T O S C H E N DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA E DA POLÍTICA
série reblogs
TOSCHEN editora
Organismo PIKNIK O.V.N.E.Y. organismopiknik@gmail.com toschen.editora@gmail.com
SUMÁRIO
É POSSÍVEL DESMILITARIZAR A POLÍCIA BRASILEIRA?............................................................................... pág. 4 O PAPEL DA POLÍCIA: ENTENDA O QUE É A DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA.................................. pág. 8 ELES QUEREM UMA NOVA POLÍCIA.................................................................................................................. pág. 10 INSTRUÇÕES PARA SUA SEGURANÇA EM CASO DE ATAQUE DA PM.................................................... pág. 15 POLÍCIA E DIREITOS HUMANOS......................................................................................................................... pág. 16 CARTILHA PELA DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA E DA POLÍTICA..................................................... pág. 17 BRASÃO DA PM PAULISTA CELEBRA GOLPE MILITAR E REPRESSÃO A REVOLTA SOCIAIS............pág. 47 DEPOIMENTO DE EX-POLICIAL REVELA A REALIDADE PERVERSA DA PM NO BRASIL................. pág. 49 ASSIM SE PRODUZEM POLICIAIS VIOLENTOS............................................................................................... pág. 59 HUMILHAÇÃO, XINGAMENTOS E TORTURA: VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS MARCAM FORMAÇÃO DE POLICIAIS MILITARES BRASILEIROS.......................................................................................... pág. 63 PESQUISA DIZ QUE 77,2% DOS POLICIAIS SÃO A FAVOR DA DESMILITARIZAÇÃO DA PM............ pág. 74 VIOLÊNCIA POLICIAL DEVERIA SER ENQUADRADA NA NOVA LEI SOBRE TERRORISMO............. pág. 78 INQUÉRITO INOCENTA POLICIAL QUE MATOU CRIANÇA EM FAVELA DO ALEMÃO.................... pág. 80 TREZE PMS DA ROTA SÃO INDICIADOS POR ESTUPRO E TORTURA DURANTE REINTEGRAÇÃO DE POSSE NO PINHEIRINHO....................................................................................................................................... pág. 82 O QUE A ROTA ESTAVA FAZENDO NUM PROTESTO DO MPL?................................................................. pág. 84 POLÍCIA DE SÃO PAULO IMITA POLÍCIA DE HAMBURGO E PREPARA AÇÃO ILEGAL COM O “CALDEIRÃO” CONTRA MANIFESTANTES................................................................................................................ pág. 86 A BANCADA DA BALA.............................................................................................................................................pág. 87 ANTES DE ZEBRAR MORTE POR TRÁFICO, URUGUAI PROIBIU PROGRAMAS POLICIAIS.............. pág. 89 PM VAI ADMINISTRAR 10 ESCOLAS PÚBLICAS EM GOIÁS QUE TERÃO MENSALIDADE................ pág. 90 CRESCE NO BRASIL O NÚMERO DE ESCOLAS BÁSICAS PÚBLICAS GERIDAS PELA PM................... pág. 92 POLICIAIS DO BOPE EXTORQUIAM DINHEIRO DE TRAFICANTES........................................................ pág. 95 PAÍSES DA ONU RECOMENDAM A ABOLIÇÃO DA POLÍCIA MILITAR NO BRASIL.............................pág. 97 ŽIŽEK: VIOLÊNCIA POLICIAL E VIOLÊNCIA DIVINA................................................................................... pág. 98 BOICOTE A CULTURA POLICIAL - HAKIM BEY............................................................................................ pág. 101
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O dia 13 de junho de 2013 ficou marcado pela desproporcionalidade com a qual a Polícia Militar reagiu aos cerca de 5 mil manifestantes que pediam a revogação do aumento de 20 centavos no preço do transporte público de São Paulo. A avenida Paulista, no centro da cidade, foi palco de cenas de violência policial que culminaram na agressão de jornalistas, manifestantes e pessoas que passavam pelo local. Aquele foi um ponto de virada das manifestações. Após a reação truculenta, os protestos ganharam força e se espalharam pelo Brasil. Em São Paulo, a polícia evitou novos conflitos, mas em cidades como Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre e Rio de Janeiro a postura agressiva se manteve. Um comportamento que reabriu o debate sobre a desmilitarização da polícia, cujas ações transparecem a impressão de que o civil, seja manifestante ou suspeito de crime, é um inimigo da sociedade. 4
Essa mentalidade, sustentam estudos, provém do treinamento policial em moldes militares típicos das Forças Armadas, que visam eliminar “invasores externos”. Na sociedade civil, não haveria espaço para tal lógica. “A polícia não se vê como uma entidade para defender os direitos dos manifestantes, mas os encara como parte do problema”, afirma Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil. “Os policiais frequentemente usam uma linguagem bélica, de encarar o protesto como uma luta e o manifestante como o outro lado”, afirma. A militarização também estaria por trás dos elevados níveis de violência cometidos por policiais no País. Segundo o 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, entre 1993 e 2011 ao menos 22,5 mil pessoas foram mortas em confronto com as polícias paulista e carioca. Uma média de 1.185 pessoas por ano, ou três ao dia, um número elevado para um Estado que não utiliza execuções sumárias e pena de morte em sua legislação. A USP aponta ainda que o número inclui apenas os casos registrados como “auto de resistência”, aqueles nos quais o policial alega ter atirado em legítima defesa. Os episódios classificados como homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte não foram computados, indicando que o número de civis mortos por policiais no período é ainda maior. “É a tradição brasileira de pensar a segurança pública de forma agressiva, com pouca ênfase na prevenção e fiscalização. É uma forma de controle da população pobre, tratando problemas sociais como problemas de polícia”, critica Santoro. Um indicador utilizado para calcular o uso desproporcional da força por agentes da lei é medir a razão entre o número de mortes civis para cada perda policial. Quando a quantidade de civis mortos é dez vezes maior que a de policiais, há indícios de que a polícia esteja abusando do uso da força letal. E, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, esse cenário acontece ao menos em três Estados: Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo. Em 2010, a Bahia registrou a morte de seis policiais (civis e militares) em serviço contra 305 civis vitimados em confronto com a polícia ou resistência seguida de morte – 51 vezes mais. No ano seguinte (oito policiais e 225 civis mortos) a relação caiu para 28,1 civis assassinados para cada policial vitimado. Em São Paulo, o cálculo também indica uso excessivo de força letal. Em 2010, o estado perdeu 25 policiais, enquanto matou 510 civis (20,4 vezes mais). Em 2011, a diferença caiu: 28 agentes contra 460, uma média de 16,4 civis assassinados para cada agente. No Rio, foram 20 policiais mortos em serviço em 2010, contra 855 civis (42,7 vezes mais). No ano seguinte, foram 12 policiais contra 524 civis (uma razão de 43,6 civis por policial). “A estrutura militarizada tem um treinamento e cultura de guerra, de combate ao inimigo. Uma policia cidadã é feita para prender e encaminhar as pessoas ao julgamento, não para aniquilação como fazem as Forças Armadas”, afirma Túlio Vianna, doutor em Direito do Estado e professor da UFMG.
O que fazer diante da situação?
Uma das soluções apontadas por analistas e organizações civis para reduzir a violência policial é a unificação das policias Civil e Militar em apenas uma estrutura funcional. A separação destas forças e suas funções está, entretanto, prevista no artigo 144 da Constituição, segundo o qual as polícias civis são responsáveis pelas funções de “polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” e as polícias militares farão a “polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. Unificar as duas polícias, acreditam analistas, aumentaria a coordenação e eficiência na solução de crimes. Além disso, daria recursos extras para uma inteligência integrada, devido ao corte de despesas com a manutenção de duas estruturas. Para Luís Antônio Francisco de Souza, professor da Unesp e coordenador científico do Obser5
vatório de Segurança Pública, a desmilitarização não significaria, porém, extinguir a Polícia Militar. “É preciso mantê-la, mas desvinculá-la das Forças Armadas ao retirar seu caráter militar e devolver a estrutura civil à organização, extinguindo patentes e atual estrutura de hierarquia interna.” A integração das polícias, defende Souza, também daria aos secretários estaduais de Segurança o poder de definir todos os aspectos do setor. “O comando da PM decide todo tipo de operação. Sem essa centralização, os mais de 100 mil policiais paulistas poderiam ter mais flexibilidade em atuar em função das necessidades locais”, diz. Desde a definição do papel da PM na Constituição, os casos de abuso policial se acumulam. O massacre do Carandiru, quando a polícia invadiu o presídio paulista durante uma rebelião e matou 111 presos, e a Chacina da Candelária, na qual policiais assassinaram oito jovens que dormiam nas ruas do centro do Rio de Janeiro, são dois dos exemplos mais marcantes. “A militarização gera violência contra os policiais, criados em uma cultura de humilhação hierárquica. Logo, o soldado transfere essa violência a alguém abaixo dele. E a população sofre com essa cultura de violência institucionalizada”, diz Vianna, da UFMG. A lógica de tratar o civil como inimigo atingiu inclusive os policiais civis. Em outubro de 2009, a PM usou camburões, tropa de choque, gás lacrimogêneo e gás de pimenta contra colegas da corporação Civil de São Paulo que reivindicavam um aumento de salário em uma passeata próxima ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.
Pressão externa Em meio aos inúmeros casos de truculência da PM brasileira, o Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou em maio de 2012, por sugestão do governo da Dinamarca, a abolição do "sistema separado de Polícia Militar, aplicando medidas mais eficazes (...) para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais". O governo brasileiro respondeu alegando que não poderia fazer a mudança por conta da questão constitucional. Em julho deste ano, a organização internacional Human Rights Watch escreveu uma carta ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), apontando o elevado número de suspeitos mortos por policiais e cobrando que os casos fossem investigados, devido ao “claro padrão de execução de vítimas”. Segundo a entidade, relatos de mortes em resistência à prisão do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP, da Polícia Civil) na cidade de São Paulo em 2012, mostram que a polícia transportou 379 pessoas a hospitais após os incidentes e 95% delas (360) morreram. A ONG também demonstra preocupação com as operações das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota, da Polícia Militar). De acordo com a carta, entre 2010 e 2012, a tropa matou 247 pessoas em incidentes de resistência no Estado, enquanto feriu apenas 12.
Desmilitarização Em 2009, o Ministério da Justiça realizou a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública para discutir as diretrizes da política nacional do setor. Com a participação da sociedade civil, trabalhadores da área de segurança pública e representantes da União, Estados e municípios foi aprovada uma proposta de desmilitarização das polícias. A proposta pedia a transição da segurança pública para “atividade eminentemente civil”, além da desvinculação da polícia e corpos de bombeiros das forças armadas, a revisão de regulamentos e procedimentos disciplinares, a criação de um código de ética único, respeitando a hierarquia, a disciplina e os direitos humanos. E também submeter irregularidades dos profissionais militares à justiça comum. 6
Para Souza, da Unesp, mesmo que o debate sobre a desmilitarização tenha ganhado força nos últimos anos, a realidade mostra o oposto. “Enquanto se discute o tema, a militarização retornou em ações em São Paulo, como Pinheirinho e a Cracolândia, e nas UPPs do Rio. As Forças Armadas fazem atribuições de polícia em missões de pacificação nos morros do Rio e o Exército faz segurança em grandes eventos. Parece que temos uma remilitarização da segurança publica.” Para desmilitarizar a PM e uni-la à Polícia Civil, como defendem especialistas em segurança pública, seria necessária uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Esse caminho é complexo e demorado. Uma PEC precisa de aprovação em dois turnos na Câmara por, no mínimo, 308 dos 513 deputados em cada turno. Após aprovada, a medida seguiria para o Senado. Também seriam necessárias duas votações com aprovação mínima de 60%, ou 49 dos 81 senadores. Em uma eventual mudança constitucional, o governo federal precisaria apoiar os estados na desmilitarização, defende Santoro, por meio de uma cooperação com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos. “Os estados mais organizados conseguiriam, mas seriam poucas as unidades federativas com dinheiro e pessoal qualificado para fazer as mudanças sozinhas”, diz. Apenas a mudança legislativa não seria, porém, o suficiente para diminuir a truculência policial. Seria preciso mudar o treinamento das polícias e reforçar uma flexibilização da formação do policial – com a diminuição dos conteúdos militares e estímulo para a realização de cursos de especialização – algo que já vem sendo feitos em algumas polícias na última década. “A desmilitarização trará um tratamento humanizado ao policial, reconhecendo os direitos", diz Vianna. "Eles vão mudar a cultura e respeitar mais a população civil em longo prazo. As novas gerações de policiais serão treinadas em uma nova mentalidade.”
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Mais de 600 mortos em maio de 2006 em uma série de ataques na Baixada Santista, 111 presos assassinados em 1992 durante o Massacre do Carandiru, o desaparecimento do pedreiro carioca Amarildo de Souza em 14 de julho deste ano e a violência policial contra professores na Câmara dos Vereadores do Rio. Esse histórico trouxe novos questionamentos sobre o papel da Polícia Militar.. Assim, com as manifestações que ganharam as ruas do país desde junho e os episódios de violência na atuação da Polícia Militar registrados em algumas ocasiões, a desmilitarização das polícias estaduais voltou a ganhar espaço no debate público. Em maio de 2012, a Dinamarca chegou a recomendar, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que o Brasil extinguisse a Polícia Militar. A ideia, no entanto, foi negada nacionalmente por ferir a Constituição Federal de 1988 e a dúvida permaneceu sobre o que de fato significaria uma proposta pela desmilitarização. A divisão entre polícia Civil e Militar sempre existiu no Brasil. A atribuição de cada grupo está explícita no artigo 144 da Constituição Federal de 1988. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, cabem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Já às polícias militares cabem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. “Antes da ditadura militar, existiam polícias Militar e Civil, mas a Civil também desempenhava papel ostensivo. Foi com a ditadura que as atribuições da Polícia Civil foram se esvaziando e a Militar tomou para si toda a parte ostensiva”, destaca o professor de direito penal Túlio Vianna, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A proposta de desmilitarização consiste na mudança da Constituição, por meio de Emenda Constitucional, de forma que polícias Militar e Civil constituam um único grupo policial, e que todo ele tenha uma formação civil. “Essa divisão atual é péssima para o país do ponto de vista operacional, pois gasta-se em dobro, e é ruim para o policial, que precisa optar por uma das carreiras”, explica Vianna. 8
Uma das críticas feitas à militarização da polícia é o treinamento a que se submetem os policiais militares. “As forças armadas são treinadas para combater o inimigo externo, para matar inimigos. Treinar a polícia assim é inadequado, pois o policial deve respeitar direitos, bem como deve ser julgado como um cidadão comum e não por uma Justiça Militar”, argumenta o professor da UFMG. “Grande parte dos policiais militares que são praças também defendem essa ideia da desmilitarização já que eles são impedidos de acessar garantias trabalhistas, além de terem direitos humanos desrespeitados”, afirma Vianna. Para o coronel reformado da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e ex-secretário de segurança do DF, Jair Tedeschi, entre os militares, a posição é outra: a ideia de desmilitarização policial é uma “falácia”, defende. “O que querem é quebrar a disciplina e a hierarquia que existe em qualquer organização. Não é porque a polícia é militar que age puramente como militar. A função dela é civil. As suas bases de disciplina e hierarquia que são militares”. O coronel avalia ainda que “o policial militar de hoje sabe distinguir quem tem direitos e deveres. Na rua, é obrigado a tomar decisões”, observa. A formação atual do policial, segundo o coronel Tedeschi, abrange o conceito de humanização. “Hoje a polícia é completamente diferente, isso foi na década de 1960. As academias ensinam segurança pública. Desde 1988 a polícia vem mudando a sua maneira de agir. Ela está na rua, não nos quarteis. Ela interage com a sociedade, não cumpre a lei porque tem que simplesmente cumpri-la, mas age da forma mais democrática possível”, avalia o coronel Tedeschi. Para o coronel, “desvios de comportamento ocorrem em condições isoladas em vários grupos. Na situação atual não vemos isso só na Polícia Militar, mas também na Polícia Civil e em outros segmentos não militares”, aponta. Atualmente, dois projetos de Emenda à Constituição (PEC) circulam no Congresso Nacional em defesa da desmilitarização da polícia. A PEC 102, de 2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT), autoriza os estados a desmilitarizarem a PM e unificarem suas polícias.” Ela não faz especificamente a unificação e a desmilitarização, mas autoriza que cada estado federado possa fazê-lo caso julgue necessário”, explica Vianna. A PEC está em tramitação no Senado. Já a PEC 430, de 2009, em tramitação na Câmara dos Deputados, visa a unificação das polícias Civil e Militar dos Estados e do Distrito Federal, além da desmilitarização do Corpo de Bombeiros, bem como dá outras funções para as guardas municipais. A proposta é de autoria do deputado federal Celso Russomanno (PP-SP). Atualizada às 8h14 de 29/7
Duas PECs tramitam no Congresso Nacional com o intuito de desmilitarizar a Polícia Militar e unificá-la à Polícia Civil. Policiais negam que formação militar contribua para atitudes policiais violentas (Fernando Frazão/ ABr) 9
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Na contramão do pensamento hegemônico das polícias, que legitima práticas criminosas, policiais que são ativistas em direitos humanos lutam, de dentro das corporações, por uma reestruturação do modelo de segurança pública vigente. Espalhados pelo país, alguns deles contam à Ponte Jornalismo como buscam espaços para defender suas posições. Conhecido por sua militância em defesa dos direitos humanos e pelo fim da guerra às drogas, o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone, 51 anos, ressalta que a polícia tem um viés autoritário no Brasil, onde ser policial significa se afastar dos interesses populares e se atrelar aos interesses dos governos. “Alguns policiais que, politicamente, se posicionam contra formas autoritárias e modelos fascistas de governo, muitas vezes vistos como ‘menos policiais’, acabam buscando espaços dentro das instituições para andar na contramão, e formas de operar que levem a polícia a um patamar mais democrático”, analisa. É o caso do tenente Anderson Duarte, 32 anos, da Polícia Militar do Ceará, que paga um preço alto por ser o único oficial cearense em atividade a se colocar publicamente a favor da desmilitarização das polícias. “Quando você assume posições na contramão do sistema, está implicando a sua carreira e a sua própria vida. É uma decisão muito séria”, afirma. Nascido em família pobre, como a maioria de seus colegas, Anderson ingressou na PM por necessidade, há dez anos, quando cursava Geografia na UECE (Universidade Estadual do Ceará) e seguiu estudando, o que logo se mostrou um obstáculo: quando o policial iniciou o mestrado em Educação na UFC (Universidade Federal do Ceará), ouviu de um comandante que “policial não é pra ficar estudando, não” e foi transferido do setor administrativo para a rua. Anderson ignorou o conselho do comandante e continuou a estudar. Concluiu o mestrado com a dissertação Policiamento Comunitário e Educação: Discursos de Produção de uma “Nova Polícia” e hoje é professor da disciplina de Ética e Cidadania no Curso de Formação de Oficiais da Academia Estadual de Segurança Pública, além de tutor dos cursos de 10
educação à distância da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública), órgão do Ministério da Justiça.
Silenciamento e boicotes
Em outubro, tendo sido um dos cinco servidores de instituições brasileiras de Segurança Pública selecionados pela SENASP para trabalhar na elaboração do Pacto Nacional pela Redução de Homicídios, Anderson foi impedido, pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, de assumir o cargo, em Brasília (DF), na comissão que determinará as diretrizes das ações políticas públicas voltadas à redução de homicídios dolosos no país. Em 2012, após uma série de postagens críticas em seu perfil no Facebook, o oficial foi transferido de Fortaleza para a cidade de Crateús (a 370 quilômetros da capital), por 20 dias, sem ter sido consultado previamente e sem direito à licença de 10 dias para deslocamento. Ainda que de forma velada, situações como esta impedem que o policial tenha direito à liberdade de expressão – garantido pela Constituição Federal de 1988 a todo cidadão brasileiro. “Sempre acreditei que somente um trabalhador da segurança pública pleno de seus direitos de cidadania poderá reconhecer e garantir direitos dos demais cidadãos. Por isso, reivindiquei muitas vezes o direito de liberdade de expressão dos policiais nas redes sociais”, diz o tenente, aludindo à sua luta para que se torne lei a portaria interministerial da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça que estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. “O respeito a esse direito é fundamental para que haja mais democracia interna nas instituições de segurança e, consequentemente, na sociedade”, completa. Em fevereiro deste ano, o escrivão da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Leonel Guterres Radde, 34 anos, também viu cerceado seu direito à liberdade de expressão. Por postar, em seu perfil no Facebook, críticas ao governo do Estado, foi submetido a uma sindicância. Ao manifestar-se, na mesma rede social, dizendo-se vítima de uma injustiça, foi aberta contra ele uma nova sindicância. A segunda foi arquivada, mas a primeira sindicância resultou em 43 dias de punição para o escrivão, depois reduzida para 11 dias de multa. “Continuo achando que é um equívoco. Imagina se as pessoas não puderem emitir opiniões e críticas pessoais sem praticar crimes contra a honra de terceiros”, questiona Leonel.
Construção de pontes
Vendo-se censurado, Anderson decidiu criar um espaço na internet para se expressar livremente. “Um policial de esquerda, um policial pensador, não é aceito nem no meio policial nem no meio da esquerda tradicional. Você é um estranho em todos os ninhos. Então, se ninguém me aceita em lugar nenhum, vou criar um lugar onde eu possa manifestar minhas ideias e também receber ideias de outros policiais”, conta. Foi assim que o tenente criou, há um ano e meio, o blog Policial Pensador. A opção pela construção de um espaço na internet também foi adotada em 2007 pelo tenente da PM da Bahia Danillo Ferreira, de Feira de Santana (BA), que criou, com mais quatro colegas, o Abordagem Policial. “O blog surgiu a partir da necessidade que, à época, sentimos eu e alguns colegas na Academia de estender os debates que tínhamos no quartel para outros atores e instituições”, conta Danillo. Para ele, “qualquer mudança pretendida nas organizações policiais só ocorrerá com o apoio dos próprios policiais”. Tendo ingressado na polícia em 2006, atualmente Danillo trabalha com mídias sociais na PM, colaborando com a administração dos perfis institucionais. Em Salvador (BA), a ausência de um espaço no qual policiais civis na contracorrente pudessem defender suas posições políticas motivou, em 2010, a criação do Coletivo Sankofa, organização sindical que debate 11
questões ligadas ao poder das instituições representativas. “Não temos uma postura corporativista, de defender a imagem do policial a qualquer custo, mas de defesa e valorização da polícia. O princípio da polícia não pode ser manter a ordem, mas garantir direitos”, afirma o investigador Kleber Rosa, 41 anos, dirigente do coletivo, que também é professor de Sociologia e militante do movimento negro. Ele ingressou na Polícia Civil quando ainda cursava Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), há quase 16 anos. Outro dirigente do coletivo, o investigador Denilson Neves, 46 anos, acredita que assumir uma postura crítica com relação à instituição policial é condição básica para se abrir o diálogo com outras categorias de trabalhadores e movimentos sociais. “A instituição da qual fazemos parte é assassina, aterradora, corrupta, truculenta. A gente precisa cortar na própria carne, assumir que a polícia é isso e fazer a autocrítica em nome do Estado e da própria categoria. Este é o primeiro passo para acolher aquele que te vê, de certa forma, com estigma”, defende. O desafio, segundo Denilson, é vencer a visão “provinciana e corporativista” dos policiais, para quem os problemas “devem ser resolvidos no círculo interno da polícia”, e fazê-los perceber que são trabalhadores como qualquer outro. “Policiais têm assédio moral, problema salarial, de saúde, doença ocupacional, mas não constroem um espaço de libertação onde possam discutir tudo isso com profundidade”, analisa o sindicalista, que ingressou na Polícia Civil há 18 anos e cursa Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Para isso, Denilson defende que os policiais devem se despir do preconceito e se articular com outras esferas, como os movimentos LGBT, negro e estudantil. “É um enfrentamento difícil, mas é a única saída possível”, diz.
