua atual situação. A motivação de André é a busca pela sua inocência, ele tenta desvendar a verdade e provar que foi acusado 7

Podemos citar filmes como: Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (José Padilha, 2010), 5x Favela (realizado por jovens da favela, 2010) e Alemão (José Eduardo Belmonte, 2014).

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injustamente. A cada episódio, enquanto soluciona um caso pontual por encomenda, André descobre pistas sobre seu drama particular. É como se houvesse uma trama maior ligada ao drama pessoal do protagonista, que perpassa toda a série, e uma trama menor, que se resolve a cada novo episódio. E cada episódio proporciona uma pequena pista para a trama maior. Logo, no ciclo maior, a resolução acontece no final da série, enquanto, no ciclo menor, acontece no final de cada episódio. Mas ambos, tanto o ciclo maior quanto o ciclo menor, são, em conjunto, partes integrantes da mesma série.

Trama maior – ligada ao drama pessoal do protagonista

Trama menor – cada episódio com a sua trama própria

Ciclo maior – se resolverá ao final da série Ciclo menor – é resolvido ao final de cada episódio

Figura 1 – Esquema de tramas dentro da série: trama menor e trama maior, criado pela pesquisadora a partir da observação da narrativa na série O Caçador (Rede Globo, 2014).

Na vida pessoal, seu irmão, Alexandre, é seu maior antagonista. Eles disputam o amor da mesma mulher, Kátia, que é casada com Alexandre, mas tem uma relação mal resolvida com André. Enquanto Alexandre desfruta de prestígio e respeito dentro da corporação, pois segue carreira de delegado, André é renegado pela família, que não o quer no enterro do seu próprio pai e também não acredita na sua versão dos fatos. Profissionalmente, André sobrevive das recompensas, mas não pode contar com o apoio oficial da polícia, fica claro que seu trabalho é extraoficial. Dessa forma, o primeiro episódio já monta para o telespectador um personagem central atormentado, injustiçado pela sociedade, renegado pela família e que, solitário, conta apenas com sua obstinação para trazer à tona a verdade sobre a sua situação. Dinâmica dos primeiros episódios Para entendermos as “categorias” que determinam certo produto televisivo e sua dinâmica de produção, necessitamos entender o objeto de nossa análise – O 28


Caçador, pertencendo ao gênero policial. Essa especificidade já nos coloca alguns dispositivos que determinam a sua estrutura e forma de narrativa, pois “a escolha do gênero determina e limita diretamente o que é possível dentro de uma estória, como seu design deve prever o conhecimento e as antecipações do público” (MCKEE, 2013, p. 93). E, também em termos de recepção, o gênero determina uma tipologia de marketing. “Do título ao pôster, das propagandas de TV às de jornal, a promoção fixa o tipo de estória na mente do público” (MCKEE, 2013, p. 96). Então, o gênero determina um tipo de produção que o marketing solidifica na mente do público. Logo, o público já se prepara para o que vai assistir. Mas, ao mesmo tempo, esse gênero também pode mudar conforme se alteram as disposições sociais e os entendimentos da recepção. O domínio do gênero mantém o escritor contemporâneo. As convenções de gênero não estão entalhadas em pedra; elas evoluem, crescem, se adaptam, se modificam e se quebram ao passo das mudanças na sociedade. A sociedade muda lentamente, mas muda e quando ela entra em uma nova fase, o gênero se transforma junto. Pois os gêneros são meras janelas para a realidade, várias maneiras para o roteirista olhar a vida (MCKEE, 2013, p. 98).

Como dito antes, entenderemos O Caçador como um formato de “série” do gênero “policial”. E não se trata somente de cumprir a regra do gênero e do formato para o sucesso do programa. O público que assiste ao programa precisa sentir alguns pontos de identificação com o gênero que escolheu, aceitar o formato de serialidade com suas especificidades. E, nesse sentido, escrever uma narrativa de ficção para a televisão propõe alguns desafios. Segundo a pesquisadora Sonia Rodrigues (2014), são necessárias algumas estratégias narrativas como “selecionar e combinar elementos da realidade para que o espectador possa se identificar, de alguma forma, com a trama” (RODRIGUES, 2014, p. 113). Já para o roteirista e diretor de cinema Paulo Morelli, em entrevista para Sonia Rodrigues, “antes de tudo você tem que plantar uma pergunta para o seu público. Basicamente esta é a pergunta: e agora o que vai acontecer? A partir dessa situação, o que acontece?” (RODRIGUES, 2014, p. 219). Então, existe uma forma de suspense ou mistério que precisa perpassar a imaginação do telespectador para que se tenha um estímulo para continuar a assistir à série. Ainda segundo entrevista de Morelli, “quando o roteiro não traz perguntas, não tem problemas, o público não vem junto. Se o roteiro tem uma pergunta, o espectador não desliga, quer a resposta. Você não muda de canal se está com uma pergunta.” 29


(RODRIGUES, 2014, p. 220). Na série O Caçador (Rede Globo, 2014), a grande pergunta é sobre a inocência do protagonista André Câmara e isso interliga todos os episódios da série. Dentro de cada um dos episódios, o personagem André está em busca de alguém, pois ele, afinal, caça por recompensa alguém que outra pessoa procura. Os motivos dessa procura, quem é esse alguém e por que se procura essa pessoa são indagações que se iniciam, se desenvolvem e se solucionam ao final de cada episódio. Pois, diferentemente do cinema, na televisão é preciso mais dinâmica, mais ação para prender o público até o final. Paulo Morelli afirma que é preciso “ganhar o público nos primeiros minutos, o grau de tolerância na TV é muito baixo. O público de cinema pagou o ingresso, foi lá, não vai sair depois de dez minutos” (RODRIGUES, 2014, p. 222). A seguir, partiremos para a análise propriamente dita de algumas cenas e diálogos do primeiro episódio de O Caçador. Análise do primeiro episódio de O Caçador Considerando o objeto dessa análise, O Caçador (Rede Globo, 2014), utilizaremos o primeiro episódio da série como corpus empírico e faremos a decupagem de algumas cenas e diálogos do primeiro episódio da série. A palavra decupagem vem do francês découper e quer dizer “cortar em pedaço”. Na prática, é o momento em que o diretor e o roteirista transformam cada cena em planos. Após a realização das gravações, na edição de montagem, várias cenas são organizadas de maneira a contar uma estória em imagens. Nesse sentido, a escrita do roteiro, a decupagem, a filmagem, a montagem e a mixagem constituem as etapas de um processo de criação de um produto (ARAÚJO, 1995, p. 62). Portanto, analisar um filme é “olhar de novo” e perceber em seu interior as subjetividades. O analista, através das significações, tem condição de refletir sobre suas próprias hipóteses e confirmar ou não as suas primeiras percepções. O primeiro episódio começa com a fala de André (Cauã Reymond), personagem central. É ele quem dá o tom da narrativa ao público telespectador. É por meio desse personagem central que se estabelecem as primeiras impressões do que virá a seguir. ANDRÉ: Em cada pessoa mora uma inocência própria. A minha inocência não me traz felicidade nem me tranquiliza. [...] Como posso ser caçador e presa ao mesmo tempo? Será

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que sou um caçador que não sabe para onde a mira está apontada?

A próxima cena volta dois meses antes. Aparece André saindo da “Penitenciária Estadual” numa paisagem inóspita de deserto, com sol quente, ambiente seco e nenhuma vegetação, só o árido sol do deserto em que aparece a prisão, no meio do nada, como se fosse uma imensa gaiola cercada de arame por todos os lados. Depois acontece uma conversa curiosa no ponto de ônibus entre André e um cego (Milton Gonçalves). O ponto de ônibus tem um cartaz ao fundo que mostra um olhar nítido e vivo, enquanto quem espera no ponto é um cego que, ao que parece, consegue perceber mais coisas que o próprio André. O cego aspira o cheiro de André, que se senta ao seu lado, no banco do ponto de ônibus. CEGO: Todo mundo que tem esse cheiro vem de lá. ANDRÉ: É porque todo mundo de lá usa a mesma marca de sabonete. CEGO: Eu não tô falando de sabonete. Tô falando do cheiro. Cheiro de cadeia. Vai demorar muito tempo para sair esse cheiro. Vai ter que tomar muito banho!!! ANDRÉ: Eu sou inocente. CEGO: É o que todo mundo diz, amigo. O importante é saber se houve arrependimento. O arrependimento é a inocência dos pecadores. ANDRÉ: O que me dá raiva, velho, é olhar para frente e só olhar o passado!

Essas duas cenas, da fala inicial de André e do ponto de ônibus, demonstram um imperativo curioso que serve para antecipar ao público o tema do programa. Enquanto o visual dá o tom com o matiz amarelo ocre na cena da saída da penitenciária, numa paisagem meio apocalíptica de deserto e solidão, os diálogos pontuam para o telespectador o drama do personagem, ou seja, a sua inocência. Lembremos que o começo do episódio já localiza André como um caçador de recompensas, que não sabe bem o seu lugar no mundo – se de caçador ou caçado – e, ao voltar dois meses, aparece essa cena da saída da prisão que reforça, na conversa com o cego, seus dilemas de vida: seu passado, sua inocência e seu futuro. Após essa cena no ponto de ônibus, voltam-se mais três anos: momento em que se explica como tudo aconteceu, como e por que André foi parar na cadeia. O momento é de festa, pois seu pai, Saulo Câmara (Jackson Antunes) está se aposentando da polícia. Apresenta-se o núcleo familiar: a mãe, o pai, o irmão e a cunhada. O irmão de André chama-se Alexandre (Alejandro Claveaux) e é casado 31


com Kátia (Cléo Pires). Mas, já no primeiro momento dos dois juntos na cozinha, Alexandre faz questão de demonstrar que pode pagar a conta da pizzaria sozinho e esnoba seu irmão André, ao mesmo tempo em que ele beija a esposa na frente de André, como se demarcasse um território que é seu. Quando Kátia e André ficam sozinhos na cozinha, o diálogo pontua a relação que os envolve. ANDRÉ: É impressão minha ou depois que ele [Alexandre] virou delegado, ele ficou mais metido do que já era? KÁTIA: Vocês dois são metidos, né?! Adoram competir por qualquer coisa. ANDRÉ: É porque a gente sempre teve um bom motivo.

Nesse primeiro momento, percebemos que várias coisas não são o que parecem. André terá como principal antagonista seu próprio irmão, Alexandre. A razão dessa disputa, na verdade, é uma relação mal resolvida entre André e Kátia. Ao que tudo indica, no passado, eles foram amigos, pois, numa outra cena, André pega uma foto antiga em que os três compartilham momentos de amizade e rasga a parte em que Alexandre aparece, conservando somente a parte em que ele está com Kátia. André, nessa mesma noite, vai comandar uma operação arriscada em que o filho de um traficante foi sequestrado pela milícia. Tudo já está esquematizado e o flagrante da operação de resgate do garoto aconteceria nessa noite. Porém, alguém denuncia o plano e, ao que parece, o responsável é alguém de dentro da corporação. Depois do fracasso da operação, ainda no local em que seria o flagrante, onde os policiais deveriam encontrar o menino sequestrado, André se lembra de que o pai fez uma ligação para outro integrante da operação, o Ribeiro. Numa conversa corriqueira com André, Ribeiro diz que não pôde ligar para seu pai e parabenizá-lo pela aposentadoria, pois estava ocupado com a operação. Ocorre que antes, enquanto ainda estava em sua casa, André se lembra de que viu/ouviu seu pai falando ao celular com o Ribeiro. André verifica as ligações de Ribeiro e confirma que a pessoa responsável por esse fracasso da operação é seu próprio pai. No final, o próprio André é acusado de ser o traidor e vai preso. O ponto de virada da sucessão dos acontecimentos, em que André compreende que seu próprio pai o prejudicou, retorna em flashback8, em preto e branco. Para Campos (CAMPOS, 2009), esses momentos são essenciais na narrativa, pois “uma 8

Segundo o Glossário de Termos de Campos (2009, p. 382) trata-se de uma “exibição (em inglês, flash) de incidente que ocorreu antes (em inglês, back) do que se narra”.

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cena essencial alicerça uma narrativa, ao mesmo tempo em que muda o seu rumo e seu ritmo” (CAMPOS, 2009, p. 129). Na cena em questão, aparece o pai ao telefone no quintal da casa, em meio aos lençóis pendurados no varal que balançam com o vento, ocultando e mostrando, enquanto André se guia pela voz do pai ao telefone, até chegar ao encontro dele. Naquele momento, esse telefonema parecia ser algo banal, a conversa de dois velhos amigos de trabalho, Saulo, seu pai, e Ribeiro, do outro lado da linha. E André ouve bem quando seu pai fala o nome de Ribeiro. A partir desse momento, começa o tormento na mente do personagem André. Ter a certeza de que seu próprio pai está envolvido no sequestro deixa André atordoado. Esse ponto é marcante na narrativa, pois é a partir daí que todas as consequências se iniciam e André vai preso. Seu pai explica, depois, em conversa com o filho na delegacia, que ele não teve escolha, pois sabia que o filho o denunciaria. Saulo propõe então um acordo com o filho. Na realidade, como só tem seis meses de vida, gostaria de gozar o resto de seus dias usufruindo uma vida melhor. Combina que antes de sua morte deixará uma fita gravada inocentando o filho, que será reincorporado à polícia. Esse fato desencadeia toda a “grande estória” de André, ou seja, seu drama pessoal que perpassa toda a narrativa, a procura pela verdade e a busca para provar a sua inocência. Segundo Campos, “o ponto de virada é a mudança na qual uma ação toma rumo diverso do que vinha tomando” e tem por função “revelar algo, causar surpresa e suspense, mudar o rumo e o ritmo da narrativa – e, com isso, afastar o tédio e reter a atenção do espectador” (CAMPOS, 2009, p. 130-1). O diálogo entre André e seu pai na delegacia expõe essa situação, embora sejam necessários outros elementos imagéticos e sensoriais para que se acredite que André vá aceitar a proposta do pai. PAI: Você não me deu alternativa, André. Eu te conheço muito bem, você ia me denunciar. Ia sim, filho. Eu conheço muito bem o seu caráter. ANDRÉ: É porque você sabe melhor do que ninguém o quanto eu queria ser igual a você. PAI: Não, filho, você nunca vai ser igual a mim. [...] Tem certas coisas que você não sabe, filho. [...] Agora, eu preciso que você me escute com o coração. O que eu estou te pedindo são só seis meses da sua vida. Vou gravar um depoimento explicando tudo que fiz, depois que eu morrer você vai ser considerado inocente e é incorporado. Está disposto a fazer esse sacrifício por mim? Quando eu disse que você nunca seria igual a mim, filho... é porque você é muito melhor do que eu sou. Eu te amo, André!

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Os diálogos são pontuados entre os papéis de pai e filho. Ética, honestidade e certezas são alguns dos temas tratados entre os dois, mas, apesar de todo o discurso do pai, o que faz com que André aceite a proposta é o apelo emocional da situação do pai, que está condenado à morte. A cena conta com lágrimas nos olhos dos personagens e música sentimental de fundo. Todos esses elementos também seduzem o público a “embarcar” nessa situação. Depois desse momento, corta-se a cena e volta-se para o ponto de ônibus, em que André está conversando com o cego. Ou seja, em relação ao tempo da narração, o ponto de ônibus está há dois meses antes do tempo presente da narrativa de André. Então, nesse primeiro episódio, são três tempos: o tempo presente de André como caçador de recompensas, dois meses antes, no ponto de ônibus com o cego, e três anos antes, que é quando tudo começou. CEGO: Então você ficou seis meses preso nesse inferno? ANDRÉ: Não, eu fiquei preso três anos, quinze dias, nove horas e treze minutos.

Após essa cena, corta-se para o momento em que André está no presídio e fica sabendo da morte de seu pai. Na ocasião, também descobre que a família não o quer no enterro. A cena termina com André chorando na cela sozinho, encolhido na cama. Esse é o momento de empatia em que o público precisa “comprar” a ideia de André, torcer por ele, sentir pena e se interessar pelo seu destino. Na construção do personagem “herói”, segundo Campos, existe um reconhecimento entre o público e o personagem, e é isso o que vai gerar o interesse e a torcida pela estória. Independente de situação, herói é um personagem correto, justo, audaz, talvez bonito, mas com certeza atraente e bom. Herói é o personagem que o narrador e espectador aprovam, pelo qual torcem, próximo de quem querem estar, com quem querem se emocionar, se identificar e que, enfim, querem ver vitorioso e feliz (CAMPOS, 2009, p. 153-4).

Na busca pela tão esperada prova que não aparece após a morte de seu pai, o embate é com Alexandre. Seu irmão e antagonista afirma que não encontrou nada que demonstrasse a veracidade da versão contada por André. Alexandre alega que o pai deles morreu pobre e que não existe dinheiro algum. ALEXANDRE: Eu que paguei o enterro dele. Se precisar de alguma coisa, não me liga!!!

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Fica claro que Alexandre não simpatiza com André e não acredita no irmão. Assim, para André e para o público que acompanha a narrativa, há algo que não se encaixa, pois, o dinheiro do sequestro não foi usufruído pelo seu pai. E, também, não aparece prova alguma de sua inocência. A cena termina com a estupefação de André, ele não compreende o que está acontecendo. Há um corte, a cena volta para o ponto de ônibus. Agora, uma moto se aproxima e entra o diálogo de André com o Cego. CEGO: Ninguém da sua família nunca mais procurou por você? ANDRÉ: Nunca vieram me visitar, não. CEGO: Nem os seus amigos? [Nesse momento, uma moto passa pelo ponto de ônibus e aparece refletida nos óculos do cego, a moto está fazendo meia volta. São dois integrantes na moto, que para enquanto o carona aponta uma metralhadora para o ponto de ônibus e dispara vários tiros. O cego permanece sentado onde está, enquanto André rola para debaixo do assento, mas ninguém fica ferido]. CEGO: Seus amigos podem até ter se esquecido de você, mas os seus inimigos, pelo jeito, não!

Essa cena simbólica, em que ninguém mata e ninguém morre no meio do nada, numa conversa entre um jovem e um cego, mostra que o cego, por vezes, está vendo muito mais que o próprio personagem André. Aqui se encaixa a fala inicial de André, quando ele diz que não sabe ao certo se é o caçador ou a caça. O cego pontua que os inimigos de André não o deixarão em paz. Nesse momento, parece que a narrativa chega a um ponto de equilíbrio: narra o motivo da prisão de André, define os atores (mocinho, antagonista, mocinha) na narrativa, mostra o suplício de André na cadeia e prenuncia o que o futuro lhe reserva. A partir daqui, a narrativa conta como André se envolve com o delegado Lopes, enquanto procura pistas da sua inocência e torna-se um caçador de recompensas. Mas ainda não é o tempo realmente presente de André. A narrativa só chega ao tempo presente de André no final do episódio, quando ele aceita ser uma caçador de recompensas. ANDRÉ: E você vai correr o risco de trabalhar com alguém que você não confia? LOPES: O risco não é meu. O risco é seu. Você sabe como é difícil para um ex-detento conseguir emprego.

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ANDRÉ: Quero uma pistola 45, um laptop e um celular. Quê mais eu posso contar com o serviço da polícia? LOPES: Você não é mais da polícia. Você está sozinho agora, André. ANDRÉ: Quando eu começo?

