Violência,
juventude
e
jogos
eletrônicos:
uma
relação
superestimada E.C. Santana 22.10.2013
Toda aquela diversão sempre foi muito saudável e nos unia. Não nos tornamos psicopatas. Brincávamos de mocinho e bandido. Matávamos os nossos melhores amigos, através da imaginação e criatividade, em atos teatrais com sons de tiros, socos e pontapés produzidos com a boca. Produzíamos gritos e gemidos de morte enquanto, agonizantes, jogávamo-nos ao chão. Morríamos. Dali a pouco saíamos rindo e combinando quem seria o vilão na próxima vez, afinal todos nós queríamos ser o mocinho. E, às vezes, as meninas queriam participar como mocinhas ou mesmo as heroínas de nossas aventuras infantis permeada de gritos, violência, tiros e sangue imaginários. Hoje, tudo isso guardadas as devidas proporções, ocorre diante da tela de um aparelho televisor, de um monitor de computador ou mesmo no visor de um celular em modernos jogos eletrônicos. Eram meados de 1972 quando o mundo conheceu o Magnavox Odissey, primeiro console do promissor mercado de jogos eletrônicos. Odissey era a máxima tecnologia em entretenimento juvenil para o lar e deu início à história dos videogames já que seus antecessores não passaram de protótipos não comerciais. Quatro décadas se passaram e a evolução temática e tecnológica dos jogos eletrônicos se tornou, para muitos, um verdadeiro assombro. O que diriam os criadores do Odissey sobre a tecnologia do Nitendo Wii ou, ainda mais, o que os criadores do Dogfight, um dos jogos do velho console, achariam do último God of War ou do mais recente jogo da franquia Mortal Kombat, o Mortal Kombat X? Os videogames evoluíram em tecnologia, temas e mídias. Hoje não estão unicamente dependentes de consoles. Estão presentes em computadores,
telefones, celulares, aparelhos de televisão e canais de TV por assinatura. No mundo atual, deles, mal escampam os que não guardam nenhum interesse por esse modelo de entretenimento. E, sim, há muitos que não se agradam dos jogos eletrônicos, sobretudo dos modernos. Enumeram-se muitas razões para a resistência aos games, sobretudo aos mais modernos e tecnológicos simuladores. Entre as alegações está a de que os jogos eletrônicos são responsáveis pelo aumento de agressividade e violência em crianças e adolescentes. Essa responsabilização existe em função dos jogos estarem cada vez mais realistas e violentos. Mas será que essa violência fantasiosa, ficcional dos jogos eletrônicos cria reais monstros modernos? O tema é sinuoso e faz estudiosos e comentaristas derraparem em seus argumentos, sejam contrários ou favoráveis ao poderoso entretenimento. A questão perpassa campos do conhecimento e pesquisa e atinge a interesses diversos. Interessando a educadores, a sociólogos, a psicólogos e a psicanalistas, entre outros, a temática é estudada a fim de concluir seu real potencial de influência na
juventude
contemporânea.
De
interesse,
também,
das
indústrias
de
entretenimento, pesquisas são solicitadas para defender ou atacar um ponto de vista ou simplesmente para defender um interesse comercial. Enquanto a indústria dos jogos se defende, outras mídias, na busca de recuperar um público, encomendam pesquisas que ponham em maus lençóis aquela indústria. Caso de grandes conglomerados televisivos que esperam recuperar a audiência do público que se supostamente abandonasse o consumo dos games violentos dedicariam suas horas à TV (consumindo semelhante violência em séries, filmes e em outros programas da grade), como ocorrera em décadas passadas. Esse jogo de interesse lança diante dos olhos das massas informações polêmicas contraditórias que servem às incertezas e aos discursos variados sobre o tema por parte de uma população saturada por essas informações pouco confiáveis. Nesse ponto de atrito, questões surgem. Proibir ou não proibir os jogos eletrônicos? Qual a relação entre os videogames e a violência real? Sem jogos de