Desmilitarizar para humanizar
Expostos a um estatuto diferenciado do restante da população, policiais militares são submetidos a um poder punitivo muito mais amplo. A desmilitarização da polícia, para Anderson Duarte, é o primeiro passo para “transformar policiais em cidadãos”, reconhecendo direitos trabalhistas que hoje não possuem, como o direito à greve. “Assim, o policial vai começar a se reconhecer como cidadão e, talvez assim, reconhecer um cidadão. Porque é muito difícil, para quem não tem direitos, reconhecer direitos”, destaca o tenente da PM cearense. A própria condição de militar, segundo ele, impõe uma distância irredutível entre o policial e a sociedade civil. “A Polícia Militar não tem identificação nenhuma com o povo. O militar lida sempre com inimigos, e o inimigo é externo, ou seja, é diferente dele. O cidadão comum é o civil, não é um igual”, define o PM. Ele ressalta que a visão militarizada está presente em toda a política de segurança pública, mesmo quando executada por policiais civis. “No Rio de Janeiro, por exemplo, a CORE [Coordenadoria de Recursos Especiais], que faz parte da Polícia Civil, utiliza os mesmos métodos do BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais], que é da PM. Há favelas que só a CORE sobe, com os mesmos métodos, e é civil”, exemplifica. Anderson critica ainda a forma desigual com que a polícia se relaciona com as camadas mais baixas da sociedade, transformando moradores de favelas em inimigos a serem combatidos. “Quando se concentra recursos bélicos em comunidades e se faz policiamento com fuzis e tanques de guerra nas favelas, como foram as ocupações policiais para a implementação das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro], está se construindo o inimigo. Por que não ocupam Copacabana, Leblon ou Jardim Botânico com tanques e fuzis?”, questiona. “Há sempre uma trincheira, mesmo que não seja visível, que separa o militar das demais pessoas. Essa trincheira está na própria constituição do militar. Nós somos ensinados a isso”, explica o tenente. Por isso, ele defende que a condição para que se “possa ter o policial como um trabalhador é, primordialmente, desmilitarizá-lo”. A maioria dos oficiais da PM opõe-se à desmilitarização das polícias, por “uma questão claramente de poder”, e não por se preocupar com a segurança, afirma ele. “Embora nem todo policial seja um tirano, o sistema militar permite a tirania. A tirania se dissemina do coronel ao soldado e vai desaguar no cidadão”, completa. 12
Apesar da resistência entre oficiais, o projeto de desmilitarização encontra grande aceitação entre os praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes). Pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com a SENASP, para saber a Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública, divulgada em 2014, revelou que 73,7% defendem a desvinculação entre polícia e Exército. Para falar sobre militarismo, o ex-delegado geral da Polícia Civil de São Paulo Marcos Carneiro, 58 anos, remonta ao período da ditadura militar que, em 1969, incorporou a Guarda Civil de São Paulo à Força Pública, uma polícia aquartelada, criando a atual Polícia Militar do Estado de São Paulo. “Tirou-se das ruas um policial que tinha um quepe, um uniforme, um distintivo e uma arma dentro de um coldre fechado, substituindo-o por esse modelo de um cara com capacete, farda, coturno e uma submetralhadora. Para garantir o cidadão? Para combater o crime? Conta outra!”, critica Marcos, hoje aposentado. A formação militarista, segundo ele, “doutrina jovens” a acreditarem que vivem numa guerra. “Aquele jovem, com 20 anos de idade, vai para as ruas pensando que tem que ser um anjo salvador, o justiceiro que vai fazer uma guerra contra o crime. E quem é o inimigo? É associado à pobreza. O policial vê um sujeito de bermuda, camiseta e chinelo: ‘para esse cara’”, afirma o ex-delegado, que já determinou a prisão de mais de uma dezena de PMs durante sua carreira, por homicídios, sequestros e extorsão. “Eu já ouvi, depois de prender PMs, que ele só ‘mata bandido’. Mas é exatamente por isto. Ele não pode matar bandido, não pode matar ninguém”, completa. Para o delegado Orlando Zaccone, o debate sobre a violência policial precisa transcender a noção de que a única culpada pela barbárie é a própria polícia, colocando o Estado, responsável pela militarização, numa posição cômoda. “Os policiais operam uma máquina que é construída e gestada pelo poder político. Responsabilizá-los, sozinhos, é uma forma de o Estado, que é quem determina esse modelo, se proteger de sua própria responsabilidade. A violência policial no Brasil é tratada meramente como um desvio de função dos policiais, nunca como uma política de Estado chamando seus gestores à responsabilidade. Se o policial mata uma pessoa que é construída como traficante, todo mundo aplaude; mas se não se consegue transformar o pedreiro ou o dançarino em traficante, o policial é preso e o Estado se coloca protegido dentro dessa política que ele mesmo cria”, critica o delegado.
Ciclo completo
O chamado ciclo completo de polícia – que determina, principalmente, que a mesma instituição que faz o policiamento será responsável pela investigação – é o modelo adotado pela maior parte dos países ocidentais, mas enfrenta resistências para ser adotado no Brasil, onde a polícia sempre se dividiu entre a ostensiva (militar) e a judiciária (civil). Para o escrivão da Polícia Civil do Rio Grande do Sul Leonel Guterrez Radde, o modelo ideal seria uma polícia desmilitarizada de ciclo completo, “que começa na rua e termina no indiciamento do acusado, faz todo o processo de investigação” e em que “todos os policiais passariam por todas as áreas e teriam uma carreira única”. Mais uma vez, a desmilitarização está no cerne da questão. “Não dá pra discutir ciclo completo desvinculado da desmilitarização. A gente vai entregar a investigação para uma instituição que não teve a oportunidade de se pensar? Sem desmilitarizar a PM, não há como entregar a ela a investigação”, afirma o policial rodoviário federal de Goiás Fabricio Rosa, 36 anos, professor de direitos humanos em cursos de formação policiais. Ele cita um exemplo de como a divisão entre diferentes polícias atrapalha a segurança pública no Brasil. “Tem muito roubo de carga em determinado local da rodovia, só que a PRF não pode investigar a quadrilha 13
que fez aquilo, tem que mandar para uma outra instituição estadual, que já está abarrotada com outros tipos de crimes. Então o crime não é devidamente apurado e fica por isso mesmo”, exemplifica. Antes de ingressar na Polícia Rodoviária, Fabricio foi, por mais de cinco anos, oficial da PM, na qual ingressou aos 19 anos. “Quando saí da PM, descobri um outro universo possível”, diz ele. Militante de direitos humanos desde muito novo, só viu a possibilidade de encampar seu ativismo quando deixou a polícia militarizada. Na PRF de Goiás, cuja Comissão de Direitos Humanos preside, envolveu-se em projetos de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil. Um deles é o mapeamento dos pontos vulneráveis da exploração sexual de crianças e adolescentes que a PRF de Goiás realiza há 12 anos e serve de base tanto para operações repressivas como para ações preventivas da polícia, como palestras em postos de gasolina, panfletos e cartazes informativos. Uma “experiência única no Brasil e talvez no mundo”, da qual Fabrício, que já coordenou o projeto, se orgulha. Outro projeto social diferente foi implantado pela inspetora Marina Lattavo, da Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, que convidou os colegas a dar aulas de jiu-jitsu para moradores de comunidades de uma das regiões onde se registravam os mais altos índices de homicídios do Estado. Segundo a inspetora, o projeto “Jiu-jitsu – Em Defesa de Quem Precisar”, do qual participam hoje 50 famílias, vem ajudando a mudar o modo como moradores de comunidades e policiais enxergavam uns aos outros. “Muitas vezes, com a formação e a visão de sociedade que o policial tem, tende a pensar que a criança pobre da favela vai crescer, virar traficante e ser morta. Mas agora ele começou a enxergar aquela criança como uma criança”, afirma. A visão da criança sobre o policial, segundo Marina, também mudou. “É importante fazer com que aquelas crianças enxerguem o policial como alguém que está ali para protegê-la, não como um inimigo que vai lá matar o pai dela”.
Guerra às drogas
Dentre todos os temas que aborda em suas aulas de direitos humanos para policiais, Fabrício afirma que o mais difícil é a questão da guerra às drogas. Na única vez em que foi hostilizado como professor, Fabrício debatia a questão quando um professor da disciplina “combate ao narcotráfico” entrou na sua sala de aula. “Ele me xingou, dizendo que eu estava sendo antiprofissional e descumprindo os valores da instituição, porque o combate às drogas é um dos valores da instituição”, recorda. “As polícias se alimentam disso simbolicamente, porque isso dá ao policial o status de guerreiro, e financeiramente, porque os governos federal e estadual dão verbas para as polícias em programas como ‘Crack – é possível vencer’, o PROERD [Programa Educacional de Resistência às Drogas] das PMs e outros, que não dão em nada”, diz o policial, que estuda a guerra às drogas em seu mestrado em Direitos Humanos. Os “agentes da lei contra a proibição”, reunidos na LEAP (Law Enforcement Against Prohibition), vêm mostrando, há longa data, por meio de seminários no Rio e palestras em diversas regiões do país, que não há saída para se transformar as polícias e sua relação com a sociedade senão legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as substâncias – já que a guerra às drogas não apenas não é capaz de reduzir seu consumo como promove uma verdadeira matança que atinge, sobretudo, moradores de favelas e os próprios policiais. Muitos dos policiais entrevistados para esta matéria são membros da organização, por acreditarem que somente com o fim da guerra é possível desmilitarizar os soldados que são lançados nela. “Temos que convocar esses policiais que estão lutando na contramão para o debate, e quem sabe formar uma associação, uma liga de policiais pela democracia, contra o fascismo, porque o fascismo está crescendo e pondo suas asas dentro das instituições policiais. Por isso é um momento importante para ampliarmos essa discussão”, encerra o delegado Zaccone. 14
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Polícia e direitos humanos
http://tinyurl.com/zcwoyuw
Por Marcelo Freixo. O principal desafio para os defensores dos direitos humanos e para quem sonha com políticas de segurança pública baseadas na promoção da cidadania é superar a oposição entre polícia e direitos humanos. Esse é o pano de fundo de dramas cotidianos provocados pela política de guerra às drogas, da qual não há vencedores. A tragédia carioca e brasileira é ver homens de preto, quase todos pretos, matando homens pretos. A garantia de direitos e a proteção dos cidadãos precisam ser funções primordiais de qualquer política de segurança, e os policiais devem ser formados sob esses princípios. Nesse sentido, é essencial que nos questionemos sobre qual modelo de policiamento desejamos. Queremos uma polícia exclusivamente civil, voltada para a preservação da vida, e não preparada para a guerra e a eliminação do inimigo, que é o cidadão a quem deveria proteger. Desmilitarizar a PM é urgente para superarmos o paradoxo de termos em nossa democracia uma polícia concebida à semelhança das forças de repressão do regime militar. A iniciativa é um passo importante para que os trabalhadores da segurança convivam internamente com a democracia, recebam treinamento adequado e sejam valorizados. 16
a l e p a Cartilh
De
o ã ç a z i r a t i l i sm ítica
l o P a d e a i c í l da Po
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Apresentação Esta cartilha tem o objetivo principal de informar a população em geral sobre o que vem a ser a desmilitarização da Polícia e da Política, proposta por este Comitê. A partir de um diálogo ilustrativo e didático, vamos conversar a respeito da história da segurança pública no Brasil, debater acerca das consequências destrutivas do modelo repressivo militar atual e também sobre os muitos benefícios que poderiam vir com a desmilitarização. Vamos nessa?
Ficha técnica
www.desmilitarizar.wordpress.com
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Texto: Ana Vládia Artur Pires Iorran Aquino Revisão: Ivina Sales Márcio Renato Ilustrações e Projeto Gráfico: Carlitos Pinheiro
carlitosilustra@gmail.com
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Desmilitarização da Polícia: Uma questão urgente! “Homem de preto qual é sua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão Se perguntas de onde venho e qual é minha missão: Trago a morte, o desespero e a total destruição” “O interrogatório é muito fácil de fazer; pega o favelado e dá porrada até doer. O interrogatório é muito fácil de acabar; pega o bandido e dá porrada até matar.”
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As citações ao lado foram retiradas de músicas do curso de formação do Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro, o BOPE. As canções desse batalhão que, infelizmente, é tomado como referência por muitos policiais no Brasil, chamam atenção pela incitação à violência, pela exaltação do assassinato e da tortura, e deixam claro também onde estas mortes devem acontecer: na favela! Leia as músicas novamente e repare: são cantadas a plenos pulmões por aqueles que, supostamente, deveriam proteger as pessoas. Agora, pense com calma: você acha que policiais militares, que segundo a Constituição devem garantir a segurança pública, deveriam cantar hinos que exaltam a tortura e a execução sumária nas periferias? Esse modo de operação bélico vem das Forças Armadas e de seu sistema militar e hierarquizado de ação, que foi intensificado na reformulação da segurança pública promovida pelo golpe ditatorial de 1964. No Brasil, infelizmente, a formação dos/as agentes de segurança é feita, via de regra, mantendo esse modelo, ou seja, baseada na ideia da guerra a um “inimigo”. E quem é esse inimigo? Dependendo da sua condição social e econômica, pode ser você. Vamos falar disso mais na frente. Para a maioria dos brasileiros, aumentar o número de PMs nas ruas significa o sucesso na segurança pública. No entanto, tendo como base as estatísticas da violência no país (8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Mapa da Violência 2014, Índice de Homicídios de Adolescentes), vemos que a melhoria não está em expandir o modelo militar e o Estado Penal e Policial, mas justamente em outra concepção de segurança que compreenda, inclusive, o complexo fenômeno da violência e da conflitualidade social. Ainda que essa questão esteja relacionada a um modelo de sociedade que extrapola qualquer ação restrita ao âmbito da segurança pública, não podemos permitir que a violência de Estado seja a regra do policiamento. Assim, convidamos você a conhecer, debater e se informar sobre uma outra forma de pensar o Estado e a segurança em nosso país. Tenha uma ótima leitura! 20
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Desmilitarização da Polícia e da Política: O que é e por que você precisa saber disso?
6 21
A
ação e a formação militar vinculadas às Forças Armadas, quando implementadas na segurança pública, constroem a noção de um inimigo interno a quem, na prática, se nega qualquer direito. A enorme letalidade policial, com cerca de 11 mil mortes em apenas 5 anos (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2014), é uma das mais trágicas consequências disso. Quantas vezes vemos nos noticiários casos de pessoas sendo covardemente agredidas ou humilhadas por policiais que abusam de sua autoridade? Ou que foram mortas por PMs? Ou que desapareceram após abordagens policiais? Provavelmente, muitos de nós já presenciamos ou sofremos alguma agressão policial, não é verdade? E quem é o público alvo da ação policial? Em sua maioria, são moradores das periferias das cidades do país, onde se encontra uma quantidade enorme de pessoas a quem o Estado brasileiro vem negando historicamente a garantia de inúmeros direitos sociais (à educação, à saúde, à moradia digna, ao saneamento básico, ao lazer, à cultura, etc.). São, também, manifestantes e lutadores/as sociais (a violentíssima repressão contra os protestos pela redução das tarifas no transporte público em São Paulo, em junho 2013, virou um marco deste controle). Não são pessoas que necessariamente cometeram crimes, mas pessoas consideradas potencialmente perigosas. É a isso que chamamos de criminalização seletiva ou da pobreza: a condenação antecipada de sujeitos por características físicas (a cor da pele), sociais, políticas ou econômicas que supostamente revelariam a sua periculosidade. Como forte característica dessa criminalização, a equivocada relação das favelas e bairros periféricos com o tráfico tem justificado mandatos de busca coletiva, ocupações militares e revistas (batida, geral, baculejo) a quem quer que use boné e chinelas e esteja na rua. É uma enorme hipocrisia: todos/as sabemos que o comércio e o uso de drogas ilícitas não ocorre apenas nas peri-
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ferias, mas é lá que o Estado Policial demonstra toda potencialidade de seu poder repressivo e letal. Dignidade não deveria ter CEP nem raça! Sob essa forma de agir o que tem ocorrido é a explosão de abusos de autoridade e truculência policial, com o número crescente de mortes resultantes de ações“de segurança”e inúmeros casos de chacinas, torturas, grupos policiais de extermínio e milícias paramilitares. Não à toa a Organização das Nações Unidas (ONU) já recomendou por diversas vezes ao governo brasileiro o fim da Polícia Militar. A pesquisa de 2014 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também mostrou que 70% da população brasileira não confia na Polícia. Não era
para menos, né mesmo? Como mais um efeito negativo, a militarização também retira dos homens e mulheres que exercem a profissão de policial militar praticamente todos os direitos mínimos garantidos às outras profissões, como a denúncia de assédio moral, o direito à greve, entre outros. Para se ter uma noção, o/a policial não pode questionar ou descumprir qualquer ordem de seu superior hierárquico, sob pena de ser expulso da corporação ou preso, mesmo que a ordem represente agir com truculência ou negar direitos humanos e sociais a si próprio ou a outros. Fica difícil para um(a) policial que tem os seus direitos básicos negados
6 pessoas 11.197 99,2% pessoas 8
são mortas pelas polícias brasileiras todos os dias em média. (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
foram mortas por PMs em 5 anos.
do número de inquéritos de casos de autos de resistência foram arquivados a partir de 2005. 23
garantir o respeito desses mesmos direitos aos outros trabalhadores e trabalhadoras. Também é comum os/as policiais serem tratados com extrema violência e brutalidade em sua formação: chicotadas, humilhações, afogamentos, castigos corporais, espancamentos e choques são práticas constantes de seus treinamentos. Mantida por meio de privilégios e punições que compreendem a simbologia e a prática da humilhação, a disciplina militar sustenta ao longo dos anos que é possível “corrigir” sujeitos através do castigo e do sujeitamento forçado à autoridade – algo extremamente perigoso de ser reproduzido pelos
%
Nos últimos dois casos de chacinas antes da publicação desta cartilha, foram mortos pelo menos
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de ia a . 24
em Manaus (AM) e em Barueri e Osasco (SP)
detentores do “uso legitimo da força” quando tratados, eles mesmos, por meio da brutalidade e do exercício bélico. A carga horária desumana, os maus tratos e o autoritarismo por parte dos superiores com relação aos subordinados e o estado de alerta e risco no cotidiano da profissão também são fatores que contribuem para um alto índice de afastamentos por questões de saúde mental. Igualmente preocupante é o número de policiais que procuram os serviços de atendimentos psicológicos e psiquiátricos devido à dependência química (em um ano, quase 40% dos atendimentos). Muitos são os estudos que revelam um posicionamento fragilizado
70%
dos/as brasileiros/as não confia na Polícia e
63%
se declaram insatisfeitos com sua atuação.
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dos policiais, que chegam a admitir a exigência de tornarem-se uma espécie de “robocop” para exercer suas funções, ou seja, uma máquina cujas capacidades humanas devem ser subtraídas (assim como a de seus “inimigos”, despojados da condição de pessoas). Fatores estressantes como um ambiente de trabalho perigoso, o baixo controle sobre o processo de trabalho (cumprimento de ordens), o frequente contato com o público, as longas jornadas (em razão da escala), os recursos insuficientes, a insatisfação com a atividade e a remuneração, a dificuldade de ascensão profissional e a exposição contínua à violência estão relacionados aos sofrimentos ou distúrbios psíquicos e, no caso dos policiais, todos esses fatores estão intensamente presentes. Não à toa, em recente pesquisa (2014) do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 77,2% dos policiais se declararam a favor da desmilitarização da PM.
RESUMINDO: a militarização representa o processo de adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos e procedimentos militares, que são elaborados para contextos de guerra ou de exceção, em atividades de natureza policial que deveriam ser voltadas para a prevenção da violência e a promoção da segurança pública. O núcleo da lógica militar reside no extermínio e na dominação, na ideia de combate ao inimigo. Adotá-la nas atividades de policiamento significa assumir a opção pelo extermínio de um determinado grupo social a quem não é exclusiva a ação de crimes ou atos infracionais, embora sejam praticamente os únicos a serem perseguidos e encarcerados.
um (cr de ma as sa inf XIX
ral av ord su
10 25
2
o os, ares, tos de ades m a rança ar nação, . iao nado siva ote
Segurança para quem? Historicamente, as forças de segurança pública no Brasil tiveram uma atuação seletiva, ou seja, direcionada não para os atos ilícitos (crimes) mas para QUEM praticava esses atos. Sempre atuaram em defesa de certos grupos sociais em detrimento de outros. Falando mais diretamente: protegeram os ricos e controlaram os pobres. Foi assim desde a chegada dos primeiros escravos ao Brasil: “Precisamos de uma polícia que a nós inspire confiança e aos escravos infunda o terror” – afirmava um jornal carioca no início do século XIX (V.M. Batista, 2004). Quando estes conseguiram a abolição, houve um pânico generalizado das elites, que temiam que com os escravos livres nas ruas a violência aumentasse. E essa elite exigiu a garantia da “lei e da ordem”: uma lei que os favorecia e uma ordem que garantia a sua supremacia política e econômica. O que aconteceu então? A polícia
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fez seu papel: enfrentou, perseguiu e encarcerou muitos negros libertos pelo simples motivo de estarem nas ruas, jogando capoeira, etc. A “vadiagem”, por exemplo, passou a ser considerada crime. Para os mais novos, surgiu o primeiro Código de Menores; e para os jovens e adultos se ampliaram as instituições de privação de liberdade. “A questão social é uma questão de polícia”, dizia Washington Luis, secretário de segurança pública, em 1906. Embora a Constituição de 1988 tenha dado tratamento progressista a diversos temas, a exemplo da garantia formal de importantes direitos sociais que alargaram a noção de cidadania, as cláusulas relacionadas às Forças Armadas, Militares (incluindo seu sistema judiciário) e de Segurança Pública da Carta Magna permaneceram, em grande medida, semelhantes (e em casos pontuais mesmo idênticas) à Constituição autoritária de 1967 e à sua emenda de 1969, ambas do período ditatorial. Antes do golpe de 1964, as Polícias Militares cumpriam um papel secundário no trato das questões de segurança pública interna. Assim, embora já existisse a atual separação entre as polícias civil e militar desde a Guarda Real de Polícia em 1809, foi sobretudo a partir de 1969, portanto no auge da repressão política, que houve uma reversão nas funções das corporações, de modo que as polícias militares saíram de seu aquartelamento e foram lançadas nas ruas com o objetivo de fazer o papel do policiamento ostensivo e de manutenção da ordem social. O treinamento e a atuação das PMs, no entanto, não esteve e nem está focado na garantia de direitos. Muito pelo contrário, a cultura institucional nas PMs é guiada por uma lógica de guerra
M
12 27
1 milhão
Mais de de pessoas foram assassinadas no Brasil nos últimos 30 anos. A estimativa é de
uma morte a cada dez minutos.
53.646 8%
Apenas
mortes violentas foram contabilizadas em 2013.
dos homicídios são resolvidos por meio de inquérito policial.
- - são negras. 77% 36,5% das pessoas assassinadas
Os homicídios representam das causas de mortes de adolescentes. Se as condições atuais permanecerem, cerca de 42 mil adolescentes serão assassinados até 2019. O Brasil é o país mais perigoso do mundo para ambientalistas e o segundo com relação ao assassinato de jovens, ficando atrás apenas da Nigéria. 28
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que transforma as ruas em campos de batalha, criminaliza a condição de pobreza e os movimentos sociais e transforma questões de saúde, como o consumo e a dependência de drogas, em assuntos de polícia. O processo de desmilitarização das polícias passa, portanto, inicial e essencialmente, por um corajoso enfrentamento das heranças da ditadura, presentes inclusive em termos legais - tarefa nada fácil, vide as amplas e sintomáticas dificuldades na atuação de uma efetiva Comissão da Verdade. Ademais, os legados do autoritarismo nas instituições policiais e de segurança precisam ser encarados não somente na esfera prática - através da expansão dos mecanismos de controle e participação social, elaboração de nova abordagem que reconheça a diversidade do fenômeno da violência e não criminalize a situação de pobreza, revitalização dos espaços públicos em vez da ameaça ostensiva e do domínio territorial (ocupação militar), etc. - mas, igualmente, nos campos cultural e simbólico. Até hoje, para citar apenas um exemplo, a polícia militar de São Paulo presta homenagem aos golpes militares do Estado Novo e de 1964 em seu brasão, além das repressões ao levante de 1935 e à greve dos operários de 1917, dentre outras ocorrências de contenção às manifestações populares. O que ocorre hoje nas favelas do Rio de Janeiro, com as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), é herança política e cultural dos tempos de cativeiro e de repressão aliadas à adesão da lógica norte-americana de “guerra às 29
drogas” e Tolerância Zero. São os pobres, em sua maioria negros, sendo controlados, tendo seus direitos negados, marginalizados e criminalizados. A UPP, por trás de seu discurso de levar segurança às favelas do Rio, esconde um projeto perverso de controle sobre a população da periferia e especulação imobiliária do entorno. Ora, o que se percebe é que a tal garantia da lei e da ordem no Brasil sempre esteve a serviço dos que tem poder – e a polícia historicamente fez e faz o papel de guardiã fiel dessas elites que compõe, inclusive, o Estado. É importante que nos perguntemos: que lei é essa que só protege uns poucos e esquece da maioria do povo? Que ordem é essa que cuida de ricos e negligencia os pobres? Parece, portanto, que essa lei e essa ordem tão faladas são social e politicamente injustas e seletivas, não é? Então, quando você escutar novamente esse discurso de “garantir a lei e a ordem”, fique de orelha em pé. É sinal de privilégio para alguns e açoite para outros. É assim desde os tempos da escravidão e continua sendo assim nas periferias de todo o Brasil, pois num sistema criado para garantir privilégios e riquezas para poucos, o inimigo óbvio é o Povo. E fique atento, também, àqueles que acham que criticar o modelo policial é defender bandido: é mais uma tentativa de encobrir uma opressão histórica ocultando a seletividade na aplicação da lei.