Apesar de Lopes, que ainda é delegado de polícia, intermediar esse serviço paralelo, fica claro que André não pode contar com o apoio da polícia e que sua busca é solitária. Visualmente, a cena termina com André encurralado, olhando de dentro do quarto para o lado de fora. Podemos perceber que a janela do prédio possui grades de proteção, e depois que André aceita ser um caçador de recompensas, a cena captada por uma câmera que é posicionada do lado de fora do prédio mostra a figura de André na janela, atrás das grades. Não as grades do presídio, mas as da prisão particular em que está a sua vida, encurralado numa situação que ele precisa esclarecer, num limbo de onde ele vai tentar escapar, episódio a episódio, enquanto caça outras pessoas. Afinal, como Lopes mesmo pontua, André foi um dos melhores farejadores da polícia e esse é o seu grande talento. Assim termina o primeiro episódio da série: mostrando um personagem que precisa batalhar muito para provar a sua inocência. Na visualidade, além dos claros e escuros trabalhados em diversas cenas, podemos perceber os enquadramentos finais que, em sequência, dão a nítida impressão da clausura em que se encontra o personagem. Dessa forma, o ciclo que conta a estória de André termina, ou seja, narrar como e porquê ele se encontra nessa situação. A partir daí, acontecerá o tempo presente de André, pois, nesse instante, é como se o tempo da fala inicial de André, em que ele reflete sobre caçar ou ser caçado, se encontrasse com a narrativa, zera-se o percurso temporal dentro da série. Mas, assim como finda um primeiro episódio, com começo, meio e fim, há estratégias do formato serialidade que precisam funcionar para que o público telespectador se interesse por aquilo que virá. Campos explica que esse processo está ligado à expectativa do público, ao suspense e à informação do que está por vir. Portanto, deve existir um gancho que “agarre” o espectador num suspense ao mesmo tempo em que lhe dê pitadas de informação sobre o que virá. Então, “se suspense é a expectativa de um incidente, gancho é a interrupção da narrativa na expectativa de um incidente” (CAMPOS, 2009, p. 243). No caso de O Caçador, isso aparece na cena final em dois quadros indicativos para o telespectador. 36


Primeiro aparece o visual de um homem de “cara pintada” em primeiro plano, ocupando a tela da televisão quase inteira. Na sequência, as batidas dos tambores dos rituais haitianos com as mulheres vestidas de negro dançando na areia já demonstram aspectos do próximo episódio da série. Reforça-se o suspense com a frase “Quem foi o maldito que me arrancou do meu sossego?” e, como resposta, o próximo quadro é uma tela negra com a letra escrita na cor branca que avisa: “Continua no próximo episódio”. Considerações finais O primeiro episódio de uma série significa mais do que apresentar a estória que será contada, ele precisa ser eficaz o suficiente para despertar no público telespectador a vontade ou a curiosidade de continuar a assisti-la. “Assim, como um clássico é experimentado novamente com prazer porque pode ser reinterpretado através de décadas, pois nele a verdade e a humanidade são tão abundantes que cada nova geração se vê refletida na estória” (MCKEE, 2013, p. 103), cada novo episódio deve transbordar a proposta em que foi ancorado, mesmo que implicitamente. No caso de O Caçador, o primeiro episódio prepara o telespectador para a serialidade, ou seja, sinaliza que muitas coisas ainda serão explicitadas ao longo dos outros episódios e, ao mesmo tempo, explica a estória desde o começo. Esse desenrolar da narrativa sob a perspectiva do protagonista, André, é fundamental para criar no telespectador a empatia necessária para que se tenha vontade de seguir a estória. O público telespectador, ao conhecer os obstáculos que André enfrenta, passa a torcer pelo personagem. Claro que algumas pistas são deixadas de propósito no primeiro episódio. Nem tudo é explicitado. Por exemplo, a relação de André com a cunhada Kátia: o primeiro episódio deixa entrever que há uma relação amorosa mal resolvida entre os dois. Isso atiça a curiosidade do telespectador, que fica propenso a seguir a estória para entender o triângulo amoroso entre os irmãos André e Alexandre com Kátia. Mas não é apenas um embate amoroso, além da relação dos irmãos que se desdobra nessa rivalidade pelo amor de Kátia, há também que se mostrar a rivalidade e o antagonismo de Alexandre com André quanto ao tema central da trama, a busca de André pela verdade dos fatos. É preciso também pensar no gênero, respeitar a proposta da série e, além disso, manter acesa a chama da curiosidade. Nesse sentido, O Caçador propõe uma estória independente a cada novo episódio, com começo, meio e fim, que satisfaça o 37


formato serialidade e contemple o público que acompanha o desfecho de cada episódio. Também é preciso manter essa “vontade” de assistir à série. Então percebemos que a estrutura narrativa construída no primeiro episódio propõe uma trama maior, ligada à vida pessoal do protagonista ˗ aquele por quem sentimos mais afinidade, aquele cujo sofrimento conhecemos de perto e aquele por quem torcemos. Portanto, é essa a narrativa maior que vai perpassar todos os episódios e manter o interesse do público. Enquanto a cada episódio uma parte da satisfação é entregue ao telespectador na forma da solução do problema do dia, outra parte fica em suspenso e, ao mesmo tempo, em cada episódio, o protagonista descobre algo que vai ajudar na sua própria busca. Dessa forma, o primeiro episódio, assim como suas estratégias de mostrar e esconder, contar e entrever, é um componente importantíssimo para preparar o público telespectador e convencê-lo de que vale a pena assistir a estória em sua completude. É como se o primeiro episódio desse o tom da orquestra que está sendo preparada para tocar. Ela precisa tocar conforme promete o gênero “policial”, mantendo o suspense e a curiosidade do que está por vir ao mesmo tempo em que vai desnudando um pouco do todo em cada episódio, que é independente e possui um tema próprio. Então são dois desafios, manter a proposta de começo, meio e fim a cada episódio, e, ao mesmo tempo, conectar cada estória desenvolvida no episódio com a busca central do protagonista. Dessa forma, temos duas estórias que se desenvolvem a cada semana, uma dentro da outra, criando, assim, a vontade e a expectativa pelo próximo episódio.

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Referências bibliográficas ARAÚJO, Inácio. Cinema: o mundo em movimento. São Paulo: Scipione, 1995. CAMPOS, Flávio. Roteiro de cinema e televisão: a arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. MARTÍN-BARBERO, Jesús; REY, Germán. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Senac, 2004. MATTELART, Michéle; MATTELART, Armand. O carnaval das imagens: a ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1998. MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte e Letra, 2013. RODRIGUES, Sonia. Como escrever séries: roteiros a partir dos maiores sucessos da TV. São Paulo: Aleph, 2014.

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A imagem da mulher em Rosario Tijeras : a construção discursiva feminina na telessérie latino-americana Rosana Mauro

Si ojos tienen que no me vean, si manos tienen que no me agarren, si pies tienen que no me alcancen, no permitas que me sorprendan por la espalda… Rosario Tijeras (Maria Fernanda Yepes), personagem que dá título à série Rosario Tijeras (Colômbia, 2010).

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Introdução A telessérie colombiana Rosario Tijeras (2010), produzida pela Teleset e exibida pelo canal RCN Televisión, é uma adaptação do romance de Jorge Franco, escrito em 1999, maior best-seller colombiano do ano. O livro, que recebeu elogios do escritor consagrado Gabriel García Márquez, conta a história de uma adolescente, vítima de abuso sexual na infância, que se vinga de seus agressores cortando-lhes os testículos, por isso é apelidada de Tijeras (“tesoura” em espanhol). A moça se torna famosa e acaba sendo contratada como matadora de aluguel por chefes do narcotráfico. Antonio e Emilio, dois jovens de classe média alta, se envolvem com Rosario e a acompanham no desenrolar dos fatos. Antes da telessérie – exibida no Brasil em 2014, pela Rede Bandeirantes –, a obra foi adaptada para o cinema, em 2005, sob a direção do mexicano Emilio Maillé. A telessérie, hoje disponível pelo serviço de streaming Netflix, tem sessenta episódios e 104 capítulos, e faz parte de um modelo latino-americano de teleficção que explora a temática do narcotráfico, além de apresentar uma média de trinta a cem capítulos e mesclar os gêneros cinematográficos com o melodrama da telenovela. Esse formato foi cunhado pelo marketing como narconovela, conforme demonstram reportagens sobre o assunto. A adaptação da história para a narconovela, naturalmente, ocasionou mudanças narrativas. Alguns pontos da história original foram modificados, retirados ou ressaltados, muito em decorrência das próprias especificidades genéricas da teleficção seriada e seu público. No livro, por exemplo, a história é narrada em primeira pessoa por Antonio, amigo de Rosario, que por ela nutre um amor platônico. A voz do narrador é mantida durante toda a história, o que não foi possível realizar na teleficção, até mesmo por uma questão de ritmo, elemento fundamental em termos de estratégia narrativa (RODRIGUES, 2014). Tais implicações do gênero teleficcional trazem mudanças discursivas significativas, sobretudo no que diz respeito à representação feminina, tão marcante em Rosario Tijeras. É possível sugerir que a voz do narrador apagada na teleficção naturaliza uma visão masculina (que no livro é mediada por Antonio) sobre as mulheres representadas, assunto ao qual retornaremos posteriormente. Dessa maneira, acredita-se ser pertinente a abordagem da construção discursiva feminina na telessérie Rosario Tijeras. Para tanto, faz-se necessário tratar do conceito 42


de gênero na ficção seriada, no sentido de formato teleficcional, e suas implicações discursivas. Gênero ficcional De acordo com McKee (2013), toda arte tem um caráter genérico. O autor explica que cada gênero possui convenções únicas, que também podem ser simples e maleáveis, pois as fronteiras entre os gêneros se sobrepõem com frequência. Ou seja, as categorias genéricas não são compactas, e, sim, heterogêneas. Uma história de amor, por exemplo, pode ser colocada quase em qualquer história de crime. É possível observar essa mistura na narconovela Rosario Tijeras, que traz crime e melodrama em sua história. Mais do que se fundirem, os gêneros se transformam. “As convenções de gênero não estão entalhadas em pedra; elas evoluem, crescem, se adaptam, modificam e se quebram ao passo das mudanças na sociedade” (MCKEE, 2013, p.98). Do mesmo modo, é possível citar o exemplo da narconovela, uma vez que se trata de um formato advindo de características e transformações sociais únicas da América Latina. Mittel (2004) também ressalta em seu trabalho a concepção de mudança do gênero e sua inserção social. Segundo o autor, os gêneros devem ser concebidos de maneira sociocultural, e não apenas textual. Eles se dão nas relações intertextuais entre múltiplos textos. Para entender como categorias de gêneros tornam-se culturalmente importantes, nós podemos examinar os gêneros como práticas discursivas. Observando o gênero como uma propriedade ou função do discurso, nós podemos examinar os modos nos quais várias formas de comunicação funcionam para constituir definições genéricas, significados e valores dentro de um contexto histórico particular (MITTELL , 2004, p.12).

Mittel destaca, ainda, que o gênero deve levar em conta os atributos particulares do meio, uma vez que deve ser entendido como prática cultural. O autor sugere que o situemos em um sistema maior de hierarquias culturais e relações de poder: “Gêneros não são categorias neutras, mas estão situados em amplos sistemas de poder e, assim, vêm sempre carregados de implicações políticas” (MITTELL , 2004, p.27). Conforme mencionado anteriormente, é evidente o significado cultural da narconovela enquanto gênero televisivo. Trata-se de um produto que está ancorado historicamente na realidade latino-americana, sobretudo colombiana. Além disso, ao 43


mesclar-se ao melodrama da telenovela, outro gênero reconhecidamente relacionado à cultura da América Latina, a narconovela representa um formato genérico em movimento, que tanto representa os sistemas de poder social quanto os inova. Essa visão discursiva dos gêneros nos remete às teorias do filósofo marxista da linguagem Bakhtin sobre o caráter social de todos os enunciados (BAKHTIN, 2003). O autor argumenta que os gêneros discursivos fazem parte de nosso cotidiano e que falamos através deles. Existem os gêneros primários, como as conversas corriqueiras, e os secundários, que são mais complexos, como as obras literárias. Bakhtin explica também que o gênero determina a composição e o conteúdo do discurso, além de possuir uma concepção típica de destinatário que o define. As palavras, inclusive, são escolhidas tendo em vista os gêneros discursivos nos quais elas serão usadas. Costumamos tirá-las de outros enunciados e, antes de tudo, de enunciados congêneres com o nosso, isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo; consequentemente, selecionamos as palavras segundo a sua especificidade de gênero. O gênero do discurso não é uma forma da língua mas uma forma típica do enunciado; como tal forma, o gênero inclui certa expressão típica a ele inerente (BAKHTIN, 2003, p. 292-293).

Desse modo, as palavras e os diálogos são empregados tendo em vista o gênero específico ao qual se destinam. É importante pontuar que, embora Bakhtin tenha precedido o advento da televisão e dos novos gêneros ficcionais dela originados, é possível aplicar muito de duas ideias a tais produtos. De acordo com Machado (2005), Bakhtin refletiu sobre o diálogo como forma elementar da comunicação e, ao fazer isso, valorizou diferentes usos da linguagem que não se limitam a um único meio, abrindo caminho para se pensar os gêneros discursivos em diferentes meios, como os de comunicação em massa. A obra Rosario Tijeras, por exemplo, pode ser considerada pertencente a um gênero secundário e complexo, constituído por gêneros primários que são caracterizados pela conversa corriqueira e pelos diálogos informais. Esses diálogos são marcados pela conversa cotidiana da classe social representada, por isso trazem um vocabulário típico dos setores marginais de Medellín, o chamado parlache. “Alguns exemplos de palavras provindas do dialeto parlache e presentes na obra são ‘muñeco’, que significa cadáver, ‘parcero’, que se refere a amigo sicário, ‘traquero’,

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que remete a sicário, e ‘tote’ que significa pistola” (LUSVARGHI, 2014, p. 91). Tais palavras só fazem sentido nesse universo no qual elas são aplicadas. É oportuno destacar, ainda, no que diz respeito ao gênero discursivo, a questão da adaptação, pois Rosario Tijeras é uma obra literária adaptada para o cinema e, posteriormente, para a narconovela. Houve, assim, adequações de uma mesma história para diferentes gêneros discursivos. Acredita-se que o conceito de transmutação trazido por Balogh e Mungioli (2009) seja adequado para tratar disso. O termo abrange a transformação de um signo constituído pela palavra escrita para um signo icônico. De acordo com as autoras, na adaptação de textos literários para a televisão, a intertextualidade se dá em uma nova construção de sentidos a partir do texto. Na adaptação para a linguagem televisiva, novos signos são buscados, assim como novas formas de relacionar o simbólico e o icônico. Em um novo meio, a obra possui uma autonomia estética e temática própria. Tanto o filme quanto a telessérie Rosario Tijeras trouxeram o tratamento visual e sonoro impossíveis na obra escrita e elementos somente possíveis no audiovisual, como a seleção dos atores, das cores, da trilha sonora, dos enquadramentos da câmera. Todas essas escolhas compõem um discurso que, por si só, já é ideológico, pois como argumenta Bakhtin (2002, p.32), todo signo é ideológico. “O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico”. Valores ideológicos estão presentes em todas as escolhas. Nas atrizes escaladas, por exemplo, cujo fenótipo foge da descrição da personagem no romance original, como explica Lusvarghi (2014, p.95-96): “[...] as duas atrizes que interpretaram Rosario Tijeras, no filme, e na série televisiva, possuem um tipo de beleza global, branca e europeia, que nada tem a ver com a mestiça do romance de Franco”. Na telessérie, Rosario, além da pele alva, possui olhos claros que são destacados na abertura da série. Do mesmo modo, as outras mulheres representadas na comunidade na qual reside Rosario também possuem um tipo de beleza europeia e diferente do que é descrito no livro, como demonstra a passagem do romance. Les coqueteaban a nuestras mujeres y nos exhibían las suyas. Mujeres desinhibidas, tan resueltas como ellos, incondicionales en la entrega, calientes, mestizas, de piernas duras de tanto subir las

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lomas de sus barrios, más de esta tierra que las nuestras, más complacientes y menos jodonas. Entre ellas estaba Rosario (FRANCO, 1999, p.17).

Essa escolha por atrizes com características europeias atende a um apelo de padronização da beleza feminina nos produtos audiovisuais, o que condiz também com um aspecto de internacionalização dessas produções, tema ao qual retornaremos mais adiante. Além da seleção dos atores, outras questões do formato telessérie influenciam escolhas narrativas e discursivas importantes, como os trechos que são enfatizados ou retirados da obra original. É pertinente lembrar que se trata de um produto que visa à obtenção de audiência e também à exportação. Assim, é preciso manter a atenção do telespectador para que ele não mude de canal, como lembra Rodrigues (2014). Acredita-se que justamente por essas exigências mercadológicas, preocupadas em atender um gosto médio, essas produções dizem tanto do meio social no qual se inserem. Mas qual é essa estrutura narrativa que agrada ao público? E quais as implicações discursivas dessa estrutura? Passemos, assim, para a abordagem da estrutura narrativa seriada, na qual podemos considerar a narconovela Rosario Tijeras. Estrutura narrativa seriada De acordo com Rodrigues (2014), todas as séries precisam ter uma temática e um arco de temporada, com início, conflito e resolução. Esse arco narrativo pode se esgotar em um episódio, ou pode se estender por toda uma temporada. Rosario Tijeras se enquadra nesse último caso, pois a mesma narrativa se estende por todos os episódios, assim como os exemplos citados pela autora – as séries Scandal, Homeland, Downton Abbey e Breaking Bad. Rodrigues explica que as particularidades das séries em relação ao filme estão, por exemplo, na apresentação da estrutura narrativa, em como as cenas estão distribuídas e a ordem em que serão apresentados os eventos e personagens. São estratégias que definem como a história (que é linear) será contada, ou seja, como será montado o enredo. Na narconovela Rosario Tijeras, podemos identificar o que Rodrigues chama de narrativa de alternância, na qual a linearidade é mantida, mas as histórias e eventos 46


ocorrem paralelamente e são mostrados de forma alternada. Há ainda a característica de histórias paralelas não concluídas, ou seja, o desenrolar de alguns personagens cujo paradeiro só é desvendado alguns episódios depois de sua apresentação. Além disso, a telessérie exige uma dinâmica diferente, com a utilização de recursos como o gancho no final de cada episódio ou ato (RODRIGUES, 2014), que confere um ar de suspense e prende a atenção do telespectador, desejoso por assistir ao desenrolar da história. Como explica Rodrigues, essas características são mantidas no serviço de streaming Netflix (onde a telessérie Rosario Tijeras está disponível), pois, segundo ela, não é o modelo de negócio que faz a narrativa seriada ter sucesso. “O que faz a narrativa seriada ter sucesso, desde o folhetim, é a divisão em pedaços, são as perguntas lançadas para serem respondidas que obrigam o espectador a assistir ao episódio seguinte” (RODRIGUES, 2014, p. 135). Essas características mostram as especificidades da série. Ainda, no caso de Rosario Tijeras, também houve escolhas na adaptação ao audiovisual em relação à obra original, como já elucidado anteriormente. Rodrigues discorre sobre o assunto. Numa adaptação, o mais importante é definir o que está se mantendo e o que se está abandonando. Caso a opção seja por manter o mundo inconfundível (com todos os elementos importantes do enredo do livro) e a storyline, será inevitável ajustar a linguagem para tornar tudo isso compreensível para outra época e, provavelmente, será necessário tornar a trama mais dinâmica. Isso sem contar, no caso de adaptações para audiovisual, que a trama precisa fluir através das ações e falar dos personagens, sem o apoio poderoso do narrador com o qual conta a prosa literária (RODRIGUES, 2014, p.133).

O livro Rosario Tijeras conta com a voz do personagem Antonio como narrador durante todo o percurso. Já na telessérie, no primeiro episódio, o rapaz leva Rosario, que fora baleada, ao hospital. No local, ele recorda dos momentos dele e de seu amigo Emilio junto à moça. A história volta no tempo e, a partir daí, a intermediação de Antonio é bastante enfraquecida. A trama passa a ser “contada” sob a ótica da câmera. Trata-se de uma transmutação, passagem de uma linguagem simbólica à icônica, como argumentam Balogh e Mungioli (2009). O ícone, na semiótica, é idêntico ao objeto que representa, diferente do símbolo escrito (SANTAELLA, 2008). Nesse sentido, é possível dizer que a linguagem televisual, sem a intermediação da escrita e do narrador, é como se fosse a própria 47


história passando em nossa frente, se assemelhando à realidade. As cores, os closes da câmera, as escolha dos personagens, entre outros aspectos, são naturalizados. Várias passagens exploram a sensualidade do corpo feminino. Na vinheta de abertura da narconovela, por exemplo, em determinado momento, a câmera faz um close nos olhos verdes da personagem e também em sua boca pintada de vermelho, no momento em que ela faz sua oração em voz baixa, quase sussurrando: “Si ojos tienen que no me vean/ si manos tienen que no me agarren/ si pies tienen que no me alcancen/ no permitas que me sorprendan por la espalda/ no permitas que mi muerte sea violenta/ no permitas que mi sangre se derrame/ Tú que todo lo conoces/ sabes de mis pecados/ pero también sabes de mi fe/ no me desampares/ Amén”. A vinheta também mostra, em uma passagem, a personagem usando um vestido justo e brilhante, rodeada de ícones católicos, como a estátua da Virgem Maria. Em seguida, a moça aparece em um vestido preto de couro, bem justo. Ela segura um revólver ao lado do corpo, se assemelhando a uma heroína norte-americana, como a personagem da série de videogames Lara Croft, por exemplo. Esses fatos nos rementem à mescla da narconovela com os gêneros cinematográficos e, portanto, internacionais. É possível utilizar o conceito de indigenização trabalhado por Lopes (2004) para essa abordagem. As mulheres com feição europeia, ícones norte-americanos, símbolos religiosos regionais, entre outros aspectos. Tudo isso faz parte de uma mistura entre o local e o global na ficção, que faz dela “[...] um denso território de redefinições culturais identitárias” (LOPES, 2004, p. 122).

Figura 1: Abertura da novela Rosario Tijeras

Além da internacionalização, temos o corpo feminino objetificado. Há na telessérie Rosario Tijeras muita ênfase em partes do corpo feminino, em sua 48


sensualidade e beleza. Além dos exemplos já citados, é possível discorrer sobre cenas do primeiro episódio. Por exemplo, quando Rosario briga no pátio da escola, cai no chão, e a câmera focaliza suas nádegas embaixo de sua saia. Ou a cena em que a personagem toma banho. Além do trabalho de câmera, também é necessário destacar as outras especificidades da linguagem audiovisual em Rosario Tijeras. No caso da série específica para a televisão, é pertinente pontuar a questão do público ao qual se destina. É diferente do filme, que explora mais o drama da personagem. Os elementos do melodrama na série suavizam o sofrimento de Rosario. A frase da personagem, “amar é mais difícil que matar”, ganha destaque logo na abertura da telenovela, demonstrando um teor mais melodramático. O amor platônico de Antonio também apresenta mais elementos melodramáticos na série. O filme traz mais cenas de drogas explícitas, mais cenas de sexo, conflito e tristeza de Rosario. Também a série conta com mais momentos de respiração, “[...] cenas que afrouxam a tensão, mostram como a vida é bela ou boba ou prosaica, antes de um beat que leve tudo para o confronto, lágrimas, o tiro” (RODRIGUES, 2014, p.99). Tons de comédia estão presentes em momentos dos personagens Emilio e Antonio. Ainda, o fato de Rosario ter sido violentada na infância não está claro na série. A música é outro elemento que traz suavização na narconovela. Determinadas cenas de violência são sucedidas por uma trilha sonora latina, alegre e dançante, por exemplo. Os momentos de descontração também trazem uma Rosario que sorri, diferente do livro, no qual ela é descrita da seguinte forma: “Una particularidad de Rosario era que reía poco. No pasaba de sonreír, rara vez le escuchamos una carcajada o cualquier tipo de ruido con el que expresara una emoción” (FRANCO, 1999, p.8). Assim, temos a câmera como a figura do narrador, que “enxerga” a mulher como um corpo sensual e explora suas partes com closes; a supervalorização da beleza e a internacionalização na escolha das atrizes, também na produção da vinheta de abertura; elementos melodramáticos que conferem leveza às cenas, por meio de músicas, tons de comédia; cenas de respiração; e uma Rosario que sorri. É importante abordar também que a telessérie exibiu mais personagens, em decorrência do arco narrativo estendido por todos os capítulos. Houve mais tempo para que outros núcleos narrativos fossem explorados, diferente de um filme ou série

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episódica. Tal fato trouxe um espaço maior de enunciação, em que a discursivização da mulher pôde ser explorada em distintos personagens. Usamos aqui o conceito de enunciação da forma explicada por Brandão (2012), segundo a qual a situação de enunciação faz parte das condições de produção dos enunciados. Entendemos, então, a enunciação como as estruturas da teleficção já comentadas, a construção dos personagens e a narrativa, no geral, que dão origem a enunciados específicos e sentidos discursivos em Rosario Tijeras. Para essa produção de sentido, além de Rosario, Emilio e Antonio, chamaram a atenção na narconovela os personagens Dayra, Cristancho, Doña Rubi, Martha Lucía, Leticia e Gonzalo González ("El Papa"). Abordaremos a seguir alguns aspectos desses personagens. Enunciação dos personagens Primeiramente, trataremos da personagem principal, Rosario Tijeras. Na obra original, no filme e na telessérie, Rosario é retratada como uma mulher sensual. De acordo com Lusvarghi (2014), a personagem realiza a função da mulher erotizada e do homem que transgride a lei. A autora explica que Rosario sofre as consequências de sua situação social. A personagem Rosario Tijeras é sedutora e envolvente porque a sociedade na qual ela se insere não vem cumprindo com o que prometeu – desenvolvimento, progresso e felicidade estariam alinhados nessa ordem, sendo a aquisição de bens materiais o meio de atingir esses objetivos (LUSVARGHI, 2014, p.14).

