A historia que eu conto, de Binho Cultura

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A Hist贸ria Que Eu Conto Binho Cultura



A História Que Eu Conto Binho Cultura

Petrobras Cultural

Realização


Copyright © 2013 George Cleber Alves da Silva (Binho Cultura) COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria Heloisa Buarque de HollandA consultoria Ecio Salles coordenação editorial Camilla Savoia projeto gráfico Flavia Castro A HISTÓRIA QUE EU CONTO produção gráfica Sidnei Balbino revisão Camilla Savoia CLAUDIA AJUZ RITA GODOY revisão tipográfica Camilla Savoia Tatiana Louzada foto da capa Graffiti de Tainan Cabral (Grend), Jeferson Cora e Gleydston Santos. Crédito: Arquivo CCHC.

fotos Todas as fotografias fazem parte do acervo pessoal do autor. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C974h Cultura, Binho A História Que Eu Conto / George Cleber. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. 204 p. : il. ; 19 cm (Tramas urbanas) ISBN 978-85-7820-084-8 1. Cultura popular - Aspectos sociais. I. Título. II. Série. 13-0478. CDD: 306 CDU: 316.7 22.01.13 25.01.13 042342 Todos os direitos reservados Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


“Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, emergem nas novas experiências, assim como os tempos presentes, pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será.”

Eduardo Galeano


Agradecimentos

Como sempre foi dito, esta história não é de uma pessoa só, é uma história universal, em que cada pessoa tem a sua para contar, neste mesmo espaço onde ser você mesmo é ser louco. O mundo necessita desta loucura salutar. Em todas as esferas da sociedade, isso seria utopia. Por essa razão, nos ativemos em agradecer aos diagnosticamente loucos assumidos, que acreditaram que a transformação do mundo realmente começa pelo indivíduo consigo mesmo. Nossas palavras não são menos falhas que nossas mentes, que se furtam em esquecer nomes e momentos preciosos, pois neste livro eternizam-se ideias e concretizam-se sonhos, uma vez transformados em metas. Àqueles que muito representam para nós, desde os que deixaram sua marca no percurso àqueles desejosos em estar mais próximos. A literatura nos presenteia com essa rica oportunidade de fazer chegar às mãos e ao conhecimento de um público interessado em criar, construir e compartilhar; esta é a tríade dos que pertencem e se sentem pertencidos.

A História Que Eu Conto é carregado de emoção, fé, amor e veracidade, é a história contada pelos protagonistas, os fazedores que não retêm o notório saber adquirido com as longas caminhadas, que não se acumulam justamente por serem postos em Rede. Este livro foi feito para os que creem nas pessoas e mesmo com toda adversidade persistem em trabalhar por e com elas. Isso por si só seria um milagre, e acreditar no ser humano com toda sua complexidade é pouco, temos de ter fé no que a humanidade pode se tornar um dia e potencializar aqueles que ousam em dar o seu melhor.


Eugênia Paim, antropóloga do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi quem me inspirou a estudar e me tornar cientista social, acreditou e apoiou meus projetos literários quando somente eu acreditava, e o mesmo fez com Jê, seu grafiteiro preferido. Ela nos presenteava com livros, e sua incansável fé de que nossos sonhos se tornariam realidade era a nossa motivação. Ela viu o Centro Cultural, a Biblioteca, seus meninos crescerem, mas nos deixou sem ver seu pupilo publicar o primeiro livro, depois de anos o incentivando. Esteja em paz, pois no meu coração e na minha história você sempre fará parte.

Jê, Eugênia e Binho.


Este livro é dedicado a todas as pessoas que deram muito do seu suor e lágrima para irrigar as terras férteis em que estão sendo plantadas as sementes do bem, os frutos que as gerações vindouras haverão de colher e saber que realmente nada se pode fazer para mudar o passado, mas que todas as forças e inteligências empreendidas com sentimento e profissionalismo são capazes de mudar não apenas a vida de uma ou outra pessoa, mas também de um lugar e sua perspectiva para um futuro melhor. É a esta utopia que devemos a construção sólida de nossos presentes, não importa o tempo em que passaram e o motivo por que foram, mas sim o legado que deixaram e será eternizado como registro neste livro, pois o que torna um trabalho bem-sucedido é a força de vontade e dedicação de quem o faz. Assim cada um deu a sua incomparável e imprescindível contribuição, e, por isso, este livro é dedicado especialmente a vocês.