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part resp trad dos com ção púb e in uma à pr ress redu da i laze
Desconstruindo mitos sobre a Desmilitarização
A políciA vAi trAbAlhAr sem ArmA? NÃo! Embora existam exemplos de polícias bastante eficientes que trabalham com armas menos letais, como a polícia da Inglaterra, desmilitarizar a polícia brasileira não é defender uma instituição sem armas e sim a existência de uma corporação composta inteiramente por civis, que detenham os mesmos direitos e deveres básicos do restante da população. vÃo tirAr A fArdA e As viAturAs dA políciA? NÃo! Desmilitarizar a polícia não é precarizar o trabalho policial, retirando seus equipamentos de trabalho, pelo contrário, permite que o/a policial trabalhe em melhores condições humanas, psicológicas e materiais, na medida em que acaba com um dos principais mecanismos reprodutores da violência, a exemplo da própria formação militarizada e violenta.
rAN
de t ção çõe éaP polí tem pelo mes
vAi hAver demissÃo em mAssA dos policiAis? NÃo! A quantidade de policiais não é o problema e sim a formação humana desses profissionais e o regime a que estão submetidos. Portanto, a desmilitarização da polícia nada tem a ver com a retirada do emprego dos policiais, que é inclusive garantido por lei. 16 31
vAi AumeNtAr A violêNciA? NÃo! Muito pelo contrário! A militarização, a partir de seu modo de operação, é hoje uma das responsáveis pelos altos índices de violência registrados e não consegue incidir nem sobre as raízes dos conflitos sociais nem atuar de forma integrada com outras políticas públicas. A desmilitarização propõe tratar a questão da segurança pública de uma maneira mais abrangente e integrativa, encarando a violência não como uma causa em si, mas como algo relacionado à profunda desigualdade social. Vale, ainda, ressaltar que em muitas cidades a violência foi reduzida com medidas bem simples, a exemplo da iluminação pública e a oferta de atividades de lazer, cultura e esporte a partir das 22 horas. A populAçÃo depeNderá de segurANçA privAdA? NÃo! A segurança pública é um direito básico de toda a sociedade. Portanto, a desmilitarização nada tem a ver com o fim das corporações de segurança pública. O que irá acabar é a Polícia Militar, que será transformada numa polícia inteiramente civil, responsável ao mesmo tempo pelo policiamento ostensivo (o das ruas) e pelo trabalho de investigação, mas com acesso aos mesmos equipamentos de que hoje já dispõe. 32
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Quem ganha com a Desmilitarização? Todo mundo! Sociedade civil e policiais. Com a desmilita-
rização – que obviamente deve vir acompanhada por uma mudança radical de toda política criminal - muitas das consequências negativas do modo militar de operação (abusos violentos de toda ordem, torturas, ocultação de cadáver e autos de resistência/resistência seguida de morte) seriam diminuídas. Os próprios policiais, que estão diariamente nas ruas, teriam uma formação baseada na garantia plena dos direitos e da dignidade humana. Os policiais não-oficiais, chamados praças, são diariamente oprimidos dentro das academias de polícia e quartéis Brasil afora. A psicologia explica isso: o ciclo de violência se repete dentro e fora da corporação. Você ainda lembra das músicas cantadas pelo BOPE, não é?
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De acordo com os dados da pesquisa “Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização das polícias”, da Fundação Getúlio Vargas:
64% - % 74 98%
dos policiais defendem o fim da justiça militar.
apoiam a desvinculação do Exército consideram a formação deficiente.
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94% 95% 93% -77- %
querem a modernização dos regimes e códigos disciplinares
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afirmam que a falta de integração entre as diferentes polícias torna o trabalho menos eficiente
apontam a corrupção como causa do mau serviço prestado à comunidade
dos policiais concordam com a desmilitarização.
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Fim da guerra contra os pobres
Um debate sobre a política de drogas e o extermínio da juventude
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Apesar do aumento no número de policiais, a violência cresce com velocidade em todo o Brasil. Das 56 mil pessoas assassinadas no Brasil em 2012, 30 mil tinham entre 15 e 29 anos. Destes, 77% eram negros. Portanto, o incremento de mais policiais fortemente armados nas ruas não se mostrou eficiente mas, pelo contrário, foi um verdadeiro fracasso. O país vive uma epidemia de homicídios, com onze cidades entre as 30 mais violentas do mundo. 35
E não para por aí. No Rio de Janeiro, por exemplo, o número de inquéritos de autos de resistência (dispositivo jurídico utilizado quando uma ação policial termina em morte e o/a policial alega que houve resistência seguida de morte) arquivados ou não investigados a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2 % dos casos (Zaccone, 2013). O Estado mata, portanto, sem cometer homicídio; e o faz no patamar de um massacre legitimado (por ação e omissão) pela justiça. Nos tribunais, os julgamentos protagonizam mais uma face da discriminação racial e de classe através da distribuição desigual de penas e sanções – para os mesmos crimes e atos ilícitos – entre acusados negros e brancos. Pode-se supor que os critérios que levam a essa diferenciação são tão arbitrários quanto a representação discriminatória e o etiquetamento penal dos “elementos suspeitos” no policiamento de rua. Assinalados como inimigos da sociedade, aos “delinquentes” é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites e 36
garantias formais do direito penal (Zaffaroni, 2007). Permanecemos, assim, diante de uma atuação estatal, socialmente legitimada, que reproduz tradições e valores que rejeitam “visceralmente a noção de direitos universais e divide binariamente os seres humanos em ‘cidadãos de bem’ (ou ‘cidadãos’ simplesmente) e ‘não- cidadãos’”. Numa variação de autoritarismo, sustentado pelo argumento da necessidade de segurança, “essa moral binária (...) oferece suporte à continuidade das práticas policiais ilegais, em nome da pretensa necessidade de se travar uma ‘guerra’ sem trégua, por todos os meios, contra o crime e a desordem” (Lemgruber; Musumeci & Cano, 2003, p. 55). Nesse campo, é sobretudo a política proibicionista com relação às drogas que justifica as mortes nas periferias – uma verdadeira “política criminal com derramamento de sangue”. Essa é uma das facetas mais cruéis da materialização de um direito – e de todo o aparato que o acompanha – desigual, no qual uns são tidos
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como descartáveis ou, para colocar de forma mais explícita, “matáveis”, e outros como sujeitos dotados de plenas garantias. Para uns tem-se a prática secular do vigilantismo, da repressão e do controle penal; para outros a cumplicidade com as infrações e a proteção que estimula o elitismo intolerante. Vivemos hoje em cidades dominadas pelo medo da criminalidade violenta. No entanto, muitas vezes, a “criminalidade” esconde a verdadeira conflitualidade social, subproduto de uma dívida social acumulada há muitas gerações e que, se por um lado tem gerado a utilização das Forças Armadas para finalidades de controle social e geográfico, por outro forma espaços fechados e elitizados que fragmentam com mais intensidade as cidades. Não se trata, neste último caso, de um mero reflexo das disparidades econômicas. A fragmentação é estimulada por uma auto-segregação das elites e do gigantesco investimento no mercado de
controle do crime (cercas elétricas, câmaras, seguranças particulares, alarmes, carros blindados, ruas e bairros exclusivos, etc.). Qualquer possibilidade de interação espacial diminui ou torna-se muito mais restrita, desmotivadas pelo medo. São falsas soluções, escapismos que reforçam preconceitos, já que o espaço urbano também educa. “No caso dos condomínios educa não para a liberdade, para o diálogo, para o respeito à diferença, para a solidariedade, mas sim para o ódio de classe, não raro amalgamado com o ódio racial” (Souza, 2008). Entre os anos de 1980 e 2012, 1.202.245 pessoas foram vítimas de homicídio. Percebe-se um brutal incremento da morte violenta a partir dos 13 anos. São taxas que, como aponta o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), nem países em conflito armado declarado conseguem alcançar. Assim os homicídios, que também tem classe, cor e gênero, representam a principal causa de morte entre os jovens: nas últimas três décadas,
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tã qu ge ga ei vio pe GI ren nú po do div
dir qu nã na qu jo po do no ca 37
o incremento proporcional da mortalidade por armas de fogo foi de 591,5% entre esse setor. E você sabe por que o Brasil está tão violento? Um dos motivos é que na sociedade brasileira pouca gente ganha muito e muita gente ganha pouco. Quanto mais desigual e injusta é uma sociedade, mais violenta ela é – tal como revelam as pesquisas que relacionam o Índice GINI (que mede a desigualdade de renda dentro de um país) com o número de homicídios cometidos por ano. Nesse sentido, os números dos homicídios também refletem a divisão de classe. Todos precisam ter os mesmos direitos respeitados. Mas não é o que acontece por aqui. Pobres e ricos não têm as mesmas oportunidades na vida, não é verdade? Você sabia que a probabilidade de um jovem negro, morador de bairro pobre, ser morto é 135% maior do que de um morador de bairro nobre? (IPEA: Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira).
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m
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Pois é, está havendo um banho de sangue diário nas favelas do Brasil. Nessa estatística de terror, a polícia tem papel de destaque, pois ela é a que mais morre, mas é também a que mais mata no mundo! Para piorar, políticos eleitoreiros defendem e incentivam, inclusive nos programas ditos “policiais”, o fortalecimento de medidas punitivas e de controle, como a redução da maioridade penal, o linchamento público, a ocupação militar, etc. Sem tratar as raízes do problema, no entanto, estaremos apenas contribuindo para fortalecer a violência. Prova disso é que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. A maioria dos presidiários é composta por… adivinhem? Sim, pessoas moradoras de bairros pobres. Visivelmente, é preciso repensar a política de segurança pública no Brasil. Vale a pena repetir: não à toa a ONU já recomendou por diversas vezes o fim da Polícia Militar no país. 23
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) A experiência mun com o aumento do e muito menos com m que está sendo propost ria se destacar na ação repressão e sim a prom humanos.
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Cinco razões para você também lutar por isso
) Na maioria dos países que tem polícia militar, estas ficam responsáveis pelo policiamento interno dos quartéis ou em regiões de fronteiras nacionais. O desvio de função que tornou a Polícia Militar responsável pelo policiamento de rua foi feito na época em que os militares comandavam o Brasil por meio de um golpe que derrubou a democracia e instaurou uma ditadura militar. Portanto, não tem cabimento manter a mentalidade militar nas ruas: não há nenhum “inimigo” a ser combatido; por outro lado existem muitos direitos que ainda precisam ser garantidos para todos.
) Defendemos a mu particular ao tráfico ça pública pautada na v armas e o fortalecimen das polícias, assim com mento dos processos d
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) A experiência mundial mostra que reduzir a violência pouco tem a ver com o aumento do número de policiais ou de seu aparato militarizado e muito menos com medidas de endurecimento das penas, a exemplo do que está sendo proposto com a redução da maioridade penal. O que deveria se destacar na ação do Estado não é o aumento de seus mecanismos de repressão e sim a promoção e a garantia da qualidade de vida e de direitos humanos.
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) Defendemos a mudança do modelo centrado na lógica de guerra, em particular ao tráfico de drogas nas favelas, por uma política de segurança pública pautada na valorização da vida. Propomos ênfase no controle de armas e o fortalecimento dos mecanismos de controle externo e interno das polícias, assim como o fim dos autos de resistência, com o aperfeiçoamento dos processos de investigação para os casos de homicídios.
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) Com a desmilitarização os policiais poderão ter direitos civis e trabalhistas. Hoje, os policiais militares têm um conjunto de leis específicas que orientam sua ação, o que acaba por oprimir e submeter os próprios policiais, além da população, a abusos de poder e arbitrariedades diárias.
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) O número de mortes tende a diminuir, pois o objetivo da desmilitarização é retirar da ação policial a perspectiva militar que faz do agente da segurança pública um soldado preparado para uma guerra em que não se pode estabelecer diálogo, e onde o principal objetivo é expulsar ou eliminar o inimigo. Queremos um política integrada com os mecanismos de promoção de direitos, com ampla participação de jovens na formulação de novas estratégias de enfrentamento à violência e ruptura com a lógica repressora e punitiva.
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Como desmilitarizar e o que já existe DESmilita
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Bem, como vimos anteriormente, a desmilitarização da polícia é um caminho necessário para começarmos a reverter a guerra urbana que transformou as cidades brasileiras em campos de batalha. Você sabia que em 2012 ocorreram 56 mil homicídios no Brasil? E você ainda lembra que 6 pessoas são mortas por dia pela polícia, não é? Então, para conseguirmos concretizar essa mudança temos que levar essa discussão para nossas casas, com nossa família, nossos amigos, para nossas escolas, faculdades, trabalhos, etc. Devemos ajudar na divulgação dessas informações. Contudo, para que a desmilitarização seja respaldada em lei, é preciso alterar o artigo 144 da Constituição Federal que, apesar de diversos avanços, erroneamente manteve os militares no policiamento ostensivo. Porém, mudanças na Constituição só podem ocorrer por um projeto de lei conhecido como “Proposta de 42
Emenda Constitucional”, as PECs, que podem ser feitas por qualquer um dos deputados ou senadores do Congresso. No momento, as PECs não podem ser realizadas por iniciativa popular, apenas o projeto de lei é permitido. No entanto, já foi aprovada no Senado e tramita na Câmara uma PEC que daria essa possibilidade à sociedade civil, mediante o recolhimento de 1,4 milhão de assinaturas, 1% do eleitorado nacional. Hoje, temos três Propostas de Emenda Constitucional (PEC 430, de 2009; PEC 102, de 2011; e a PEC 51, de 2013) que tratam da desmilitarização da polícia e que visam alterar o artigo 144 da Constituição Federal. Procure se informar sobre elas! Mas, sobretudo, lute por um outro modelo de segurança que inclua uma revisão profunda da política criminal, a exemplo da política de drogas, e das diversas formas de criminalização da pobreza e dos ativistas e lutadores sociais! 27
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Como reagir a uma Abordagem policial? Enquanto a desmilitarização não vem, a gente ainda precisa conviver nas ruas com o modo de operação militar da polícia. E quando você for abordado por policiais, o que fazer? A gente te dá algumas dicas que podem ser úteis. - Caso você NÃO esteja cometendo infração, o melhor é manter a calma, mostrar-se tranquilo, explicar-se diante da situação e, caso seja exigida, mostrar a sua documentação. Por isso, é sempre importante ao sair de casa ter no bolso ou na carteira algum documento de identificação.
Agora, tendo a atento aos
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- O/a que você o direito verbalmen do de aco de 1965, abuso de ocorra e v delegacia, delegado/ se a denú depoimen não seja e
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Agora, se você estiver cometendo alguma infração, fique atento aos seus direitos e deveres: - Primeiro, sabemos que é difícil, mas procure manter a calma. O nervosismo só atrapalha nesses momentos. Caso sinta-se à vontade para falar, fale só o necessário. Não discuta com o/a policial. É um direito de todo cidadão brasileiro manterse em silêncio e ser representado na delegacia por um advogado ou defensor público.
viocê ue
ter eja ao ão.
- O/a policial, independente do que você estiver fazendo, não tem o direito de agredi-lo (a) física ou verbalmente sob pena de ser punido de acordo com a Lei nº 4.898, de 1965, que tipifica o crime de abuso de autoridade. Caso isso ocorra e você seja encaminhado à delegacia, denuncie a agressão ao/à delegado/a de plantão, e confirme se a denúncia foi incluída no seu depoimento. Caso isso ocorra e você não seja encaminhado à delegacia, 44
procure guardar mentalmente o nome do/a policial agressor/a ou o número da viatura para depois fazer a denúncia à Corregedoria da Polícia ou prestar uma queixa-crime com a ajuda de algum advogado ou defensor público. - O/a policial, independente do que você estiver fazendo, não tem o direito de extorqui-lo (a), ou seja, pedir ou receber quantia em dinheiro para liberá-lo(a) sob pena de ser punido de acordo com o Art. 158 do Código Penal Brasileiro (crime de extorsão). Caso isso ocorra e você seja encaminhado à delegacia (o que é pouco provável), denuncie a extorsão ao/à delegado/a de plantão e siga as mesmas recomendações da situação descrita acima. - O/a policial, independente do que você estiver fazendo, também não tem o direito de torturá-lo física e psicologicamente, podendo ser responsabilizado de acordo com a Lei nº 9.455, de 1997, que tipifica o crime de tortura.
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Vem pra luta com os Comitês
pela Desmilitarização da Polícia e da Política
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Os comitês surgiram em 2013 como uma aglutinação de pessoas e entidades sensíveis ao tema da violência urbana e que decidiram se organizar para contribuir de forma crítica com as discussões e ações em torno da segurança pública. Assim, nasceram da necessidade urgente de se repensar modelos alternativos às políticas públicas de segurança que foram implementadas nas últimas décadas e que chegam aos dias de hoje em situação de evidente crise. Apesar da importância e abrangência do tema, o poder público tem mantido as discussões de reforma dessas políticas, incluindo a modificação das instituições relacionadas, bastante restritas, quando não estagnadas. Nesse sentido, por compreender que as medidas tomadas nessa área interferem no cotidiano de todos e todas, sobretudo na vida de populações com ele-
vada marginalização social, é que articulamos um campo que pense e atue de forma crítica e permanente no âmbito da segurança. Nosso interesse é ampliar a compreensão da segurança pública para que esta atue fundamentalmente de forma democrática, transparente e pautada na promoção e ampliação dos direitos humanos. Para isso, compreendemos que sem o olhar dos movimentos sociais que atuam no campo e na cidade, sem a experiência das comunidades locais e de bairro, sem as importantes contribuições das categorias profissionais da área e, sobretudo, sem a expansão da discussão para os/as trabalhadores/as e a população em geral, não obteremos êxito em estancar o aumento da violência e muito menos o banho de sangue diário que tem acompanhado as ações policiais nas áreas pobres das periferias brasileiras. 45
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http://tinyurl.com/hn3853q
Nesses dias em que se discute a presença ou não da Polícia Militar no campus da Universidade de São Paulo, por solicitação de seu reitor, João Grandino Rodas, vale a pena levantar uma lebre que poucos conhecem. Independente da correção ou não da ocupação da reitoria da USP pelos estudantes, o certo é que eles foram vítimas de uma truculência policial desmedida. É mais um entulho da ditadura que volta e meia mostra que está aí acordado. Os alunos da USP poderiam ampliar suas demandas internas e se somarem a inúmeras entidades de defesa dos direitos humanos, familiares e jovens pobres que desde sempre têm sido vítimas da brutalidade das forças de segurança. Poderiam começar sua ação examinando o brasão da Polícia Militar do Estado de São Paulo. O brasão em questão não é coisa pouca. É um tapa na cara do povo brasileiro. O brasão, como obra de design, é primário. (Atenção, não é o logotipo estampado em uniformes e viaturas). Como símbolo, é uma ode à truculência e à brutalidade das classes dominantes. Trata-se da seguinte peça, conforme descrito no site da PM: “O Brasão-de-armas da Polícia Militar do Estado de São Paulo é um Escudo Português, perfilado em ouro, tendo uma bordadura vermelha carregada de 18 (dezoito) estrelas de 5 (cinco) pontas em prata, representando marcos históricos da Corporação”.
Aqui vai ele:
Eis a descrição da peça, sempre segundo o site: 47
ESTRELAS REPRESENTATIVAS DOS MARCOS HISTÓRICOS DA CORPORAÇÃO
1ª ESTRELA -15 de Dezembro de 1831,criação da Milícia Bandeirante;
2ª ESTRELA - 1838, Guerra dos Farrapos;
3ª ESTRELA - 1839, Campos dos Palmas;
4ª ESTRELA - 1842, Revolução Liberal de Sorocaba;
5ª ESTRELA - 1865 a 1870, Guerra do Paraguai;
6ª ESTRELA - 1893, Revolta da Armada (Revolução Federalista);
7ª ESTRELA - 1896, Questão dos Protocolos;
8ª ESTRELA - 1897, Campanha de Canudos;
9ª ESTRELA - 1910, Revolta do Marinheiro João Cândido;
10ª ESTRELA - 1917, Greve Operária;
11ª ESTRELA - 1922, “Os 18 do Forte de Copacabana” e Sedição do Mato Grosso;
12ª ESTRELA - 1924, Revolução de São Paulo e Campanhas do Sul;
13ª ESTRELA - 1926, Campanhas do Nordeste e Goiás;
14ª ESTRELA - 1930, Revolução Outubrista-Getúlio Vargas;
15ª ESTRELA - 1932, Revolução Constitucionalista;
16ª ESTRELA - 1935/1937, Movimentos Extremistas;
17ª ESTRELA - 1942/1945, 2ª Guerra Mundial; e
18ª ESTRELA - 1964, Revolução de Março.
Na lista, há a exaltação a um golpe de Estado (1964) e a uma rebelião oligárquica (1932). Louva-se também a repressão a três mobilizações populares (Canudos, Revolta da Chibata, Greve de 1917), ao levante comunista de 1935, a Coluna Prestes (1926) e homenageia-se outras missões cumpridas. Há soldados e oficiais valorosos na história da Polícia Militar paulista. Há também vários elementos que compõem e compuseram sua banda podre. É da conta, acontece em qualquer agrupamento humano. Mas manter um símbolo exaltando a repressão sangrenta e covarde a manifestações democráticas é um acinte à democracia. 48
http://tinyurl.com/j8266df
Ciro Barros, Agência Pública Com quase dois metros de altura, mais de 100 quilos entre músculo e alguma gordura, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de 33 anos, é um “monstro” como a gíria popular classifica os brutamontes do tamanho dele. A orelha esquerda estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz meio torto ajudam a compor a figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária Lemos de Brito). Essa prisão, destinada prioritariamente a ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e milicianos, faz parte do Complexo 49
Penitenciário de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Preso desde novembro de 2009, Rodrigo foi condenado pela Justiça Militar a 18 anos por furto qualificado, extorsão mediante sequestro e atentado violento ao pudor e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente qualificado. Segundo a condenação judicial, Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado Carneiro, abordaram a vendedora ambulante Helena Moreira na descida do Morro de São Carlos, onde ela morava. Ela iria à estação de metrô Estácio, no bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a revistaram, roubaram a quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que ela fosse mulher de algum traficante. Segundo a decisão do juiz Jorge Luiz Le Cocq D’Oliveira, os PMs mantiveram a vendedora sob cárcere privado por quatro horas, onde ela foi agredida e “constrangida a praticar atos libidinosos” antes de ser atingida por um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado por Rodrigo. Ainda segundo a sentença, a vítima se fingiu de morta após a sessão de tortura e foi à delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido o crime pelo qual foi condenado, mas diz com todas as letras que “não é inocente”, cometeu “outros erros” como policial, que ele não quer detalhar para não complicar sua situação. Ele é autor do livro “Como Nascem os Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal “romance de nãoficção”, em que mistura suas próprias histórias às histórias de outros colegas, casos de repercussão na crônica policial e “causos” da corporação. No livro, Rodrigo descreve com consistência a transformação de um jovem comum, com vagos ideais de defesa da sociedade e combate ao crime, em um criminoso fardado que usa de sua posição para matar, sequestrar, extorquir e prestar serviços à milícia. O resultado é um quadro aterrador de achaque de oficiais aos recrutas, corrupção dos batalhões e uma ácida interpretação da visão da sociedade em relação à polícia. “Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum recruta sai do CFAP [Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças] pronto para empunhar uma arma no meio da rua”, afirma categoricamente o ex-PM. Mas logo ele vai aprender que tem que pagar para tirar férias, para ficar nos melhores postos da corporação e assistir aos oficiais lucrando com a venda de policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém entrava sem autorização do comando. Se um carro fosse roubado, e o bandido fugisse com o veículo para o interior da comunidade, sorte dele (…). Acredite, se um policial adentrar uma comunidade sem autorização do comando, não importa o motivo, ele responderá por descumprimento de ordem. O morro que está ‘arregado’ não tem tiro nem morte, basta estar com o carnê em dia”, denuncia. “Posso garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…), mas pensar em tamanha crueldade é impossível”, narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca monstruosa que envolve esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou, fez um juramento e marchava com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos uma vez, arriscou morrer pela sociedade.” Tenho diante de mim um monstro: alguém condenado por um crime hediondo, mas, na própria metáfora de Rodrigo, alguém que também é produto de mecanismos cruéis de uma corporação cruel. Ligo o gravador. Essa é a versão dele.
Como você entrou na Polícia Militar?