É possível argumentar que o seu corpo é um instrumento de sobrevivência na sociedade machista como um todo na qual ela vive (há acentuação da dominação masculina no narcotráfico). A “castração” pode ser vista como uma vingança no corpo masculino, uma proposta de desfortalecer o opressor, fazer dele um objeto, um mero corpo, em contrapartida. Na narconovela, como já explicitado no item anterior, a erotização do corpo de Rosario é acentuada pela imagem; o enquadramento da câmera e as roupas utilizadas pela personagem são exemplos disso. A beleza da moça é ressaltada. No tempo todo, o corpo e a beleza feminina são enfatizados na série. A mulher é vista apenas como um objeto. Os vilões da trama, Cristancho, padrasto de Rosario, e El Papa, um chefe do narcotráfico, são marcados por um discurso machista que objetifica a mulher. Eles 50


assediam Rosario e sua amiga Dayra, e usam a palavra “gostosa” frequentemente. Cristancho, em determinada cena, ao conversar com Doña Rubí, mãe de Rosario, afirma que a moça não precisa estudar porque é bela: “[...] as feias que estudem”. El Papa também usa palavras machistas para se referir às mulheres: “virgenzinha”, “material”, “encomenda”, “carne fresca” e “mercadoria”. Em dado momento, El Papa volta-se para Rosario com a seguinte afirmação: “Não vai ganhar a vida vendendo nada além de toda essa beleza que tem escondida debaixo dessa roupa”. É preciso deixar claro que, por se tratarem de personagens vilões, pode haver uma mensagem denunciadora no comportamento de ambos; porém, o mesmo não se confirma no caso dos outros personagens da trama. Emilio e Antonio, os mocinhos de classe média alta, fazem piadas machistas com frequência, aludindo ao corpo feminino e se referindo às mulheres com quem saem. Emilio, principalmente, é um jovem “mulherengo”, irresponsável e, ainda assim, é supervalorizado pelas mulheres da trama. Martha Lucía (mãe de Antonio e Leticia) incentiva a sua filha a sair com ele: “Que alegria! Acho ótimo você sair com o Emilio. Ele é um rapaz ótimo!”. Ao mesmo tempo, a mãe flerta com o rapaz que passa em sua casa para levar Leticia a uma festa. Na festa, a palavra “gostosa” é recorrente entre os homens. Emilio ainda flerta com outra mulher. Leticia é vista apenas enquanto um corpo feminino também pela sua mãe, pois esta se contenta quando descobre que a menina está grávida de Emilio. Martha Lucía pensa em um casamento entre ambos, e se entristece quando a menina perde o bebê pela improbabilidade de um casamento promissor. No final da trama, Leticia encontra outro rapaz, engravida e se muda para Portugal com ele. No episódio 15, há uma cena que ilustra a supervalorização do homem, na figura de Emilio, e a supervalorização do corpo e da beleza femininos. Solange Róbinson, amante de Emilio, é assassinada pelo marido. Emilio é chamado para reconhecer o corpo da mulher em fotografias e dar o seu depoimento na delegacia. DELEGADA: Conhece a mulher que aparece nessas fotografias? EMILIO: Não, não a conheço. É Solange Róbinson. Mas esta não tem nada a ver com a mulher que conheci. Ela era linda. Era adorável, legal, adorava viver, era feliz. Queria que todos aproveitassem a vida com ela. [Há um flashback dos momentos que ambos viveram juntos]. Solange era uma mulher muito linda. Muito linda. Dava prazer vê-la. Tocá-la. Beijá-la. Quem a profanou e a deixou assim é um monstro. Uma pessoa assim não merece viver. Tem que apodrecer na prisão.

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A cena tenta sensibilizar o telespectador com o choro de Emilio e o flashback dos momentos vividos. Mas, as falas indicam que Emilio se chocou com a morte apenas por se tratar de uma mulher que era bonita. Tudo se refere aos momentos de sexo que tiveram juntos e aos atributos físicos da personagem feminina. Mais uma vez, a mulher é vista como um objeto, valorizada enquanto um objeto que deve ser bonito, até mesmo nessa representação de violência contra a mulher. No primeiro episódio há outra cena elucidativa. Na ocasião, estudantes de arquitetura, junto de um professor, fazem uma visita à escola onde estuda Rosario Tijeras, com o intuito de executar um projeto de arquitetura na comunidade. ALUNO: Mas não deu, nem vai dar, professor, se insistir em nos trazer nestes muquifos para fazermos os trabalhos. PROFESSOR: Sudarsky, pessoal. Isto é parte do trabalho de vocês, não é somente entender o espaço, mas também a mentalidade das pessoas que o habitam. ALUNO: Sinto muito, professor. Mas o que eu vi lá foram uns vândalos. Devíamos procura um lugar melhor para este projeto. Aqui é perigoso. PROFESSOR: Melisita, mantenha a sua beleza calada, certo?

Embora o aluno também tenha sido preconceituoso em sua colocação sobre a comunidade, o professor apenas chama a atenção da aluna, de maneira grosseira e preconceituosa. A beleza é de novo o destaque no discurso da mulher. Há outros exemplos na trama, como a secretária que El Papa contrata para o marido de Martha Lucía, com quem abre uma sociedade. É uma mulher bonita que insinua estar ao dispor do chefe em todos os sentidos. As mães de Rosario, Doña Rubí, e de Leticia, Martha Lucía, se demonstram negligentes para com as filhas. Do mesmo modo, Rosario não demonstra afeto pela sua irmã caçula, apenas pelo irmão caçula. É importante expor que a melhor amiga de Rosario, Dayra, também foi interpretada por uma atriz com características europeias. Todos esses aspectos levantados na enunciação mostram um discurso que supervaloriza o homem enquanto sujeito da ação, e trata a mulher apenas enquanto corpo, um objeto, que deve ser bonito para merecer algum reconhecimento, mesmo que o de objeto. Embora a trama também traga à tona questões interessantes, como a necessidade de educação, a dificuldade de estudar nas comunidades (há a figura de 52


um diretor que não concorda com a expulsão de Rosario do colégio), o narcotráfico e o problema da violência contra a mulher, principalmente nos ambientes carentes, o discurso feminino aponta para a sujeição da mulher enquanto um corpo, cuja maior função é ser belo para o usufruto masculino. Também no núcleo dramático rico da série, a mulher não é representada e referida por sua valorização enquanto sujeito social, e, sim, enquanto objeto de desejo. Considerações finais Este artigo objetivou iniciar uma discussão sobre a influência do formato da série televisiva na construção discursiva feminina na narconovela Rosario Tijeras. Foi possível perceber que, no caso da personagem Rosario, as estratégias televisuais, como o trabalho da câmera, tiveram função importante na construção feminina (mais do que as falas dela), ao trazer um ponto de vista da mulher enquanto corpo e objeto de desejo. Apesar da enunciação dos vilões da história poder servir como denúncia de uma conduta machista, outras vozes, também no núcleo dramático rico, trazem discurso similar, mas de forma mais sutil, nas figuras de Emilio e Antonio, por exemplo. Além disso, as personagens femininas reafirmaram o mesmo. Tal fato demonstra que o discurso da mulher-objeto na trama extrapola a esfera da pobreza – está para além da problemática do narcotráfico. Porém, nas comunidades pobres, no universo masculino do narcotráfico, o corpo feminino enquanto objeto se agrava. Ele é usado como artefato de poder e como moeda de troca nas relações de poder no narcotráfico. A atitude de Rosario de castrar os homens, sua força e a admiração que possui de Emilio e Antonio podem ser vistas quase como um respiro diante de tanta opressão masculina, mas que não chega a ser legitimado porque a personagem faz parte de um submundo e está fadada a morrer. Além disso, os elementos melodramáticos conferiram à série televisiva mais descontração e afastamento da polêmica da discussão social. A frase “amar é mais difícil que matar” logo na vinheta de abertura é um demonstrativo disso. A ideia de internacionalização presente nos produtos audiovisuais, e não no livro, também chamou a atenção. Do ponto de vista da discursivização feminina, a escolha de atrizes com características europeias, e não mestiças, desvincula a etnia, a 53


mestiçagem da classe social e do gênero feminino na série. Essas são três condições sociais intrínsecas, que são apagadas na produção: uma mulher que não condiz com a do livro, com a Colômbia, universaliza esteticamente Rosario e esvazia de sentido a temática feminina dentro do submundo do narcotráfico. Porém, tais percepções necessitam de maior aprofundamento e detalhamento. Coube a este artigo apenas trazer uma problematização inicial passível de gerar novas reflexões acerca dos gêneros discursivos e estruturas, como prática discursiva na construção de uma imagem feminina nas telesséries e teleficções em geral.

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Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec-Annablume, 2002. BALOGH, Anna Maria; MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. “Adaptações e Remakes: Entrando no Jardim dos Caminhos que se Cruzam”. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Ficção Televisiva no Brasil: Temas e Perspectivas. São Paulo: Globo, 2009. BRANDÃO, Helena Nagamine. “Conceitos e Fundamentos. Enunciação e Construção do Sentido”. In: FÍGARO, Roseli A. (org.). Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012. FRANCO, Jorge. Rosario Tijeras. Libros Tauro, s.d. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. (org.). Telenovela: Internacionalização e Interculturalidade. São Paulo: Loyola, 2004. LUSVARGHI, Luiza. “Delitos e Transmidiação em Rosario Tijeras”. Rizoma. Santa Cruz do Sul, v. 2, n. 2, p. 86, dez. 2014. MACHADO, Irene. “Gêneros Discursivos”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. MCKEE, Robert. Story: Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Curitiba: Arte e Letra, 2013. MITTELL, Jason. Genre and Television: From Cop Shows to Cartoons in American Culture. Nova York e Londres: Routledge, 2004. RODRIGUES, Sonia. Como Escrever Séries: Roteiro a Partir dos Maiores Sucessos da TV. Rio de Janeiro: Aleph, 2014. ROSARIO Tijeras. Criador: Jorge Franco. Colômbia: RCN Televisión, 2010. 1 temporada. 60 episódios. SANTAELLA, Lucia. A Teoria Geral dos Signos: Como as Linguagens Significam as Coisas. São Paulo: Cengage Learning, 2008.

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Mulheres Assassinas : homicídio no feminino

Ruth Barros

Tú eres mi asunto. El unico que mi interessa. Sonia (Leticia Calderón), a desalmada, quando o marido manda que procure outros interesses. Mulheres Assassinas (México, 2010).

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Introdução ... o que pode ter na cabeça, no coração e no útero uma mulher para chegar a assassinar seu amante, pica-lo em pedacinhos, fazer recheio com sua carne e vendê-lo em empanadas? (CAUSTIVO, 2009, p. 1)9

A série Mujeres Asesinas (Mulheres Assassinas) nasceu de um livro homônimo da jornalista argentina Marisa Grinstein (GRINSTEIN, 2000). O primeiro volume, com 14 histórias verídicas de mulheres que mataram com certa riqueza de detalhes sangrentos, fez tanto sucesso que a obra se desdobrou em volumes 2 e 3, além de ter rendido adaptações para séries de TV. Não por acaso, as mais bemsucedidas, que serão abordadas aqui, foram feitas na Argentina (Canal 13, 20052008), terra natal da autora, produzidas pela Pol-Ka, e no México (Mexicana TVC, 2009-2010), coprodução com a Mediamates, países que, ao lado do Brasil, representam os maiores polos de produção da região latino-americana. Foi feita, ainda, uma tentativa de produzir uma versão nos Estados Unidos (ABC, 2014). Mas o fracasso retumbante da audiência fez com que dos oito episódios gravados só seis fossem exibidos. A franquia teve, também, versões na República Dominicana, no Equador e na Itália. Alguns fatores foram determinantes para que esta transformação dos fluxos ocorresse ao longo dos anos, especialmente a partir da década de 1980. Passada a Guerra Fria, observaram-se a abertura dos mercados, a privatização de muitas empresas e a liberalização do setor das telecomunicações. Isto garantiu o surgimento dos territórios abstratos no mercado mundial (COSTA, 2013, p.39).

Muito além do policial A definição “série policial” não lhe cabe bem. Não há mistérios do tipo “quem foi o assassino”, o clássico whodunit, ou pistas para confundir o espectador e os policiais, ou vários suspeitos. Esses recursos dramáticos são raramente empregados. Pelo contrário, o próprio título, Mulheres Assassinas, já entrega a autoria dos delitos. O espectador é envolvido pela trama que culmina, ou começa, com a morte vinda por mãos femininas. É mais importante entender como elas chegaram lá, porém, do que o próprio crime em si, embora a maioria seja constituída de assassinatos bárbaros com 9

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requintes de crueldade. O título de cada episódio já segue nesse padrão de entregar as pistas no primeiro momento, ou seja, ele não só nomeia a assassina, como já explica qual foi o método usado na morte. É uma bela estratégia de engajamento, o espectador vai acompanhando como e porque a futura assassina vai cometer o crime, além de qual meio para isso escolhido. Nessa linha, há títulos como “Jessica, Tóxica”, “Martha, Asfixiante” ou “Ana, Corrosiva”. Essa ultima, por exemplo , derrama ácido sulfúrico no namorado enquanto ele dorme. Em “Emilia, Cozinheira”, a assassina tenta se livrar do amante que enforcou, transformando-o em recheio de empanadas – justamente o exemplo citado na introdução. No caso, o que leva Emilia a agir assim é o fato de ela não ter encontrado outra forma de se livrar do corpo, é simplesmente uma questão prática. Mujeres asesinas está mais próximo do drama psicológico do que do suspense policial propriamente dito. Mesmo porque o grande mistério das tramas se oculta nas motivações, no caminho que levaram e nos instrumentos que as assassinas escolheram para levar a cabo seus intentos. O flashback é um recurso muito usado também para explicar o que levou a mulher em questão a chegar nesse ponto. Tampouco pode ser enquadrado na já matizada definição de docudrama (teatralização de fatos reais) nos moldes da versão feita pelo Discovey Channel, Las verdaderas mujeres asesinas (Discovery ID, 2005-2014), que replica os crimes com dramatizações e entrevistas com participantes dos acontecimentos como juízes, advogados, parentes dos mortos ou das criminosas. Apesar de serem baseadas em fatos reais, as versões feitas tanto pela Argentina como pelo México investem fortemente na dramatização pura e simples de atores e atrizes, com encenação muitas vezes fantasiosa dos crimes cometidos. Não há depoimentos de pessoas verdadeiras, apresentação de documentos, encenações em lugares reais: nada dos recursos comuns ao docudrama. Pelo contrário, a saída, ou melhor, a escolha da direção é investir fortemente no dramático e no psicológico para justificar, conduzir o espectador a um final já anunciado, seja pelo título do episódio, seja pela memória de quem se lembra dos crimes cometidos na vida real. Ele escapa da camisa de força das tentativas de definição de gênero. As respostas para essas questões requerem pensar em gêneros como fenômenos amplos, multifacetados em vez de entidades

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unidimensionais que existem apenas no cinema hollywoodiano ou na cultura popular comercial (NEALE, 2000, p. 28).10

À la Hollywood Vale observar que a versão mexicana investe em uma espécie de sincretismo com o modelo hollywoodiano, fazendo jus à proximidade – pelo menos física e territorial - dos Estados Unidos. A polícia é mexicana, atua no próprio país, mas veste uniformes e usa métodos científicos, interrogativos e comportamentais em tudo similares aos feitos pelos grandes estúdios norte americanos. Por exemplo, nada aparece da vida pessoal desses homens e mulheres da lei, eles apenas cumprem seu papel trabalhando em desvendar os crimes. “Outro fator impulsionador deste fluxo contemporâneo seria a mobilidade das pessoas através das fronteiras, trazendo consigo o consumo de uma mídia geo-cultural em outras localidades (COSTA, 2013, p. 39)”. Essa citação serve para aclarar em parte como um país como o México, notório pelo menos no cenário internacional pela polícia corrupta, participante de milícias assassinas, ligada aos cartéis de narcotraficantes e políticos violentos e desonestos, procura uma imagem próxima à eficiente polícia estadunidense. A corporação estadunidense, estrela máxima de vários seriados de seu próprio país, ela também falha e se envolve em episódios controversos. Mas está a anos-luz de distância da polícia mexicana. E Hollywood ainda dá polimento a essa imagem, situando os problemas quase sempre na sociedade, raramente no sistema, no caso, representado pela corporação. Na vida real, a polícia mexicana se envolveu em episódios que chocaram o mundo. Em setembro de 2014, 43 adolescentes desaparecerem na cidade de Iguala. O responsável, a justiça mexicana esclareceu depois: fora uma espécie de força-tarefa do mal integrada por grupo narcotraficante, policiais e políticos. Detidas por policiais municipais e entregues aos traficantes, algumas das vítimas morreram asfixiadas, sendo depois decapitadas e queimadas com pneus em caçambas. Em mais uma evidência de que nem todos são iguais, a banda boa da polícia mexicana prendeu o prefeito de Iguala e sua mulher como mandantes da barbárie, além de integrantes do cartel. É uma imagem de eficiência e correção que o Mujeres Asesinas mexicano passa. Nos melhores moldes das franquias de CSI (CBS, 2010-2015), Criminal Minds (CBS, 2005-2015) e outras, entra em ação uma engrenagem de alta performance: 10

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Departamento de Investigação Especializado em Mulheres (DIEM ). Da mesma forma que nessas séries norte-americanas citadas, seus integrantes são os únicos personagens fixos que a cada episódio se veem às voltas com um crime diferente. A semelhança com o modelo começa no figurino, nos coletes e uniformes usados pelo grupo, com logomarcas, cores e formatos em tudo parecidos aos norte-americanos. Assim como os coleguinhas do norte, os policiais mexicanos são sérios, incorruptíveis, pouco chegados a grandes violências com os suspeitos, mas implacáveis nos interrogatórios e acareações. Ao contrário das assassinas, que têm a vida exposta e vasculhada pelo roteiro, pouco ou nada se fala sobre o lado pessoal dos membros do DIEM, pois a função deles nas tramas é desenrolar a história do crime para o espectador. Esse espectador normalmente já conhece mais da trama do que o DIEM, mas é gratificante assistir ao esforço deles para unir os pontos. Rosa Maria Bianchi é a doutora Sofia Capellan, chefe do grupo. É arguta, profissional de poucos, aliás, e nenhum sorriso. A delegada é dura a ponto de quase destratar os subordinados, chega a dizer que o que lhe interessa das pessoas que trabalham com ela é o que pensam e veem, não o que sentem ou creem. Ou seja, a delegada vai direto aos fatos. E quase nada além deles lhe interessa. Nos moldes dos CSIs dos Estados Unidos, há também uma equipe de investigação científica que ajuda a desvendar as configurações dos crimes, as drogas usadas e outros detalhes. No Viúdas Blanco, por exemplo, episódio que retrata três gerações – neta, mãe e avó – de mulheres que assassinam seus maridos para herdar os seguros, a autoria da morte é desvendada quando a polícia destrói a tese das acusadas. É comprovado cientificamente que o marido da neta não morreu em um assalto, como quiseram simular as Blanco abandonando o corpo em uma praça. Primeiro, salta aos olhos dos policiais que vão atender a ocorrência do encontro do corpo que a quantidade de sangue não corresponde com a que seria caso o crime tivesse ocorrido no local. E uma das investigadoras constata sangue na pata do cachorrinho da família, que, analisado, prova que o marido foi abatido dentro de casa. O legista da equipe é uma peça dentro dessa engrenagem, fala com os defuntos e faz piadinhas com eles que não chegam a ser engraçadas, antes são meio mórbidas. Por exemplo, em Jessica, Tóxica, em que a moça vai executando o marido aos poucos com veneno de rato, o legista se prepara para abrir o crânio do falecido e diz que vai “lhe refrescar as ideias, se me permites”.