conteúdo violento nossos jovens seriam mais humanos e pacíficos? Alguns defendem que sim. O argumento daqueles que consideram os jogos modernos violentos e influenciadores de uma juvenil e real violência é que a cota de agressividade e violência à qual estão submetidas as crianças e os adolescentes é um fator agudo para formação de um distanciamento ético e moral dos jogadores em relação à sociedade e suas relações básicas, sendo os jogos eletrônicos alienantes e condutores de comportamentos. Tais comportamentos cada vez mais frios e calculistas. Séries de estudos relacionam certo nível de agressividade à exposição contínua aos jogos eletrônicos (adultos) mais violentos como o famoso Grand Theff Auto ou simplesmente GTA, para os gamers. Este é alvo de críticas desde o lançamento de sua primeira versão, chegando a sofrer uma tentativa frustrada de censura da versão em que a história é passada na cidade de New York. Assassinatos foram atribuídos à influência desse e de outros jogos considerados violentos como Duke Nuke. Os autores do crime reproduziram ou alegaram ter reproduzido cenas desses jogos. Essa seria assim uma prova de que os games são responsáveis pela violência juvenil? Seria fácil responder que sim. Entretanto analisar a violência juvenil por esse prisma e a isolar e a fixar a um único fator de influência parece uma posição simplista e leviana. Leviana principalmente porque se as ações dos games são replicadas pelos gamers, antes elas são copiadas do mundo real, o que tornaria as ações violentas dos jogadores mais que um reflexo do que se passa no jogo, um contra-reflexo, um negativo fotográfico do próprio real. Para o pesquisador Dr. Christopher Ferguson da Universidade Internacional Texas A&M “muito da atenção dedicada à pesquisa de videogames tem sido negativa, focalizando nos perigos potenciais relacionados ao risco de vício, agressividade e na diminuição das notas escolares”.
Mas à semelhança do debate sobre o uso de armas é possível fazer os seguintes questionamentos sobre responsabilidades e regulamentações: A culpa do assassinato é do revolver ou do atirador? O problema do acesso às armas está no comprador ou no modelo de acesso comercial com critérios e segurança no mínimo discutíveis? Atribuir aos jogos a culpa pelas ações de crianças e adolescentes é ignorar que esses mesmo jogos são geralmente comprados pelos pais dessas crianças e adolescentes. Senão são comprados por eles, geralmente o dinheiro com que os jogos são pagos vem dos pais, que deveriam fiscalizar o que seus filhos têm consumido na reclusão de seus quartos – neste caso, jogos destinados ao público adulto. A fiscalização familiar é facilitada se pais tomam em conta as prescrições da Entertainment Software Rating Board (ESRB), organização que analisa, decide e coloca as classificações etárias indicativas para jogos eletrônicos. Claro que a classificação indicativa e a fiscalização dos pais quanto aos games que o jovem joga não são suficientes no sentido de garantir que a agressividade latente não se transforme em violência manifesta. Isso está para além de regulamentações e controle familiar. Diz respeito a questões de relações familiares e sociais gerais e dos caráteres psíquicos dos jovens em questão. Contudo, segundo Ferguson, “pesquisas recentes mostram que à medida que os jogos eletrônicos se tornam mais populares crianças nos EUA e na Europa estão apresentando menos problemas comportamentais, se tornam menos violentas e conseguem notas melhores. Os videogames não criaram uma geração de ‘jovens problema’ como temia a sociedade”. Em contrapartida, um estudo em particular examinou os efeitos negativos de jogos
violentos
descobrindo
que
podem
realmente
aumentar
a
agressividade dependendo da personalidade de alguns indivíduos. Disposições psicológicas e efeito de mídias de massa, eis a questão que é crucial ao debate: a predisposição da personalidade do indivíduo.