Entrei na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de marinheiro em Santa Catarina. Sempre gostei muito da vida militar. Logo no começo eu já me desiludi com o militarismo na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil. Quando eu tive que escolher uma especialização na Marinha, não consegui passar nos exames para mergulhador. Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi fazer o curso da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz, pedi baixa da Marinha e fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia. 50
Mais uma vez veio a desilusão. Assim que nós nos apresentamos lá no CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), onde a maioria dos praças são treinados. O CFAP deveria ser um centro de excelência, mas para você ter uma ideia, no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas. No primeiro dia tivemos só meio expediente e o comando já liberou todo mundo. Você conta no livro que ali começou uma degradação de um rapaz que tinha um ideal, queria defender a sociedade, e começou a tomar contato com a violência e a corrupção na corporação. Como foi isso pra você? O processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no CFAP, o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um caminho cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos começavam a disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for muito bem feito você acaba criando monstros. As instruções, as aulas que são ministradas no CFAP desde o início elas começam a mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem aula de direito penal, não teve aula de direito constitucional, não teve aula de filosofia, de sociologia. A gente chegava na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia dúzia de anedotas da história da polícia militar e o resto é contando caso (matou fulano, prendeu ciclano). Dentro do próprio ambiente ali, os outros oficiais que coordenavam o curso só tinham um objetivo: deixar o cara aguerrido, endurecido, fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para ele não demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o camarada endurecer bastante ele pode preservar a própria vida com isso. Mas isso é ruim: você cria um cachorrinho bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor como elas são. Depois de alguns meses no CFAP, o recruta vai estagiar e trabalhar com os antigos na rua. Como na época era verão, existiam as chamadas Operações Verão. Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do antigo. Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo do CFAP são os litorâneos. Aí a gente foi pro 31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º, Botafogo, 2º, Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada um. No período de praia, por exemplo, a gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar o dinheiro do flanelinha, do cara que vende mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: “olha, vocês podem fazer o que quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater, com o que vocês vão fazer e tchau e benção”. A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí em várias ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O modus operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma uma proporção mundial. Eu conheci aqueles recrutas que participaram do caso Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e eles foram formados depois do meu livro. O último parágrafo do meu livro diz que os portões do presídio da polícia militar estarão sempre abertos para receber cada novo monstro nascente. E que venha o próximo. E continuam nascendo os monstros, um atrás do outro. Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando eles estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura. 51
Como um policial aprende a torturar?
É no dia a dia mesmo. O nosso direito dificulta o trabalho do policial em certos aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um processo de desumanização tão grande. O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado. E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial. E aí você vai começar a ser destacado, a ser visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa criou. Se eu tô com você, mas você não tem disposição pra bancar o que eu tô fazendo com um vagabundo, na hora que der merda é você que vai roer a corda. Na hora que o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra meter tiro nele. No fim, você vai ser afastado: vai ficar no rancho, na faxina ou em algum baseamento a noite toda. Você vai formando e selecionando por esse critério. Se você é duro, você vai trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo (Patrulhamento Tático Móvel)… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a gente tem que matar.” Aí é cerol mesmo. Se você não estiver disposto a participar disso aí, tu não vai sentar no GAT, não vai sentar numa patrulha nunca. No livro, você descreve o constante clima de guerra e revanchismo entre policiais e traficantes e conta a história do recruta Sampaio… É uma das partes verídicas do meu livro, fiz questão de chamar a atenção pra esse caso do Sampaio. Quem sabe para a família também ler e sentir que alguém lembrou dele. Esse caso foi muito sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo chora]. No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha muita intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem o Sampaio. Um dia eu cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço na guarda. Era sexta-feira de carnaval. Quando eu cheguei, já ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido assassinado com 19 tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula de uma família relativamente grande, tinha vários irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era pra ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo dia pro CFAP de ônibus. Naquele dia, ele ia de carona com um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali parado no ponto de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área onde tinha traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área, ele achou que teria uma tolerância com a presença dele pelo menos até ele se formar e conseguir sair. Ele tava no ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do baile e alguém o reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram a atirar nele ali. Ele correu, correu muito, quase 800 metros. E foi cair lá perto de uma ruazinha de barro com 19 tiros de calibre .380. Todos eles nas costas. Todos. A gente já chegou no CFAP com essa notícia próximo a nossa formatura. Aí pediram voluntários para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma representação da polícia lá. E pô, bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora novamente]. Se eu tava rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha 19 anos. 19 anos… 52
dia?
Como o clima de guerra entre criminosos e policiais influencia na formação do policial no dia a
Depois que eu vi o Sampaio no caixão lá com flores até o pescoço, só a cara pra fora, a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis ir ao enterro, nenhum oficial foi. A kombi que a gente usou pra levar o corpo até o enterro, a gente teve que empurrar porque não funcionava. Depois que eu vi esse descaso todo, eu pensava: “porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é possível que vai ficar por isso mesmo”. Não teve uma palestra de alguém pra conversar com a gente, não teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe até hoje quem deu 19 tiros num recruta que estava desarmado. Ninguém sabe. Ali eu pensei: “se eu der mole, vai ser um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter que pagar, isso aqui não vai ficar de graça não. Vou ter que escolher de que lado que eu tô.” E nós nos formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua. Quando eu cheguei no batalhão, eu não poderia trabalhar numa coisa que fosse muito perigosa. Eles colocaram a gente num serviço de P.O, que é o Policiamento Ostensivo a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela época não tinha UPP ainda, não existia. Então a Tijuca, agora é menos, mas era uma região muito complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor. Eu trabalhava na rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro dos Macacos, que era o único morro da facção criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área cercada pelo Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito aguerridos no combate. Não tinham medo de matar polícia, de dar tiro em polícia. É uma área onde passa muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham de lá, atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na 28 de setembro e voltavam pro Jacarezinho, mudavam de área de batalhão e era difícil de pegar. Ali, bicho, meio dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A primeira vez que eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio dia e pouco, no Itaú da 28 de setembro. Tinha acabado de assumir o serviço. A gente vinha de ônibus até a 28 de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou: “Tão roubando, tão roubando”. Aí eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto. Já puxei a arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o motorista acelerou e eu atirei. Só que eu errei e o cara escapou. Ali eu vi que o troço é de verdade, que se der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também quando o Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro]. O Borrachinha tomou um tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital. E não passava uma semana sem que alguém próximo a mim tivesse levado um tiro. Policial que era baleado quando tentavam assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha. Todo dia, quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu escutava: “Prioridade, prioridade. Assalto em tal rua” é porque algum vagabundo tinha dado tiro em patrulha e tava correndo. O GAT quando entrava no Morro dos Macacos, eu tava patrulhando em volta e só ficava escutando o pau roncando lá. E eu só ficava pensando: “pô cara, eu tenho que ir pra lá, quero ir pra lá, quero dar tiro”. E agora que eu tive tempo pra parar e pensar eu fico vendo como isso é absurdo. É absurdo. Eu via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil uma da tarde nos Macacos, seis horas da tarde o cara descarregando uma nove milímetros em cima da patrulha pra poder fugir. Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é surreal, é uma guerra. Essa banalização do confronto entre polícia e bandido é singular no Rio de Janeiro. O criminoso aqui no Rio de Janeiro não tem receio de dar tiro no policial, nenhum receio. Não tem receio de jogar uma granada em cima do policial que entra numa favela. Tem noção do que é isso? Escutar uma granada explodindo e você saber que é pra você? Bicho, isso deixa qualquer um pirado. Você tá passando com a sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás. O cara fica louco. Bicho, você dentro de um blindado, parece que você tá no Iraque ou na Síria cara. Quando você embica de blindado dentro de um acesso à favela, é tiro batendo no vidro, na lataria. Granada explodindo. Não tem como o cara não ficar louco. Isso cria um stress no policial que tá ali direto, que fica difícil do policial equacionar isso na cabeça dele. Você imagina uma escala de 24 horas por 72 de descanso. Então o cara chega na segunda-feira, vai trabalhar. Entra no blindado, bota colete, fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro, leva tiro, mata um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. 53
Vão pro batalhão. Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira ele entra, vai pra favela de novo, troca tiro de novo, mata mais um. Não tem como se conservar são. O monstro é uma metáfora desse processo de desumanização pelo qual o camarada passa na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha tendências homicidas, seja violento, tenha caráter duvidoso antes de entrar na Polícia Militar, quando ele entra isso tudo é potencializado. É a hora disso extravasar. Essa lida contínua com situações de confronto, morte e violência tem que ser encarada de maneira séria pelos gestores da Polícia Militar. A gente tem que parar e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de alienados fique na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso? No livro você também comenta sobre a participação dos oficiais nesse ciclo de violência e corrupção e chega até mesmo a chamá-los de “chefes de quadrilha”. Você diz que eles estão no comando disso tudo. Como isso acontece? É o coronelismo moderno. No militarismo, não tem como uma coisa seja ela boa ou errada continuar sem a anuência de quem tá no comando. Se eu e você estamos na patrulha e a gente começa a agir de uma maneira que está desagrando o comando, ele vai tirar a gente da patrulha. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros, matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia Militar, o coronel, o comandante do batalhão é que coordena todo esse esquema que mantém a área do batalhão em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia ele tá em outro batalhão. Isso se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de “rebelde”, de “problemático”. Há algum tempo teve uma comoção muito grande por conta de uma menina que foi fazer um aborto e faleceu, a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela clínica de aborto. Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha for lá e fechar a clínica de aborto, o coronel vai querer saber porque fechou a clínica. “Ah, teve reclamação”. Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão pra continuar funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele vai sofrer algum tipo de consequência. Não é consequência de morte, violência, não. É consequência administrativa. Vai ser encostado de alguma forma e daqui uma semana a clínica vai estar funcionando de novo, pode ter certeza. No batalhão, você tem a administração da lavradura militar e tem as companhias. O comandante da companhia é quem vai definir que tipo de serviço existe dentro das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo, nas cabines…) A patrulha é considerada um serviço bom. Te deixa móvel, você consegue se movimentar bastante dentro da área do batalhão e tem possibilidade de ganhos. Você pode extorquir o usuário de drogas, você pode pegar um ladrão, tomar a arma dele e ficar com o dinheiro dele e vender a arma. É diferente do serviço baseado, que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra você trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado pelo comandante de companhia, pois é ele quem determina onde cada um vai ficar. Você foi indicado, beleza, vai trabalhar na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai ter que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem alguém atrás de você que tá querendo ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo que trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar na patrulha. Cem meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira à noite, o comandante da companhia pegava duzentos reais de cada patrulha, de quem tava de serviço à noite. Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando num subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine, mais um dinheiro do camarada que trabalha no trânsito. Quando você vai ver no final do mês, esse pedagiozinho dá uma soma boa pro comandante de companhia. 54
Se o cara que tá no serviço, por exemplo, a patrulha, não quiser pagar, OK. Ele só não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço. Esse pedágio é uma forma do comandante receber um dinheiro e se blindar. Ele não precisa disputar na rua o dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do batalhão. É um tipo de achaque e corrupção muito difícil de ser descoberto porque um policial dificilmente vai dizer que o comandante tá extorquindo ele. Dificilmente vai dizer, dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.
Por que dificilmente ele vai dizer?
Porque se ele falar pro comandante do batalhão que o comandante da companhia tá pedindo cem reais pra ele continuar na patrulha, a primeira coisa que o comandante do batalhão vai dizer é: “você não tá mais na patrulha”. Ele pode tentar produzir provas, colocar uma câmera escondida, tentar ir mais a fundo. Mas aí, meu camarada, ele tá assinando a própria sentença de morte. Aí você tá querendo prejudicar o comandante da companhia, tá querendo prender o cara. Entre a própria tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima. Isso não vai acontecer nunca. Esse é só mais um exemplo. Quer outro? Pra você tirar férias, você tem que pagar o sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido entre o sargenteante, que é um sargento, e o capitão que é comandante de companhia. Isso tá no filme lá, no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém. Mas não para por aí não. Se você não quer mais trabalhar, você pode chegar no oficial e falar que não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês o seu salário fica pra mim”. Aí o sargenteante te coloca numa escala fantasma. Ou seja, você não existe mais no batalhão. Você não precisa mais colocar os pés no batalhão. Isso é bom pro cara que trabalha na milícia, no jogo do bicho. O camarada que, por exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe lá cinco mil por semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir pro batalhão pra ele é ruim porque ele perde o dia de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário dele de dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia e não aparece mais no batalhão. Fica só trabalhando no jogo do bicho. Pra ele é mais jogo, porque ele não precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter horário, fazer a barba. O interessante pra ele é a carteira de policial e o porte da arma. Isso é muito comum, é fácil de se constatar. Qualquer promotor de justiça que chegar no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e a escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata. Esses esquemas todos nos batalhões da Polícia Militar são muito antigos. Eles fazem parte de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos vai demandar uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder das mãos dos coronéis.
Por isso você defende a desmilitarização?
É um primeiro passo. Quando você vê um soldado policiando, alguma coisa já tá errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele pode até ser um soldado policial dentro do quartel, mas não na rua. O soldado tem uma premissa que é o quê? Matar o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o policial não, pelo menos não deveria. O policial, ao contrário do que se acredita em boa parte da sociedade carioca, ele não foi feito pra matar ninguém. O policial não tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro no policial, ontem pode ter estudado com ele, pode ter frequentado os mesmos lugares que ele. O criminoso é resultado da nossa sociedade, do nosso contexto. O crime é um fato social e o policial não pode enxergar o criminoso como um inimigo. Não é pra matá-lo. Prendeu, leva pra lei tomar as providências dela. Mas o que se convencionou acreditar é justamente o oposto. O coronel, os oficiais, acumulam muito poder em uma figura só. O coronel tem uma área de influência enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas coisas. E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não pode entrar na sala do coronel e falar assim: “Coronel, por que eu não posso abordar aquela van pirata que tá passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão disciplinar. Desde o legalismo do militarismo, até as regras subjetivas que regem a relação entre subordinados e superiores hierárquicos, tudo serve para 55
impedir o camarada de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar: “capitão, não vou pra rua porque o colete tá vencido”. Não pode. Ele pode reclamar do colete, mas não pode reclamar para o capitão que é quem resolveria. Quando você tira o militarismo e coloca os profissionais de segurança em nível equivalente, se o profissional de segurança questionar o coronel por que ele teve que voltar das férias pra trabalhar, o coronel não vai poder responder: “você tá indo porque eu quero. Porque eu tô determinando que você vá. E se você não for, vai ficar preso à disposição”. Você vê que essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos de todo mundo e ninguém faz nada. Por exemplo, aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro, num carro em fuga. Só poderia acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar tiro”. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala! Aquelas crianças que tavam brincando na rua, filmando, um correu atrás do outro. Daqui a pouco é tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto e pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê o que é. Foi o soldado sobrepujando o policial de novo. Ele tava entrando num território conflagrado. Ele entrou lá pra prender ou pra matar? Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado pra prender, a primeira coisa que ele ia fazer quando viu o menino correndo era gritar pra ele parar. A nossa sociedade carioca, principalmente da região metropolitana, criou, até por sofrer muito com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto. Quando um policial vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude. Toda vez que o policial entra em confronto, mata um cara que tava fazendo o arrastão a sociedade aplaude e estimula. Só que o policial militar tem que entender que quando ele errar a sociedade não vai aplaudir não. A sociedade vai sentar pra formar o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha. Mas ao mesmo tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem que matar. Tem uma frase sua no livro que até vai nesse sentido, quando você escreve: “O PM só vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga essa hipocrisia da sociedade que às vezes exige o policial e às vezes o monstro? Se o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus pra trabalhar, se ele não andar demonstrando que tá armado, ele vai ser encarado por aquelas pessoas que o conhecem como um policial bobão que não faz mal pra ninguém. Agora, se ele tá dentro de um Fusion, com uma pistola enorme na cintura, com roupa de marca, cordão de ouro no pescoço e mete a porrada em quem tá fazendo merda perto da casa dele. Se ele se torna algo que realmente traz risco, ele se torna valorizado. “Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele é polícia”. Há uma glamourização desse estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do que o policial e é por isso que ele tá nascendo o tempo todo. As nossas próprias autoridades políticas valorizam a criação dos monstros, mas tem que ter alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda. As autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos disso. Você lembra do caso do Matemático, que foi perseguido pelo helicóptero? O camarada de helicóptero com uma M60, atirando em um carro em fuga que não deu um tiro nele. Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos muros das casas, nos carros estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é o exemplo da hipocrisia 56
e de como as nossas autoridades são parciais. Se fosse uma Patamo fazendo isso, os policiais iriam todos presos. Mas como foi o helicóptero, tá tudo tranquilo. Agora, me diz a diferença entre o cara do helicóptero e os caras do HB20? Não tem diferença nenhuma. Mas o tratamento foi bem diferente. “Ah, aquele PM ali que atirou no carro em fuga, errou. Mas o cara do helicóptero, não, vamos proteger ele porque alguém tem que fazer esse tipo de merda.” O Estado quer que alguns profissionais façam sim esse tipo de serviço sujo. Como fizeram com o Matemático, como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre que a coisa começa a chamar muita atenção, eles entregam alguns pra serem açoitados. E com isso a gente vai empurrando. E não enfrentamos nenhum problema. O seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão Especial Prisional, prisão para policiais militares). A Polícia Militar não gostou do livro, tanto que ele foi censurado. Eu me ressinto um pouco de não ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum tipo de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar ele e lançar quando eu saísse da prisão. Mas as coisas não se resolveram, eu já tava com o livro pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí eu lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia Militar. Foi a pior coisa que eu fiz. Escrever um livro falando mal da Polícia Militar dentro do presídio da Polícia Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido? Cara, quando o livro foi lançado, minha esposa levou 30 exemplares pra distribuir lá no BEP, pra alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que eu tinha escrito o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela entrar com o livro. “Ah, mas por que não pode entrar com o livro?” “Ordem do comando, não pode entrar com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou nervosa e foi lá no plantão do Ministério Público no centro do Rio pra contar o que aconteceu, que o livro foi censurado. Ela contou que o Elite da Tropa, por exemplo, pode entrar, o livro que o capitão escreveu. Mas o livro que o ex-soldado escreveu não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro Ministério Público e depois de alguns dias o MP oficiou o comando da Polícia Militar solicitando informações sobre o porque da censura prévia. O comando deu lá as explicações dele. Dois dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram quatro policiais, pelo que eu pude perceber, na minha cela, todo mundo com roupa do BOPE, touca ninja, sem identificação. Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro saco, tomei choque. Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá a tua esposa retirar a denúncia do Ministério Público, se não tu vai amanhecer suicidado aqui dentro. Na próxima vez que a gente voltar, vai ser pra você se suicidar, entendeu bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa não foi mais lá, retirou a denúncia e o assunto morreu, ficou por isso mesmo. Eu falei com a minha advogada e ela foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém quis ouvir. O Comando da Polícia Militar se doeu mesmo comigo, tomou como uma coisa pessoal que poderia trazer algum tipo de incômodo pra eles lá em cima. É impressionante como ainda hoje você incomoda se você falar o que você pensa, se você falar a verdade. Teve uma livraria, uma rede de varejo que, por conta do lançamento do livro, queria fazer uma noite de lançamento. Eles queriam fazer o lançamento do livro, falaram com a minha editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida até a livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só que, no despacho, o juiz determinou que ficava a critério da Polícia Militar providenciar a escolta pra que eu fosse até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra fazer o lançamento do livro. Só que no dia, a escolta não pode me levar porque ficou empenhada em outra atividade. Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas no dia disse que não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de calar, de evitar que eu falasse.
Em que ponto se perde o policial e se ganha o monstro? 57
São vários pontos de quebra. Pra mim foi a morte do Sampaio. Quando eu vi o Sampaio morto, um recruta de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali eu falei: “É guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar bala também”. Ali foi que eu percebi a crueza da morte. Essa lida diária com a violência constante é que causa a desumanização. Com a corrupção também, mas ela se torna parte do processo da violência. Porque pra você conseguir pegar o arrego do traficante, você tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o traficante não vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem tá baseado na entrada do morro, porque quem tá baseado na entrada do morro não atrapalha o movimento da boca. Essa desumanização vem primeiro com a violência, depois vem com os benefícios pecuniários que você pode ter quando os outros querem evitar a violência. Primeiro eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala. Vai descer um, dois, três mortos. Na semana que vem o traficante vai pagar pra não descer mais três mortos. A corrupção é consequência desse estado de violência que o policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá o tempo todo oprimido: na folga dele ele tá oprimido, tem receio de ser reconhecido, assassinado. Pra mim esse ponto de quebra foi perceber que eu estava no meio de uma guerra de verdade. E como o Sampaio, depois vi muitos outros amigos morrendo, fui a muitos enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais recrudescido. Tem outro caso que eu conto é o de dois policiais assassinados numa cabine, no Andaraí, o sargento Marco Aurélio e o cabo Peterson. Eles chegaram pra trabalhar, de manhã cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo matou os dois de .45. O cara fugiu sem levar nada. Cheguei lá pra ver e tava o sargento Marco Aurélio sem a parte de cima da cabeça e o Peterson tava todo cheio de tiros no tórax. Muita gente da minha turma morreu, tá presa, foi excluída. E a fábrica de monstros tá aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre tem gente querendo entrar por causa dessa glamourização do monstro. Todo concurso da PM é 100 mil inscritos, 80 mil inscritos. É muita gente, pô. A relação candidato/vaga é paralela a vários cursos aí da UERJ. A fábrica tá aberta e muita gente quer entrar nela, mas a gente vê que tá tudo errado.
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Privação do sono. Pauladas. Gás lacrimogênio. Humilhações constantes. PMs submetem jovens recrutas a “treinamento” bárbaro, e formam uma polícia brutal
Por Thiago Guimarães, na BBC
Privação de sono, pauladas, tarefas em salas impregnadas de gás lacrimogêneo e pimenta, almoço misturado com água e consumido com as mãos imundas de terra e pus, humilhação e assédio moral praticados por superiores. As cenas, registradas em um curso recente de formação policial no Brasil, se repetem pelo país. Expõem ainda o predomínio, no treinamento das PMs, de uma “pedagogia do sofrimento” que acaba por alimentar a violência de seus agentes nas ruas. A conclusão é do capitão da PM da Paraíba Fábio França, que colheu relatos de participantes de um estágio de aperfeiçoamento realizado em agosto de 2014 em uma Polícia Militar do país – o Estado não é revelado na pesquisa porque os chefes da corporação pediram para “resguardar a imagem da instituição”. Mestre e doutor em sociologia, França especializou-se no estudo da formação dos profissionais de segurança pública no Brasil. Com 35 anos de idade e 13 de PM, o capitão cunhou a expressão “pedagogia do sofrimento” para caracterizar o modelo de cunho militarista que, segundo ele, predomina na educação policial no país, baseado em valores como masculinidade, virilidade e exaltação ao combate bélico. Para ele, essa pedagogia está ligada a um “ethos (conjunto de costumes e hábitos) guerreiro”, que legitima a “construção de uma vontade bélica de proteger a sociedade”. 59
“A crença geral é que o treinamento baseado em violência psicológica, moral e até física é necessário para condicionar o corpo e a mente dos soldados para vencer o medo e o perigo e ter coragem para o embate no que seria uma guerra urbana”, afirma França, que relaciona o fenômeno ao que aponta como “herança ditatorial” das PMs brasileiras.
‘Se não aguentar, corra’
Em conjunto com a colega de PM Janaína Gomes, o capitão reuniu depoimentos de participantes de um curso de formação de um pelotão especial de patrulhamento em motos. Para os autores, que publicaram os resultados do estudo na última edição da revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os rituais do treinamento reforçam a “pedagogia do sofrimento” em detrimento de valores como comunicação, solução de problemas e relação com a comunidade. “Na obtenção de um ‘brevê de virilidade militar’, é necessário um aprendizado voltado para o sofrimento físico e para as dores morais”, escrevem os policiais e especialistas em segurança. Nesse contexto, aponta França, mulheres que apostam na carreira policial acabam obrigadas a “introjetar o papel dominador da maioria masculina” para conseguir espaço em um “universo marcado pelo preconceito” de gênero e contra homossexuais. Uma aluna do curso, por exemplo, relatou como os participantes eram molhados com água gelada durante a madrugada, entre outras privações. “Além de banho de água gelada na madrugada teve também gás. Eles colocaram a gente dentro de uma sala, mandaram a gente tirar a camisa, colocar a camisa no olho, gasaram (lançaram gás lacrimogêneo ou de pimenta) a sala e desmontaram a pistola para a gente montar, e só saía da sala quem conseguisse montar a pistola”, afirmou a militar aos pesquisadores. Outro participante reclamou de uma situação em que a saúde dos alunos foi, segundo ele, colocada em risco. “No horário de almoço da gente, pegaram as quentinhas e jogaram dentro de um isopor sujo. Aí botou (sic) a gente pra comer com a mão, a mão suja do dia todinho pegando na moto, pagando flexão, com a mão suja cheia de pus, tinha muita gente com a mão inflamada. A gente parecia um bando de animais”, disse.