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O passado condena Na versão argentina, a polícia aparece raramente. Na maioria das vezes em que isso acontece, funciona quase como mero apêndice que pode ajudar a desvendar a autoria do crime, já conhecida pelo espectador, por meio de interrogatórios e condução de suspeitos. E não há referência a nenhuma força ou divisão especial, é uma delegacia como outra qualquer que atende a ocorrência, não há um grupo especial para esses crimes femininos. Quase sempre o episódio se limita a mostrar como se desenrola a história, muitas vezes sem nenhuma intervenção policial, e, no fim, sobem legendas explicando como foram a prisão, a condenação, se a ré ou os réus já se encontram em liberdade, se morreram na cadeia... Enfim, faz uma espécie de finalização e atualização do caso para o espectador. O passado recente da polícia argentina ainda não é dos melhores no imaginário popular. Assim como nos vizinhos Brasil, Chile e Uruguai, os policiais argentinos estiveram profundamente envolvidos no lado mais sombrio das ditaduras, como agente de sequestros, prisões clandestinas, mortes e torturas. Talvez esse fato pese muito também para evitar em dar à corporação papéis de destaque na trama, além das eternas acusações de corrupção, truculência e outras no estilo, tão comuns as forças desses países. O passado político condena, mas o presente nem sempre é lisonjeiro também. Na chilena Prófugos (HBO, 2011-2013), que quer dizer “fugitivos” em espanhol, essa questão é tratada de forma bem direta. A série mostra em sua primeira temporada torturador e ex-torturado lutando lado a lado pela sobrevivência como integrantes de um bando de traficantes que, depois de uma ação fracassada, foge da polícia e dos cartéis rivais. Prófugos não poderia ser enquadrado apenas como série policial, mas, antes, como narco-seriado, embora tenha ações espetaculares tipo fugas, explosões, perseguições, cercos armados e outras que fazem a delícia dos fãs do gênero. Killer Women (ABC- 2014), a adaptação norte-americana da franquia feita pela roteirista Hannah Shakespeare, cai no ridículo. Toda a sutileza do thriller psicológico foi substituída pela ação de truculência policial típica de Hollywood. Para criar um produto mais aculturado, foi criada uma Ranger 11 , a única mulher da 11

Rangers ou United States Army Rangers são membros da elite do Exército dos Estados Unidos.

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corporação, que vai ter o papel de desvendar os crimes. Ao contrário da condução firme, sutil e sóbria das delegacias latinas em seus terninhos, a Ranger Molly Parker, a ex-modelo Tricia Helfer, rosto conhecido nas telas brasileiras por sua participação em episódios da série Two and a Half Man (CBS 2003-2015) vivida pelo ator Charlie Sheen (2003-2011), é uma versão feminina e piorada dos filmes e séries de ação tão caros a Hollywood. Veste-se como um caubói de chapéu e botas, foi miss e é filha de um delegado assassinado. Entra na polícia durante sua separação de um marido político abusivo, a carreira é quase um prêmio de consolação. Ela se envolve em lutas, perseguições, explosões... Enfim, todos os clichês visuais tão de acordo com o produto. A vingança pela falta de imaginação e pelo excesso de truques baratos veio a galope, ou melhor, refletiu-se na audiência. Os índices foram tão abaixo de qualquer crítica que a série teve de ser amputada e realocada. Dos oito episódios gravados, só seis foram exibidos. Houve ainda versões colombiana, equatoriana, dominicana e italiana. Questões estéticas: vermelho e negro A estética noir predomina no jogo de cores e sombras na fotografia dos episódios em Mujeres Asesinas, “Os melhores filmes coloridos de assassinato e suspense sempre remetem aos efeitos chiaroscuro do preto e branco

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(NAREMORE, 2000, p. 89). Os diretores de fotografia parecem ter levado o chiaroscuro a sério. As cores são fortes, predomina o preto nas cenas de velório e nas roupas dos policiais e dos religiosos, duas categorias normalmente presentes em ocasiões fúnebres. O vermelho praticamente inunda as vinhetas e apresentações mexicanas, é mais que óbvia a ligação que querem dar com mulheres, seres que sangram, e assassinato. Quando os homens morrem, voa uma borboletinha vermelha, uma espécie de toque surreal que remete ao realismo fantástico da literatura latinoamericana. A imagem da versão argentina é um pouco mais suja, mais borrada que a mexicana. Nela, a borboleta é negra, voa em meio uma fumaça negra, alegoria evidente da morte, e a vinheta traz antigas e assustadoras caras de bonecas de porcelana, que também figuram na capa do livro original de Grinstein. Há vários 12

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planos de imagem, como se a câmara acompanhasse camadas psicológicas dos personagens que vão se desvendando através de ações. Os figurinos variam de acordo com a classe social a que pertencem os envolvidos nas tramas. As canções que compõe as aberturas reafirmam o conteúdo das séries. Dando um exemplo por país, a segunda temporada da versão mexicana é emblemática. A cantora escolhida foi Gloria Trevi, e a canção Que Emane, escrita por ela em referência a tempo que passou nas cadeias do Rio de Janeiro. Trevi, famosa tanto pelo seu talento artístico quanto por acusações como abuso e sequestro de menores, satanismo, e outras perversidades no estilo, esteve e presa aqui sem julgamento entre janeiro de 2000 até dezembro de 2002, quando foi extraditada. Em fevereiro de 2002, deu à luz Angel Gabriel, o Anjo Gabriel nascido em prisão carioca. Apesar de ter alegado ter sido estuprada por um carcereiro, exames de DNA posteriores apontaram que o pai seria seu empresário, o mesmo de seus dois outros filhos. Inocentada pela justiça mexicana, Trevi continua fazendo sucesso, vende milhões de discos, canta, grava filmes e novelas em sua pátria. É um caso em que a biografia da cantora compõe bem com o clima da série. Considerações finais Na versão argentina, a vinheta de abertura traz uma mistura de rock/balada com a clássica guitarra espanhola que dispensa maiores apresentações pelo título: Fui Tu Madre e Tu Mujer (Fui Sua Mãe e Sua Mulher). Cantada por Teresita Martinez Suviria, foi composta especialmente para a terceira e a quarta temporadas da série. O clima edipiano do título já prepara o espectador para a ação sangrenta que vai se desenrolar na próxima hora que também terá papeis variados nessa dramaturgia. Os episódios têm duração variável entre 40 e 45 minutos para compor com intervalos comerciais a tradicional grade de uma hora de programação.

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Para

quem

começou

exportando

modelos

de

telenovela

baseadas

principalmente nos tradicionais dramalhões mexicanos, Mujeres Asesinas é demonstração de que estão acontecendo mudanças nessa trajetória latino-americana. Entre outros fatores, o surgimento de novos públicos habituados aos seriados norteamericanos abriu novas frente de produção em países como México e Argentina, onde já havia tradição de produção e exportação na indústria de produção audiovisual. E não se pode esquecer também o imenso e razoavelmente abastado mercado formado pelos latinos nos Estados Unidos. Nos últimos anos, no entanto, se observou uma mudança significativa na comercialização de programas televisivos na América Latina. Assistiu-se à privatização de algumas emissoras, à crescente concorrência entre as empresas, à chegada de novas tecnologias da comunicação, à multiplicação de canais e ao consequente aumento da demanda por programas. Algumas emissoras que anteriormente dedicavam praticamente toda programação à transmissão de produções estrangeiras aumentaram gradativamente a produtividade nacional. Paralelamente, outras em um estágio mais avançado passaram a disputar fatias do mercado internacional através da venda de programas televisivos e da participação em empresas estrangeiras. Somado a isto, percebeu-se a demanda crescente por conteúdos regionais, frente àqueles produzidos em escala global. Ainda que seja o pilar do comércio televisivo na América Latina, a venda de roteiros e formatos franqueados se intensificou, reconfigurando o fluxo regional e a participação latino-americana no comércio exterior. Trata-se da criação e da inovação de diversos gêneros televisivos que se transformam em fórmulas de sucesso e são comercializadas com emissoras ou produtoras internacionais, fazendo com que um mesmo produto seja disponibilizado em lugares dispersos geograficamente, introduzido e readaptado às demandas das novas realidades onde se insere (COSTA, 2013, p. 2).

Mujeres Asesinas deslocou a mulher de seu eterno papel de vítima de abusos, crimes e maus tratos e lhe deu protagonismo como autora de morticínios. Nas duas versões televisivas analisadas, argentina e mexicana, têm-se como principal diferencial o tratamento dado a corporações policiais. Enquanto, no México, a polícia é mostrada quase como irmã da eficiência norte-americana, inclusive nos uniformes, com uma equipe especializada em crimes femininos, na Argentina, ela tem presença bem menor. Não passa de mero coadjuvante quase acidental para arredondar o roteiro e resolver algumas questões para a trama e para o telespectador.

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Referências bibliográficas BLADE Runner. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples. Música: Vangelis. Los Angeles: Warner Brothers, 1991. 1 DVD, 117 min. Color. CAUTIVO, Jimena Torre. Marisa Grinstein y sus Mujeres Asesinas. Portal Terra, 14/11/2009. Disponível em: <http://noticias.terra.cl/ximena-torres-cautivo/blog/2009/11/14/marisa-grinstein-ysus-mujeres-asesinas/>. Acesso em: 26 mai. 2015. COSTA, Ana Paula. Fluxos internacionais da comunicação: a circulação de formatos televisivos franqueados na América Latina. Tese de Doutorado em Comunicação Social. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2013. GRINSTEIN, Marisa. Mujeres Asesinas. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000. KILLER Women. Criador: Hannah Shakespeare. EUA: ABC, 2014. 1 temporada. 6 episódios. LUSVARGHI, Luiza. “Prófugos: novos formatos e regionalização na ficção seriada de TV Latino-Americana”. Ciberlegenda, Rio de Janeiro: 8, novembro de 2013. MUJERES Asesinas. Criador: Marisa Grinstein e Liliana Escliar. Argentina: Pol-ka Producciones, 2005-2008. 4 temporadas. 78 episódios. MUJERES Asesinas. Criador: Marisa Grinstein. México: Mexicana TVC, 2008-2010. 3 temporadas. 40 episódios. NAREMORE, James. More than night. Film noir in its context. Berkeley: University of California Press, 2008. . Film adapation. New Jersey: Rutgers University Press, 2000. NEALE, Steve. Genre and Hollywood. Londres: BFI, 2000. PRÓFUGOS. Criador: Pablo Illanes. Chile: HBO, 2011-2013. 2 temporadas. 26 episódios. (2011-2013).

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Entre a realidade e a ficção: conflitos e didatismo na série Conselho Tutelar Sílvia Góis Dantas

Aqui a gente só cuida dos problemas das crianças. O problema do casamento a senhora resolve sozinha ou com seu marido ou na justiça.

Sereno (Roberto Bontempo), conselheiro tutelar em Conselho Tutelar (Brasil, 2014).

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Introdução O presente artigo tem o objetivo de investigar a produção de sentidos da primeira temporada da série Conselho Tutelar13, exibida pela Rede Record em 2014 analisando principalmente o discurso de duas personagens femininas que trabalham no Conselho Tutelar: a assistente social e a psicóloga. Chamou minha atenção, ainda, o tom eminentemente pedagógico assumido pela série. Como meu foco de estudo está centrado na análise do discurso e nas imagens do feminino veiculadas pela mídia, assisti aos cinco episódios completos, buscando identificar pontos cruciais da narrativa. Partindo da premissa das mídias como práticas discursivas, que reelaboram discursos sociais 14 , esta reflexão está estruturada a partir de quatro tópicos fundamentais: uma breve revisão teórica sobre gênero e o gênero criminal; a apresentação da série Conselho Tutelar e os principais temas trabalhados; algumas questões das narrativas das personagens femininas; e finalmente a questão do tom didático marcante na produção. Vale ressaltar, ainda, que se trata de um ensaio sobre os temas da série, buscando com essa primeira aproximação encontrar possíveis chaves de entrada indicadoras de pistas para posteriores investigações. Primeiras considerações: o gênero policial Definir e classificar os gêneros é uma tarefa à qual muitos teóricos têm se dedicado. Ao adentrar no debate, Machado relembra o questionamento que o gênero tem suscitado, retomando as posições de teóricos como Blanchot, Barthes e Derrida para se questionar se o termo está defasado. Poderíamos perguntar então: acabaram-se realmente os gêneros (e, por extensão, todas as classificações que nos permitiam vislumbrar um pouco de ordem na selva da cultura) ou os nossos conceitos de gênero já não são mais suficientes para dar conta da complexidade dos fenômenos que agora enfrentamos? Talvez fosse o caso de recorrer a um conceito mais flexível ou melhor adaptável a um

13

Escrita por Marco Borges e Carlos de Andrade, com direção de Rudi Lagemann, Conselho Tutelar foi produzida pela Visom Digital e pela Rede Record. A primeira temporada – objeto de análise nesse texto – foi exibida neste canal de primeiro a cinco de dezembro de 2014. Cada um dos cinco episódios teve cerca de 56 minutos de duração. A segunda temporada foi exibida de quatro a oito de janeiro de 2016, com mudança no horário: em vez das 23h30, como foi exibida a primeira fase, a temporada dois foi ao ar às 22h30. 14 Conforme Douglas Kellner: A cultura da mídia e Roger Silverstone: Por que estudar a mídia?

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mundo em expansão e em rápida mutação. (MACHADO, 1999, p. 143)

O autor identifica na conceituação de Bakhtin “a mais aberta e a mais adequada às obras de nosso tempo, mesmo que também Bakhtin nunca tenha dirigido a sua análise para o audiovisual contemporâneo” (MACHADO, 1999, p.143). Bakhtin apresenta os gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciado” (BAKHTIN, 2010, p. 262), definição concisa que destaca a estabilidade – marca da criação dos gêneros, na medida que eles repetem elementos em comum – e a relatividade, pois a dinâmica social impõe o surgimento de tipos antes não existentes: “O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a sua vida” (BAKHTIN apud MACHADO, 2014, p. 143). Partindo de Bakhtin, Machado considera gêneros, enfim, como modos de trabalhar a matéria audiovisual, que se caracterizam pela mutabilidade e heterogeneidade. Em entendimento similar, Mittell (2004, p. 1) define que “gêneros são produtos culturais, constituídos pela prática da mídia e sujeitos a mudanças e redefinições”15. Esse conceito inicial já evidencia a tendência mais flexível do autor, opondo-se, assim, a um entendimento formalista, preocupado prioritariamente com a essência. Para ele, “gêneros têm sido tratados tradicionalmente como componentes textuais. Apesar de [...] serem categorias de textos, os textos em si não determinam, contêm ou produzem suas próprias categorias” (MITTELL, 2004, p. 11). Retomando o conceito foucaultiano, ele considera os gêneros como práticas discursivas na medida em que são definidos através da criação, circulação e consumo de textos dentro do contexto cultural. Como ele explica, os “gêneros somente emergem da relação intertextual entre múltiplos textos, resultando em uma categoria comum” (MITTELL, 2004, p. 11), de tal forma que o texto sozinho não determina seu significado cultural. Por sua vez, McKee (2013, p. 93) revela a existência de convenções que regem cada um dos gêneros na escrita de roteiros, pois “a escolha do gênero determina e limita diretamente o que é possível dentro de uma estória”. No entanto, para ele, essas regras não devem ser vistas como inibidoras da criatividade e sim inspiradoras, de tal forma que o maior desafio seria fugir do clichê. De forma poética, 15

Tradução livre dos autores. Optamos por apresentar todas as citações já traduzidas.

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o autor compara os gêneros à maneira como o roteirista olha para a realidade e para a vida. Finalmente, Hincapié, ao analisar as reflexões de Borges sobre a literatura policial e apresentar as leis desse gênero, indica importantes contribuições deste autor para o entendimento da narrativa criminal. Dentre elas, podemos destacar a ideia de que o mistério em si goza de mais importância do que sua própria solução. Ser contagiado pela aura misteriosa e pela curiosidade de descobrir mais sobre o fato criminoso deve ser o fio condutor da história que faz com que o leitor/telespectador não desista da narrativa e deixe-se levar, já que “existe um profundo prazer nos mistérios policiais, pois eles participam da natureza atraente de todo mistério. O mistério recupera o assombro essencial ante a realidade, um assombro original, mas perdido no desinteresse automatizado de dias e noites” (HINCAPIÉ, 1999, p. 3). Opondo-se a qualquer intromissão de uma causa sobrenatural na explicação do mistério, Borges reforça a necessidade de uma explicação lógica, já que “o crime mobiliza na mente dos leitores e personagens uma rigorosa ordem causal que vai desde o mistério do crime – o efeito – até a intenção do criminoso – a causa” (HINCAPIÉ, 1999, p. 8). Trata-se de uma das leis do gênero policial, das quais destacamos ainda o pudor da morte ou certa assepsia na narração do crime, uma vez que as “pompas de morte não cabem na narração policial, cujas musas são a higiene, a falácia e a ordem” (BORGES apud HINCAPIÉ, 1999, p. 18). Analisando esse gênero, Figueiredo (2013, p. 3) assinala a sofisticação da narrativa de enigma nos últimos anos. Para ela, “[...] o gênero policial apoia-se na articulação inteligível dos elementos do enredo, isto é, na própria estrutura narrativa como mediação simbólica que permite ao homem enfrentar os desafios que o mundo lhe apresenta”. A autora observa o borramento de fronteiras frequente no gênero, que “passa por uma espécie de processo de ‘destilação’, diluindo-se, inclusive, as oposições que o estruturam: verdadeiro/falso, criminoso/vítima, detetive/criminoso” (FIGUEIREDO, 2013, p. 9). Como a autora complementa: Fruto das transformações ocorridas com a modernidade, o gênero é reinventado a cada época. [...] Pode-se dizer que a ficção policial situa-se num lugar privilegiado quando se trata de trabalhar nos limites entre os polos alto/baixo, de desestabilizar tal dicotomia, até porque o motivo do crime se constitui num ponto de entrecruzamento de diferentes campos da produção cultural, como o literário, o jornalístico, o televisivo e o cinematográfico. (FIGUEIREDO, 2013, p. 13)

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Adaptando-se ao seu tempo, os gêneros vão se misturando e originando novas tipologias, conforme investigam Bakhtin, supracitado, e Mittell (2004, p. 9), para quem a “mistura de gêneros é um processo cultural, frequentemente como resposta da prática da recepção da audiência”. Já McKee (2013, p. 98) considera a fusão dos gêneros como estratégia de diferenciação e recurso que adensa a série quando eles “são frequentemente combinados para que seus significados ressoem mutuamente, para enriquecer o personagem e para criar variedades de clima e emoção”. Longe de denominações estanques, os gêneros vão cada vez mais se combinando e recombinando, incorporando características de uma e outra tipologia, como marca da contemporaneidade. Temos, assim, a comédia romântica, por exemplo, e o drama policial, marcado pelo teor de investigação e mistério em fusão com dramaticidade e emoção, como é o caso da série Conselho Tutelar. Entrando no Conselho Tutelar Com a primeira temporada exibida pela Rede Record em dezembro de 2014, Conselho Tutelar se autodescreve como “uma história de ficção inspirada em fatos reais”16. Por meio dos protagonistas Sereno (Roberto Bomtempo) e César (Paulo Vilela), acompanhamos o dia a dia do Conselho Tutelar em atividades de averiguação e resgate de crianças e adolescentes de situações de risco: maus tratos, abusos sexuais e vícios17. Nos discursos das personagens, há enunciados que denotam um teor social e também um forte objetivo pedagógico, ao informar sobre o funcionamento e objetivo do Conselho Tutelar18, em meio a um cenário de dificuldades, marcado pela escassez de recursos (humanos, materiais e financeiros) e disputas jurídico-políticas, 16

Conforme lettering exibido na vinheta da trama.

17

Surgidos em 1990, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os Conselhos Tutelares são órgãos municipais destinados a zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Os membros são escolhidos pela comunidade para executar medidas constitucionais e legais na área da infância e adolescência, visando assegurar à criança e ao adolescente direitos particulares, dada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. É importante lembrar que se trata de um órgão autônomo, que não integra o Poder Judiciário. Cf. Silva et al., 2003. 18

Conforme informações do site da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a função da série era a de dar visibilidade ao trabalho dos conselheiros tutelares em função das eleições unificadas para conselheiros tutelares no país, que se realizaram em outubro de 2015. O valor da produção (R$ 3,8 milhões) foi custeado por “leis de incentivo à Cultura, parte da Rede Record e outra parte da produtora Visom Digital”. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/noticias/2014/outubro/minisserie-discute-o-papel-dos-conselhos-tutelares-nagarantia-dos-direitos-de-criancas-e-adolescentes>. Acesso em: 25 abr. 2015.

