Os pequeninos e os gigantes Esta é a história do pequeno João e de seu pé de feijão onde... Opa! Há algo de muito errado aqui. Esta é a história de João e o pé de feijão?! Aquela velha história com o gigante que farejava? Não! Mas não é mesmo! Desculpeme o equívoco, por favor. É que nesta história também há um gigante. E também há um herói – vocês verão! Há, também, pobres e perseguidos. Entretanto, esta não é a história do pequeno João. Temos, neste relato, gente pequena? Sim, temos. Mas essa gente é outra. Assim como também é outro o nosso gigante. Tudo bem! Tudo bem! Eu vou contar direito essa passagem, certo? Prontos? Lá vai! Esta é a história de um pequeno vilarejo que, assim como todo vilarejo que se preze em toda boa fábula, ficava em uma terra muito, muito distante. Nela viviam pobres e alegres aldeões, que passavam o dia a trabalhar em uma mina (Será que são parentes daqueles anões da Branca de Neve?). A alegria sempre foi a marca dessa pequena vila de bons corações. Nela todos trabalhavam, todos sorriam, todos cantavam, todos jogavam, todos abraçavam e ajudavam uns aos outros desde o alvorecer ao sorrir da Lua. Nem sei dizer a vocês como se davam as coisas mais íntimas dos casais. Tudo era tão partilhado! A necessidade de privacidade ali, simplesmente, não existia. Penso mesmo que esse conceito era desconhecido de todos. Eram felizes, exatamente, por serem assim. Lá existia a alegria de sentar ao redor da fogueira e dizer anedotas e fazer jogos de adivinhações sob a luz que vinha do cintilar celeste. Porém, certa noite trouxe consigo uma escuridão que, até então, desconheciam. A escuridão do medo. Nessa noite nossos amiguinhos viram o seu vilarejo ser visitado por um sujeito que lhes ensinou sobre alguns sentimentos que jamais imaginaram conhecer. Sequer suspeitavam que pudessem existir. Sentimentos que nenhum ser vivo deveria sentir. Sentiram medo e dor. Sentiram tristeza e impotência. Sentiram-se fracos e cativos. Eles foram cativos. Um gigante. Sim, um gigante. (Não me censure! Eu já havia alertado que teríamos um gigante neste continho.) Irei chamá-lo de Ghurr. Alguém de estatura tão alongada tem que ter algo curto. Um nome que seja. Ghurr. Como seu grunhido constante. Um nome simples que lhe dou, pois o seu verdadeiro nome se perdeu no tempo, assim como o local de nosso vilarejo se perdeu no espaço muito, muito distante. O tempo aqui também é muito, muito distante em nossa cronologia. Qual o seu nome? Talvez seus pais o soubessem, mas
nem mesmo sabemos se teve pais. Ghurr caminhava em sua solidão já há muitos anos. Sozinho, cada vez mais triste, cada vez mais cruel. Destruía tudo que via pelo caminho. Talvez revolta por sua solidão. Talvez solidão por revolta. Talvez maldade pura. Já não é importante. Importa a sua chegada ao lar dos pequenos. O assombro foi imenso. Provavelmente maior que nosso vilão com mais de três metros de altura. Embora fosse muito forte, sua altura o figurava magro, tenebroso, como o morto vivo mais alto que se poderia imaginar. Talvez a morbidez da aparência fosse causada pela idade superavançada. Estava em seus mais de 200 anos. Apesar do temor, nossos felizes heróis, como sendo de sua característica, deram-lhe boas-vindas. O que em nada comovera o grandalhão. O pequeno líder dos aldeões ao se aproximar fora erguido em pleno ar e lançado violentamente contra o chão. Dessa forma, afirmou o gigante, o porquê de sua chegada: veio para fazer o mal. Dessa noite em diante os frágeis aldeões se descobriram vítimas da truculência, fúria e ganância de seu novo rei, que mais parecia um mastro animado e terrivelmente pálido. Seus olhos vermelhos e seus dentes podres eram assustadores. Ordenava-lhes fetidamente que lhes trouxessem o que comer e beber a toda hora. Havia sempre mulheres colhendo, homens caçando e outras mulheres a preparar banquetes para o homenzarrão. Este não tinha divertimento, senão gargalhar da dor e do medo dos seus súditos. Sua única vaidade era colecionar as pedras que lhe traziam da pequena mina. Vez por outra – talvez por tédio, talvez por máxima crueldade – Ghurr desafiava seus escravos ao combate. Como nenhum de seus adversários era dado à violência, ferramenta de combate, nenhuma arma, como não tinham nenhuma técnica de luta, tampouco força para vencê-lo, era sempre um massacre. Outra vez, se ouvia a dor do pranto de amigos, irmãos, filhos, pais e esposas. Outra vez, pedras recobriam um corpo ensanguentado. Outra vez, velório e sepultamento. Contudo, os que não têm rifles, atiram pedras e numa manhã dessas de um dia qualquer, um garoto muito astuto – esse se chamava Elöy –, para o espanto de todos – em especial do grande chefe –, desafiou seu líder em uma luta que deveria ocorrer fora dos olhos de sua mãe. Disse-lhe que como a derrota seria certa, não iria querer que sua mãe o visse partir como partem os porcos no abate. Certo de que seria divertida essa nova experiência mandou que o garoto escolhesse o local de sua morte, sacudisse a poeira e logo rumasse a ele. Assim se deu. Adiante ia o garoto visivelmente tenso, nervoso, ansioso, temeroso – além de outros “osos” mais. Logo atrás, a passos largos, seguia-o o nosso vilão.