Reprodução da violência
Os relatos colhidos pelos pesquisadores militares da Paraíba reforçam os resultados de uma pesquisa
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recente com 21 mil policiais no Brasil, que mostrou que 30% deles já tinham sofrido abusos físicos ou morais dentro de suas próprias instituições. Segundo o levantamento de 2014, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Fundação Getúlio Vargas e Secretaria Nacional de Segurança Pública, 28% dos policiais ouvidos afirmaram ter sido “vítima de tortura em treinamento ou fora dele” e 60% narraram situações de desrespeito ou humilhação por superiores hierárquicos. Para França, esse tipo de formação acaba motivando um efeito dominó, em que as vítimas passam a naturalizar e transmitir a violência adiante. “Os alunos interiorizam as regras morais e vão exteriorizá-las no cidadão comum, que é o ‘paisano’, o ‘civil’, uma categoria diferente. Você sempre irá buscar uma válvula de escape para a ordem, a coerção moral”, afirma o capitão. A pesquisa registrou pelo menos um caso de violência física contra alunos, em que instrutores aproveitavam a superioridade hierárquica e a ausência do coordenador do curso para “resolver (problemas com) desafetos”. “ Um instrutor que estava querendo ‘tirar’ um aluno que não foi com a cara pegou um pedaço de pau dentro da mata. (…) Aí ele pegou e bateu num aluno que quebrou o pedaço de pau, que o pedaço de pau voou longe na perna do dez (aluno), aí o dez deu um suspiro forte e caiu no chão do meu lado”, relatou um participante.
Visão da polícia
Para o comandante do centro de educação da Polícia Militar da Paraíba, coronel Carlos Alexandre Sobreira, a formação “tem que ser dura e levar às vezes a extremos” para que o policial vivencie situações que encontrará nas ruas, mas não deve propor o “sofrimento pelo sofrimento”. Ele diz acreditar que as polícias no Brasil ainda estejam em processo de transição democrática, e reconhece que um policial desrespeitado na formação tenderá a reproduzir esse comportamento nas ruas. “Por isso temos buscado uma metodologia de ensino voltada para humanismo, respeito e dignidade do cidadão”, afirmou Sobreira, citando ênfase em temas de direitos humanos e policiamento comunitário. “O policial tem que tratar bem o cidadão, conhecer bem os problemas sociais e não ser alguém que traga mais transtornos.” No treinamento, contudo, diz o comandante, é preciso encontrar um equilíbrio. “Não podemos florear, é preciso trazer o máximo de realidade possível para a formação.” 61
Mudança social
Os autores da pesquisa concluem que as narrativas dos alunos expõem a resistência das instituições policiais às mudanças – algo que, segundo ele, as PMs precisarão superar para não perderem ainda mais confiança na sociedade. “Mesmo que exista a crença policial militar de que esse tipo de pedagogia seja necessária para fazer o PM crer que o curso o habilita e o fortalece para as situações encontradas nas ruas, as experiências escolares com os PMs mostram a falta de preparo profissional dos instrutores que enaltecem o sofrimento e desconhecem a lógica de poder e dominação presente nas ações desencadeadas por eles mesmos”, afirmam. França, que atua como professor de Criminologia no Centro de Educação da PM da Paraíba, diz acreditar que exista uma nova geração de policiais ingressando nas instituições, com maior bagagem cultural e educacional, e que pode tornar as polícias mais permeáveis a críticas. “Há integrantes de PMs, por exemplo, que não aceitam as críticas que faço. Mas não há como as PMs voltarem atrás, elas têm que se adequar à realidade democrática do país.”
250 Oficiais Militares no Templo de Salomão 62
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“Bora, bora, você é um bicho. Você é um jumento, seu gordo!”. O ex-soldado Darlan Menezes Abrantes imita a fala dos oficiais que o instruíam na academia quando ingressou na Polícia Militar do Ceará, em fevereiro de 2001. “Às vezes, era hora do almoço e os superiores ficavam no meu ouvido gritando que eu era um monstro, um parasita. Parecia que tava adestrando um cachorro. O soldado é treinado pra ter medo de oficial e só. O treinamento era só mexer com o emocional, era pro cara sair do quartel igual a um pitbull, doido pra morder as pessoas. Como é Formatura de soldados da PM do Rio de Janeiro em janeiro de 2014 que eu vou servir a sociedade desse jeito? É ridículo. O policial tem que treinar o raciocínio rápido, a capacidade de tomar decisões. Hoje se treina um policial e parece que se está treinando um cachorro pra uma rinha de rua”, reflete. Darlan lembra sem saudade dos sete meses passados no extinto Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da PM cearense. “Sempre que um professor faltava, éramos obrigados a fazer faxina em todo o quartel. E o pior: quem reclamava podia ficar preso o fim de semana todo. A hierarquia fica acima de tudo no militarismo. O treinamento era só aquela coisa da ordem unida [exercícios militares de formação de marcha, de parada ou reunião dos membros da tropa], ficar o dia inteiro marchando debaixo do sol quente. Lá dentro é um sistema feudal, você tem os oficiais que podem tudo e os soldados que abaixam a cabeça e pronto, acabou. Você é treinado só pra ter medo de oficial, só isso. O soldado que vê o oficial, mesmo de folga, se treme de medo”, diz. Enquanto era policial, Darlan estudava Teologia no Seminário Teológico Batista do Ceará e Filosofia na UECE (Universidade Estadual do Ceará). O ex-soldado conta que passou a questionar algumas ordens e instruções enquanto frequentava a academia e logo ganhou um apelido: “Mazela”, uma gíria mais comum no nordeste do Brasil para uma pessoa mole, preguiçosa. Pouco a pouco se espalhava entre a tropa a ideia de que os questionamentos do “Mazela” eram fruto de preguiça com relação aos exercícios militares.
“Fiquei com essa fama no quartel”, afirma. “É uma lavagem cerebral. O militarismo é uma espécie de 63
religião que cria fanáticos. Ordem unida, leis militares, os regimentos e tal, aqueles gritos de guerra. Essas coisinhas bestas que os policiais vão aprendendo, como arrumar direito a farda. Você pode ser preso se não tiver com um gorro ou chapéu na cabeça. Essas coisas que só atrapalham a vida dos policiais. Às vezes eu pegava um ônibus superlotado, chegava com a farda amassada e ficava sexta, sábado e domingo preso. Você imagina? Por causa de uma besteira dessas? Isso é ridículo”, exclama. “E isso é antes e depois do treinamento: se você for hoje na cavalaria da PM de Fortaleza você vai ver policial capinando, pegando bosta de cavalo, varrendo chão, lavando carro de coronel, abrindo porta para os semideuses [oficiais]. Eu nunca concordei com isso e fiquei com
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fama de preguiçoso”, diz. O assédio moral é a regra na formação da PM em cursos de curta duração que tem como preocupação principal imprimir a cultura militar no futuro soldado; com pouco aprendizado teórico em temas como direito penal, constitucional e direitos humanos; além da sujeição a regulamentos disciplinares rígidos. É o que constatou a pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública” publicada em 2014 pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas (CPJA), da Escola de Direito da FGV de São Paulo, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram ouvidos mais de 21 mil profissionais de segurança pública (entre policiais civis, militares, rodoviários federais, agentes da polícia científica, peritos criminais e bombeiros) de todas as unidades da federação, mais da metade deles policiais militares, sobretudo praças (policiais de patentes mais baixas). Destes, 82,7% afirmaram ter formação máxima de um ano antes de exercer a função, 38,8% afirmaram que já foram vítima de tortura física ou psicológica no treinamento ou fora dele e 64,4% disseram ter sido humilhados ou desrespeitados por superiores hierárquicos. 98,2% de todos os profissionais (incluindo profissionais de outras áreas) que responderam a pesquisa afirmaram que a formação e o treinamento deficientes são fatores muito importantes para entender a dificuldade do trabalho policial. Apesar dos números alarmantes, o tema ainda é pouco discutido dentro da corporação e fora dela. Em vários estados, os regimentos internos das polícias militares proíbem expressamente que os policiais se manifestem a respeito da própria profissão. Eles também dizem ter pouco espaço para denunciar as violações sofridas por eles no dia a dia – a estrutura fechada e hierárquica do militarismo dá poucas brechas para denúncias ou críticas dos policiais com relação à própria formação, principalmente fora dos quartéis. Mesmo que essas denúncias se refiram ao descumprimento de direitos humanos primordiais.
Morto por “suga”
A ênfase excessiva na preparação física nos cursos de formação já resultou até em mortes. O caso mais recente talvez tenha sido o do ex-recruta da PM Paulo Aparecido dos Santos, de 27 anos, morto em novembro de 2013 após uma sessão de treinamentos no CFAP (Centro de Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar) do Rio de Janeiro. Paulo morreu após uma “suga”, gíria dos policiais cariocas para as sessões de treinamentos físicos que levam os recrutas até o esgotamento físico. Durante a sessão, segundo os relatos de outros recrutas ouvidos pelo repórter Rafael Soares do jornal Extra, quem não conseguia acompanhar o ritmo da sessão de treinamentos físicos era obrigado a sentar no asfalto quente – naquele dia fez mais de 40 graus no bairro de Sulacap, zona oeste do Rio, onde está localizado o CFAP – ou submetido a choques térmicos com água gelada. No mesmo dia em que Paulo morreu, outros 32 alunos precisaram de atendimento médico – 18 com queimaduras nas nádegas ou nas mãos. Oito oficiais foram denunciados pelo Ministério Público pela morte de Paulo. O caso ainda tramita na Justiça Militar. Em 2012, três batalhões de Curitiba foram denunciados por excessos relacionados à formação dos recrutas. O roteiro é o mesmo: verdadeiras sessões de tortura física e psicológica, castigos, punições rigorosas. Há até uma acusação de assédio sexual (segundo a denúncia, um cabo teria beijado uma recruta à força).
Lição de tortura
A institucionalização de violações de direitos humanos dentro da PM na formação e treinamentos dos seus integrantes reflete-se diretamente na maneira como reagem no cotidiano com a população. Um relato exemplar está no relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, em que o sociólogo e exsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares, afirmou em depoimento 65
concedido no dia 28 de novembro de 2013: “O BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais, pelotão de elite da PM fluminense] oferecia, até 2006, aulas de tortura. 2006! Aulas de tortura! Não estou me referindo, portanto, apenas às veleidades ideológicas (…), nós estamos falando de procedimentos institucionais”, afirmou. Foi a essa realidade que o então recruta Rodrigo Nogueira Batista, egresso da Marinha, foi apresentado ao participar das Operações Verão nas Praias dois meses depois de ingressar na PM, descritas por ele como uma espécie de estágio que os recrutas fazem com policiais mais antigos nas praias nobres da capital fluminense – Ipanema, Copacabana, Barra da Tijuca, Botafogo, Recreio. “A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses dentro do CFAP tendo meio expediente e depois rua. Lá fomos nós de cassetete, shortinho e camisa da Polícia Militar, isso pra população ver aquele monte de recruta passando para poder dar o que eles chamam de ‘sensação de segurança pra população’”, relembra. “Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três ‘bolas-de-ferro’, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do policial antigo. A gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar dinheiro do flanelinha, do cara que vende mate, da padaria e quando ele ia no português comer alguma coisa tinha que dividir com os “bolas-de-ferro”’, lembra. Na rua: “a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro… Tudo que tu imaginar. Quando caía na mão era só porrada, porrada, porrada, gás de pimenta, muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí em várias ocasiões”, afirma. “Você vê agora o caso do Amarildo”, comenta. “Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando, estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vêm de muitos anos. Vêm de uma cultura”, analisa. Entrevistamos Rodrigo em Bangu 6, o presídio destinado a ex-policiais, bombeiros, milicianos, agentes penitenciários dentro do complexo penitenciário carioca. Condenado a 30 anos de reclusão, somando-se as penas recebidas na esfera civil e militar, ele falou com a Pública numa salinha apertada dentro da penitenciária. Rodrigo é autor de “Como Nascem os Monstros” (Editora Topbooks), um catatau de mais de 600 páginas onde descreve o que considera o processo de “perversão” a que são submetidos os jovens na corporação e que o teria levado a ser condenado por crimes como tentativa de homicídio triplamente qualificado, furto, extorsão e atentado violento ao pudor (ele nega ter cometido os crimes pelos quais foi condenado, mas afirma que não é inocente e que já cometeu outras arbitrariedades quando PM). “Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora, e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. Aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape”, resume. E como é orientado o recruta antes de ir para rua? “Uma das instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: ‘olha, vocês podem fazer o que vocês quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater, cuidado com o que vocês vão fazer e tchau e benção’”, relata. “O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado. E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial”, afirma. Segundo ele, quem demonstra “fraqueza” ou “covardia” num momento como esse começa lentamente a ser destacado e afastado das funções de “linha de frente” da corporação. “Se você é duro, você vai trabalhar na 66
patrulha, no GAT [Grupamento de Ações Táticas], na Patamo [Patrulhamento Tático Móvel]… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar alguém porque a guarnição chega a essa conclusão: ‘Não, aquele cara ali a gente tem que matar’. Aí é cerol mesmo”, garante. Essa disposição pra matar na “linha de frente” relatada por Rodrigo se traduz em casos reais ocorridos com as PMs. Em um áudio revelado pelo repórter Luís Adorno, da Ponte, o 1º tenente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM paulista) Guilherme Derrite afirma: “A polícia tá como sempre, né, querendo reduzir a letalidade policial. Então os tenentes, principalmente os oficiais, mas também cabos e soldados que nos últimos cinco anos se envolveram em três ocorrências ou mais que tenham resultado em evento morte do criminoso estão sendo movimentados. Até eu que tô fora da rua há dois anos me encaixo nessa lista. Porque pro camarada trabalhar cinco anos na rua e não ter ma… três ocorrências, na minha opinião, é vergonhoso né?”
Sim senhor, Não senhor
A cultura de violência nasce com a desumanização do próprio PM já na formação, relatam os entrevistados. “O soldado da polícia militar não tem direito nenhum. A gente tem que dormir em alojamentos sujos, caindo aos pedaços. Cada um tinha que trazer a sua rede pra dormir no alojamento. Os colegas casados que fizeram o treinamento passaram muitas dificuldades porque passamos três meses sem receber salário. O soldado só tem direito de dizer sim senhor e não senhor e de marchar o tempo todo”, resume o ex-soldado Darlan Menezes Abrantes. “Como uma polícia antidemocrática vai cuidar de uma sociedade democrática?”, pergunta. Autor de um livro intitulado “Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública” (Editora Premius), Darlan foi expulso da polícia cearense em janeiro de 2014, após 13 anos de PM. O que causou a expulsão, segundo ele, foi o livro. “Eu fui pra algumas universidades aqui de Fortaleza distribuir o livro e fiquei do lado de fora da Academia [Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (AESP-CE)] na hora do almoço. Aí os alunos vinham, pegavam o livro e levavam pra dentro. Durante uma das aulas, alguns alunos perguntaram para uma professora porque aqui no Brasil tinha polícia militar se na maioria dos países do mundo ela não era militarizada. Os alunos falaram que tinham visto no meu livro. Aí, pronto. Começaram a investigar a minha vida, abriram um IPM [Inquérito Policial Militar], eu fui interrogado e eu fiquei impedido de trabalhar na rua”, conta. No capítulo 11 do livro de Darlan, há algumas frases anônimas ditas por seus colegas a respeito da PM. “Os oficiais são uns sanguessugas”, diz uma das frases; “a PM é a polícia mais covarde que existe, pois só prende pobre”, afirma outra. “No meu interrogatório, eles queriam que eu dissesse o nome de cada policial que falou as frases, pra cada policial ser punido. A minha advogada alegou sigilo da fonte, igual vocês jornalistas têm. Em outra sessão, nessa época que eu tava respondendo o processo, eu tentei argumentar com um capitão. ‘Não, capitão, é meu direito escrever o livro’. Ele ironicamente pegou uma folha de papel em branco e jogou na minha frente, dizendo: ‘Aqui, os seus direitos’”, diz. A PM cearense alegou que a expulsão se baseava em vários artigos do Código Disciplinar e do Código Penal Militar e que a conduta do ex-soldado ia de encontro ao pudor e decoro da classe. Em São Paulo e no Ceará, é proibido ao policial “publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos, documentos ou assuntos administrativos ou técnicos de natureza policial, militar ou judiciária que possam concorrer para o desprestígio da Corporação Militar”. Darlan denunciou sua expulsão ao Ministério Público do Ceará e entrou com uma ação de reintegração na Justiça ainda não julgada. Procurada pela Agência Pública, a PM cearense não quis explicar o motivo da expulsão de Darlan nem comentar as declarações dele. 67
Regulamentos “obsoletos e antidemocráticos”
“Imagina um professor que não pode falar de educação ou um médico que não pode falar de saúde. Em muitos estados, o policial não pode falar de segurança pública”, afirma o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ. Ele é autor de um estudo que analisou os “manuais de conduta” dos PMs com o objetivo de comparar os códigos e legislações disciplinares das corporações de segurança pública no Brasil. “Os regulamentos disciplinares da PM são obsoletos, antidemocráticos, muitos deles pré-constitucionais”, define o sociólogo. “Eles foram criados para garantir a hierarquia e a disciplina dentro da corporação e a imagem da corporação, não foram feitos para proteger nem a população e nem o policial”, afirma o professor. “A maior parte da formação na PM é para o policial aprender normas, tanto as leis quanto as normas internas da corporação, e correr pra cima e pra baixo pra ficar em forma. A educação física não é dada com um propósito de saúde do trabalho, ela também está nessa lógica da disciplina. O que alguns especialistas e membros da polícia dizem que, implicitamente, esses artigos abusivos foram derrubados com a Constituição. O fato é que o diploma legal continua vigente”, diz. Segundo seu estudo, ao menos 10 unidades da federação possuem regulamentos anteriores à Constituição, inspirados no Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). Alguns estados até adotam diretamente o RDE como regulamento nas polícias militares. Isso foi determinado a partir de um decreto da ditadura, o Decreto-Lei 667, de 2 de julho de 1969. O artigo 18 do decreto estabelece que: “As Polícias Militares serão regidas por Regulamento Disciplinar redigido à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação”. “Nos regulamentos que nós analisamos, nós vimos casos extremos neste estudo, como regulamentos que estipulam que, se um policial em posição superior bater num policial de nível inferior para obrigar a cumprir uma ordem, então não tem problema, é uma coisa normal. Esse é um dos casos mais extremos”, afirma Ignacio Cano. Ele cita outros abusos, decorrentes do excesso de regulação. “Há todo um moralismo especial sobre o policial que regula até a vida privada dele. Ele não pode fazer coisas que a maioria dos mortais fazem: se embebedar, contar uma mentira, contrair dívidas. Ele pode ser punido por essas coisas. Isso cria uma visão de super-homem moral que não existe, isso sujeita os policiais a riscos permanentes de punição por condutas que a maioria dos brasileiros fazem”, explica. Há vários exemplos dessa regulação da vida privada dos policiais. No Espírito Santo, segundo o regulamento, é proibido aos policiais “manter relacionamento íntimo não recomendável ou socialmente reprovável, com superiores, pares, subordinados ou civis”. No Amazonas, é vedado ao policial “falar, habitualmente, língua estrangeira, em estacionamento ou organização policial militar, exceto quando o cargo ocupado pelo policial militar o exigir”. Em nove estados, constitui uma transgressão disciplinar o policial “contrair dívidas ou assumir compromissos superiores às suas possibilidades, comprometendo o bom nome da classe”. A hierarquia é o valor supremo nos manuais das PMs. Os regulamentos disciplinares das polícias de Alagoas e Mato Grosso proíbem: “sentar-se a praça, em público, à mesa em que estiver oficial ou vice-versa, salvo em solenidades, festividades, ou reuniões sociais”. Em outros sete estados, é uma transgressão disciplinar o policial que está sentado deixar de oferecer seu lugar a um superior. Só nove estados classificam as transgressões tipificadas nas categorias comuns (Leve, Média, Grave e Gravíssima); nos demais fica a cargo do superior estipular a gravidade da transgressão. “Os direitos humanos dos policiais são lesados frequentemente com esses regulamentos. E aí nós queremos que eles respeitem os direitos humanos dos cidadãos quando eles como seres humanos e trabalhadores não tem os seus direitos respeitados”, observa Cano. “Quando você trata o policial de uma forma autoritária e 68
arbitrária, o que você está promovendo é que ele trate o cidadão da mesma forma. Ele tende a descontar no cidadão a repressão que sofre no quartel. Ele tende a ser autoritário, arbitrário, impositivo. Ele não tem diálogo no quartel, por que ele vai dar espaço pra isso com o cidadão? Ele tende a esperar do cidadão a mesma moral que a dele”, argumenta o sociólogo. Principal nome à frente do site Rede Democrática PM BM, o primeiro sargento da PMDF Roner Gama é um exemplo da restrição da corporação à liberdade de expressão de seus integrantes. “Essa carga negativa da ditadura se reflete em procedimentos internos punitivos que existem ainda hoje. O policial, por exemplo, não pode se manifestar na rede social sobre certos aspectos internos da corporação sob o risco de responder. Eu mesmo estou respondendo a diversos inquéritos e sindicâncias por me expressar ali naquele site. Hoje mesmo eu vou na Corregedoria responder por um comentário que alguém fez no site. É uma coisa chata, constrangedora. A PM é a única instituição do país em que o agente não pode questionar o seu superior. Um servidor público não pode questionar procedimentos internos? É algo fora do contexto que vivemos. É totalmente absurdo”, afirma. Com mais de 20 anos de experiência dentro das academias de polícia brasileiras e latino americanas, a antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, afirma: “No Brasil, nós temos uma lógica aristocrática pautada em privilégios que perverte o sentido da hierarquia e da disciplina. É um abuso de poder continuado, como acontece com regulamentos disciplinares caducos e inconstitucionais”, analisa. “Os próprios policiais dizem nas ruas e nas minhas pesquisas que a motivação deles é a punição. Isso reflete ambientes de pouca cidadania, transparência, de poucos reconhecimentos dos direitos constitucionais de um dos principais atores da democracia. O policial é quem faz valer a Constituição na esquina, não é o Rex que late e abana o rabo. Ele não tem que cortar grama do superior hierárquico, virar motorista da esposa do coronel, servir cafezinho, ceder lugar na fila do cinema pro superior. Essa cultura faz com que o policial se sinta inseguro na rua justamente por uma insegurança institucional e um policial inseguro é pior do que um policial mal pago. Ele se vê o tempo todo com medo de ser punido. Os policiais sempre dizem: ‘se eu faço demais eu sou punido, se eu faço de menos eu sou punido, se eu não faço, eu sou punido’. Faltam parâmetros de aferição qualificada para o trabalho policial e isso ainda depende de nós instituirmos um processo formativo profissional pras polícias”, analisa. “Polícia não se improvisa. Um policial experiente custa muito caro à sociedade, ele não pode ser substituído porque morreu ou porque se acidentou”, conclui a antropóloga. “Eu já caí no chão paraplégico” Em 1989, Saul Humberto Martins, hoje beirando os 50 anos, sonhava em entrar na Polícia Militar do Distrito Federal. Ele diz que achava a profissão bonita, que via muitas coisas ruins nas ruas e achava que podia contribuir como policial. Saul entrou na corporação por concurso, tornou-se cabo da PM e trabalhou como policial por 18 anos até ser atingido por um tiro acidental durante uma instrução, em abril de 2008, que o fez ficar paraplégico. “Aquele dia estava tendo um curso de Radiopatrulhamento que tinha começado. Eu não fazia parte do curso, tava em outra área, mas me pediram pra dar um apoio. E eu fui”, relembra. No curso, voltado a policiais com mais de dez anos de polícia, Saul deveria simular que era um criminoso e, em várias situações, tentar tomar a arma das mãos de outro policial. Ele então tirou o colete balístico que usava para ter mais mobilidade e para representar o papel de “meliante”. Antes do treinamento, todos os participantes eram orientados a descarregar suas armas. Porém, durante a instrução, um soldado participante do curso disse que estava com dor de cabeça e quis deixar o quartel para ir à farmácia. Ele saiu do local, carregou a arma e colocou na cintura e foi de viatura comprar remédio. Quando retornou, o soldado se esqueceu da arma carregada. “Assim que ele chegou, um oficial entrou na parte de trás do carro e falou pro soldado: ‘vamo que agora é a vez de vocês fazerem a abordagem’. Eles entraram no local da instrução, que era um local fechado. Quando eles entraram, o oficial orientou: ‘aborda aquele pessoal lá’”, afirma. Na simulação, Saul foi orientado a reagir à abordagem. Quando ele reagiu, o soldado que tinha saído 69
disparou a arma carregada. “O tiro pegou na minha omoplata, perfurou o pulmão, a coluna e se alojou na minha medula. Eu já caí no chão paraplégico”, diz. O episódio de Saul foi filmado e pode ser visto aqui (as imagens são muito fortes). Saul ficou um mês internado no Hospital Regional de Taguatinga. A corregedoria da PM do Distrito Federal condenou o oficial instrutor do curso e o soldado que disparou a arma a nove meses de prisão (convertidos em serviços comunitários), mas seguem na corporação. Saul, que hoje é pastor evangélico, ainda pleiteia sua indenização na Justiça. “Quem tava dando a instrução no dia do meu acidente não era instrutor. Simplesmente porque ele era oficial ele tava lá dando a instrução, mas ele não tinha preparo pra dar aquela instrução. Depois do meu acidente houve vários outros casos. Teve um colega meu que não foi bem orientado numa instrução de tiro, ele disparou, a cápsula bateu no olho dele e ele saiu de lá cego. Teve outro que levou um tiro no joelho e teve que amputar a perna. Teve o caso do sargento Silva Barros que morreu lá no Guará, que recebeu um tiro dentro do Quarto Batalhão de Polícia Militar. Teve até um instrutor do Bope que morreu também”, relembra. “Nós precisamos de instrutores mais bem preparados. Temos bons instrutores, mas o problema é que eles querem colocar os oficiais piás na instrução só porque são oficiais. Tem muito sargento bom de instrução que não pode virar instrutor, porque eles querem ter esse privilégio. Puramente pela hierarquia”, reflete. Sobre o treinamento em si, Saul critica o foco excessivo nos treinamentos de ordem unida. “O cara fica dentro da academia e 50% do curso é pra aprender militarismo. Precisamos de um treinamento mais técnico e profissional. O policial tem que ter mais treinamento de tiro, pra ele saber atirar, não pra matar ninguém, mas pra saber atirar quando for necessário”, opina. A Agência Pública tentou contato com alguns dos policiais acidentados no Distrito Federal, mas eles se recusaram a falar. Em nota, a PMDF afirmou que “faz treinamentos constantes com o objetivo de cada vez mais aprimorar e atualizar o seu pessoal, e esses treinamentos são realizados com armamento de fogo para simular reais situações de perigo e ação dos policiais. Todas as medidas de cuidado são tomadas, mas infelizmente acidentes acontecem, não só aqui, mas em qualquer lugar do mundo, e além do mais, a PMDF tem um dos menores índices de acidentes que causem graves lesões ou até mesmo a morte de nossos policiais”, conclui a nota.