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nas quais o juiz da vara da infância e da juventude Brito (Paulo Gorgulho) e o promotor André Noronha (Petrônio Gontijo) se destacam. Experiente, Sereno prioriza exaustivamente seu trabalho de conselheiro e não mede esforços para salvar crianças e adolescentes em risco. No primeiro episódio, ele passa a noite sentado numa cadeira de praia em frente a um prédio onde mora uma médica, para evitar que ela fuja com a filha adotiva, vítima de violência física. Em contraste com vários casos bem-sucedidos no Conselho Tutelar, a vida pessoal de Sereno está em frangalhos. Com dois filhos e dois casamentos desfeitos, está separado há um ano e não consegue conviver com o filho de apenas seis anos – “você cuida do filho de todo mundo, menos do seu”, queixa-se Flávia (Cassia Linhares), a segunda ex-mulher. Sua rotina exaustiva e a falta de cuidados consigo levam-no a negligenciar um tratamento de diabetes, doença diagnosticada no último episódio da primeira temporada. É Sereno quem apresenta a César, o conselheiro recém-chegado, os casos e as estratégias para conseguir salvaguardar os interesses das crianças sem entrar em conflito com o juiz, o principal aliado do Conselho: “faz parte do trabalho afagar o ego do senhor juiz”, diz ele. No entanto, César peca pela impulsividade, excessiva ansiedade e inflexibilidade, querendo sempre resolver tudo a seu modo, sem se importar com os protocolos legais ou conveniências e bom senso; razão pela qual Sereno sempre o chama por nomes de super-herói (Capitão América, Batman etc.). Aos seis minutos do primeiro episódio, o veterano pergunta a César qual sua motivação para se tornar conselheiro, ao que este responde: “Eu não gosto de ver criança maltratada”. Na verdade, César esconde um segredo que vai sendo aos poucos revelado. Vemos aqui a estratégia de deixar perguntas no ar como recurso importante para manter a tensão da narrativa: Deixar no ar perguntas é uma das coisas que mantém o espectador preso a uma série dramática. São as perguntas que ainda não foram respondidas que alimentam a necessidade das respostas. [...] perguntas no ar são uma estratégia narrativa fundamental. É o que torna indispensável assistir à próxima sequência, ao próximo ato, ao próximo episódio. (RODRIGUES, 2014, p. 124-125)

Embora César mostre-se misterioso e expresse mágoa e revolta durante várias situações ao longo de toda a temporada, é somente no último episódio que a pergunta é respondida: César revela ter sido vítima de abuso quando tinha apenas cinco anos. “São tantas palavras: abusar, molestar, aproveitar... nenhuma delas serve para 73


descrever a dor, o medo”, diz o personagem em meio ao choro, sendo consolado pela namorada recém-conquistada. Assim, acompanhamos a vida dos conselheiros e seus dramas, embora o fio condutor da narrativa seja a rotina do Conselho Tutelar. A série se passa no Rio de Janeiro e apresenta dois cenários fixos principais: o Conselho Tutelar e o Fórum. São exibidas as fachadas dos prédios, e as ações ocorrem em um conjunto de salas que representam as duas instituições. Há também muitas cenas que se passam na casa da ex-mulher de Sereno. No entanto, privilegiamse locações e planos abertos talvez com o fim de situar o telespectador, principalmente nas cenas de transição de um ambiente para outro. Outro recurso bastante recorrente na série é a movimentação da câmera dentro da ação, conferindo dinamismo e agilidade. Além disso, o ponto de vista muitas vezes é mantido a distância, atrás de caixas, estantes, janelas etc., recurso conhecido como “câmera suja”, que trabalha com o efeito visual de distanciamento versus aproximação/visibilidade e confere sensação de que os personagens em cena podem estar sendo vigiados. A série foi a primeira produção da Rede Record a ser gravada com a tecnologia 4K, fato bastante divulgado na mídia. O jogo claro/escuro foi bastante explorado, principalmente nas cenas de maior tensão, como as que se passam na região de tráfico de drogas e quando há situações de violência, reiterando, por meio dos recursos visuais, as características desse gênero, a saber, a “estética fundada em alto contraste de luz, gerando zonas constantes de luz e sombra. [...] os contrastes também mimetizavam os estados de alma dos personagens, vivendo na marginalidade e no crime” (BALOGH, 2002, p. 108). Como Balogh (2002, p. 109) complementa, mesmo com a atualização do gênero e as mudanças, “o film noir, no entanto, permanece como o parâmetro do gênero, a fundação em termos da utilização dos recursos técnico-expressivos, um estilo dos mais marcantes dentro da diacronia do cinema e dos audiovisuais em geral”. Cada episódio 19 traz dois casos diferentes e suas soluções, de forma que apresenta “unidade relativa suficiente para que possam ser vistos independentemente e, às vezes, sem observação de cronologia de produção. A unidade total do conjunto é 19

Embora os episódios sejam denominados de capítulos no site R7, neste trabalho optamos por utilizar o termo episódios, mais recorrente no campo dos estudos teleficcionais para as partes de uma série: “O seriado é uma produção ficcional para TV, estruturada em episódios independentes que têm cada um em si, uma unidade relativa” (Renata Pallottini: Dramaturgia de Televisão, p. 29). A denominação capítulo é mais utilizada para denominar os segmentos das telenovelas. Cf. Pallottini (2012) e Machado (2014).

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dada pelo autor e pela produção” (PALLOTTINI, 2012, p. 31). Dentre os temas abordados, estão principalmente a violência, o abuso sexual de adolescentes e crianças (e até bebês) por parte dos pais ou terceiros (namorado da mãe, padrasto, parentes, porteiro do prédio, entre outros) e o envolvimento com drogas, ponto em que a região de venda de drogas está sempre presente como um dos cenários em que os conselheiros tentam resgatar adolescentes e crianças. A temática da violência é trabalhada com cuidado: não são mostradas imagens fortes principalmente porque as vítimas são crianças. A delicadeza de não se mostrar as agressões sofridas pelos menores, porém, conta como ponto positivo à série, assim como a tendência da Record em tocar em temas espinhosos, como é esse – houve também uma menção ao submundo do crack. A direção segura é outro fator que pesa a favor do seriado, e o arco dramático que se fecha a cada episódio também funciona, dando ao público a opção de acompanhá-los separadamente, não em sequência. (SCIRE, 2014, online)

Podemos fazer um paralelo entre esse esmero da série ao trabalhar o tema da violência e a questão apresentada por Hincapié a partir da obra de Borges, no que diz respeito à assepsia na narração do crime, uma vez que as “pompas de morte não cabem na narração policial, cujas musas são a higiene, a falácia e a ordem” (BORGES apud HINCAPIÉ, 1999, p. 18). Assim, o foco não é mostrar a violência em si, mas sim o drama das vítimas e o trabalho do Conselho para que as crianças e adolescentes se livrem dos agressores. Trata-se de uma temática social importante, motivada por histórias reais. Silva (2011, p. 53-63) destaca esse novo foco do cinema latinoamericano para problemas sociais e conclui que “na medida em que coloca em tela o confronto entre diferentes realidades sociais, entre polêmicas e ousadias, o ‘novo’ cinema latino-americano, tenta recolocar na ordem do dia temas como violência, questionamentos sobre valores e juízos sociais”. No plano de fundo do Conselho Tutelar, os problemas sociais do Brasil são retratados e muitas vezes emergem de forma mais evidente. Assistimos, por exemplo, ao juiz que se preocupa mais com a sua imagem na mídia do que com os problemas reais das vítimas; acompanhamos a burocracia para inaugurar a nova sede do abrigo, que, apesar de pronta, não pode entrar em funcionamento porque há muitos políticos que querem estar presentes na festa de inauguração e as agendas não coincidem. Entre trâmites burocráticos e negligência no serviço público, materializada na assistente 75


social Lídia (Gaby Haviaras), qualquer semelhança não é mera coincidência. Como bem resume Stycer (2014), “Os conselheiros são idealistas, mas obrigados a lidar com a falta de recursos do órgão. O juiz demonstra pouco entusiasmo com o trabalho, mas é vaidoso. E o promotor se mostra açodado, interessado em boicotar o esforço dos conselheiros tutelares”. Personagens femininas Três personagens femininas são fixas nos episódios da primeira temporada: Flávia, a ex-mulher de Sereno; a assistente social Lídia e a psicóloga Ester (Andrea Neves). Estas duas trabalham no Conselho Tutelar. Lídia é exuberante, corpo “tipo violão”, alta, veste-se bem, mas mostra um grande descaso pelo seu trabalho e falta de esperança nas instituições. Enquanto trabalha, fala ao celular com amigos ou com o namorado e dá pouca importância aos dramas que chegam até ela, como vemos, por exemplo, numa cena do primeiro episódio, em que uma senhora chega para denunciar que a sua patroa bate na filha adotiva. DENUNCIANTE: Eu queria conversar com alguém sobre uma coisa que está acontecendo. LÍDIA: Que coisa? DENUNCIANTE: É que eu tô com um problema, sabe? LÍDIA: Minha senhora, todo mundo que chega aqui está com problema. Qual é o seu? DENUNCIANTE: Eu não queria falar assim no meio de todo mundo. LÍDIA: Ô Ester, por favor, segura que essa é tua. ESTER: Ok. LÍDIA: A senhora vai conversar com essa abelhinha feliz, que ela vai resolver todos os seus problemas.

Já “abelhinha feliz”, à qual Lídia se refere, é Ester, a psicóloga que tem a função de ouvir vítimas e denunciantes, além de identificar quando estão falando a verdade20. O contraste físico entre as duas é evidente: enquanto Lídia é elegante e 20

Em um dos episódios, uma adolescente inventa que foi abusada pelo ex-namorado como forma de se vingar dele devido ao término do relacionamento dos dois. O roxo que marca seu rosto, parecendo

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possui o tipo de beleza valorizada socioculturalmente no Brasil; Ester é anã, o que pode ser considerado um estigma. Isso fica perceptível também na forma como as pessoas que chegam ao Conselho olham para Ester, alguns com certo incômodo ou surpresa, outros tentando parecer natural. Um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele se encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto. (GOFFMAN, 1978, p. 14)

Goffman (1978, p. 22) destaca a dificuldade de convivência naqueles “momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma ‘situação social’, ou seja, na presença física um do outro”, situação que gera incerteza e tensão de forma que o estigmatizado sempre tem a “sensação de não saber aquilo que os outros estão ‘realmente’ pensando dele” (GOFFMAN, 1978, p. 23). Apesar do nanismo21 ser algo de que o sujeito não pode se descolar, caracterizando o estigma, a condição física não parece ser um problema para Ester. Ela vive tranquila e feliz, sabe ouvir, demonstra preocupação com os outros, especialmente com as pessoas que buscam atendimento, e consegue obter depoimentos verdadeiros das crianças. “A criança não pode ser forçada, ela tem que sentir confiança”, revela a personagem a um dos conselheiros quando perguntada sobre a forma de descobrir os receios da criança. Um efeito de sentido importante é que, devido ao nanismo, a psicóloga tem o mesmo tamanho da maioria das crianças que atende, falando, assim, de igual para igual. Não há confronto, só conforto. Não haveria hierarquia, o que constitui um interessante recurso na criação e estruturação da narrativa, especialmente quando se considera sua função fundamental na resolução de conflitos que chegam ao Conselho. resultado de violência física, na verdade foi criada com maquiagem. A psicóloga consegue perceber pelo depoimento contraditório. 21

Acerca do nanismo, apesar da sua relativa invisibilidade midiática, é impossível não fazer uma associação com o anão Tyrion Lannister, personagem bastante popular vivido por Peter Dinklage na série televisiva da HBO Game of Thrones, exibida desde 2011. Vale ressaltar que os processos de estigmatização são inerentes à dinâmica social e os estigmas vão se alterando. Assim, se para Tyrion, ser um anão significava um grande prejuízo na época em que se passa a série; na contemporaneidade esse estigma parece ser mais atenuado a partir do estímulo a conviver com os diferentes. Outro exemplo de mudança do estigma com o passar do tempo são as tatuagens, banidas pela Igreja Católica na Idade Média, quando eram consideradas demoníacas, e hoje culturalmente aceitas como forma de expressão corporal.

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Embora as duas funções profissionais das personagens sejam distintas, fica evidente uma grande dissonância quanto ao perfil e ao comprometimento das mulheres. Enquanto Ester é acolhedora, Lídia mostra indisposição com o serviço e as pessoas, como vimos na cena acima e na frase que ela enuncia com bastante frequência, quase se tornando um bordão: “Tudo aqui é urgente. Se eu entrar nessa, não faço nada da minha vida”. Assim, ao tempo em que a postura de Lídia gera certa antipatia, há uma associação de valores positivos à personagem de Ester, que age com sensatez, humanidade e profissionalismo. Podemos entender tal efeito de sentido como uma alegoria, no sentido de que aponta para algo não explícito. A bela trabalha mal e é egoísta, enquanto a estigmatizada faz a sua função com muita dedicação e consegue melhorar a vida das pessoas. A alegoria é tomada aqui, em sentido amplo, como forma de discurso, estratégia textual, uma vez que na sua construção, há questões ideológicas que se formam e situam o discurso. Como Xavier (2005, p. 354) nos ensina: O conceito tradicional de alegoria como um texto a ser decifrado implica a ideia de um “significado oculto” a priori, uma concepção que transforma a produção e recepção da alegoria num movimento circular composto de dois impulsos complementares, um que esconde a verdade sob a superfície, outro que faz a verdade emergir novamente.

Outra chave de leitura possível para esse recurso da alta versus a anã seria que esta é mais generosa ou que, apesar da sua pequena estatura, “tem um grande coração”, como se diz na linguagem coloquial, ao passo que a beleza e o bom porte físico de Lídia estariam somente na superfície e seriam soterrados por sua mesquinharia, desdém e egoísmo. Ou seja, seria uma inversão do valor positivo ligado à beleza. Ao contrário de Ester, Lídia não mostra comprometimento com sua função, nem com as pessoas e crianças que deveria acolher e atender dentro de um serviço social. O comprometimento, aliás, é a grande mensagem da série: os conselheiros e a psicóloga envolvem-se e fazem todo o possível para resolver a situação. Em uma das cenas, Sereno adverte César para não aceitar convites para ser padrinho de bebês, situação que, apesar do aviso, acaba ocorrendo e demonstra o sutil limite entre as esferas profissional e pessoal. O jogo de cena entre as duas mulheres aponta para um significado oculto ou disfarçado, além do conteúdo aparente. Isso nos recorda que as linguagens 78


mobilizadas na vida social são sistemas não transparentes, que trazem no seu bojo um sistema de valores que não se pode ignorar, uma vez que os lugares de poder são construídos de forma discursiva. Quando Lídia enuncia “A senhora vai conversar com essa abelhinha feliz, que ela vai resolver todos os seus problemas”, o modo como se dirige à psicóloga na presença da denunciante já indica sua falta de profissionalismo e certa arrogância, na medida em que se acha mais importante que as outras duas personagens em cena. Trata-se de um jogo de demarcação em que cada personagem procura definir seu lugar e o modo como é vista pelos outros, como, aliás, acontece também na vida real, afinal, “os textos da cultura da mídia [...] são produções complexas que incorporam discursos sociais e políticos.” (KELLNER, 2001 , p. 13) Flávia, a ex-mulher de Sereno, é outra personagem feminina fixa que goza de algum destaque na trama. Pelo enredo, fica claro que eles se separaram pela obsessiva relação de Sereno com seu trabalho, em detrimento do pouco tempo dedicado ao filho e à esposa, situação criticada pela imprensa especializada: “Há clichês que mereciam ser abolidos, como as cenas da ex-mulher do conselheiro que reclama dos horários incertos do trabalho dele que destruíram o casamento. Ainda assim, a série empolga e merece a sua atenção” (KOGUT, 2014, online). Mais um clichê – um tanto forçado por sinal – é o seu novo relacionamento: Flávia namora o promotor André, grande rival de Sereno. Com isso, eles se enfrentam no Fórum e disputam a atenção de Flávia e do filho. Como Sereno não consegue administrar seu tempo de forma equilibrada, o menino sente a falta do pai, compensada pelo namorado da mãe, e com isso o embate é constante entre os dois homens. “Volta pra sua toca”: Tuane, a criança amarrada Dentre os variados casos de violência apresentados na trama com diversas personagens que aparecem e desaparecem assim que o conflito é solucionado, um dos mais impactantes é o de Tuane, mostrado no episódio 2. Trata-se de uma criança de cerca de seis anos de idade mantida em cárcere privado, amarrada. A violência é descoberta por uma costureira, que faz a denúncia. “Volta pra sua toca”, grita a mãe, ordenando que volte para debaixo da cama quando a menina está brincando com a outra irmã mais nova, Luiza. As duas recebem da mãe tratamentos diametralmente opostos – a mais nova é amada, está sempre bem vestida e arrumada. Enquanto isso, Tuane fica amarrada o tempo inteiro, seja debaixo 79


da cama ou dentro do armário de roupas, situação em que é encontrada pelos conselheiros. Levada ao hospital, Tuane recebe a visita de Sereno, que a encontra debaixo da cama – local que parece familiar para ela. Trata de uma cena de forte dramaticidade. Porém, a chave usada para se mostrar a violência a que a menina foi submetida anteriormente revela-se um pouco piegas: a menina pede um abraço a Sereno e solicita que ele fique ali. Comovido, ele não permanece no hospital, mas lhe entrega uma lupa que era um presente para seu filho, necessário para a feira de ciências da qual ele iria participar. Apesar de não falar nada, a menina olha para Sereno com gratidão e suave contentamento, gesto que pode ser analisado como a recompensa pelo grande envolvimento do conselheiro com sua função profissional em detrimento de sua vida pessoal. No Fórum, Vanda, a mãe agressora, explica a “razão” do desequilíbrio. Vítima de violência sexual dentro de casa por um ano, ela viu na gravidez resultante do estupro um prolongamento da existência do agressor. Tuane passou a ser amarrada assim que começou a engatinhar, a fim de tornar sua presença invisível: “Ela é a cara dele, eu odeio ele, eu odeio a Tuane. [...] Mesmo cheiro. Mesmo rosto”, compara a mãe. Em depoimento ao juiz, a criança, violentada, diz: “Eu não gosto de ver mamãe triste. Eu queria que ela ficasse feliz comigo igual ela fica com a Luiza. Eu fico bem quietinha debaixo da cama para ver mamãe feliz. Mas eu posso ficar mais quietinha ainda”. O juiz determina o afastamento da mãe e das filhas, cuja guarda é assumida pela avó. A mãe é encaminhada para tratamento psiquiátrico. Na saída do Fórum, a mãe se despede da Luiza enquanto Tuane implora por um beijo. A cena retrata – embora com eventual exagero de recursos melodramáticos – uma realidade perversa às vezes desconhecida, mas que existe, já que o roteiro foi criado a partir de casos reais. Além disso, percebemos também a tentativa de criar um efeito de real, através de diversos recursos, como, por exemplo, o lettering informando que é uma história de ficção inspirada em fatos reais e a inserção de depoimentos, com pessoas que se identificam, que marcam o encerramento de cada um dos cinco episódios. Tal recurso foi criticado por Scire (2014, online): “Já os depoimentos reais no final dos episódios lembram as novelas de Manoel Carlos na Globo. O merchandising social aqui é explícito e deixa as histórias ficcionais quase nada envolventes. No geral, Conselho Tutelar é um seriado pouco cativante”.

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No primeiro episódio, vemos em lettering “Izaura Vale, psicóloga”, que se identifica como “especialista em abuso sexual infantil” e conta um pouco sobre seu cotidiano de trabalho. Além dela, há na primeira temporada três depoimentos de parentes de vítimas e um último de uma assistente social. Tom didático O tom didático emerge fortemente na série e talvez esse seja um dos maiores empecilhos à evolução da história e ao envolvimento do telespectador. A narrativa parece muito ensaiada, com diálogos um tanto corretos e enunciados que estão, a todo tempo, ensinando a função do Conselho Tutelar – o que faz, o que não faz, qual o próximo passo. Por exemplo, trazemos aqui duas falas de Sereno: “Conselho Tutelar não cuida de quem tem mais de 18 anos”; “Aqui a gente só cuida dos problemas das crianças. O problema do casamento a senhora resolve sozinha ou com seu marido ou na justiça”. A reiteração de enunciados chega a se tornar cansativa. Nesse sentido, Scire (2014, online) considera o texto como principal problema da série: “apesar de não ser de todo sofrível, parece um jogral ensaiadinho, com um personagem passando a bola para outro na tentativa de deixar tudo explicadinho, mastigado demais”. Podemos interpretar dois recursos de “missão pedagógica” assumida pela série – de forma consciente ou não. Primeiramente, Sereno, o conselheiro veterano, ensina a César, o novato. Com isso, muitas informações são transmitidas para o telespectador, não somente sobre o funcionamento do Conselho Tutelar, mas também quanto aos personagens que vão sendo apresentados concomitantemente a César e ao público. Em segundo lugar, a divulgação de direitos das crianças é contínua e mesmo exagerada em alguns casos. É o que acontece na cena em que os conselheiros conversam com uma diretora de escola a fim de conseguirem matricular um aluno que está sendo recusado.

SERENO: Dona Giorgete, eu imagino que a senhora seja uma pessoa bastante ocupada. Mas acho que seria bom arrumar um tempinho para ler os clássicos, conhece? GIORGETE (diretora): Quê que é isso? SERENO: Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA. GIORGETE: Isso é alguma brincadeira?

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SERENO: Eu vou ler pra senhora: Artigo 53, capítulo quinto, “Toda criança tem direito à escola pública e gratuita próxima de sua residência”22. Pedro acabou de se mudar aqui pro bairro. A senhora quer conferir? GIORGETE: Não precisa. Vamos fazer a matrícula.

Tais diálogos levam a entender a série como uma espécie de cartilha de divulgação do Conselho Tutelar e do Estatuto da Criança do Adolescente, que poderia ser exibida em semanas de conscientização de direitos, em escolas, por exemplo. Trata-se apenas de uma ilustração que evidencia o teor exagerado de alguns enunciados que tematizam a questão social. No nosso entendimento, a intenção é louvável e importante num país onde poucos conhecem as leis, mas a construção discursiva da série ficcional acaba resvalando em uma abordagem construída com a função de formar e informar, tornando-se pouco sedutora ao telespectador. Ao final de cada episódio, após o depoimento e a vinheta final, surge como paratexto ainda a tela preta com o lettering: “Disque 100. A denúncia é anônima e o serviço gratuito”, reiterando a função de divulgação do Conselho e a importância da denúncia a partir dessa construção paratextual que reforça o que discutimos anteriormente. Considerações finais A produção da TV Record inovou na tecnologia, na atualidade do tema relevante e na abordagem delicada da violência com cenas tocantes e bem produzidas. No entanto, o exagero do didatismo talvez seja o principal impedimento para o maior envolvimento do telespectador e sua consequente imersão completa na narrativa. De forma crítica, Scire (2014) compara o texto a um jogral e diz que falta um pouco de comicidade para aliviar os dramas. Stycer (2014) também censura os excessos do texto, mas o avalia como um drama denso e envolvente. De fato, no geral, a trama foi bem-sucedida, levada por um elenco competente, com fotografia primorosa e grande dramaticidade. Outra inovação consistiu na emergência de novas imagens do feminino, considerando que o estigma do nanismo não é facilmente encontrado nas produções 22

Há algumas impropriedades na fala de Sereno, que seriam facilmente corrigidas com o apoio de alguém da área do Direito. Ele diz “artigo 53, capítulo cinco”: não se trata de capítulo cinco e sim de inciso cinco. Esse artigo está inserido no capítulo quatro do ECA.