Subiam, apressadamente, uma cordilheira ao Norte da vila. Conforme o tempo ia passando, o pico ia se aproximando e a sede de sangue, natural a todo ser maligno só aumentava – afinal de contas, alimentar sua gigantesca crueldade não deveria ser tarefa das mais fáceis. Já não havia muito mais a esperar. Chegaram ao topo da montanha. Ali se depararam com uma imensa cerca. Era além dela que deveriam lutar. O jovem desafiante correu em direção a uma fresta na estrutura de madeira e, por ela, atravessou para o lado oculto. Enfurecido o grandalhão reuniu algumas sobras de madeiras – lenhas cortadas – que haviam esquecido no local já há muito tempo e, as amontoando, fez uma base de apoio, uma espécie de escada para alcançar o alto do cercado. Essa foi a forma que encontrou para passar por sobre cerca e chegar ao lado ainda desconhecido daquele novo ambiente. Uma vez do outro lado ergueu seus olhos enfurecidos a procura de seu escravo. Foi quando percebeu que o local onde estava era outro vilarejo. Dessa vez, um bem diferente e muito, muito maior. Nosso pequeno herói correu para diante do feroz gigante, deu uma piscadela, mostrou-lhe a língua insolente e correu para fora dali pelo mesmo buraco por onde entrara, pouco antes. Nesse momento o colérico Ghurr, o gigante, berra ferozmente, babando de ódio por sentir-se enganado feito um tolo e justo no instante em que se preparava para tentar retornar a velha vilinha e vingar-se por ter sido feito de bobo sentiu uma mão pesar-lhe sobre o ombro direito. Ao voltar-se rudemente em direção a quem o tocara, se viu diante de um abdômen. Erguendo a cabeça viu cerca de um metro e meio acima de si, um rosto tão magro, feio e de aspecto maldoso quanto o seu. Este rosto lhe sorriu e, jocoso, esbravejou para trás – na espera de que os outros aldeões o ouvissem – que um dos perdidos filhos doentes de sua terra acabara de voltar. Tomou-o pelo braço e o arrastou para o centro da aldeia. Lançou nosso vilão ao chão e ali escarneceram dele todos os habitantes da colônia. Deste dia em diante o pequeno gigante se encontrou vítima dos mesmos aborrecimentos que causara um dia. Tratado por todos com indiferença e desprezo, viveu o resto de seus dias como um serviçal da comunidade. Vilipendiado, era o saco de pancadas, era o catador de lixo, era a lavadeira, era o bobo da corte e a cozinheira. Nosso pequenino? Ah, o jovem Elöy, esse retornou como herói. Foi erguido bem alto, sobre a cabeça de todos. Teve seu nome gritado e festejado por alguns dias. Depois tudo voltou a ser como era. O herói deixou de existir e seu nome foi lembrando por muitos séculos. Com a ordem retomada, todos tornaram à partilha das festas, das riquezas e das alegrias. Porém decidiram não partilhar da lembrança dos tempos dos grilhões. Acreditavam que dores não deveriam ser partilhadas. Ainda mais com quem não as viveu. A geração
futura deveria saber apenas o que era ser feliz. E assim fizeram. Felizes para sempre, como deve ser o fim de toda fábula. Entretanto, eu, até hoje me pergunto o que deve ter sentido do pobre gigante que numa hora foi rei e noutra escravo. Que peso deve ter guardado em sua consciência? Será que se arrependeu de seus atos e se remoía a pensar que poderia ter dado um rumo bem diferente a sua vida? Será que ele tinha mesmo consciência? Bem, eu temo que essa resposta tenha se perdido há muito, muito tempo em terras muito, muito distantes. E.C. Santana