Cultura da ditadura
“Nosso sistema de segurança pública traz ainda muita coisa da época da ditadura, inclusive a formação”, afirma o cabo da PM de Santa Catarina Elisandro Lotin, presidente da Anaspra (Associação Nacional de Praças da Polícia Militar). “Nós já fizemos inúmeras denúncias [sobre os cursos de formação]. Recentemente, aqui em Santa Catarina tinha uma academia de polícia com 200 mulheres e elas foram obrigadas a ficar em posição de apoio e fazer flexões no asfalto quente às três horas da tarde, várias delas ficaram com queimaduras nas mãos. Aí você vai chegar nelas e dizer pra elas defenderem a sociedade?”, questiona. Vanderlei Ribeiro, presidente da Aspra (Associação de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro) desde 2008, atribui o “amadorismo” da formação à “cultura” da PM. “Nós somos mal formados, mal preparados e induzidos a erro pela cultura militarista que existe nas polícias militares de todo o Brasil. A formação impõe desde o início um comportamento autoritário que vai se refletir na população. A cultura militar é perversa, ela não prepara o PM para compreender que ele tem um compromisso social com a sociedade. A escola de polícia não tem qualificação nenhuma e não prepara ninguém pra atuar na rua. A formação é agressiva, não respeita os direitos humanos, é arrogante, autoritária e o policial só sabe agir da mesma forma quando sai da academia”, avalia. Para o sargento Leonel Lucas, membro da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e presidente da ABAMF (Associação Beneficente Antônio Mendes Filho, entidade dos praças da Brigada gaúcha) não só o 70
treinamento dos praças precisa melhorar. “Infelizmente, nós temos ainda alguns capitães Nascimento dando instrução nos cursos de formação dos praças. É por isso que eu acho que a primeira coisa que tem que ser mudada é a formação acadêmica dos oficiais superiores, quando a gente mudar a cabeça de quem tá nos formando lá em cima e os oficiais superiores começarem a receber uma formação mais humanista, isso vai se refletir pra quem está nas patentes mais baixas.” Academia não forma para direitos humanos Autor de uma tese de mestrado em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o tenente-coronel Adilson Paes de Souza – 30 anos de serviço, hoje na reserva – analisou o peso da disciplina de Direitos Humanos no currículo da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, escola de oficiais da PM paulista. Segundo a dissertação de Adilson, só em 1994 a disciplina de Direitos Humanos apareceu no currículo do Barro Branco e, desde a sua inclusão, a disciplina nunca passou dos 2% do total de horas-aula oferecido nos cursos de formação. Em 2013, último ano coberto pela pesquisa de Adilson, a disciplina de Direitos Humanos representou só 1,4% do total de horas-aula do curso (90 horas aula em um total de mais de 6 mil horas de curso); hoje é ainda menor,foi reduzida para 41 horas-aula. Adilson critica também o conteúdo geral dos cursos de formação. “Não é dada sequer uma pincelada do quadro social que nós vivemos de desigualdade, pobreza, exclusão. É nessa realidade que o policial vai trabalhar. Quando se fala da questão racial, o policial tem que entender o mecanismo histórico que produz a desigualdade racial até mesmo para que ele não reproduza de maneira inconsciente essas mesmas opressões no dia a dia. E essa é a queixa feita sobre a Polícia Militar na periferia: o viés extremamente racista”, exemplifica. Para a antropóloga Jacqueline Muniz, da UFF, a partir do fim dos anos 1980 algumas academias se abriram para outras áreas de forma positiva, o que inspirou a criação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), em 2003, que repassa recursos para cursos de especialização para as polícias em universidades de todo o país. “Qualificando os gestores e operadores de segurança pública e pesquisadores foi possível dar um salto de qualidade na elaboração de diagnósticos e iniciativas que subsidiassem políticas públicas”, destaca. Ela também considera importante a criação da Matriz Curricular do Ministério da Justiça (um documento de referência às polícias militares e civis brasileiras para a elaboração das grades curriculares de cada estado), e a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública, com recursos vinculados ao planejamento das atividades. “Antes do Fundo a tradição era só de compra de armamento, viatura e munição. Então o policial ganhava um armamento novo, mas desconhecia completamente o que é a logística policial e o diálogo entre os armamentos para fazer uso gradual, qualificado e comedido da força.” Os avanços, porém, estão restritos a alguns estados, observa Jaqueline Muniz. “Ainda não produzimos uma espécie de ‘esperanto’, de linguagem comum entre as polícias que favoreça a transparência, a profissionalização, a integração e o controle social sobre as práticas de ensino na polícia”, conclui. A mudança não é fácil, como experimentou na prática César Barreira, professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Ceará e coordenador do LEV (Laboratório de Estudos da Violência). Em 2011 o sociólogo implantou a Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará, com uma proposta de formação integrada de todos os profissionais de segurança pública – à exceção dos agentes penitenciários. “Eu avalio essa experiência como muito positiva. Houve uma mistura do ambiente policial com o acadêmico, a parte técnica era dada pelos especialistas em segurança pública e a parte humanística era ensinada por professores doutores”, exemplifica. Ele usa os verbos no passado porque um ano e três meses depois do início da experiência, ele foi exonerado pelo secretário de Segurança Pública e Defesa Social, coronel Francisco Bezerra. “Claramente essa minha proposta não foi muito bem recebida por todos. Os soldados, os policiais da Polícia Civil e a Polícia 71
Forense receberam bem, parte dos oficiais da PM é que não receberam. Não sei se essas ideias vão continuar porque você sabe que um sociólogo à frente de uma academia de polícia é diferente de um tenente-coronel”, finaliza. Outra tentativa é o Instituto Superior de Ciências Policiais (ISCP), uma instituição de ensino superior credenciada no MEC, criada pela Polícia Militar do Distrito Federal que oferece dois cursos de graduação (bacharelado em Ciências Policiais e tecnólogo em Segurança Pública) e cursos de pós-graduação lato sensu. “A ideia é oferecer um curso amplo para formar profissionais de gestão em segurança pública. Aqui no Brasil é o primeiro instituto desse tipo. No Chile, pra você ter uma ideia, existe um instituto semelhante desde 1939”, diz o coronel Sousa Lima, coordenador do Departamento de Educação da PMDF e reitor do ISCP. “Também temos uma pró-reitoria de pesquisa para fornecer apoio acadêmico à realidade do policial. Quem vai estudar qual o melhor equipamento pro policial não se aposentar com problemas na coluna? Quem vai estudar que arma o policial usa pra fazer menos dano? Quem vai estudar que munição ele vai usar? A gente resolveu estudar a gente mesmo porque ninguém tá preocupado com a polícia”, alfineta. Desmilitarizar é preciso? Uma questão divide opiniões de policiais e especialistas em segurança pública: é possível oferecer uma formação mais humana e eficiente aos policiais militares sem mexer na natureza militar da PM? Em quase todas as entrevistas feitas para esta reportagem, o tema da desmilitarização das polícias apareceu reanimado pela PEC 51/2013 de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ). A antropóloga Jacqueline Muniz acha que sim. “A estrutura militar em si não limita o efeito do processo formativo para os policiais, o que impede o policial aplicar o que ele aprendeu é o abuso de poder. Há polícias de inspiração militar, como a Gendarmarie, da França, os Carabineri, da Itália, e a Guarda Civil Espanhola que foram democratizadas, têm grau elevado de formação e os direitos e deveres dos policiais são garantidos como cidadãos plenos. E essas polícias são muito bem avaliadas por suas sociedades e têm, inclusive, baixo índice de violência, corrupção e violação”, afirma. O cabo Elisandro Lotin, presidente da Anaspra, vai na mesma linha. “Você pode ter uma polícia militar desde que a atuação dela na rua seja focada na dignidade da pessoa humana, cidadania, desde que desvincule de toda aquela lógica que o Exército ainda insiste em ter de controle das polícias militares: do armamento até a formação, o número de efetivo. A partir dessa desvinculação [do Exército], que não significa desmilitarização, nós podemos ter uma matriz nacional de atuação das polícias militares no Brasil focados em dignidade da pessoa humana, em direitos trabalhistas para os profissionais de segurança pública, códigos de ética e conduta adequados à democracia”, defende. Já Vanderlei Ribeiro, presidente da associação de praças carioca, discorda. “A estrutura militarista é incompatível com o policiamento ostensivo. Militarismo é pro Exército. Primeiro você tem que mexer na estrutura pra depois você falar em alterar a formação. Não tem outro caminho. Você pode pegar o melhor especialista do país para dar aula para os policiais, só que o que ele vai fazer na rua vai ser diferente do que ele aprendeu lá porque a cultura enraizada não permite outro tipo de comportamento. Aqui no Rio de Janeiro teve vários convênios com ONGs, vários professores universitários foram dar aula lá nos cursos e não mudou em nada porque a questão toda é mi-li-tar. Não adianta o camarada ter aula de sociologia se ele vai chegar na rua e vai matar, se ele é treinado nesse conceito militarista”, avalia. “Não adianta você fazer aula de direitos humanos se a polícia é militar. Quando você vai pra rua o que predomina é a ideia militar, é a lógica militar”, opina o ex-soldado Darlan Menezes Abrantes. “Nas entrevistas com os policiais para a minha dissertação, uma fala me chamou a atenção. Eles diziam: ‘Nós entramos em serviço e ao entrar em serviço nós entramos em território inimigo. No território inimigo, eu mato ou eu morro. Não me peça para interceder pela vida do inimigo.’ Estudando depois sobre essa fala, eu fui estudar a Doutrina de Segurança Nacional e ela necessita de um inimigo para se fazer presente. Na ditadura, o inimigo era quem? Quem contestava a ditadura. Terminou a redemocratização e essa ideia persiste, hoje o inimigo é quem enfrenta a polícia, quem pratica um delito ou quem vive em determinadas áreas. O discurso de muitas autoridades é o discurso da guerra, de retomar o território do inimigo, de ocupar o morro e devolver para o Estado. É o discurso da Doutrina de Segurança Nacional. Na ponta da linha, o recado chega assim: ‘Lá tem 72
um inimigo, então o aniquile’. Talvez isso explique a letalidade da polícia”, conclui o tenente-coronel Adilson Paes de Souza. “Quando você vê um soldado policiando, algo já está errado. Ou o camarada é soldado, ou policial. O soldado tem uma premissa que é o quê? Matar o inimigo. Isso aí é o principal. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o policial não, pelo menos não deveria”, afirma o ex-soldado da PM Rodrigo Nogueira Batista. “Essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos de todo mundo e ninguém faz nada. Por exemplo, aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro. Isso só pode acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. ‘Ah, é bandido, vou dar tiro’. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!”, analisa o ex-PM, hoje na prisão. Matéria original publicada no site da Agência Pública.
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Uma pesquisa feita com policiais de todo o país, lançada nesta quarta-feira (30) em São Paulo, revelou que a maioria diz ser a favor da desmilitarização da PM. Ainda segundo o estudo, um terço dos policiais brasileiros pensa em sair da corporação na qual trabalham. O estudo foi realizado com 21.101 policiais militares, civis, federais, rodoviários federais, bombeiros e peritos criminais de todos os Estados. Os profissionais foram ouvidos entre os dias 30 de junho e 18 de julho. A pesquisa "Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública" foi promovida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Fundação Getúlio Vargas e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Perguntados sobre a hierarquia policial, 77,2% dos entrevistados disseram não concordar que as polícias militares e os corpos de bombeiros militares sejam subordinados ao Exército, como forças auxiliares, demonstrando que são a favor da desmilitarização da PM. "Se considerarmos apenas os policiais militares, 76,1% defendem o fim do vínculo com o Exército. O que é um sinal claro de que o Brasil precisa avançar na agenda da desmilitarização e reforma das forças de segurança", afirma Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Conselho de Administração do fórum e pesquisador da FGV. 74
De acordo com a pesquisa, 53,4% discordam que os policiais militares sejam julgados pela Justiça Militar. Para 80,1% dos policiais, há muito rigor em questões internas e pouco rigor em assuntos que afetam a segurança pública.
Nova polícia
Mais da metade dos policiais (51,2%) afirmaram que as atuais carreiras policiais não são “adequadas” e deveriam mudar. Eles deram suas opiniões sobre qual deveria ser o modelo da polícia brasileira: 27,1% deles sugeriram a criação de uma nova polícia “de caráter civil, com hierarquia e organizada em carreira única”; outros 21,86% apontaram como solução a unificação das polícias militares com as civis, “formando novas polícias estaduais integradas e civis”. Dos entrevistados, 83,2% concordaram que os regimentos e códigos disciplinares precisam ser modernizados e adequados à Constituição Federal de 1988.
Insatisfação com a profissão
Os policiais também responderam questões ligadas às condições de trabalho. Segundo a pesquisa, 34,4% dos policiais afirmaram que pretendem sair da corporação “assim que surgir outra oportunidade profissional”. E 55,1% disseram que planejam se aposentar onde trabalham atualmente. Perguntados se, caso pudessem escolher, optariam novamente pela carreira na sua corporação, 43,7% falaram que sim; 38,8% responderam que não. Sobre as dificuldades que enfrentam na rotina de trabalho, mais de 80% deles citaram baixos salários, leis penais que consideram “inadequadas”, contingente policial insuficiente, falta de uma política de segurança pública e formação e treinamento insuficientes.
Perfil dos entrevistados
Dos policiais que participaram do projeto, mais da metade (52,9%) é da Polícia Militar. Outros 22% são da Polícia Civil. A maioria (63,5%) tem ensino superior completo ou especialização, e grande parte (44,4%) trabalha em média oito horas por dia. Em relação à formação, 37,5% dos policiais tiveram de seis a 12 meses de aulas durante curso para ingressar na corporação; 34,2% tiveram de três a seis meses. Sobre a renda mensal, 27,2% deles ganham de R$ 5.000 a R$ 10 mil; 26,2%, de R$ 2.000 a R$ 3.000; e 20,9%, de R$ 3.001 a R$ 4.000. O valor é líquido, incluindo os adicionais. 75
“Não obstante tecnicamente os dados não se constituírem em um retrato exato das opiniões de todos os policiais brasileiros, eles nos autorizam algumas análises e hipóteses exploratórias sobre reformas das polícias no Brasil e incentivam a participação destes profissionais na definição dos rumos de suas instituições”, diz texto da pesquisa. BRASIL - A polícia brasileira é dividida entre a militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo, e a civil, que se encarrega das investigações dos crimes. As duas atuam nos Estados. O país também possui a Polícia Federal, de caráter civil e atuação nacional Ricardo Moraes/ Reuters FRANÇA - O sistema de Segurança Pública no país é composto por duas polícias: a Nacional e a Guarda Nacional, também conhecida como Gendarmerie. A Polícia Nacional é civil e atua nas cidades com mais de 10 mil habitantes. Já a Gendarmerie tem caráter militar e trabalha em cidades com menos de 10 mil moradores, integrando as Forças Armadas. Segundo José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM-SP, existem projetos de lei na França para unificar as duas polícias Christian Hartmann/ Reuters ARGENTINA - O país possui essencialmente dois tipos de polícia, uma de âmbito nacional, aos moldes da Polícia Federal no Brasil, e as polícias provinciais. Elas são uniformizadas, possuem formação militarizada, mas gestão civil e realizam tanto o trabalho de policiamento nas ruas como de investigação de crimes, explica José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM-SP Juan Mabromata/AFP EUA - Com uma hierarquia mais enxuta que a brasileira, a polícia norte-americana tem caráter civil e sua área de atuação é municipal. De acordo com José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM-SP, é comum pequenas cidades formarem uma espécie de consórcio com o objetivo de diminuir os gastos com policiamento Yana Paskova / The New York Times PORTUGAL - O policiamento ostensivo nas grandes cidades é realizado pela Polícia de Segurança Pública, de caráter civil. No resto do país, essa função cabe à Guarda Nacional Republicana, de natureza e organização militares. Já as investigações são feitas pela Polícia Judiciária Patricia de Melo Moreira/AFP 76
CANADÁ - Uma das polícias mais respeitadas do mundo é a Real Polícia Montada do Canadá. Ela atua nos âmbitos municipal, estadual e nacional, tanto realizando policiamento ostensivo como investigação, entre outras ações Jim Young/Reuters SPANHA - O país possui dois tipos de polícia: o Corpo Nacional de Polícia, de natureza civil e atuação nacional, e a Guarda Civil, que tem formação e gestão militarizadas e é responsável pelo policiamento ostensivo. Ambas realizam investigações, por meio de suas unidades de Polícia Judiciária Andrea Comas/Reuters COLÔMBIA - A Polícia Nacional da Colômbia é ligada ao Comando Geral das Forças Armadas do país e responsável tanto pelo policiamento nas ruas como pela investigação de crimes. Com formação e gestão militarizadas, é comum encontrar nas ruas policiais armados com fuzis, em resposta à atuação das Farc (Forças Armadas Revolucionárias), afirma José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM-SP AFP Photo/ Luis Robayo CHILE - Os Carabineiros do Chile são a polícia mais bem avaliada e respeitada das Américas, segundo José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM-SP. Os carabineiros militares são responsáveis pelo policiamento ostensivo e também pela defesa civil. A corporação possui uma divisão de polícia judiciária chamada de Polícia de Investigações Mario Ruiz/EFE REINO UNIDO - A polícia tem atuação regional no Reino Unido. A mais conhecida é a Polícia Metropolitana de Londres, também conhecida como Scotland Yard, responsável pelo policiamento ostensivo e investigação de toda a Grande Londres Luke Macgregor/Reuters ITÁLIA - O país possui cinco tipos de polícia: os Carabineiros, a Polícia do Estado, a Guarda de Finanças, o Corpo Florestal do Estado e o Corpo da Polícia Penitenciária. Os Carabineiros integram as Forças Armadas, têm natureza militar e atuam em todo o país no policiamento e também como polícia judiciária. A Polícia do Estado também é de âmbito nacional, formação militarizada, mas gestão civil Andreas Solaro/AFP
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O Senado Federal aprovou o texto da nova lei que tipifica o terrorismo (exigência de organizações financeiras internacionais que o governo federal abraçou sem reflexão pública). Na prática, o projeto abre a possibilidade de criminalizar ações políticas de movimentos e organizações sociais – bola cantada já muito tempo. Os senadores derrubaram uma ressalva incluída pelos deputados federais de que a lei não se aplicaria “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais ou sindicais movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais''. O relator da proposta no Senado, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), afirmou que a lei não puniria eventuais depredações ocorridas em protestos, que continuariam a ser consideradas apenas como danos ao 78
patrimônio, mas poucos são os que acreditam realmente nisso. Pois, convenhamos: no Brasil, leis que podem ser usadas para conter a insatisfação popular contra o poder político ou econômico nunca saem de moda. Se a Câmara não mudar o texto, deveríamos usar a definição de terrorismo aprovada pelo Senado para colocar no banco dos réus governadores e comandantes policiais. Vejamos: “Atentar contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por extremismo político, intolerância religiosa ou preconceito racial, étnico, de gênero ou xenófobo, com objetivo de provocar pânico generalizado''. Quem estava naquele fatídico 13 de junho de 2013, quando a polícia não fez selfies mas, pelo contrário, lançou bombas de gás, espancou, cegou, sangrou, feriu manifestantes e jornalistas que estavam no protesto pacífico pela redução da tarifa do transporte público sabe do que estou falando. Se aquela violência institucional não foi motivada por “extremismo político'' com o objetivo de “provocar pânico generalizado'', então nada mais o é. O mesmo vale para ações em favelas e comunidades pobres, territórios indígenas, acampamentos sem-terra ou sem-teto, em que a polícia age, sob ordens dos governos, como se estivessem em guerra aberta contra sua própria população. Com o agravante de que a maioria dos mortos nas periferias das grandes cidades são jovens negros. Ou seja, um claro atentado contra a pessoa, “mediante violência ou grave ameaça motivado por preconceito racial e étnico'' – como prevê a lei. A verdade é estamos nos especializando no caminho do terrorismo de Estado, tanto ao criar entraves à liberdade de expressão quanto ao reprimir ainda mais o punhado de direitos das comunidades pobres que ainda não foram defenestrados. A população mais carente é a que teme cada vez mais seu governo ao invés de respeitá-lo. Tudo aquilo fora da ordem estabelecida pelos grupos que os governos representam ou em desacordo com sua visão de “progresso'' e crescimento econômico, seja no campo ou na cidade, leva pau. Em vez de aceitar e promover o debate público e a dignidade dos participantes, governos vão renovando seu estoque de gás lacrimogênio, lançando mão de caveirões e bombas. Que limpam a cidade para os “homens e mulheres de bem''. Lembram, assim, a época dos verde-olivas que adoravam uma marcha cívica, mas desciam o cacete nos estudantes que protestavam e nas “hordas de bárbaros” quando elas saíam da casinha, taxando todos de “terroristas''. Não se enganem. Esse projeto de lei, que agora volta à Câmara dos Deputados por ter sido alterado, não trata apenas de liberdade de expressão e da participação política. É sobre a quem pertence a cidade. A todos e todas que nela vivem ou a um pequeno grupo que tem muito dinheiro ou está alinhado com o administrador público de plantão? Já se passaram décadas. Mas a frase da ditadura civil-militar ainda é paradigmática para entender o país e seus governos, Justiça e parlamento: Brasil: ame-o [do nosso jeito] ou deixe-o.
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A Delegacia de Homicídios (DH) do Rio concluiu o inquérito que investigou a morte do estudante Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, atingido por um tiro quando estava na porta de casa, no Complexo do Alemão, na zona norte, em 2 de abril deste ano. Embora o disparo tenha sido feito por um policial militar, ele não foi indiciado porque a DH considerou que agiu em legítima defesa, já que a equipe da qual fazia parte havia sido atacada a tiros por criminosos. O inquérito seguiu para o Ministério Público, que pode discordar da decisão e denunciar o policial. No dia do crime, policiais militares do Batalhão de Choque faziam operação no Alemão, auxiliados por colegas da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do complexo, que conhecem melhor a geografia da favela. Segundo o delegado Rivaldo Barbosa, diretor da Divisão de Homicídios, a investigação mostrou que cinco PMs (dois do Batalhão de Choque e três da UPP) estavam na região conhecida como Areal quando foram atacados por criminosos. Dois dos policiais que estavam à frente, ambos da UPP, revidaram, atirando com fuzis caibre 762 na direção dos bandidos. Uma bala atingiu Eduardo, que morava perto e estava a apenas cinco metros dos policiais. Ele morreu na hora. A perícia não conseguiu definir qual dos dois PMs foi o autor do tiro. 80
"Todos nós temos responsabilidades quando atuamos com armamento. Mas existe um limite da própria defesa e os policiais, como ficou provado pela exaustiva investigação, atiraram respondendo a uma injusta agressão, e lamentavelmente acabaram atingindo a criança. Concluímos que eles agiram em legítima defesa e erraram na execução", afirmou o delegado. Os policiais deixaram de exercer o policiamento de rua, passando a cumprir funções administrativas. Já no dia da morte do menino a família acusara um policial de ser o autor do disparo. A mãe, Terezinha Maria de Jesus, de 36 anos, afirmara na ocasião que conseguiria reconhecer o PM. Em junho, o governo do Estado indenizou os pais da vítima. Em julho, três meses após o crime, a mãe voltou para o Piauí, seu Estado natal, com duas filhas, um neto e o genro.