A agressividade é parte da constituição do homem e está em oposição à cultura. É na cultura que seus efeitos são minimizados. Os efeitos da ignorância e da agressividade são reduzidos na sociedade e na cultura, entretanto as questões interiores dos indivíduos escapam às questões sociais. A agressividade latente em cada pessoa é desconsiderada na maioria dos discursos em torno do debate videogame x violência. Os críticos dos jogos eletrônicos consideram que os jogos violentos são gatilhos para ações de violência. Assim consideram que a existência de um fator de risco seja suficiente para que os games abram as portas para a agressividade descontrolada dos indivíduos. Fazem isso desconsiderando as diversas variáveis que implicam para essa reação como o isolamento e a condição social, os níveis e qualidade de instrução educacional, a situação familiar, os transtornos de humor, a depressão, os traumas, entre tantas outras. Mas a predisposição à violência não é tornada um fato pela influência dos jogos, mesmo os mais violentos. O menor contato com a violência põe o indivíduo em condição de excitação ou de estresse. Jogar simuladores violentos, como já foi comprovado, pode aumentar o nível de agressividade a curto prazo, porém a longo prazo não é possível afirmar o mesmo. Entretanto a excitação decorrente do contato com esses jogos não é maior do que a excitação decorrente do contato com a violência real presenciada ou observada através das mídias - e, muito pior, na vizinhança e até dentro de casa - ou da ficcional absorvida através da TV, cinema, literatura, música e internet. Os efeitos das mídias sobre as massas são objetos de estudos há décadas e nem por isso há um debate sério sobre a retirada da TV do ar, um monitoramento sério da web ou um retorno efetivo da censura. O pesquisador do Centro de Estudos da Vida Política Francesa, Thierry Vedel, sintetiza estudos sobre a mídia televisiva identificando sete teorias no que concerne ao impacto das mídias sobre a violência: a teoria da catarse, que diz que a violência na tela permite uma realização fantasmática das pulsões agressivas bem como a economia da passagem ao ato; a teoria do filobatismo, que afirma que a televisão permite aos espectadores provar sem risco o prazer da violência; a teoria da inibição, que considera que as cenas de violência mostram as consequências que
decorrem dela e ensinam os espectadores a temerem sua própria violência; a teoria do vício, que prega que a repetição das cenas de violência visionadas conduz a uma insensibilização progressiva com relação à violência; a teoria da incubação cultural, que considera que a televisão influi sobre a maneira pela qual os indivíduos se representam na realidade social; a teoria da ativação segundo a qual a violência vista na televisão ativa as predisposições agressivas dos indivíduos; e a teoria da aprendizagem social que afirma que os comportamentos agressivos são aprendidos com base em modelos de comportamentos vistos na televisão, Vedel afirma que esses modelos, estocados em memória, podem ser reproduzidos em certas circunstâncias. Aqui onde se fala violência, pode se falar também em comportamento sexual, em
comportamentos
autodestrutivos,
em
consumo
de
entorpecentes,
em
doutrinamentos ideológicos, religiosos etc. Tais teorias, aplicadas à televisão, podem ser aplicadas aos jogos eletrônicos, mas não somente a eles. Certas vertentes do heavy metal trazem letras extremamente violentas, assim como ocorre com algumas vertentes do Rap e do Hip-Hop. Músicas que são ouvidas repetidamente. Mas afirmar isso dessa maneira emparelha esse discurso ao daqueles que afirmam que as canções “Suicide solution” e “Goodbye cruel world”, do cantor de heavy metal Ozzy Osbourne e da banda de rock progressivo Pink Floyd respectivamente foram responsáveis por inúmeros suicídios nos EUA e no Reino Unido. Ou, ainda, aceitar que “The catcher in the rye”, do escritor J.D. Salinger realmente influenciou Mark Chapman a assassinar o músico, cantor e compositor John Lennon. Assim, o que dizer de crianças judias submetidas à leitura do livro de Números, em especial do capítulo 31, onde é narrada uma ação cruel liderada por Moisés na qual homens e mulheres são brutalmente assassinados? Ou o que dizer dos fãs de literatura de aventura permeada de ação e violência ou dos thrillers com assassinatos cruéis? Quantos desses leitores são estudados para que se avalie a cota de influência sofrida por suas leituras no que diz respeito a torná-los ou não mais violentos?
E o que dizer da violência explícita na internet? A exposição a tudo isso confere à audiência as mesmas influências. Mas ceder a elas, além da constituição individual diz respeito às questões dos grupos sociais. Em uma sociedade tão violenta, culpabilizar a exposição dos jovens aos jogos eletrônicos como fonte de violência é minimizar demais a questão da violência na juventude e esquecer que esses mesmos jogos são instrumentos de integração e socialização de diversos jovens mundo afora. O gosto comum cria “tribos” que ao contrário do que sugerem algumas pesquisas, não faz com que os jovens se excluam do mundo, tornando-se, então, sujeitos frios e desumanizados. E mesmo os jogos mais violentos propiciam a eles a possibilidade de desenvolvimento cognitivo, raciocínio lógico, criatividade etc. É preciso aceitar que a violência juvenil está ligada muito mais diretamente às questões familiares e socioculturais. Países como Camboja, Índia e Brasil, apesar de menor acesso aos jogos eletrônicos se comparados com países como EUA e Inglaterra, têm um índice de violência considerado alto. Em contrapartida países como Japão, Coreia do Sul e Suécia, fortes consumidores de jogos simuladores considerados violentos, têm uma taxa de violência juvenil muito baixa. Reflexo do baixo índice de violência existente nesses países? É o que defendo.