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ficcionais do Brasil, sobretudo nas personagens femininas. Destaca-se, assim, a anã Ester, a psicóloga do Conselho Tutelar, personagem bastante amável e compreensiva com pessoas carentes de apoio e afeto. Em contraste, a bela e egoísta Lídia, mais preocupada com sua aparência e vida social do que com o bem-estar daqueles que procuram o Conselho. O confronto entre as duas pode ser considerado discursivamente como uma alegoria, revelando que a verdadeira beleza estaria associada à empatia e ao cuidado com o outro, e não à aparência física. A trama também se mostra rica quando se considera o tratamento dedicado a outros temas desse universo, como, por exemplo, a maternidade, o tratamento dos filhos e a violência sexual, mostrados na primeira temporada, mas cuja análise demandaria maior espaço. Sendo assim, limitamo-nos a apontar alguns pontos de partida para investigações futuras.

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Narrativas criminais e transmidiação: o caso Dupla Identidade Tomaz Penner

Psicopatas matam porque se sentem seguros, porque sabem que têm o controle nas mãos. Eles gostam de manipular tudo e a todos ao seu redor. É isso que os protege, eles são improváveis. Vera (Luana Piovani), psiquiatra forense da série Dupla Identidade (Brasil, 2014).

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Introdução: um novo cenário midiático A televisão, como produto direto das inovações tecnológicas que a humanidade constrói, passa por diversas transformações conforme o desenvolvimento material ao qual é submetida. No intuito de entender essas transformações e as “fases” pelas quais a TV passa, muitas terminologias e categorizações foram elaboradas. Neste artigo, trabalharemos com os conceitos de paleotelevisão e neotelevisão desenvolvidos por Eco (1983), que tiveram, no final dos anos 1980, bastante popularidade no campo científico (SCOLARI , 2014). Baseada em um contrato pedagógico, a paleotelevisão é resultado de um projeto popular de educação (SCOLARI , 2014), no qual os profissionais de televisão atuavam como propagadores de informações e saber, enquanto a audiência se reduzia a receptora desses conteúdos. Essa estrutura pressupõe uma hierarquia muito clara entre os detentores do conhecimento e aqueles aos quais esse conhecimento precisa ser transmitido. Para que se desenvolvesse, também foi necessário, durante muito tempo, que se considerasse o público como massa homogênea, que estaria disponível para consumir a produção televisiva. Uma característica marcante da paleotelevisão é a segmentação da programação em repartições muito claras, que facilitem a assimilação do contrato de comunicação estabelecido. Além dos programas específicos para crianças, idosos, musicais, automobilísticos e de outros gêneros bem definidos, a grade horária também era montada para seguir essa segmentação. Cada canal tinha horários e dias específicos para atender a determinado público: o dia e hora do entretenimento, do esporte ou do cinema, por exemplo. Ainda de acordo com Eco (1983), a neotelevisão opera de outra maneira, garantindo mais centralidade à audiência no processo de consumo de conteúdos televisivos. Casetti e Odin (1990) afirmam que três grandes papéis são atribuídos ao público nessa nova estrutura televisiva: o de “contratante”, com possibilidade de votar pelo telefone e interferir nos títulos exibidos; o de “participante”, com a audiência definindo desenvolvimentos e desfechos da trama, também por meio da intervenção pelo telefone; e o de “avaliador”, por meio de enquetes e sondagens partindo da produção para o público. Percebe-se, nessa nova estrutura, a descentralização da TV no apresentador como representante da produção e uma abertura maior à participação do 88


telespectador, que passa agora a atuar na programação televisiva. “Ela [a televisão] não é mais um espaço de formação, mas um espaço de convívio” (CASETTI; ODIN, 1990, p. 11). Sobre esse cenário dicotômico entre paleo/neotelevisão, Scolari esclarece: A oposição entre paleo/neotelevisão – que não negamos, foi muito útil no momento e entender as mudanças no meio e retrabalhar, a partir da semiótica, o conceito de fluxo desenvolvido por Williams (1975) – não pode ser isolada das condições sociais de produção de um determinado discurso teórico. A neotelevisão, como já vimos, surge quando os canais privados colocaram em discussão o monopólio da Radiotelevisione Italiana (RAI), durante o governo Bettino Craxi. De certa forma, pode-se dizer que a série teórica paleo/neotelevisão é um efeito colateral da irrupção no ecossistema midiático italiano de um novo ator, Silvio Berlusconi, no início dos anos 1980. E depois da neotelevisão, o que vem? (SCOLARI, 2014,

p. 41). Essa pergunta de partida proposta por Scolari é respondida pelo próprio autor em seguida: ele propõe que a contemporaneidade é o momento da hipertelevisão. Rejeitando o termo pós-televisão – por considerar que não estamos inseridos em uma era depois da TV, mas em uma sequência do seu desenvolvimento –, Scolari apresenta a hipertelevisão compatível à ascensão da sociedade em rede (CASTELLS, 1999). Nesse contexto, há a migração da concepção massiva de TV para uma ideia mais fragmentada da audiência, diluída tanto em relação aos conteúdos quanto aos dispositivos. Dado esse contexto, percebe-se que a televisão vive um processo de adaptação para sobrevivência. Ela precisa se espalhar entre várias telas e atender a públicos cada vez mais segmentados. Sobre o atual cenário da TV, Orozco esclarece que: [...] temos uma TV em transição, que está deixando de ser uma tela dominante para ser uma tela a mais entre muitas outras que, rotineiramente, atingem amplos setores da audiência. Nesse sentido, a TV compete, e tem competido, principalmente, por meio de canais pagos que se especializam para satisfazer os gostos particulares do público (OROZCO, 2014, p. 103).

Muito se fala sobre a “morte” da televisão, em uma predição de seu fim inevitável. Percebemos, entretanto, opiniões diversas entre os autores e tendemos a nos alinhar aos que defendem a transformação da TV e sua inserção em novos cenários, como a hipertelevisão descrita por Scolari.

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Esse fenômeno tem influência direta nas e das audiências, que estão cada vez mais fragmentadas. Elas se dividem entre números crescentes de mídias, plataformas e canais e têm possibilidade de fruir conteúdos mais especializados. O avanço tecnológico, que caminha ao lado dessas novas experiências culturais relacionadas à televisão, tem influência direta nos modelos de distribuição que vêm surgindo. A popularização de plataformas on demand propicia novas formas de recepção e participação mais individualizadas (MACHADO; VÉLEZ, 2014)23. Nesse contexto, não apenas a audiência, mas principalmente os produtores de conteúdo de televisão estão sendo desafiados a inovar em seus processos que se mostram defasados frente às inovações nas quais estão inseridos. A televisão, no entanto, ainda domina como um modelo de produção, distribuição e recepção – um modelo que muda ao longo do tempo para uma versão mais móvel em relação à norma dominante (MILLER, 2014).

A morte da televisão não está decretada. Como afirma Orozco (2014, p. 103), “[...] temos uma TV em transição, que está deixando de ser uma tela dominante para ser uma tela a mais entre muitas outras que, rotineiramente, atingem amplos setores da audiência”. Para os que profetizaram a sua “morte”, o fim dessa televisão capaz de reunir cotidianamente milhões e milhões de espectadores em torno de um programa foi decretado pela multiplicação das telas (computadores, tablets, celulares), pela fragmentação das audiências em canais temáticos, pelas inúmeras plataformas de distribuição de vídeos por demanda. A possibilidade de acessar conteúdos televisivos em outras plataformas, quando e onde quiser, permite agora ao espectador assistir a programas completos ou a seus fragmentos descolados da programação, “montando”, assim, sua própria grade. É inegável, certamente, que esse desprendimento do fluxo televisual implica novos modos de produção de sentido. Mas será que, diante da emergência de formas assincrônicas e personalizadas de consumo dos conteúdos televisivos, essa TV que se organizou como sistema broadcasting de comunicação, a partir de fluxo de conteúdos audiovisuais, tende mesmo a ficar apenas no passado? Com tantas possibilidades de escolhas de dispositivos e conteúdos, há ainda algum sentido em assistir à televisão acompanhando sua grade de programação? (FECHINE, 2014, p. 115).

No Brasil, apesar do investimento publicitário na internet ter crescido e, em 2013 – segundo dados do Anuário Obitel 2014 (OBSERVATÓRIO IBERO 23

Arlindo Machado & Marta Lucía Vélez: “Fim da Televisão?”.

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AMERICANO DA FICÇÃO TELEVISIVA, 2014) – já representar 7,3 milhões de reais, a televisão ainda é o maior foco de investimentos dos anunciantes. Em 2013, as cifras chegaram a 59 milhões de reais somente na TV aberta, alcançando um crescimento de 18% em relação ao ano anterior e o maior número desde o início do monitoramento, em 2007. Esses dados mostram a centralidade que o aparelho de televisão ainda assume no Brasil, apesar do crescimento de inserção de conteúdos em novos dispositivos. Esse fenômeno se repete com mais ou menos intensidade em todos os países latinoamericanos: Com pequenas variações em outros países [da América Latina], a TV e os demais outros meios massivos (rádio e impresso), ainda são os objetos preferidos do mercado. Dados recentes mostram, por exemplo, que, nas Américas, o investimento anual nesses meios cresceu, em 2012, para 2,615 bilhões de dólares (OROZCO, 2014, p. 97).

O que se percebe ainda comumente na indústria de mídia brasileira e latinoamericana é a tendência a “reciclar conteúdos das mídias mais antigas do cinema e da própria televisão tradicional” (MACHADO; VÉLEZ, 2014, p. 56) para os veículos que surgiram a partir da popularização da internet. No entanto, mais recentemente, vem crescendo a pressão para a criação de novos (e originais) conteúdos mais adaptados e competitivos para circular nos mercados das novas tecnologias. O que se apresenta é uma grande variedade de experimentações de formatos e narrativas na qual novos modelos de televisão são testados e aprovados ou não pelo avaliador final: o público. Apresentaremos a seguir Dupla Identidade como exemplo concreto dessa experimentação, uma produção feita para circular prioritariamente na televisão, mas com possibilidades inúmeras de interações e ofertas de conteúdos on-line. A questão que surge a partir da análise desse modelo é exatamente sobre a razão que levou Dupla Identidade a sair do universo televisionado e ocupar também os veículos on-line como proposta do âmbito produtivo. Estar presente nas novas mídias não permite que uma produção que pretende alcançar um grande público prescinda dos veículos tradicionais. [...] a propagabilidade tem expandido as capacidades das pessoas tanto de avaliar como de circular textos de mídia e, portanto, de dar forma ao ambiente de mídia. Nada disso pressupõe um fim do papel

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da mídia de massa comercial como talvez a força mais poderosa em nossa vida cultural coletiva. Em muitos casos, produtores e criadores de marcas decidem utilizar meios de comunicação mais participativos e meios informais de circulação, mas o objetivo final deles ainda é a difusão do conteúdo de mídia de massa [...]. Em toda parte, o conteúdo de mídia de massa continua a ser aquele que se espalha para mais longe, da forma mais ampla e da maneira mais rápida (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 315).

Nesse caso, Dupla Identidade esteve presente tanto na internet quanto nas telas das televisões. Essa propagabilidade à qual Jenkins, Ford e Green se referem ocorre em um movimento cíclico e retroativo. Na atual complexidade do mercado e distribuição de entretenimento, tanto as mídias tradicionais precisam das novas mídias para propagar seus conteúdos quanto o inverso ocorre em proporções maiores ou menores, dependendo da difusão tecnológica (e do acesso a ela) no local de onde se fala. Essa incerteza dos rumos da televisão e das novas tecnologias na transmissão de conteúdos de entretenimento leva, além das experimentações da produção e distribuição de conteúdos, a instabilidades mercadológicas. Os profissionais da TV precisam de meios para repercutir seus conteúdos na web e os produtores da web não podem abrir mão do alcance da televisão para projetarem seus conteúdos. Para trazer luz a esse debate, recorremos novamente a Orozco: Isso ajuda a entender, entre outras coisas, porque estão ocorrendo em países latino-americanos disputas ferozes entre empresários de diversos meios, sobretudo os da televisão, com os empresários das televisões e banda larga e telefones celulares, que quiseram e querem garantir um lugar privilegiado na era digital. O que significa que a TV, até agora, permanece como um dos principais jogadores no campo em que será definido o futuro das telecomunicações no mundo. O que não é pouca coisa. Também, não é fácil para a TV clássica, que terá que evoluir de diversas maneiras para sustentar-se nos novos cenários de comunicação global (OROZCO, 2014, p. 97).

Desse modo, percebe-se que, apesar das grandes transformações nos modelos de

produção,

recepção

e

consumo

dos

audiovisuais

de

entretenimento,

especificamente ficcionais, a televisão ainda é central no mercado e no cotidiano da população brasileira e latino-americana. É natural que as inovações (principalmente as que dependem de altos níveis de tecnologia) demorem mais a chegar a locais com o mercado midiático controlado por um punhado de empresários e onde a população careça de acesso de qualidade à internet e seja pobre demais para obter novos dispositivos tecnológicos. 92


Diante desse cenário, percebe-se que uma produção que busque alcançar interações transmídia não pode abrir mão da repercussão em ambientes on-line, mesmo que já tenha espaço garantido em mídias tradicionais como a televisão.

Dupla Identidade: uma narrativa criminal transmídia A transmidiação é abordada nessa pesquisa como um conjunto de ações estratégicas que tem origem no âmbito da produção da indústria de entretenimento. Desse modo, focaremos as análises nos conteúdos oficiais disponibilizados pela Rede Globo acerca da narrativa policial Dupla Identidade, que teve forte presença na internet. É importante ressaltar que esse título também teve como marca a profunda interação entre os fãs, que muitas vezes criaram e se relacionaram por meio de espaços não oficiais, surgidos espontaneamente. Esse fenômeno não é ignorado, mas não norteará as análises propostas para este trabalho. Levantamentos realizados pelos Anuários Obitel (OBSERVATÓRIO IBEROAMERICANO DA FICÇÃO TELEVISIVA, 2012; 2013; 2014) apontam a tendência da expansão das narrativas ficcionais ibero-americanas em plataformas além da televisão. No Brasil, o número de usuários de internet em 2013 superou a casa dos 102 milhões, sendo que, dentre esses, cerca de 60 milhões acessam conteúdo de televisão on-line e 4,4 milhões serviços on demand. O último triênio foi marcado pelo crescimento da inserção de conteúdos televisivos na internet, inclusive de grandes emissoras brasileiras. Rede Globo, Rede Bandeirantes e RedeTV! já disponibilizaram, em diferentes níveis, sua programação on-line. É possível observar, nesse cenário de convergência que se configura, empresas de internet produzindo e distribuindo conteúdos na televisão e empresas de televisão expandindo suas produções para a internet. What is it then that has been decisively altered? A broadcasting programme, on sound or television, is still formally a series of timed units. What is published as information about the broadcasting services is still of this kind: we can look up the time of a particular “show” or “programme”; we can turn on for that item; we can select and respond to it discretely (WILLIAMS, 2004, p. 89).

Nessa conjuntura, surge a narrativa policial Dupla Identidade, produzida e exibida pela Rede Globo. A trama conta a história de Edu (Bruno Gagliasso), que é aparentemente um “bom moço” que se envolve com Ray (Débora Falabella). Ela é 93


borderline e direciona sua carência à relação com o rapaz, que vive uma vida dupla e é também um assassino em série. A narrativa se desenvolve com as investidas de Dias (Marcello Novaes) e Vera (Luana Piovani) para desmascarar o assassino. A série criminal foi exibida pela Rede Globo, conforme colocado anteriormente, entre 19 de setembro e 19 de dezembro de 2014 (treze episódios). O texto é de Glória Perez e, a direção, de Mário Mendonça Filho e René Sampaio. Além da distribuição televisiva, Dupla Identidade contou com outros canais de contato e interação com suas audiências, estabelecidos on-line. Essa tendência já vem se consolidando há alguns anos pela Rede Globo (e, em menor escala, por outras emissoras brasileiras também), em um impulso mundial que reverbera no Brasil. Temos, portanto, como objetivo dessa pesquisa, levantar ações transmídia estabelecidas no âmbito da produção de Dupla Identidade e suas implicações com o fato de essa ser uma narrativa policial. Para começar, é importante lembrar a definição de transmídia escolhida para análise, que se refere a um conjunto de estratégias do polo produtivo. Essa conceituação obedece a uma lógica comercial que, a partir do transmedia storytelling (JENKINS, 2008), revela a tendência de estímulo à circulação de produções de entretenimento em múltiplas plataformas, de maneira complementar, culminando na criação de um universo narrativo próprio. Kinder (1991) já havia empregado o termo para se referir a personagens ou núcleos dentro da narrativa que se relacionavam com produtos extradiegéticos. Apesar de não se considerar, para essa análise, os espaços de interação criados pelos fãs, é impossível deixar de mencionar o protagonismo que as audiências alcançam no universo de produções transmidiáticas. Uma narrativa só circula com sucesso em várias plataformas com o engajamento dos usuários, em um processo sinérgico. Dupla Identidade foi escolhida para análise devido ao seu êxito nas interações estabelecidas com sua comunidade de fãs e às inovações que trouxe em suas ofertas transmidiáticas, que serão detalhadamente apresentadas no próximo tópico desse trabalho. Por ora, serão trazidas algumas caracterizações da obra como narrativa criminal, que nos ajudarão a realizar as análises, a fim de relacionar esse gênero como local privilegiado de experimentações no campo de produções multiplataformas, afinal:

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[...] pode-se dizer que a ficção policial situa-se num lugar privilegiado quando se trata de trabalhar no limite entre os polos alto/baixo, de desestabilizar tal dicotomia, até porque o motivo do crime se constitui num ponto de entrecruzamento de diferentes campos de produção cultural, como o literário, o jornalístico, o televisivo e o cinematográfico. Com o declínio da estética da provocação, os autores, visando alcançar o difícil equilíbrio entre agradar o público, obter sucesso comercial e preservar a complexidade, a dimensão crítica da obra, trabalham com uma multiplicidade de códigos, que se interseccionam no texto, permitindo diferentes níveis de leitura, para atender às exigências de um público variado. Preserva-se o enredo, sem preconceito para com aquele leitor que busca divertir-se com a intriga. Em contrapartida, oferece-se algo além da intriga, uma dimensão metalinguística e reflexiva, reforçada por inúmeras citações, que permite a outro tipo de leitor contemplar, de maneira distanciada e também nostálgica, as estratégias narrativas que criam o fascínio na primeira dimensão. No caso da narrativa policial, esse procedimento fica bem claro, porque enquanto o primeiro tipo de leitor busca a elucidação do enigma no nível do enredo, o segundo busca decifrar os enigmas da composição da obra a partir do reconhecimento das referências que se cruzam em seu tecido intertextual (FIGUEIREDO, 2013, p. 13).

A narrativa criminal Dupla Identidade conta com o trunfo de ter em seu eixo central o enigma, que precisa ser decifrado. De acordo com Figueiredo (2013), o fascínio da trama policial moderna não se configura pela violência apresentada, mas pelo mistério que envolve a solução racional do crime. Desse modo, uma narrativa policial se destaca nas possibilidades de transmidiação por jogar com esse mistério, que pode ser diluído em várias plataformas em vez de ser apresentado exclusivamente na televisão, por exemplo. Também é comum, para que os fãs sejam envolvidos, que se apresentem conteúdos exclusivos on-line que ajudem na compreensão do mistério sobre o qual a trama orbita. Além disso, esse tipo de produção conta com mais possibilidades por apresentar ao público pontos de vista diferentes dos criados para as personagens. Na medida em que nosso repertório sobre os assassinatos em Dupla Identidade é enriquecido com a apresentação de Edu como o serial killer, o mistério acerca de sua identidade permanece entre os investigadores e as pessoas com as quais ele se relaciona. Colocar a audiência nesse lugar privilegiado de informações é uma estratégia que conversa com a ambientação em múltiplas plataformas, uma vez que mais conteúdos podem ser buscados pelos canais oficiais de distribuição da série. As contradições fundantes da narrativa policial refletem, dessa forma, a própria fragilidade da divisão entre aquele que narra e

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aquele que investiga. O discurso do narrador alimenta-se do discurso do detetive, que parte de fragmentos para compor uma narrativa sobre a narrativa lacunar do crime já consumado. Privilegiando as observações dos sinais encontrados no mundo exterior, o gênero policial se estrutura como uma superposição de leituras que acaba por relativizar a precisão do conhecimento científico. Em meio a esta superposição, a matéria criminal torna-se um pretexto (no sentido daquilo que mascara, encobre o verdadeiro motivo) e um “pré-texto” sobre o qual se dobra um texto segundo, que o interpreta (FIGEIREDO, 2013, p. 5-6).

Percebe-se, portanto, que a narrativa policial de enigma se configura como uma busca pela verdade, que coloca investigadores e criminosos em pé de igualdade quando nos referimos à primazia com que realizam e solucionam os crimes, respectivamente. Nesse processo, a audiência é situada em posição privilegiada, que a coloca a par do que é desenvolvido e expande suas possibilidades de busca de informações em plataformas que orbitam a série televisionada. Cabe agora realizar uma averiguação de quais possibilidades são oferecidas pelo âmbito produtivo de Dupla Identidade para que os fãs explorem a narrativa, aumentem repertório acerca da obra e elevem a produção à transmidiação para a qual ela se propõe. Ofertas transmidiáticas em Dupla Identidade Para começar a análise empírica, fizemos um levantamento da oferta transmidiática da série Dupla Identidade em suas páginas oficiais. Foi possível perceber que os conteúdos referentes à produção se concentram no site oficial24, em uma estratégia recorrente na Rede Globo de não utilizar as redes sociais para propagar seus materiais de entretenimento. Desse modo, as redes sociais são espaços de criação dos fãs, concentradas principalmente em páginas não oficiais no Facebook, Twitter e Instagram, além de fanvideos no YouTube. Para essa pesquisa, entretanto, foram concentrados esforços de análise dos conteúdos oficiais disponibilizados pelo site e suas propostas de interação transmidiáticas com os usuários. Em consulta realizada na segunda quinzena de maio de 2015, foi observado na página inicial do site de Dupla Identidade um banner dinâmico que revezava chamadas para quatro conteúdos principais. A seguinte tabela é apresentada para especificar esses conteúdos: 24

Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/dupla-identidade/>. Acesso em: 1 fev. 2016.