UPPs: os desafios do presente e do futuro Assim como já ocorreu em situações anteriores, como nos Complexos do Alemão e da Penha, as Forças Armadas serão utilizadas no Complexo da Maré, que não possui UPP, mas se localiza em uma posição estratégica para a segurança da Copa do Mundo. Pela crise, a questão preocupa. "Não seria possível imaginar a Copa sem precauções com um território anexo ao principal acesso entre o aeroporto e a cidade, onde pudesse ocorrer tiroteios. Alguma coisa seria feita, e acabou sendo feita essa proposta, com tropas federais para ocupar esse território. É claro que não resolve o problema, é medida de curto prazo", explicou Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e (LAV-Uerj) Além de concentrar um número alto de policiais, as UPPs também sofrem com a formação dos policiais que para as unidades são deslocados. "O Rio começou a produzir efetivos policiais em uma escala realmente muito perigosa, porque formaram e treinaram mais policiais do que eles poderiam fazer com uma qualidade mínima necessária. Os policiais já foram para lá (UPPs) com uma qualidade deficiente", apontou José Vicente da Silva, ex-comandante da Polícia Militar e ex-secretário nacional de Segurança
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Treze policiais da Rota que estavam na cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, para ajudar no patrulhamento durante a reintegração de posse da área do Pinheirinho, em janeiro de 2012, foram indiciados nesta quarta-feira (24), pelos crimes de estupro, tortura e lesão corporal. Outro soldado, do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) também foi indiciado porque não deu atenção à denúncia que uma das vítimas fez ao 190. De acordo com o major Marcelino Fernandes da Silva, porta-voz da Corregedoria da PM, denúncias feitas à imprensa chegaram até a corporação. Foi apurado que por volta das 23h30 do dia 22 de janeiro de 2012, patrulhas da Rota entraram em uma rua no bairro Campo dos Alemães — próximo à área da reintegração — e abordaram sete pessoas, que estavam em uma casa. Ao serem chamados para prestar esclarecimento, os 13 PMs disseram que, durante a ação, localizaram drogas e uma espingarda calibre 12, na casa. Na ocasião, um adolescente foi apreendido e seis pessoas foram detidas. A versão das vítimas era diferente. Uma mulher ligou para o 190 logo após acontecido e disse que a casa em que ela estava com outras seis pessoas foi invadida pelos policiais da Rota. Uma delas foi levada ao banheiro por um tenente e obrigada a fazer sexo oral nele, após falar que era portadora do vírus HIV. Um sargento também submeteu a amiga dela à mesma situação. Um adolescente, à época com 17 anos, foi empalado por um cabo de vassoura. Um homem foi torturado com choques. Os demais foram agredidos e coagidos pelos policiais, para que entregassem uma arma e drogas, que não estavam na casa e foram buscadas pelos dois homens em outro local, de acordo com o major. — O Thiago [uma das vítimas] teria sofrido choque e os outros agressões e coação moral para a localização de uma arma que, segundo o Thiago, foi negociada a liberdade dele para que ele apresentasse uma arma. Ele disse que na residência dele tinha uma [arma] calibre 12 e ele a apresentou.
Os indiciados
Segundo a PM, foram indiciados o comandante daquela tropa, tenente Hilen Diniz dos Santos; os sargentos, Luiz César Ricome e Alex Sandro Teixeira de Oliveira; o cabo Cícero Marcos de Carvalho; e os soldados Anderson Cruz dos Santos, Eduardo Correia da Silva, Luiz Alberto Costa da Silva, Fabrício de Paula Ferreira, Marcelo Aparecido da Silva, Osmar Batista da Silva Júnior, Rodinei Rodolfo Rodrigues, Luiz Carlos Alvarenga e Nivaldo Santos Oliveira. 82
O soldado do Copom Evandro Valentim Ferreira deve responder pelo crime de prevaricação, porque, segundo o major, deu uma resposta “desleixada” à queixa que uma das vítimas fez ao 190. Além deles, o soldado Marcelo Ferreira Moyano está sendo processado administrativamente porque assumiu estar no local dos fatos, mas não estava. O exame toxicológico feito nele deu positivo para o uso de maconha. O policial admitiu ser usuário da droga.
Punições
O inquérito policial militar foi remetido nesta quarta-feira a Justiça Militar. Os casos de tortura vão ser enviados para a Justiça comum, responsável por julgar esse tipo de crime. Todos os policiais envolvidos foram, segundo a PM, afastados dos cargos operacionais logo após as denúncias. O porta-voz da Corregedoria explicou que eles não foram presos porque não havia motivos que justificassem um eventual pedido. — Você tem elementos para a questão da prisão preventiva. Por exemplo, eles não estão prejudicando a investigação, não estão ameaçando testemunhas, então não haveria motivos para essa prisão. Eles têm endereço fixo. A conduta deles até a data das investigações não era uma conduta desviante. Por isso que eles estão ainda afastados da atividade [operacional]. Duas vítimas devem ser processadas pelo porte de armas e drogas. Elas admitiram que estavam consumindo maconha e que correram para dentro da casa.
— Inclusive um foi buscar e a droga e a arma para tentar negociar e não ser preso.
A Polícia Civil também investiga o caso, mas, de acordo com a PM, o inquérito ainda não foi concluído. Houve compartilhamento de laudos e de informações durante as apurações. Os PMs também respondem a processo administrativo. Se considerados culpados, os sargentos, o cabo e os soldados podem ser expulsos. O tenente poderá perder o posto e a patente e ser demitido. De acordo com a Polícia Militar, entre janeiro e junho deste ano, 207 policiais foram expulsos da corporação por diversos motivos.
Reintegração do Pinheirinho
Os policiais da Rota estavam em São José dos Campos em janeiro do ano passado para prestar apoio no patrulhamento da cidade, já que os PMs dos batalhões de área estavam envolvidos na desocupação do Pinheirinho, em que moravam cerca de 1.600 famílias. O terreno, de mais de 1,3 milhão de m², pertence à empresa Selecta, do grupo Naji Nahas, e foi ocupado irregularmente em 2004 por uma comunidade ligada ao MTST (Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem-Teto). A reintegração de posse foi marcada por vários confrontos entre moradores e policiais. Houve focos de incêndio em ruas e a rodovia Presidente Dutra chegou a ser bloqueada. A ação terminou com pelo menos uma pessoa baleada e dois manifestantes detidos. 83
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O cenário estava diferente e ameaçador desde o início. Quando a concentração dos manifestantes ainda mal começara, um cordão de policiais na Paulista não permitia que ninguém passasse. Por ali não se entrava nem saia da manifestação. Fosse você manifestante ou não. Mas já era um indício de que o plano da PM era não deixar o ato contra o aumento da tarifa no transporte público sair dali, do entorno da Praça do Ciclista. Enquanto manifestantes podiam chegar pela rua da Consolação (único acesso), os outros três lados iam ficando cercados. Fechar o laço foi só uma questão de tempo. A manifestação quis andar e foi impedida. Nenhuma negociação vingava. O padre Julio Lancellotti buscou a dianteira para conversar, deu um passo a frente para argumentar sobre a falta de bom senso do que ocorria. O comandante levantou a palma da mão e foi curto e grosso: “Não adianta nem falar nada, não vão sair daqui”, demonstrando o quanto polícia e diálogo são incompatíveis. Direito de ir e vir? Mais uma vez a polícia repetia a piada na qual ela própria fecha a rua para que os manifestantes não o façam. Aquele cerco autoritário não poderia resultar em outra coisa senão em um ataque desnecessário e covarde. A partir daí foi um massacre. Uma versão atualizada do cordão de kettling fechou o laço 84
ao mesmo tempo em que lançava bombas e dava tiros de balas de borracha. O pânico se espalhou. Uma senhora caiu e foi pisoteada assim como muitos alunos secundaristas ex-ocupantes de escolas que haviam sentado no chão. A massa ficou cercada naquele espaço e foi atacada por bombas e balas de borracha por todos os lados. Só depois de alguns minutos de intenso sadismo uma passagem foi liberada, quando duas pessoas ao meu lado já vomitavam. Muitas sangravam. Na debandada pelas ruas da região, uma constatação assustadora. Viaturas da ROTA empenhadas na caça aos manifestantes. Sim, além dos blindados de R$ 5 milhões, da Tropa de Choque, da Tática, das Rocam e da exibicionista Tropa do Braço, também a ROTA. A Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, unidade de elite da PM mais que conhecida pela sua letalidade e por uma definição sinistra segundo ela própria: “Deus cria e a Rota mata” (dita aos gritos pelo operarativo militar no dia do massacre no Carandiru). O que a ROTA estava fazendo em uma manifestação? Ela não sabe lidar com esse tipo de evento, ela não tem meios ‘não violentos’ de atuação, não tem armas ‘não letais’. O armamento dela é para o confronto com criminosos armados, de igual pra igual. Se isso não é criminalizar o ato, então o que é? Um ato que, sempre bom lembrar, nem mesmo tinha saído do lugar. A reação é obvia: se você ataca gratuitamente a turba ela se enfurece e sai para todas as direções com consequências imprevisiveis. Sendo perseguida pela ROTA então o pavor domina qualquer um. Espera-se o tiro a qualquer momento. É por essas e por outras que a resistência feita por alguns manifestantes chamados de ‘mascarados’, de ‘vândalos’ se concretiza. Algumas manifestações são mais atacadas do que outras. Quem vai retardar o ímpeto da polícia no avanço contra aquelas pessoas desarmadas e indefesas? No centro da cidade a repressão permanecia enfurecida muitas horas depois. Uma criança havia se perdido da mãe no meio da chuva indiscriminada e aleatória de bombas mas a tropa continuava soltando seus gases. O saldo foi de 25 feridos encaminhados para o Hospital das Clínicas e 3 para a Santa Casa. Oito manifestantes detidos. O Secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, disse que a PM usou a força porque os manifestantes “investiram contra os policiais para furar o bloqueio que impedia o acesso de manifestantes em trajeto não combinado” e, claro, não viu abuso. O leitor deve estar mais que habituado a ouvir a expressão “terminou em confusão”, proferida pelos canais tradicionais. Não terminou, começou em confusão. E quem acendeu o pavio mais uma vez foi a turma fardada. É uma imensa covardia um grupamento militar atacar uma massa de civis desarmada. Mas para algumas pessoas isso não é abuso.
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por Marcos Romão
Hamburger Kessel ou o “Panelão de Hamburgo”, foi lançado pela polícia de Hamburgo, pela primeira vez em 8 de junho de 1986.
Superintendente Alfred Honka, um dos chefes de polícia acusados e demitidos, disse amargo: “Os políticos simplesmente enfiaram a cabeça na terra e nos largaram na mão”. Na Alemanha, os manifestantes chegaram a ficar presos durante 17 horas sem poder comer, beber, o que levou os policiais que coordenaram a ação a serem processados por cárcere privado e a própria ação a ser considerada ilegal. Em São Paulo, no entanto, a conclusão foi bem diferente e a polícia comemorou o que considerou uma ação bem sucedida: “A operação foi um sucesso. Houve menos danos, menos policiais e civis feridos e menos confrontos”, afirmou o coronel Celso Luís Pinheiro. 86
Quatro comandantes da polícia tiveram que responder em tribunal pelo Panelão. Foram considerados culpados de cárcere privado 861 vezes. Os policiais pagaram multas e obtiveram liberdade condicional. Investigações contra o ministro do Interior Rolf Lange pediram sua demissão, mesmo seu partido foi a favor de punição que tinha claramente endossado “o caldeirão”.
A manifestação contra a Copa que aconteceu em São Paulo, 22 de fevereiro de 2014, terminou com 260 feridos.
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Uma comissão especial da Câmara Federal acaba de aprovar mudanças no Estatuto do Desarmamento, vigente desde 2003. As mudanças, agora, vão a plenário para colher os votos dos deputados. Na prática, a aplicação da lei desprezou a vontade popular, pois o resultado do referendo de 2005, quando 64% dos eleitores brasileiros se manifestaram contra a proibição do comércio de armas de munições. As restrições atingiram as pessoas que costumam cumprir a lei e não desarmaram os bandidos. Ao contrário, o número de homicídios com armas de fogo aumentou em quantidade e em participação nas mortes. 65% dos homicídios foram praticados com arma de fogo antes do Estatuto. Agora estão acima de 70%. As mudanças de agora, na verdade, não estimulam o acesso às armas, mas proporcionam um controle delas. Com as mudanças, a lei poderia ser chamada de Estatuto do Controle de Armas. Baixar a idade de 25 para 21 anos foi feito para dar acesso aos que exercem a função de vigilante, por exemplo. Além disso, desde os 16 anos o brasileiro tem o poder de eleger presidente da República; a partir dos 18 anos, de dirigir automóvel; 21 fica uma idade razoável para ter a responsabilidade de comprar uma arma, desde que preencha os demais requisitos. A propósito, o automóvel é uma arma e concede-se o porte facilmente; o porte de arma continuará sendo rigoroso: a pessoa terá que provar a necessidade de defesa. Sem porte, ficará com a arma em casa, para defesa do lar, sua cidadela. É como ter um carro e mantê-lo na garagem. Armas, por si, não matam. A violência está na pessoa. Um violento matará com faca, pau, pedra, fogo ou pontapés. Armas, ao contrário, podem ser dissuasoras. Na Suíça, todos têm arma de guerra em casa; nos Estados Unidos, há mais de uma arma de fogo per capita. E nenhum bandido arrisca invadir casas por lá. Pode encontrar a vovó apontando um cano duplo para o invasor. Napoleão, quando surgiu o fuzil na guerra, escreveu que todos se tornavam iguais pelo fuzil – grandes e pequenos, fortes e fracos. Foi um velho revólver com munição antiga que a velhinha de Caxias do Sul usou para se defender do ladrão que invadira sua casa. A velhinha sobrepujou o invasor graças a uma arma de fogo. O inventor do revólver, Samuel Colt, disse que Abraham Lincoln fez os homens mais livres nos Estados Unidos e Colt os fez mais iguais. A mudança corrige o absurdo de ter que registrar a arma a cada três anos; afinal, automóvel registra-se uma única vez. Porte sim, tem que ser rigoroso e renovado periodicamente, mas não a cada ano. Imagine um atirador olímpico tendo que passar por toda burocracia repetindo todas as exigências, para conseguir uma guia de transporte de suas armas esportivas a cada ano. Além disso, é claro, a pessoa tem que estar familiarizada com o uso e guarda da arma, com responsabilidade. Dizem que a mudança foi promovida pela bancada da bala; na falta de argumentos tentam desacreditar as pessoas. É gente que, no fundo, consegue a proteção dos bandidos. 87
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Mujica vetou a exibição de atrações similares ao ‘Cidade Alerta’ das 6h até 22h, justificando que tais programas promovem atitudes violentas.
Por Igor Carvalho, do Carta Capital
Incrédulo, o Brasil assistiu, ao vivo, um policial disparar quatro tiros contra dois jovens que já estavam rendidos após longa perseguição de moto. As imagens foram transmitidas, ao mesmo tempo, pelos programas “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”, apresentados por Marcelo Rezende e José Luis Datena, respectivamente. Imediatamente, os dois apresentadores saíram em defesa do policial. “Se ele atirou é porque o bandido estava armado. E ele fez muito bem”, disse Rezende. “Não sei se os caras apontaram o revólver para o policial, não vi. Provavelmente, sim”, afirmou Datena. A postura de Datena e Rezende dá o tom dos programas, que são reconhecidos por fazer apologia à violência policial, lançando mão do discurso de que “bandido bom é bandido morto”. Ambos narram com entusiasmo as perseguições e as ações da PM pelas periferias paulistas. Em junho de 2012, quando o Uruguai sofria com o avanço de 70% no número de homicídios, o presidente José Mujica anunciou um pacote de medidas para conter a criminalidade no País. Estudos e pesquisas conduzidos pela equipe do presidente concluíram que era preciso um conjunto de ações que atacasse o tráfico de drogas. O documento “Estratégia pela vida e convivência”, que continha 15 medidas, foi anunciado e se tornou mundialmente conhecido porque nele o Uruguai anunciava que passaria a gerir a produção e distribuição de maconha no país. Dessa forma, o Estado assumia o posto de fornecedor da maconha aos uruguaios, era um golpe econômico nos narcotraficantes. Na outra extremidade, preocupava a ação policial. Os superpoderes dos agentes nas ruas precisavam ser combatidos, assim como a sensação de impunidade. Por isso, entre as medidas tomadas pelo governo, estava a proibição da exibição de programas policiais [similares ao “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”] entre 6h e 22h. A alegação é que essas “atrações televisivas” promovem atitudes ou condutas violentas e discriminatórias. Dois anos depois, em junho de 2014, o governo uruguaio anunciou que as mortes ligadas ao tráfico de drogas foram zeradas no país. Nesta quarta-feira (24), a PM anunciou que o policial responsável pelos disparos nos jovens rendidos foi preso administrativamente. O secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, disse que o policial cometeu uma “séria irregularidade”. Tags: em pauta · Mujica 89
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17/01/2014 ESCOLA - MILITARIZAÇÃO
Pedro Ribeiro Nogueira Com informações do Jornal da Globo
Sob o pretexto de diminuir a violência, a Polícia Militar de Goiás irá administrar 10 escolas públicas do Estado, governado por Marconi Perillo (PSDB). Os estudantes serão obrigados a usar quatro uniformes com motivos militares e sapatos, que serão vendidos fora da escola por valores que podem chegar até R$ 600. Além disso, a matrícula custará R$ 100. Haverá ainda uma mensalidade de R$ 50 e mais dois livros no valor de R$ 300. O valor total dos custos pode chegar até R$ 1.500 por ano. Quem não puder pagar, terá seu filho matriculado em outra escola pública. Em nota divulga pelo Jornal da Globo, a Secretaria de Educação de Goiás afirma que a medida visa combater a violência de forma efetiva. No Colégio Fernando Pessoa, que passará a se chamar Escola da Polícia Militar de Goiás Fernando Pessoa, em Valparaíso, a escola será dirigida por um policial com formação em pedagogia. Além dele, militares farão aulas de Educação Física e exigirão disciplina dos alunos. Mais unidades serão abertas em Aparecida de Goiânia, Anápolis, Goiás, Goianésia, Porangatu e Jataí. Serão ao todo 4.732 vagas em 2014. Para comentar esta medida, o Portal Aprendiz conversou com a educadora Maria do Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM, ex-Secretária de Educação de Belo Horizonte e ex-presidenta da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Para Pilar, a medida representa um atraso e pode até ser inconstitucional. “É o Estado declarando incompetência”. Confira.
Portal Aprendiz: O que você achou da medida da Secretaria de Educação de Goiás?
Maria do Pilar Lacerda: Desse jeito, a escola abre mão do caráter público e democrático, pois você entrega a educação para um setor que, apesar de ser do serviço público, não tem como finalidade a gestão e a organização de unidades escolares. O objetivo da polícia é outro. É o de tentar resolver o problema com a solução da repressão: em vez de ter mais pedagogia você terá mais repressão, como se isso fosse transformador, o que não é. 90
Por outro lado, acredito que seja inconstitucional obrigar os jovens a comprar livros, uniformes e materiais. O Governo Federal disponibiliza livros para todos os alunos da rede pública. Não faz sentido que esses livros não sejam usados e que a administração militar obrigue a comprar livros que nem sabemos quais são. O estado está abrindo mão de sua responsabilidade e declarando sua incompetência ao apelar para forças que são responsáveis por garantir segurança e reprimir o crime, mas não para gerir uma escola pública. Aprendiz: É difícil não associar com nosso passado recente, de ditadura militar, disciplinas de educação moral e cívica… Pilar: Me lembra os colégios militares do exército onde eles não usam os livros que o Ministério da Educação (MEC) escolhe. No lugar, entram os livros de história escolhidos por eles, o que causa muita polêmica, pois estes livros possuem um viés que repete a visão das Forças Armadas da história do Brasil. Mas essas escolas não recebem recursos do MEC, são ligadas ao exército, assim como seu plano de formação de carreira, acadêmia etc. É algo antigo que faz parte da formação de quadros deles, com escolas rígidas, punitivas e disciplinas do século passado. São escolas sem qualquer protagonismo discente, nem autonomia, ou seja, nada disso que a gente defende dentro da educação democrática. Agora, entregar para a polícia, que tem ainda menos experiência? Essa medida me parece estranha. Aprendiz: A Secretaria de Educação de Goiás alega que houve assassinatos dentro das escolas. De que outra forma lidar com um cotidiano violento e difícil? Pilar: Eu conheço várias experiências que enfrentaram a violência abrindo a escola para a comunidade, tendo um diálogo forte, com a escola falando com a comunidade e não para ela. Por exemplo, o Cieja Campo Limpo, dirigido por Eda Luiz, que estabelece um diálogo tão forte em que a escola passa a ser da comunidade, ocasionando uma diminuição da agressividade do contexto. No Rio de Janeiro, o programa Escolas do Amanhã tem um repertório específico para lidar com crianças e jovens em situações de conflitos e violência, com atividades pedagógicas diversas, tutorias. E são lugares onde muitas crianças viveram tiroteios ou perderam seus familiares. Em Belo Horizonte, a Escola Estadual Ulysses Guimarães também se abriu, pintou os muros com imagens dos moradores da região e integrou a escola aos demais elementos da comunidade, ou seja, tem aula de balé na igreja, inglês no centro comunitário. É preciso que a escola se abra e reconheça que a violência é um problema da sociedade e não apenas dela. A escola não é uma ilha. Estamos numa sociedade violenta e racista, marcada por desigualdade e segregação. Então, a escola precisa encarar isso de frente, buscando saídas pedagógicas. Não estou falando que, se a criança entrar armada no colégio, temos que falar “legal, isso faz parte do contexto”, mas o primeiro passo é conversar com os estudantes, o que impede que isso se torne uma queda de braço entre a escola e o aluno. Também vejo como crucial que a escola se alie com demais áreas do poder público, como conselhos tutelares, saúde, direitos humanos, ou seja, estruturas que dão consistência para o trabalho da escola e trazem mais segurança. Não podemos culpar as professoras e diretoras pelo medo que sentem. Mas enfrentar isso militarizando a escola é uma saída atrasada.
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Mascar chiclete é transgressão leve. Usar óculos com lentes ou armações de "cores esdrúxulas" também, segundo o regulamento disciplinar dos colégios da Polícia Militar de Goiás. São transgressões médias: sentar-se no chão fardado, espalhar boatos, deixar de prestar continência ou de cortar o cabelo no estilo escovinha. Já "manter contato físico que denote envolvimento amoroso" (beijar) ou se meter em rixa são faltas graves. O aluno perde pontos a cada quebra de regra. Quem não se adéqua é transferido. Na última semana, oito colégios goianos voltaram das férias nesse molde, o que fez com o que Estado pulasse de 18 para 26 colégios militares. Considerado um retrocesso por alguns educadores, o sistema que mantém policiais na direção das escolas está em expansão em Goiás. O governador Marconi Perillo (PSDB) pretende acabar o ano com 24 novas instituições. Segundo a polícia, o modelo melhora o desempenho dos alunos (em nove 92
Estados os colégios ficaram em 1º entre as estaduais no Enem ). O Brasil possui atualmente 93 instituições de ensino da PM. Neste ano, Minascriou mais duas, chegando a 22 –elas atendem mais de 20 mil alunos. A Bahia, com 13, deve abrir mais quatro. Em Goiás, o comerciário Ricardo Cardoso, 41, que tem duas filhas em escolas da PM, quer colocar a terceira na instituição em 2016. A maioria das vagas é preenchida por sorteios. “O nível dessas escolas é muito melhor.” Sua filha Júlia, 17, diz gostar do colégio Hugo Ramos, mas reclama da rigidez. “Um ou outro PM é rude. Mas a maioria é aberta.” Para o pai, os alunos têm “voz ativa”. “Sempre que minha filha reclamou, deram resposta. Adolescentes reclamam de tudo.” FARDAMENTO Aluno do terceiro ano do colégio Miriam Ferreira, que se tornou militar na semana passada, Douglas Fleury, 17, diz aprovar a mudança devido ao uso de drogas dentro da escola. O problema, para ele, pode ser a farda. “Alguns não drogas dentro da escola. O problema, para ele, pode ser a farda. “Alguns não vão ter como comprar.” A PM diz dar a farda (varia de R$ 400 a R$ 700) em alguns casos. Os pais pagam ainda mensalidades (de R$ 80 a R$ 110), não obrigatórias. Para não desfalcar efetivo, a PM recorre a oficiais da reserva, que ganham adicional. Os docentes são civis –em outros Estados, alguns são militares– e ganham bônus de produtividade. Diretor de ensino de um colégio de Anápolis (GO), o sociólogo e capitão da PM Sirismar Silva diz que a polícia nas escolas não é ideal. “Mas é bom ouvir dos pais que seus filhos tiveram a vida mudada para melhor.” “Isso tem sabor de retrocesso”, diz Ieda Leal, do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás. Ela chama a medida de terceirização. Para Maria Augusta Mundim, da Faculdade de Educação da federal de Goiás, o método é autoritário. “Cai por terra busca por autonomia e de construção de identidade.” ESCOLAS DA PM Modelo de colégios dirigidos por policiais está em expansão no país 93
COMO FUNCIONAM? Alunos têm de comprar farda, prestam continência e falam “senhor” e “senhora”. Descuidos com a higiene podem causar punição. São ensinadas “noções de cidadania” em sala de aula. Há professores PMs, mas a maioria é de civis. Os diretores pertencem à corporação. Estudantes que se destacam ganham condecorações, mas quem não se adapta é transferido. PRÓS Segundo as polícias, a disciplina melhora o desempenho dos alunos em provas como o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e o Enem. É o melhor modelo para colégios localizados em áreas violentas, onde há tráfico de drogas e prostituição, de acordo com a PM. CONTRAS Para educadores, o modelo padroniza comportamentos, inibe questionamentos e impede que se crie uma perspectiva crítica nos alunos. Sindicatos consideram uma forma de terceirização da educação 93 é a quantidade de escolas da PM no país 109 número estimado de escolas até o final do ano 9 Estados tiveram escolas da PM em 1º lugar no Enem 2014 entre as estaduais.
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Fonte: Secretarias estaduais de Educação Fotos: Cristiano Borges/ Folha Press
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POR ELENILCE BOTTARI / VERA ARAÚJO 11/12/2015 9:15 / atualizado 11/12/2015 22:42
RIO - Conhecido pelo símbolo da faca cravada na caveira e por ser considerado a tropa de elite da PM, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) desarticulou ontem um esquema criminoso que funcionava em seu próprio efetivo: policiais “vendiam” informações sobre ações de combate ao tráfico para quadrilhas de nove comunidades da Região Metropolitana. Na Operação Black Evil (“mal negro”, uma alusão à cor do principal uniforme da unidade), foram presos o terceiro-sargento André Silva de Oliveira, os cabos André da Silva Felizardo e Maicon Ricardo Alves da Costa, o soldado Raphael Canthé dos Santos e o sargento Rodrigo Pimentel da Silva. O cabo Rodrigo Meleipe Vermelho Reis, que também teve prisão decretada, está em Miami, mas já informou à corporação que pretende se entregar assim que retornar dos Estados Unidos. Ele trabalhava na escolta de Marcelo Montanha, chefe de gabinete do secretário de Segurança, José Mariano Beltrame.
PROPINA: R$ 10 MIL POR SEMANA
A investigação, que foi realizada pela Corregedoria Interna de Polícia Militar e pela Subsecretaria de Inteligência, começou em maio, a pedido do próprio comandante do Bope, o tenente-coronel Carlos Sarmento. O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público denunciou os policiais à Justiça Militar por crimes de corrupção passiva e quebra de sigilo funcional. Promotores também vão denunciá-los à Justiça comum por associação para o tráfico. De acordo com o inquérito, entre os meses de agosto e dezembro deste ano, os PMs receberam propinas de traficantes de várias comunidades do Rio e da Baixada Fluminense. O cabo Meleipe era o responsável pelo recolhimento semanal do suborno, que variava entre R$ 2 mil e R$ 10 mil por semana, de acordo com o tamanho e importância da comunidade. O comandante do Bope explicou que, ao assumir o comando do batalhão, em maio, estranhou a falta de resultado de algumas operações: — Certa vez, fizemos uma incursão, numa noite de sábado, à comunidade Faz Quem Quer, em Rocha Miranda. Ao chegarmos lá, encontramos uma favela vazia, nem cachorro latia. Quem acreditou que ficaria impune após passar informações sobre uma ação do Bope como aquela foi muito inocente. Estava muito claro que houve um vazamento. Segundo investigadores, o cabo Felizardo, que hoje está lotado no 15º BPM (Caxias), era o chefe do grupo. Ele teria aliciado PMs de cada uma das quatro equipes de plantão do Bope para garantir a presença permanente de pelo menos um informante dentro do batalhão.
INFORMANTES LIGAVAM TODOS OS DIAS PARA QUADRILHA
Os seis policiais, de acordo com a investigação, telefonavam diariamente para traficantes das favelas Faz Quem Quer, em Rocha Miranda; Covanca, Jordão e Barão, em Jacarepaguá; Antares, em Santa Cruz; Vila Ideal 95
e Lixão, em Duque de Caxias. Eles também ligavam para bandidos dos complexos do Lins e do Chapadão, em Costa Barros. Vários telefonemas feitos pelo grupo foram interceptados por investigadores. Segundo eles, o último vazamento de informações ocorreu ontem, pouco antes de uma operação no Morro da Covanca. Alertado pelos policiais corruptos, o chefe do tráfico da comunidade conseguiu escapar; mesmo assim, o Bope apreendeu três fuzis e farta munição no local. A promotora Angélica Glioche, do Gaeco, afirmou que o cabo Felizardo orientava o grupo para não deixar de ligar pelo menos duas vezes por dia para traficantes: mesmo quando uma operação não estava sendo planejada, era preciso “tranquilizar” as quadrilhas. — Às vezes, eles telefonavam e só diziam “bom dia” ou “boa noite”, apenas para deixar os bandidos certos de que nada aconteceria — disse a promotora. Os integrantes da quadrilha usavam codinomes. Felizardo era chamado de Corinthians, e os informantes de cada plantão do Bope se identificavam como Preto Um, Preto Dois, Preto Três ou Preto Quatro. Em uma operação realizada em 27 de outubro, um traficante foi preso, e um cabo que se identificou como Preto Um ligou para pedir desculpas à quadrilha: “Mando toque na moral para geral, mas tem vezes que a gente não sabe mesmo. Quando dão papo reto para onde é, na mesma hora a gente dá o catuque.” Além das prisões, a polícia fez buscas em 15 endereços e apreendeu armas e munição. Na casa de Rodrigo Meleipe, foram recolhidos R$ 78.400.
COMANDANTE DA CORPORAÇÃO DIZ QUE GRUPO SERÁ EXPULSO
O comandante-geral da Polícia Militar, coronel Alberto Pinheiro Neto, disse que a corporação vai atuar com rigor no caso. Segundo ele, a PM não tem restrição alguma quando tem de cortar a própria carne. Pinheiro Neto anunciou que os PMs deverão ser excluídos da corporação após uma análise do caso no conselho de disciplina: — Faz parte do nosso trabalho de correição. Lamento imensamente que profissionais do Bope, uma unidade de renome internacional, tenham esse tipo de conduta. O estado investiu muito dinheiro público na formação deles. É inadmissível tal situação — disse Pinheiro Neto, que já foi comandante do Bope. — Seja quem for, não vamos admitir conduta desviante. O policial que erra é desligado, o que não será diferente nesse caso. Pinheiro Neto fez a declaração ontem pela manhã, durante uma palestra, intitulada “O papel da Polícia Militar na segurança pública: Desafios no enfrentamento da violência urbana”, na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). O próprio comandante da corporação deu a notícia das prisões dos PMs à plateia, formada por juízes, desembargadores, estudantes de Direito e delegados: — Identificamos um grupo de policiais lotados do Bope fazendo o trânsito de informações privilegiadas para traficantes. Foi um trabalho em conjunto com o Gaeco, do Ministério Público. Outras investigações estão em andamento. Aguardem.Ao falar sobre a operação, o corregedor-geral da PM, coronel Victor Yunes, elogiou a iniciativa do Bope: — Estamos cortando na própria carne porque queremos ser exemplos positivos para uma sociedade acostumada a negatividade. Esse é o recado que estamos dando. 96
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Um relatório divulgado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU nessa quarta-feira 30 pediu ao Brasil maiores esforços para combater a atividade dos "esquadrões da morte" no País. De acordo com a agência EFE, a Organização também pediu ao governo brasileiro para trabalhar no sentido de suprimir a Polícia Militar, acusada de numerosos homicídios extrajudiciais. O documento faz parte do Exame Periódico Universal, avaliação à qual todos os países são submetidos. Diferentes nações fizeram recomendações ao governo brasileiro. A abolição da PM foi sugestão feita pela Dinamarca, que pede a aplicação de medidas mais eficazes para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais. A Coreia do Sul falou diretamente da existência "esquadrões da morte", enquanto a Austrália sugeriu que outros governos estaduais brasileiros considerem a adoção de Unidades de Polícia Pacificadora semelhantes àquelas criadas no Rio de Janeiro. A Espanha, por sua vez, solicitou a revisão dos programas de formação em direitos humanos para as forças de segurança. O país analisa que é necessário alertá-las sobre o uso desmedido de força, que deve ser utilizada de acordo com critérios de necessidade e proporcionalidade. O relatório destaca a necessidade de o Brasil garantir que todos os crimes cometidos por agentes da ordem sejam investigados de maneira independente e que se combata a impunidade dos crimes cometidos contra juízes e ativistas de direitos humanos. "Seguir trabalhando no fortalecimento do processo de busca da verdade" foi a recomendação do Paraguai. A Argentina quer “novos esforços para garantir o direito à verdade às vítimas de graves violações dos direitos humanos e a suas famílias". A França solicitou garantias para que a Comissão da Verdade criada em novembro de 2011 seja provida dos recursos necessários para reconhecer o direito das vítimas à justiça. Muitas das delegações concordaram também nas recomendações em favor de uma melhoria das condições penitenciárias, sobretudo no caso das mulheres. Elas costumam ser vítimas de novos abusos quando estão presas. Por isso, sugeriu-se uma reforma do sistema penitenciário, a fim de que a superlotação seja reduzida e que ocorra uma melhoria nas condições de vida de pessoas privadas de liberdade. Olhando mais adiante, o Canadá pediu garantias para que a reestruturação urbana visando à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016 "seja devidamente regulada para prevenir deslocamentos e despejos". 97
http://tinyurl.com/ja99weo
Em Agosto de 2014, uma onda de protestos violentos explodiu em Ferguson, um subúrbio de St. Louis nos EUA, depois que um policial matou a tiro um adolescente negro desarmado, supostamente suspeito de algum roubo. Ao longo de vários dias, a polícia se viu na tarefa de dispersar e reprimir manifestantes, em larga medida negros também. Ainda que os detalhes do incidente fossem incertos, a maioria da população da cidade, preta e pobre, tomou o acontecimento como mais uma prova da sistemática violência policial contra eles. Nas favelas e nos guetos norte-americanos, a polícia efetivamente opera cada vez mais como uma força de ocupação – algo que ecoa mesmo a presença das tropas israelenses nos territórios palestinos na Margem Oeste. A própria mídia ficou estarrecida ao constatar que a polícia e o exército compartilhavam inclusive alguns dos mesmos armamentos. A questão é que mesmo quando ações policiais visam tão somente impor paz, disseminar ajuda humanitária, ou organizar medidas médicas, seu modus operandi é o de controle sobre uma população estrangeira. Em uma matéria intitulada “A polícia nos EUA está se tornando ilegítima”, a revista Rolling Stone tirou a inevitável conclusão que se impôs após o incidente de Ferguson: “Ninguém quer admitir ainda, mas depois de Ferguson, e especialmente depois do caso Eric Garner que explodiu em Nova Iorque após mais um não indiciamento de um policial que matou um civil mantido sob custódia, e ainda por uma infração menor, a polícia de repente se deparou com um problema de legitimidade neste país. Os recursos de execução penal [law enforcement] são agora distribuídos de maneira tão desigual, e a justiça está sendo administrada com tal inconsistência descarada, que pessoas em toda parte vão começar a questionar o princípio básico de autoridade política da lei.” 98
“The police in America are becoming illegitimate”, Rolling Stone, Matt Taibbi, 5.12.2014 Em uma situação como essa – em que a polícia deixa de ser vista como o agente da lei, representando a ordem legal, mas simplesmente como mais um ator social violento –, os protestos contra a ordem social predominante também tendem a tomar uma guinada diferente: a de uma explosiva “negatividade abstrata” – isto é, num vocabulário mais pedestre: violência crua e desprovida de objetivo. Quando Sigmund Freud, em Psicologia das massas e análise do eu, descreveu a “negatividade” inerente ao desatar dos laços sociais (Tânatos, em oposição a Eros), ele acabou jogando a totalidade das manifestações desse desatamento como sendo puro e simples fanatismo “espontâneo” das massas (e “espontâneo” aqui aparece em oposição a agrupamentos humanos construídos “artificialmente” como a Igreja e o Exército). Contra Freud, devemos insistir na ambiguidade desse movimento de desatamento: ele é um grau zero que abre o espaço para a intervenção política. Em outras palavras, esse desatamento é a condição pré-política da política, e, em relação a ela, toda intervenção política propriamente dita já vai “um passo mais além”, se comprometendo com um novo projeto (ou significante-mestre).
“Mas eles não ferem os inocentes?”
Hoje esse assunto aparentemente abstrato volta a ser relevante: a energia de “desatamento” está em larga medida monopolizada pela Nova Direita (o movimento do Tea Party nos EUA, onde o Partido Republicano está cada vez mais dividido entre a Ordem e seu Desatamento). No entanto, aqui também, todo fascismo indica uma revolução fracassada, e a única forma de combater esse desatamento direitista seria com a esquerda levando a cabo seu próprio desatamento – e já temos sinais de coisas do tipo (as enormes manifestações por toda a Europa em 2010, da Grécia à França e o Reino Unido, onde protestos estudantis contra tarifas universitárias tornaram-se inesperadamente violentas). Ao afirmar a ameaça de “negatividade abstrata” à ordem existente como sendo um traço permanente dela que nunca pode ser aufgehoben, Hegel se mostra mais materialista que o próprio Marx: em sua teoria da guerra (e da loucura), ele está ciente do retorno repetitivo da “negatividade abstrata” que violentamente rompe, desata elos sociais. Marx reata a violência no processo do qual uma Nova Ordem surge (a violência como a “parteira” de uma nova sociedade), enquanto em Hegel, o desatamento permanece não-suprassumido. Mas será que essas manifestações violentas “irracionais” – isto é, desprovidas de demandas programáticas concretas e sustentadas tão somente por uma vaga reivindicação de justiça – será que elas não seriam justamente os casos contemporâneos exemplares do que Walter Benjamin chamou de “violência divina” (em oposição à “violência mítica”, i.e. a violência estatal fundadora da lei)? Elas são, como Benjamin colocou, meios sem fins, não fazem parte de uma estratégia de longo-prazo. O contra-argumento imediato aqui é: mas essas manifestações violências não são muitas vezes injustas? Elas não ferem, por vezes, os inocentes? Se quisermos evitar as explicações politicamente corretas forçadas segundo as quais as vitimas da violência divina devem humildemente ceder a ela em função de sua responsabilidade histórica genérica, a única solução é simplesmente aceitar o fato de que a violência divina é brutalmente injusta: ela é frequentemente algo 99
aterrador, e não uma intervenção sublime de bondade e justiça divinas. Um amigo meu, progressita, de esquerda, professor da Universidade de Chicago, me relatou sua triste experiência: quando seu filho chegou à idade do colegial, ele o matriculou numa escola ao norte do campus, perto de um gueto negro e com uma preponderância de estudantes negros. Em poucos dias seu filho passou a voltar para casa quase cotidianamente com feridas ou dentes quebrados… Mas, então: o que fazer? Transferir o filho para uma escola com predominância de jovens brancos ou mantê-lo nesta mesma? A questão é que este dilema está mal posto. Ele não pode ser resolvido neste nível. A própria lacuna entre o interesse privado (a segurança de meu filho) e a justiça global é a evidência de uma situação que tem de ser superada por inteiro.
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* Publicado originalmente em inglês no The European em 9.3.2015. A tradução é de Artur Renzo, para o dossiê Violência policial: uso e abuso, do Blog da Boitempo.
BOICOTE À CULTURA POLICIAL! HAKIM BEY
SE PODEMOS DIZER QUE um personagem ficcional tem dominado a cultura popular atual, esse personagem é o policial. Os meganhas desgraçados estão em todo lugar. É pior do que na vida real. Que chateação incrível. Policiais poderosos – protegendo os manos & humildes – à custa de mais ou menos meia dúzia de artigos da declaração dos Direitos Civis – “Dirty Harry”. Ótimos policiais, humanos, lidando bem com a perversidade humana, agridoces, você sabe, durões & arrogantes, mas mesmo assim, meigos por dentro: Hill Street Blues – o mais maléfico programa de TV de todos os tempos. Tiras negros sabichões fazendo observações espirituosas & racistas contra tiras brancos & jecas, mas todos se amando no final – Eddie Murphy, traidor da classe. Numa dessa histórias masoquistas, vemos policiais corrompidos que ameaçam implodir nossa Realidade Konfortável & Konsensual, como tênias solitárias desenhadas por Giger54, mas que naturalmente são detonados na hora H pelo último policial honesto, Robocop, amálgama ideal de próteses & pieguice. Somos obsediados por policiais desde o início – mas os guardas de outrora atuavam como tolos empavonados. Car 54, Where Are You?55, trouxas feitos na medida para serem arrasados & ridicularizados por Fatty Arbuckle ou Buster Keaton. Mas, no drama ideal dos nossos dias, o “pequeno homem”, que uma vez detonou centenas de varejeiras azuis com aquela bomba anarquista inocentemente usada para acender um cigarro – o Vagabundo, a vítima com o repentino poder do coração puro -, não tem mais um lugar no centro da narrativa. Antes, “nós” éramos aquele vagabundo, aquele herói caótico quase surrealista que, através do wu-wei56, sai-se vitorioso sobre ridículos meganhas de uma Ordem irrelevante & desprezível. Mas, agora, “nós” estamos reduzidos ao status de vítimas sem poder, ou criminosos. Já não representamos o papel principal; já não somos os heróis de nossas próprias histórias, fomos marginalizados & substituídos pelo Outro, o policial. Dessa forma, o show policial possui apenas três personagens – a vítima, o criminoso & o policial -, mas os dois primeiros não logram ser completamente humanos – apenas o meganha é real. Estranhamente, a sociedade humana de agora (como percebida pelas outras mídias) algumas vezes parece ser constituída pelos mesmos três clichês/arquétipos. Primeiro, as vítimas, as minorias chorosas reclamando por seus “direitos” - &, por deus, 101
quem não pertence a alguma “minoria” hoje? Porra, até mesmo os meganhas reclamaram que seus “direitos” estavam sendo infringidos. Depois, os criminosos: em sua maioria, não brancos (apesar da obrigatória & delirante “integração” mostrada pela mídia), muitos pobres (ou então obscenamente ricos, & portanto ainda mais distantes) & pervertidos (isto é, os espelhos proibidos de “nossos” desejos). Ouvi dizer que uma em cada quatro casas nos Estados Unidos é assaltada todo ano & que todo ano cerca de meio milhão de pessoas são presas só por fumar maconha. Diante de tais estatísticas (mesmo pressupondo que elas não passam de “mentiras deslavadas”), perguntamos a nós mesmo quem NÃO é vítima ou criminoso em nosso estado-de-consciência-policial. Os detetives policias devem fazer a mediação por todos nós, por mais que a interface seja obscura – eles são apenas sacerdotes-guerreiros, embora profanos. O America´s Most Wanted – o programa de TV mais bem-sucedido dos anos 1980 – possibilitou para todos nós o papel de tira amador, até então uma mera fantasia da mídia produzida pelos sentimentos de ressentimento & vingança da classe média. Naturalmente, ninguém é mais odiado pelo policial da vida real do que aqueles que resolvem cuidar da própria comunidade – veja o que acontece às iniciativas de autoproteção comunitária de vizinhanças pobres e/ou não brancas, como os muçulmanos que tentaram eliminar o tráfico de crack no Brooklyn: os tiras afugentaram os muçulmanos, os traficantes ficaram livres. Vigias de verdade ameaçam o monopólio do cumprimento da lei, lèse majesté, o que é mais abominável do que incesto ou assassinato. Mas os vigilantes da mídia (mediados) funcionam perfeitamente bem dentro do estados Policial. De fato, seria mais acurado considerá-los informantes não pagos (eles nem mesmo possuem um conjunto de malas que combinam!): emissários telemétricos, pombos eletrônicos, dedos-duros por um dia. O que é que a “América mais procura”? Essas frase refere-se aos criminosos – ou a crimes, a objetos de desejo em sua presença real, não representados, não mediados, literalmente roubados & apropriados? A América mais procura... dar um “foda-se” para o trabalho, abandonar o casamento, drogar-se (porque somente as drogas fazem você se sentir tão bem quanto as pessoas que aparecem nos comerciais de TV parecem se sentir), fazer sexo com ninfetas núbeis, sodomia, arrombamentos, sim, o inferno! Quais prazeres não mediados NÃO são ilegais? Até mesmo churrascos ao ar livre violam regulamentos sobre emissão de fumaça, hoje em dia. As diversões mais simples acabam por infringir alguma lei; por fim, o prazer torna-se estressante, apenas a TV permanece - & o prazer da vingança, a traição vicária, a emoção doentia do mexerico. A América não pode ter o que ela mais procura, então, em vez disso, ela tem o America´s Most Wanted. Uma nação de bobalhões ginasianos lambendo o rabo de uma elite de brutamontes ginasianos. É claro que o programa ainda sofre de algumas poucas & estranhas distorções da realidade: por exemplo, os segmentos dramatizados são interpretados no estilo cinema-verdade por atores; alguns telespectadores são tão estúpidos que acreditam que estão assistindo a uma filmagem real de crimes reais. Por isso, os atores são continuamente importunados & mesmo presos, junto com (ou no lugar de) os verdadeiros criminosos cujas fotos de identificação são exibidas depois de cada pequeno documentóide. Que curioso, não? Ninguém experimenta nada de verdade – todos estão reduzidos ao status de fantasmas – imagens da mídia se descolam & se deslocam de qualquer contato com a vida real de cada dia – telessexo – sexo virtual. A transcendência final do corpo: cibergnose. Os policiais da mídia, assim como os seus precursores televangélicos, preparam-nos para o advento, a vinda final ou o Êxtase do estado policial – as “guerras” ao sexo & às drogas – controle total & totalmente esvaziado de qualquer conteúdo; um mapa sem coordenadas, em nenhum espaço conhecido; muito além do mero Espetáculo; puro êxtase (“permanêcia-fora-do-corpo”); simulacro obsceno; violentos espasmos sem significado elevados ao último princípio de governo. A imagem de um país consumido por imagens de ódio a si mesmo, guerra entre as metades esquizóides de uma personalidade dividida, Super-Ego contra Id Kid, para o campeonato de pesos pesados de uma paisagem abandonada, queimada, poluída, vazia, desolada, irreal. 102
Assim como o romance policial é sempre um exercício de sadismo, o seriado policial, sempre envolve a contemplação do controle. A imagem do inspetor ou detetive mede a imagem de “nossa” falta de substância autônoma, nossa transparência ante o olhar fixo da autoridade. Nossa perversidade, nossa impotência. Não importa se o consideramos “bons” ou “maus”, nossa invocação obsessiva dos espectros policiais revela a extensão da nossa aceitação da perspectiva maniqueísta que eles simbolizam. Milhões de meganhas minúsculos formigam em toda parte, como larvas de fantasmas famintos – eles enchem a tela, como no famoso filme de Keaton, abarrotando o primeiro plano, uma Antártica onde nada se move a não ser multidões de sinistros pingüins azuis. Propomos uma exegese hermenêutica & esotérica do slogan surrealista Mort aux vaches! Não o usamos ao nos referir à morte de policiais individuais (“vacas” na gíria da época) – o que seria uma mera fantasia de vingança esquerdista – sadismo mesquinho às avessas -, mas à morte da imagem do flic, o Controle interior & suas miríades de reflexos no Lugar Nenhum da mídia – o “quarto cinza”, como Burroughs o chama. Autocensura, medo do próprio desejo, “consciência” com a voz interiorizada da autoridade consensual. O assassínio dessas “forças de segurança” de fato libertaria uma enchente de energia libidinosa, mas não a violenta irrupção prevista pela teoria da Lei & da Ordem. A “auto-superação” nietzschiana provê o princípio da organização para o espírito livre (& também para a sociedade anarquista, ao menos em teoria). Na personalidade do estado policial, a energia libidinosa é represada & desviada para a auto-repressão; qualquer ameaça ao Controle resulta em espasmos de violência. Na personalidade do espírito livre, a energia flui desimpedida & portanto turbulenta, mas gentil – o seu caos encontra o seu estranho atrator, permitindo que novas ordens espontâneas surjam. Assim, clamamos por um boicote à imagem do Policial & por uma moratória da sua produção na arte. Assim...
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