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Produção

Site oficial

Dupla

<http://gshow.globo.com/programa

Identidade

s/dupla-identidade/>

Ofertas transmidiáticas no banner principal Último

episódio:

“assista

aos

principais

momentos do final de Dupla Identidade”. Último episódio: “veja as vítimas do serial killer Edu ao longo do seriado”. Dupla Identidade.doc: “aparências enganam! Especialistas alertam para o convívio com psicopatas”. Interatividade:

“comente

agora

Dupla

Identidade e participe das enquetes”.

Tabela 1: Conteúdos disponíveis no site oficial de Dupla Identidade

No primeiro link disponibilizado, “Último episódio: ‘assista aos principais momentos do final de Dupla Identidade’”, são apresentados conteúdos referentes ao episódio final da série, exibido em 19 de dezembro de 2014. A princípio, é feita uma sinopse da trama para que, em seguida, vídeos exclusivos com pequenos trechos da obra sejam ofertados para consumo dos usuários on-line. São cinco vídeos que sintetizam o último episódio e não trazem conteúdos extras, apenas repercutem o que foi exibido anteriormente na televisão (FECHINE, 2013). Já o segundo link ofertado, “Último episódio: ‘veja as vítimas do serial killer Edu ao longo do seriado’”, traz o mesmo esquema de vídeos curtos apresentados em sequência. Dessa vez, são oito deles mostrando as cenas e personagens vitimados pelo assassino em série. É interessante observar que essa página foi ao ar dia 19 de dezembro, data de exibição do último capítulo da série. Ao fim do link, inclusive, é apresentada uma chamada para a televisão: “Será que mais alguém será pego por Edu? Fique ligado em Dupla Identidade! O último episódio do seriado vai ao ar nesta sexta, 19/12, logo após o Globo Repórter”25. Essa estrutura deixa clara uma dinâmica retroativa entre o site oficial e o conteúdo televisivo, de maneira que um estimula o consumo do outro, convidando a audiência a um passeio entre as plataformas. O terceiro link ofertado, “Dupla Identidade.doc: ‘aparências enganam! Especialistas alertam para o convívio com psicopatas’”, apresenta a parte final da websérie Dupla Identidade.doc, dividida em sete episódios, que trazem entrevistas com especialistas, peritos, produtores de Dupla Identidade e com Glória Perez, 25

Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/dupla-identidade/Extras/noticia/2014/12/ultimoepisodio-relembre-vitimas-do-serial-killer-edu-em-dupla-identidade.html>. Acesso em: 1 fev. 2016.

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criadora da obra, principalmente relacionadas aos temas “serial killers” e “psicopatia”. É interessante observar que a websérie serve inclusive como instrumento de legitimação da narrativa ficcional, uma vez que as falas dos entrevistados são muitas vezes ilustradas com cenas da série que retratam exatamente o que é narrado pelos especialistas. Percebe-se, desse modo, que a websérie, por trazer elementos extradiegéticos relacionados à série, proporciona às audiências novas possibilidades interpretativas, elevando quem a acessa a um segundo nível de leitura, que não é alcançado com a fruição unicamente pela plataforma televisiva. Além disso, os conteúdos repercutidos on-line revelam a pesquisa feita para a confecção da produção, reafirmando o pacto de leitura estabelecido com o público, que pressupõe verossimilhança à obra ficcional, nesse caso específico. O quarto e último link apresentado no banner principal do site de Dupla Identidade, “Interatividade: ‘comente agora Dupla Identidade e participe das enquetes’”, traz uma proposta de segunda tela. Com espaços para comentários simultâneos à exibição da série na televisão e enquetes propostas pela produção, a página se aproxima de maneira interessante da interatividade almejada em produções transmídia, principalmente no que se refere à relação estabelecia com os fãs. Uma vez que a política da Rede Globo se revela como ausência ou redução da participação nas redes sociais, espaços como esse são importantes para que o contato entre os membros das audiências e as comunidades de fãs não se perca. Essa estratégia revela, ainda, a intenção de capitalização de conteúdos da emissora, visto que ela entende que não deve disponibilizar suas produções gratuitamente para outros sites e mesmo redes sociais, de maneira que ela mesma concentre sua repercussão em ambientes próprios e oficiais. Além dessas possibilidades de interação, a página principal também apresenta um link com extras de produção da gravação do último episódio de Dupla Identidade. Por meio da apresentação de Bruno Gagliasso, os bastidores da feitura da obra, que contou com a presença de Glória Perez, são revelados. A estrutura do vídeo e do texto expostos nessa página funcionam como uma chamada para o último episódio da série, de maneira que novamente é possível observar o sistema de retroalimentação entre televisão e plataforma on-line, conforme apontado anteriormente. Também com essa proposta, é apresentada uma entrevista com Bruno Gagliasso, revelando como ele gostou de interpretar Edu e trazendo mais elementos 98


para convidar a audiência a fruir o último episódio, que, nesse ponto, ainda não havia sido exibido na televisão. Mais links são revelados, convidando o público a passear pela narrativa ficcional em uma espécie de retrospectiva que mostra desde as pistas que levaram Edu para a cadeia até a opinião da personagem da mãe de Edu sobre o desenvolvimento da trama. Percebe-se, desse modo, os conteúdos on-line agindo como chamarizes para a plataforma televisiva. O site traz, ainda, uma chamada para página que apresenta a vida de Ted Bundy, psicopata americano que se tornou um dos serial killers mais famosos dos Estados Unidos. Ele é descrito de maneira que suas características são apresentadas paralelamente à construção do personagem Edu, o que legitima mais uma vez a verossimilhança da obra ficcional. Percebe-se, nesse e em outros pontos dos conteúdos disponibilizados on-line, o intuito de garantir uma função social à narrativa, que se revela como difusora de informações acerca da psicopatia e possibilidade de reconhecimento de um serial killer em potencial. Por fim, uma iniciativa muito interessante de transmidiação foi proposta pela própria Glória Perez. Ela abriu em seu blog uma aba26 para revelar detalhes da pesquisa estabelecida para a criação de Dupla Identidade. A página não é uma iniciativa resultante de um planejamento estratégico, mas se configura no âmbito da produção, visto que é feita pela escritora da série. O blog esteve ativo entre o dia primeiro de junho e 19 de dezembro de 2014 e trouxe muitas informações sobre o transtorno de personalidade borderline, assassinatos em série, psicopatia, psicologia forense, curiosidades sobre crimes notórios, outras narrativas policiais (a série norteamericana Dexter, por exemplo), dados neurológicos e psicológicos sobre a construção de pessoas desajustadas ao convívio social, entre outros temas relacionados à obra. Essa iniciativa é, sem dúvida, mais uma ferramenta de estreitamento da relação com os fãs e traz informações importantes para complementar a leitura da série televisionada. O fato de se tratar de uma narrativa criminal garante apelo à busca pela solução do enigma apresentado, o que corrobora para o estabelecimento de maiores níveis de engajamento do público nas potencialidades transmidiáticas. À guisa de conclusão, o próximo tópico do artigo apresentará relações encontradas entre as ofertas transmídia de Dupla Identidade e suas correlações com o caráter criminal. 26

Disponível em: <http://gloriaperez.com.br/duplaidentidade/>. Acesso em: 1 fev. 2016.

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Experimentações transmídia em narrativas criminais A partir do exposto, é possível considerar a transmidiação em Dupla Identidade como parte fundamental da constituição da obra. A narrativa televisionada, por muitas vezes, caminha paralelamente às interações estabelecidas on-line e se apoia nela para o aprofundamento da compreensão da ficção. Desde a concepção da produção, esse fenômeno é resultado de um trabalho direcionado para a transmidiação, realizado por uma equipe especializada e responsável por um setor transmídia dentro da Rede Globo que elabora e executa as ações. Apesar da tradição transmidiática estabelecida pioneiramente pela Rede Globo no mercado de ficção seriada latino-americana, pretende-se trazer na conclusão desse artigo aspectos que colocam as narrativas policiais em local privilegiado de experimentação. O volume e alcance das ações transmídia de Dupla Identidade a tornam um caso de sucesso quanto às investidas realizadas pela internet, justamente porque: Surgido em meados do século XIX, momento em que se afirma a divisão entre dois regimes de produção cultural, o cultivado e o popular, o gênero policial desafia essa partilha, situando-se na interseção entre tais regimes. A maquinaria engenhosa que o constitui, como observou Jacques Dubois, dá origem a um dispositivo textual ao mesmo tempo rígido e flexível, do qual derivam “tanto textos que se limitam a reproduzir mecanicamente suas regras quanto textos inventivos e semanticamente plurais”. Fruto das transformações ocorridas com a modernidade, o gênero é reinventado a cada época. Na atualidade, ajusta-se bem à disposição crítica pouco afeita a antagonismos rígidos, avessa a rupturas radicais com parâmetros do passado, e que, por isso, não rejeita a pertinência genérica em nome do experimentalismo, evitando romper os pactos que facilitam a comunicação com o leitor (FIGUEIREDO, 2013, p. 12-3).

Desse modo, o gênero policial se estabelece suscetível às transformações de seu tempo, mais afeito a mudanças em modelos narrativos exatamente por sempre estar apoiado ao mistério original do crime que guia a narrativa. Os aspectos colaterais da trama são flexíveis, visto que o conflito central, a busca pela solução do mistério, permanece no enredo. Desse modo, podem ser estabelecidas variações do pacto de leitura com o público de maneira mais flexível (ECO, 1994). É essa lógica que impera em Dupla Identidade. À medida que o mistério acerca de Edu permanece integralmente na narrativa televisionada, satélites da trama 100


circulam a obra pela internet, trazendo novas informações e possibilidades de fruição. Também são revelados elementos extradiegéticos que conectam a produção ficcional à realidade material na qual ela está inserida. Nesse ponto específico, foi possível perceber inúmeras tentativas de justificação da verossimilhança pretendida em Dupla Identidade. Principalmente por meio da websérie Dupla Identidade.doc, foram apresentados casos que legitimam a construção das personagens principais da obra, argumentando, principalmente, que qualquer nuance delas pode ser encontrada em pessoas reais, especialmente entre psicopatas e detentores do transtorno de personalidade borderline. Outro aspecto interessante que toca a realização da obra é o setor na página da escritora Glória Perez que se dedica exclusivamente à pesquisa realizada para Dupla Identidade. Espaços como esse permitem a um leitor de segundo nível que perceba a seriedade e o comprometimento a partir dos quais a narrativa se constrói. Novamente, servem para legitimar a verossimilhança e definir claramente qual o pacto de leitura estabelecido entre produção e audiência. Essas razões proporcionam às narrativas criminais, especialmente, muitas possibilidades de experimentações transmidiáticas. Além disso, Figueiredo coloca que: O gênero policial, apropriando-se do esquema de investigação de crimes instituído pela modernidade, para transformá-lo numa espécie de modelo gerador de narrativas, caracteriza-se pelo amplo potencial de reprodução a partir de pequenas variações, adaptandose bem ao princípio da serialidade e à transposição para diferentes mídias. Afina-se assim também com uma sociedade regida pela vertigem da reprodutibilidade incessante, as que não abrem mão do inventário e do controle. A analogia entre o detetive e o voyeur, que Hitchcock já explorava no filme Janela Indiscreta (EUA, 1954), pode ser estendida, hoje, àquele espectador que se diverte com a indiscrição, com a possibilidade de devassar a vida privada, o cotidiano do outro, diante de uma tela de televisão ou de computador – as redes sociais oferecem ao detetive/voyeur um vasto campo de observação (FIGUEIREDO, 2013, p. 12-3).

Desse modo, as possibilidades das narrativas criminais têm seu alcance ainda mais expandido na era da convergência. A voyeurização das audiências atinge importância especial nesse tipo de obra, de forma que os conteúdos on-line suprem a necessidade cada vez maior de compreensão profunda de cada detalhe da narrativa. Essa busca por informações não se encerra nos espaços oficiais analisados nesse artigo. Além disso, as redes sociais têm papel fundamental nesse processo, por se 101


configurarem como locais de troca e interação entre os fãs. O olhar aprofundado para as propostas da produção, no entanto, ajuda a perceber essa tendência altamente disseminada e potencializada em narrativas criminais. É possível concluir, portanto, que existe uma onda de transmidiação nas produções ficcionais seriadas brasileira e latino-americana. Esse aspecto do mercado se profissionalizou e capitalizou, de maneira que as propostas de interação são mais pertinentes, e as relações com as audiências, mais profundas. Quando se fala em narrativas criminais, observa-se um campo ainda mais aberto às experimentações, devido, principalmente, à estrutura tradicional apoiada na resolução de um mistério, que traz possibilidade de reformatação e adaptação de aspectos periféricos da narrativa sem perda do eixo central que a regula. Desse modo, Dupla Identidade foi uma produção que obteve êxito em suas propostas transmidiáticas e expande os horizontes de estratégias e ações transmídia não apenas para esse gênero específico, mas para a realização ficcional seriada brasileira.

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Televisão e educação: um diálogo das séries criminais no Ensino Médio Wellington Luiz Salgado

I will kill your wife, I will kill your son, I will kill your infant daughter. Gustav Fring (Giancarlo Esposito), em Breaking Bad (EUA, 2008).

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Introdução A pesquisa proposta neste trabalho é resultado de estudos na área da comunicação e da educação, voltados às produções midiáticas e à contribuição delas para a educação, principalmente no que diz respeito às estratégias pedagógicas no Ensino Médio. A ideia de criar novas linhas de discussão e debates sobre produtos ficcionais criminais consumidos pelos alunos, e inseri-las em sala de aula entre professores e estudantes do Ensino Médio – na faixa etária entre quinze e dezoito anos – possibilitou um melhor conhecimento da área da Educomunicação que alinha esse processo educacional com as várias possibilidades de diálogo trazidas pela comunicação e suas produções ficcionais: seriados, séries, telefilmes, novelas, animação, games e cinema. A atração dos alunos pelos seriados criminais foi detectada em virtude da admiração pelas narrativas (MITTEL, 2012) e pelo enredo das obras. No questionário proposto aos alunos envolvidos na pesquisa, ora os alunos exaltavam o marginal pelas ações e sua inteligência, ora elogiavam os policiais como “mocinhos” da obra apresentada27. No momento de responderem, o interesse dos alunos de ter contato com os seriados policiais a que assistem aumentou. O questionário foi utilizado como estratégia pedagógica para ampliar os debates em sala de aula, principalmente para abordar assuntos como a violência e o crime na sociedade atual, os crimes bárbaros presentes no nosso cotidiano em telejornais sensacionalistas e a questão da polêmica presença do Estado com a força policial. Essa estratégia de aproximar-se à realidade do aluno e do produto ficcional consumido por ele permitiu debates atraentes, pois a materialização do estereótipo do policial ou bandido criado nos seriados, muitas vezes, é questionada pelos alunos, ou como fora do real, ou pela sua proximidade com a realidade. O que é presenciado pelo aluno no cotidiano e no ficcional não é mais um tabu entre o mediador e o educando, pois, se o professor conhece o mundo ficcional consumido por esse público, é possível uma melhor interação ao buscar na mídia os temas pelos quais os alunos se interessam e adaptá-los ao currículo escolar como fonte de debate e discussões. A intenção não é substituir o conteúdo programático pedagógico, mas, sim, complementar a programação pedagógica. 27

Questionário realizado com alunos do Ensino Médio. Eles relataram os seriados criminais de que mais gostavam, e 99% das obras citadas são americanas. A faixa etária do grupo pesquisado vai dos quinze aos dezoito anos.

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Para justificar a discussão sobre séries criminais na aula de história, achamos importante relatar um fato ocorrido em uma das discussões no encontro proposto na pesquisa28. Durante a conversa, um aluno levantou o braço e falou que era “muito legal o assassino da série Dexter, que é assassino, mas é bom”. Nesse momento, abriu-se um leque de indagações que poderiam ser abordadas como: o que é crime? Quais os tipos de violência e quais são as suas consequências? Será que a ficção imita a realidade? Como o criminoso é representado pela obra ficcional e como ele é realmente? E os departamentos de polícia representados nas obras, dá para comparálos com a realidade que você conhece no seu bairro? E o justiceiro, ele faz realmente a justiça? Por que muitas vezes ficamos ao lado do criminoso? A pobreza, a injustiça, justificam um crime? Com as várias possibilidades do uso de obras midiáticas na educação, também podemos criar um ambiente de discussão entre a História e a atualidade, pois o imaginário da sociedade sobre o marginal romântico, ou justiceiro (LUSVARGHI, 2015), está presente, também, na preferência do público pesquisado, evidenciada nos seriados televisivos consumidos pelos alunos. Por exemplo, em uma aula de história do Brasil, foi possível questionar as ações do protagonista da série Dexter (personagem admirado pelos alunos), ou seja, indagar se é correto fazer justiça com as próprias mãos. A partir disso, é possível explicar a ideia do banditismo no Brasil no final do século XIX e no início do século XX (OLIVIERI, 1997) com a figura de Lampião, por exemplo, e mostrar vários pontos importantes: o fora da lei; crime é crime, e não existem justificativas; as questões sociais que levaram Lampião e seu bando para a criminalidade (são uma explicação para a ação, mas não uma justificativa); qual é a motivação dos crimes, tanto na história do Brasil (no exemplo citado acima) como na produção dos seriados ficcionais criminais; etc. A ideia não é comparar o personagem ficcional do seriado Dexter com o Lampião, nem é a proposta do texto, e sim mostrar suas ações perante a sociedade e suas regras, normas e leis, e questionar o certo ou errado. Enfim, vários ganchos são possíveis por meio de criatividade, dedicação, pesquisa e aproximação do gosto midiático do aluno como ferramenta na estratégia pedagógica de ensino e, assim, usar mais um aliado na educação: a comunicação e suas produções ficcionais. 28

Os questionários com cinco perguntas e encontros para debates e discussões ocorreram de seis a dezessete de abril de 2015 num colégio particular de Ensino Médio, no interior paulista.

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É dentro dessa interface da comunicação e da educação que pretendemos analisar os seriados criminais a que os alunos do Ensino Médio mais assistem. O interesse é alinhar o consumo midiático dos alunos com discussões propostas a partir de temas transversais29 sobre ética e justiça social. E, com isso, podemos promover cada vez mais o uso da linguagem audiovisual em sala de aula para mediar muitas questões às quais somente com o uso do livro didático não se consegue, frustrando professores e os alunos. Com essa estratégia do uso da mídia e recursos tecnológicos na sala de aula, o ensino fica mais próximo da realidade dos alunos, que estão, muitas vezes, inseridos em ensinos arcaicos e entediantes, somente com livros e lousas, mas com um mundo tecnológico muito mais interessante fora dos muros da escola que possibilita outras formas de se chegar ao conhecimento. A sociedade tecnológica, que é indiscutível na atualidade, tem acesso a novos meios de conhecimento, deixando menos atraente a instituição de ensino que vem com a sua proposta educacional, em geral, ultrapassada, como citado. Assim, como diz Almeida (2014), é perceptiva a necessidade de adaptação às mudanças nas escolas: Como instituição social, a escola é historicamente situada e, portanto, está sujeita às mesmas influências e transformações que afetam a sociedade como um todo. Para manter-se eficiente e eficaz e prestar o serviço adequado que a sociedade espera dela, não pode estagnar nem ignorar os avanços que marcam o mundo contemporâneo (ALMEIDA, 2014, p. 2).

Por isso, é preciso, não somente atentar-se ao uso das produções midiáticas e da

tecnologia

como

importante

instrumento

didático-pedagógico,

mas,

principalmente, às suas possibilidades educacionais de reflexão e discussão, visto o rico ecossistema comunicativo30 proporcionado por esses artefatos técnicos e suas produções culturais, garantindo um verdadeiro diálogo entre a comunicação e educação. Nesse ponto, a instituição escola e suas teorias precisam aceitar e perceber as mudanças atuais para se adaptarem aos movimentos do mundo moderno e sua 29

De acordo com o documento Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio, do ano 2000, do Ministério da Educação brasileiro, “os temas transversais expressam conceitos e valores básicos à democracia e à cidadania e obedecem a questões importantes e urgentes para a sociedade contemporânea. A ética, o meio ambiente, a saúde, o trabalho e o consumo, a orientação sexual e a pluralidade cultural”. 30

Ismar Oliveira Soares (Educomunicação, p. 43) denomina como uma área de intervenção o uso do ecossistema comunicativo pelo mediador. Ao citar Jesús Martín-Barbero, a discussão é que o ecossistema agora tem relação direta com a vida social e aprendizagem, pois possibilita a mistura de linguagem e saberes.

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gama de produção midiática e tecnológica, saindo assim de seus muros e métodos ortodoxos. Quanto à percepção, Martín-Barbero (2014, p. 121) observa que “essa mudança de fundo não é percebida nem assumida pelas nossas enésimas e inerciais reformas educativas, isso condena o sistema escolar a uma crescente esquizofrenia com sua própria sociedade.”. Essa é uma consideração não difícil de notar, partindo dos passos de projetos educacionais que acabam deixando de discutir a importância do diálogo da comunicação na educação, o uso da mídia, das redes, não só a discussão do investimento de aparato técnico, mas o seu uso regular, competente, funcional e educacional que proporciona um profundo debate pedagógico e social. Neste artigo, a metodologia de pesquisa utilizada foi bibliográfica. Partimos de leituras nas áreas de Comunicação e Educação como justificativa teórica do uso dos recursos tecnológicos no campo educacional do Ensino Médio. Além disso, foi feita uma pesquisa empírica com alunos de uma turma do Ensino Médio. Nessa série, foram propostos debates e discussões com os estudantes para entender as questões que mais chamam a atenção deles quando consomem o seriado ficcional, além do nível de envolvimento com o enredo e os personagens da ficção. Por último, foi proposto um questionário com cinco perguntas, sendo elas: a preferência de seriados; os meios de comunicação (TV a cabo e internet) mais usados; a que eles assistem e em quais canais; qual o gosto (a preferência é pelo bandido ou pelo policial?); e de quais filmes nesse gênero (criminal) eles mais gostam. Com isso, acredita-se que foi possível levantar dados suficientes para promover essa pesquisa. A estratégia pedagógica e a mídia A discussão levantada em sala de aula sobre violência e crime na atualidade foi bem recebida pelos alunos por permitir o relato daquilo que impressiona e se torna normal no cotidiano do jovem. Ao entender a necessidade que o aluno tem de expressar suas experiências, seja na vida real, seja na ficção, propusemos aproximarnos do aluno com diálogos e debates, mas usando o produto televisivo consumido por eles. A aceitação é quase total dentro das salas de aula do Ensino Médio, principalmente quando o assunto são seriados, novelas, cinema, games e animação. Para isso, é preciso atenção devida no alinhamento entre a proposta pedagógica e a comunicação e seus produtos sociais. Essa estratégia, de levar o produto midiático 110


para a instituição de ensino, já vem sendo discutida pelos intelectuais da comunicação e da educação como nova possibilidade de criar meios para o conhecimento de forma mais atraente e menos ortodoxa. Convém lembrar que já ocorre um movimento nacional para abastecimento de aparatos tecnológicos na escola; porém, a implantação deles ocorre muitas vezes sem o planejamento correto, pois, em geral, há falta de técnicos especializados para realizar a manutenção dos aparelhos, além de faltar preparação dos docentes e de toda a comunidade escolar para usar adequadamente os aparelhos. Enfim, a proposta nesse artigo não é discutir a forma de investimento, nem criticar o planejamento das instituições, mas evidenciar a contribuição que o uso da ficção midiática pode ter na grade curricular do Ensino Médio. A quantidade de produções de obras ficcionais e suas várias linguagens possibilitam um grande aliado – à educação –, a partir do ecossistema midiático disponível e o acesso da massa social aos meios de comunicação, como Citelli (2000, p. 265) diz: Em linhas gerais, pode-se caracterizar o campo da pesquisa em estudos de mídia como dizendo respeito às complexas relações que os meios de comunicação estabelecem uns com os outros, tendo em vista questões relativas à tecnologia e às linguagens empregadas pelos meios de comunicação, bem como ao modo como seus produtos são apropriados por diferentes agentes sociais.

O rico leque proporcionado pelo ecossistema midiático e o fácil acesso dos alunos a ele, na atualidade, possibilitam ao mediador utilizar o produto cultural ficcional para atrair os alunos em aulas com debates e discussões. Muitas vezes, esses debates passam despercebidos pelo aluno, mas, com a mediação (CITELLI, 2000, p. 351-2) realizada pelo professor atento ao conteúdo midiático e ao seu público escolar, pode-se atingir com maior êxito o objetivo proposto na discussão. Assim, ocorre o enriquecimento da relação entre docente e discente, criando meios para uma educação mais coesa com o cotidiano real do aluno fora dos muros escolares, mesmo que seja por via de obras ficcionais televisivas.

A interface da comunicação e educação Os mundos do educando e do professor ficam distantes pelas diferenças criadas pelo mundo da tecnologia e das habilidades dos alunos. Por isso, há a necessidade de uma nova área de intervenção na educação, a Educomunicação, e de seu profissional, o educomunicador, como descreve melhor Soares (2011, p. 67): 111


Explicando melhor: trata-se de um profissional em condições de atender às demandas do ensino formal (é um licenciado, por isso pode lecionar), sendo-lhe facultado o acesso às diferentes áreas do trabalho profissional que não exigem diplomas específicos, mas que requerem saberes apropriados: falamos da área da consultoria nos diferentes espaços em que a interface comunicação/educação gera processos e produtos, a saber: a produção mediática dirigida à educação e ao trabalho nas organizações do terceiro setor, voltadas para a relação entre mídia e infância/juventude. Licenciado e consultor, o novo profissional é necessariamente um pesquisador, seu terceiro foco de atividade, no campo da Educomunicação.

O educomunicador tem, portanto, várias funções, atuando na interface dos meios e da educação, tais como na consultoria e gestão da sala de aula. Desse modo, o professor de qualquer disciplina está atento ao uso da tecnologia e à mídia na educação, atua como o mediador entre os meios e os jovens, e conduz, com mais propriedade, as discussões e debates com alunos. Para os pesquisadores da área no Núcleo de Comunicação e Educação da USP, a Educomunicação designa um campo de ação emergente na interface entre os tradicionais campos da educação e da comunicação, apresenta-se, hoje, como um excelente caminho da renovação das práticas sociais que objetivam ampliar as condições de expressão de todos os seguimentos humanos, especialmente os da infância e da juventude (SOARES, 2011, p. 15).

A área possibilita um melhor diálogo de discussões e saberes com o aluno, receptor, consumidor, protagonista social, no caso, vários conceitos nos quais a escola poderia trabalhar melhor, mas deixa a desejar. Com o conhecimento das teorias da Educomunicação, o uso das tecnologias e dos meios, o ensino tende a ganhar nesse duro processo de mudanças e rupturas do método tradicional para novos métodos aliados com a tecnologia. Participamos de um momento de mudanças revolucionárias na educação, no qual a tecnologia se insere com muita velocidade e a comunidade escolar não acompanha tais transformações, ficando a serviço apenas dos símbolos, signos e letras, como sugere Costa (2013, p. 23): É nesse cenário que a educação tem que rever seu paradigma letrado e adentrar no campo das imagens e das linguagens tecnológicas para que possa ultrapassar as barreiras que separam duas culturas: uma eurocentrada, iluminista e burguesa, baseada na escrita como forma de produção e controle do conhecimento; e outra, globalizada, massiva, baseada em múltiplas linguagens e tecnologias de

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comunicação, dentre as quais se afirmam de forma hegemônica os meios audiovisuais.

Isso demonstra a necessidade do professor de qualquer disciplina de procurar novas metodologias e seu uso coerente no processo educacional, lembrando que essa tarefa não é fácil e nem rápida: a transformação da visão tradicional e conservadora da educação. Para isso, são necessários debates, discussões e pesquisas para justificar a necessidade de mudança em alguns aspectos da educação aristocrática, conservadora, elitista, erudita, como sugere Costa (2013). Nesse sentido, procuramos não diminuir a importância do livro didático, do uso da lousa e de outros instrumentos e métodos, mas sim buscar complementar os estudos com novas ferramentas pedagógicas como aliadas do ensino, como sugere Napolitano (2010) quando se refere às novas possibilidades do educador: [...] o uso de fontes audiovisuais e musicais pelo historiador pode ir além da “ilustração” do contexto ou do “complemento soft” de outras fontes mais “objetivas” (escritas ou iconográficas), revelando-se uma possibilidade a mais de trabalho historiográfico (NAPOLITANO, 2010, p. 238).

Como demonstram as palavras de Napolitano, as mídias podem ser uma grande ferramenta pedagógica do professor de História (ou outra disciplina) no que se refere ao ensino ou à materialização do contexto histórico ou atual, não só com o uso das novas tecnologias, mas também com a exploração das várias possibilidades de análises educacionais e ferramentas didáticas. Os alunos e os seriados ficcionais Nas pesquisas realizadas com 40 alunos do 1º e do 3º ano, a partir de debates e da aplicação de um questionário, conhecemos os seriados que são acompanhados por esse público na televisão fechada, aberta e na internet. Com as várias plataformas existentes, como, por exemplo, a citada pelos alunos, Netflix, é possível o acesso às obras ficcionais em qualquer lugar e a qualquer hora. Conforme o questionário proposto para os alunos, os canais mais citados são: Fox, Rede Record, Rede Globo, SBT, Universal Channel, Sony, HBO, A&E, AXN Brasil, Warner, Liv e FX Brasil Foi possível deduzir isso pelas referências às exibições dos seriados mais consumidos pelos jovens participantes da pesquisa.

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É interessante perceber que o gênero criminal caiu no gosto dos alunos. São várias as séries do gênero apreciadas por eles: Dexter (2006, FX Brasil, Liv e Rede TV), Dupla Identidade (2014, Rede Globo), O Caçador (2014, Rede Globo) e Breaking Bad (2008, Rede Record, AMC Brasil e AXN Brasil). Além desse, outro gênero que apareceu na pesquisa com maior destaque foi o investigativo – que não é o foco deste texto – com as séries: The Mentalist (2008, Warner Channel e SBT) e CSI (2001, AXN e Rede Record). A série Breaking Bad (2008) foi exibida pela Rede Record e pelos canais AMC Brasil e AXN Brasil. Ela começou a partir de 20 de janeiro de 2008 e terminou em 29 de setembro de 2013, após cinco temporadas. O enredo da série dirigida por Adam Bernstein coloca o personagem entre a escolha do bem e do mal. O protagonista Walter White (Bryan Cranston) é um professor de química que leva uma vida dura, com dificuldades para pagar as contas e sustentar a esposa Skyler White (Anna Gunn) e seu filho Walter White, Jr. (RJ Mitte), que tem dificuldades físicas. Ele toma uma decisão drástica de mudar sua situação financeira quando recebe o diagnóstico de câncer de pulmão sem possibilidade de cura. É assim que Walter, com seus conhecimentos de química, prepara drogas para vender (metanfetamina) com um dos seus ex-alunos, Jesse Pinkman (Aaron Paul). A trama ocorre em um suspense com mentiras, mas nada detém o personagem em sua missão de assegurar o futuro da família após a sua morte. Essa série foi levantada pelos alunos como interessante no debate do dia 6 de abril de 2015, ocasião em que eles relataram que, pelo diagnóstico dado pelos médicos, não restava mais nada ao personagem, principalmente pelas condições econômicas de vida. Nesse momento, foram propostos vários questionamentos para os alunos: é correto o que o personagem fez? As condições de saúde e pobreza justificam prejudicar os outros? Não é crime? Então, o que é crime? A partir dessa discussão, ocorreram algumas conversas e logo os alunos perceberam que realmente era preciso observar melhor, porque o personagem estava errado. Na discussão, foram ainda levantadas as explicações que motivavam o crime; o que explica, mas não justifica ação do personagem. O enredo e a narração da obra ficcional já criam toda uma esfera para questionar se é correto ou não a atitude tomada por Walter.

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Outra série que chama muita atenção dos alunos pelo tema do justiceiro é a obra Dexter (2006), baseada no livro Darkly Dreaming Dexter, de Jeff Lindsay31. O livro foi adaptado para a televisão pelo roteirista James Manos Jr. e dirigido por John Dahl. Os canais FX Brasil, Liv e também a Rede TV exibiram a série. O enredo trata de um agente do departamento de Miami, Dexter Morgan (Michael C. Hall), que é excelente técnico de análise sanguínea e assassino. Além da sua habilidade meticulosa de matar sem deixar pistas, que fascina tantos os alunos, também existe uma justificativa para os assassinatos. Ele mata somente criminosos que a polícia não consegue trazer à justiça, ou seja, ele realiza a justiça com as próprias mãos. Dexter é um seriado de grandes suspenses e de exibição de habilidades, inteligência e crueldade. Foi possível observar o porquê de os alunos gostarem tanto do criminoso da série Dexter na resposta à seguinte pergunta do questionário: “Se você assiste à série ou a seriado de TV de gênero criminal, do que mais gosta, do policial (mocinho) ou do criminoso (bandido)?”. A maioria das respostas nas pesquisas seguia essa linha: “gosto mais do lado correto, e esse lado nem sempre é a polícia. Alguns bandidos não fazem o mal, só agem em desacordo com a lei (como no caso de Dexter), não causando grandes males. E, às vezes, os mocinhos são piores que os bandidos.”. Com relação à ação de Dexter, os alunos acharam muito inteligente que ele só mate bandidos e que haja muita sofisticação no ato das mortes. Nesse momento, a discussão voltou-se ao papel do justiceiro. Foram propostas várias questões sobre o assunto aos alunos: Será que não é crime? O bandido morto por Dexter merece sê-lo? E qual é o papel do Estado e da justiça? Por que só esses poderes podem julgar? Muitos podem ser os questionamentos, pois o leque trazido pela ação do personagem é imenso. Outra série citada no questionário foi Dupla Identidade (Globo, 2014), produzida pela Rede Globo e exibida entre 19 de setembro e 19 de dezembro de 2014, em treze episódios. Escrita por Glória Perez e com direção de núcleo de Mauro Mendonça Filho, conta a história de Edu (Bruno Gagliasso), um "bom rapaz" que se envolve com Ray (Débora Falabella). O personagem tem um lado muito diferente do que parece, pois se trata de um sociopata. Além das aparências, ele é um assassino em série. Ele escolhe suas vítimas de forma aleatória e por meio de um disque-ajuda aos depressivos. A 31

Jeff Lindsay é o pseudônimo do dramaturgo e romancista americano Jeffry P. Freundlich (nascido em 14 julho de 1952), mais conhecido por seus romances sobre o psicopata justiceiro Dexter Morgan.

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trama tem um enredo policial de suspense com apresentações da polícia num formato americano e com a sofisticação de uma policial psicóloga forense (Luana Piovani), treinada pelo FBI. O interessante no comentário dos alunos na discussão levantada em 8 de junho de 2015 é a frieza do assassino que cativa com conversas: “muito legal porque ele parecia um animal quando ia matar”. Como resposta a esse comentário, feito por um aluno, foi proposto o seguinte questionamento: “O Edu não é um assassino? Por que, então, é legal?”. E a resposta foi muito interessante: “Pois a televisão faz aquilo que eu queria, mas não posso, pelo menos ele não passa vontade, por isso que é legal a ficção”. Talvez possamos afirmar que essa fala mostra o fascínio dos alunos, no caso, um novo público, pelo consumo da obra fictícia do gênero criminal. Por último, abordaremos a discussão sobre a série O Caçador (2014), exibida entre 11 de abril e 11 de julho de 2014, num total de catorze episódios. Produzida pela Rede Globo, criada por Fernando Bonassi, Marçal Aquino e José Alvarenga Jr.; dirigida por Heitor Dhalia e com núcleo de Alvarenga, conta a história de André (Cauã Reymond), que, após três anos preso, sai da penitenciária para provar a própria inocência. Antes da prisão, era agente da Divisão Antissequestros da Polícia Civil, mas depois só tem as lembranças de sua grande experiência. Fora da prisão, o Delegado Lopes (Aílton Graça), propõe a ele um novo ofício, para aproveitar suas habilidades como investigador: ser um caçador de recompensas. Esse tipo de personagem fascina os jovens, que relataram que uma vez que o personagem não tem mais nada a perder, é livre, pode trabalhar de forma clandestina, do jeito que quiser. Nessa obra, pode-se notar que o perfil do personagem (rebelde, livre, “o galã”) demostra o espírito vivo do marginal romântico no contexto atual. Como cita Lusvarghi (2015, p. 12): “Os personagens das séries policiais latino-americanas mais recentes espelham a tradição do marginal romântico, do justiceiro [...]”. Assim, podemos concluir que esse personagem romântico do imaginário popular transpassou as transformações tecnológicas e agora é difundido pela produção seriada televisiva e cinematográfica, que já interpretou outros personagens da História, como: Robin Wood; Lampião e Ponche Villa no México. Dessa forma, mantem-se vivo o imaginário do marginal romântico na sociedade e o gosto pelos seriados e séries de gênero criminal no público jovem.

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Considerações finais Concordamos que existem várias possibilidades da utilização dos meios de comunicação e da mídia na sala de aula, principalmente, dentre eles, as produções das séries ficcionais, como o caso do gênero criminal proposto no estudo. Com a pretensão de levar discussões para a sala de aula do Ensino Médio sobre a ética e a violência na sociedade atual a partir de séries televisivas ficcionais, o objetivo deste trabalho foi mostrar como é possível a utilização de produções midiáticas, seja de qual gênero for, para promover debates importantes com os jovens estudantes. Por meio de questionários, foi possível levantar os produtos midiáticos consumidos por eles e identificar suas preferências. No segundo momento, promovemos debates e discussões com os estudantes, levantando questões importantes sobre o crime e a justiça. Concluímos que é possível o uso das mídias como aliado no desenvolvimento pedagógico, pois os alunos pesquisados gostaram da abordagem baseada em seriados criminais e participaram das discussões com vontade de discutir e mostrar suas experiências, reais ou ficcionais, e pediram novos encontros, com outros gêneros, o que evidencia a boa recepção pelos alunos da estratégia na abordagem pedagógica sugerida na pesquisa.

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Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, Afonso de. Estudos de Mídia. In: CITELLI, Adilson et al. (Org.). Dicionário de comunicação: escolas, teorias e autores. São Paulo: Contexto, 2014. p. 260-266. ALCICI, Sônia Aparecida Romeu. A escola na sociedade moderna. In: ALMEIDA, Nanci Aparecida (Coord.). Tecnologia na escola: abordagem pedagógica e abordagem técnica. São Paulo: Cengage Learning, 2014. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, MEC, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2015. BREAKING Bad Brasil. Disponível em: <http://www.breakingbadbrasil.com/>. Acesso em: 14 dez. 2013. CITELLI, Adilson Odair. Comunicação e educação: a linguagem em movimento. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2000. COSTA, Cristina. Educação, imagem e mídias. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2013. CSI: Crime Scene Investigaton. Wikipédia, 2015. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/CSI:_Crime_Scene_Investigation>. Acesso em: 14 dez. 2013. DEXTER. Criador: James Manos, Jr. Estados Unidos: Showtime, 2006-2013. 8 temporadas. 96 episódios. DEXTER (série de TV). Wikipédia, 2015. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Dexter_(s%C3%A9rie_de_televis%C3%A3o)>. Acesso em: 14 dez. 2015. DUPLA IDENTIDADE. Globo.com, 2015. Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/dupla-identidade/>. Acesso em: 14 dez. 2015. FILMOW. Breaking Bad (1a temporada). Ficha técnica completa. 2015. Disponível em: <http://filmow.com/breaking-bad-1a-temporada-t13854/ficha-tecnica/>. Acesso em: 6 jun. 2015. FILMOW. Dexter (1a temporada). Ficha técnica completa. 2015. Disponível em: <http://filmow.com/dexter-1a-temporada-t13064/ficha-tecnica/>. Acesso em: 3 jun. 2015. JEFF Lindsay. Wikipédia, 2015. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jeff_Lindsay>. Acesso em: 14 dez. 2015. LUSVARGHI, Luiza. Banditismo como uma questão de classe: o papel do marginal romântico no imaginário latino-americano. San Jua: Lasa, 2015. 118


MARTÍN-BARBERO, Jesús. A comunicação na educação. São Paulo: Contexto, 2014. THE MENTALIST. Wikipédia, 2015. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Mentalist>. Acesso em: 3 jun. 2015. MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. Matrizez, São Paulo, ano 5, n. 2, p. 29-52, jan./jun. 2012. NAPOLITANO, Marcus. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 235-289. OLIVIERI, Antonio Carlos. O cangaço. 2. ed. São Paulo, Ática, 1997. SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: o conceito, o profissional, a aplicação: contribuições para a reforma do Ensino Médio. São Paulo: Paulinas, 2011.

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Sobre os Autores

Luiza Lusvarghi Jornalista, Pesquisadora e Professora graduada em Letras e Jornalismo. Organizadora deste livro, que é resultante de Pós-doutorado pela Bolsa PNPD Capes sobre as narrativas criminais na ficção televisiva da América Latina (2014-2016), na ECA USP. Atualmente leciona a disciplina Jornalismo Cultural no curso lato sensu Mídia, Informação e Cultura do CELACC (Centro de Estudos Latino-Americanos de Comunicação e Cultura) da USP.

Ruth Barros Trabalhou na Folha, Estadão, saudoso JT, TVs Globo e Bandeirantes em São Paulo. Estudou e atuou como jornalista em Paris, Londres e Boston. Escreveu os Florais Perversos de Madame de Sade, ed Rocco, Ioga Além da Prática, ed Integrare, Cinco Saraus, ed Imprensa Oficial e o roteiro e reportagem do média metragem Sobre Nós Mesmos, documentário. Foi assessora de imprensa do Theatro Municipal, do Theatro São Pedro e é diretora de Comunicação (trabalho voluntário) da ONG Futebol Social.

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Sílvia Dantas Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista Capes. Publicitária, atuou por nove anos como redatora publicitária em agências de publicidade na cidade de Aracaju (SE). Possui mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e lecionou para turmas de graduação dos cursos de Comunicação Social (Jornalismo e Publicidade e Propaganda) na Universidade Tiradentes em Aracaju (SE).

Tomaz Penner Publicitário com atuação em monitoramento e produção de conteúdos para mídias digitais. Graduado em Publicidade pela Universidade Federal do Pará, atualmente é mestrando na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com foco da pesquisa na convergência de plataformas, estratégias de transmidiação e linguagens e formatos de narrativas audiovisuais para televisão e web.

Rosana Mauro Doutoranda e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Estuda a representação de classe social e gênero na teleficção, com foco em análise discursiva e estética televisual.

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Helen E. N. Suzuki Pesquisadora de televisão, narrativas e linguagens, foi professora nas disciplinas de Planejamento de Documentário, Produção e Linguagem Audiovisual. Desenvolveu projetos de televisão interativa na SKY do Brasil, projetos de educação corporativa para Petrobras na PUC-SP e também trabalhou na área de Game Based Learning. Realizou a coleta de dados do mestrado no Japão vinculada na Pós-Graduação da Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto e atualmente é bolsista CAPES para doutorado no país.

Wellington Luiz Salgado Graduado em História pela Universidade de Taubaté. Cursando Especialização em Gestão Escolar pela Universidade de São Paulo. Aluno especial em 2015 do curso Narrativas Criminais na América Latina ECA-USP. Coordenador pedagógico e professor do Ensino Médio e Pré-vestibular no Colégio Tableau de Taubaté. Leciona as disciplinas de História, História da arte e Sociologia.

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