SUMÁRIO 14

Apresentação

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Prefácio - Melisanda Trentin

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Das Cinzas surge a Fênix 22 24

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O Lugar Tempo

O NINHO DA FÊNIX 34 40 52 56 62

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Planejamento Primeiras articulações Primeiras Atividades Primeiras Parcerias Construção coletiva e suas controvérsias

Redes comunitárias 71

01

03

Como e onde nasceram as redes comunitárias Segundo seu idealizador – Luiz Fernando Sarmento

04

74

O voo da fênix

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Um novo ponto de cultura no mapa

05 06

da geografia cultural brasileira

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Economia criativa a serviço da sustentabilidade institucional


100

102 105 107 110 114

120

Causo 1 - O primeiro projeto aprovado Causo 2 - Na sombra do poste Causo 3 - A longa estrada Causo 4 - Encontro com o ministro da Justiça Causo 5 - A cessão de uso

Segundo o seu olhar 122 123 126 130 131 140 144 146 147 152

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Causos inesquecíveis

08

Douglas Cristóvão Hendel da Silva de Souza Michel Robin Rabinowitz Fábio Quadros Luiz Fernando Sarmento Bel Lobo Alexandre Bárbara Antonio Pedro Coutinho Julio Ludemir Cleia José Silveira

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Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão) 165 174

Os sinais Dia histórico

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Encontrar-se

190

Epílogo - A história e a loucura continuam...

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Referências bibliográficas Sites e blogs de referência

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ANEXO - Pessoas que eternamente farão parte da história do CCHC

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Apresentação

O tempo passou e o Centro Cultural A História Que Eu Conto (CCHC) fixou à cena cultural o seu lugar de origem, o Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Após dois anos de planejamento, imbuído de sonhos e aguerrido de ações articuladas dentro e fora do território, os idealizadores do Centro Cultural, Samuca, Jê e Binho, já sabiam que história queriam contar; mais do que contar, escrever a incrível jornada de um lugar surgido das primeiras remoções de favelas do Estado da Guanabara — Vila Aliança, que foi o primeiro conjunto habitacional da América Latina. Ao tomar para si a missão de criar um espaço em que os sonhos se encontrassem, o trio foi batizado pelos céticos como “Os Três Loucos”, e o nome foi adotado com orgulho e levado a sério por estes desbravadores culturais. Afinal, a terra, embora fértil, jamais tinha recebido investimentos neste segmento, ainda que fervilhasse de talentos em potencial. De que adiantaria perder tempo olhando para aquilo que não foi feito, o que lhes faltou na infância e na juventude? Os Três Loucos perceberam que poderiam levar essa história para além das margens nas quais se encontravam e romper as fronteiras sociais que foram fadadas, e, em vez de contarem histórias de coitados, destacaram-se por elevar a capacidade dessa população e estimular o pertencimento. Em seus planos, desafios e metas estabelecidas a curto, médio e longo prazos, estruturaram-se no empreendedorismo cultural e na economia criativa, focando na identidade da equipe que seria formada para enfrentar essa empreitada. Os pré-requisitos estabelecidos foram: amor e história de superação.

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Contudo, vale a máxima: sonho que sonha só é apenas um sonho. Em função disso, trabalharam em rede, cooperação, articulação com pessoas de dentro e fora da região, entre ofertas e procuras, grandes encontros, parcerias e conquistas. A história em si já é um roteiro para um longa daqueles, um livro bastante motivador para ser degustado, uma obra-prima para avaliador nenhum colocar defeito. Pela Coleção Tramas Urbanas, A História Que Eu Conto vai costurando a cidade partida, fazendo de seus ideais as suas práticas. Fazendo de sua luta a resistência, fazendo de sua resiliência o seu símbolo — a fênix!

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Prefácio

Que história se conta?

Resistir (...) não é permanecer nas possibilidades dadas, não é render-se a um estado de coisas já estabelecido. É criar possibilidades inéditas, é praticar ações fora das medidas; é inventar valores novos, diferentes dos constituídos; é ir além desses valores dados: é transvalorar, como nos ensina Nietzsche. Cecilia Coimbra, 2010.

A história que se conta neste livro é a história de muitas histórias, de muitos sujeitos e de muitos afetos: a história de crianças, de velhos e de jovens. Mulheres e homens. Mães, costureiras, estudantes, grafiteiros, cozinheiros, pintores, cantores, poetas, atores. É a história de um grupo que traz consigo a proposta de contar e recontar a história de um território surgido das primeiras remoções de favelas do Estado da Guanabara. A Vila Aliança foi o primeiro conjunto habitacional da América Latina, formado no contexto da política remocionista do governo Lacerda nos anos 1960. Seus primeiros moradores vieram do Morro do Pasmado, Praia do Pinto, Favela do Esqueleto, Brás de Pina e Penha — áreas valorizadas pela especulação imobiliária. Pessoas que foram retiradas de suas casas e de suas distintas origens — contra sua vontade e de maneira violenta — e que passaram a habitar, com diferentes expectativas e projetos de vida, um novo lugar, na franja da metrópole: a Zona Oeste. O processo das remoções desterritorializa, em diversos sentidos: altera as relações de sociabilidade, familiares, de trabalho, de vizinhança, interrompe redes. E essa marca está presente na dinâmica de formação do território de Vila Aliança, produzindo seus efeitos no tempo, até os dias de hoje. A Vila Aliança é considerada uma das favelas mais 16


violentas da cidade, alvo constante de operações policiais, como a mais recente, em janeiro de 2012, com o objetivo de reprimir o tráfico de drogas no local. Mas a história que se conta neste livro é uma história de ressignificação do território. Uma história de teimosia. Uma história de utopia e resistência. De utopias particulares que são socializadas para construir uma utopia coletiva, desencadeando processos de afirmação positiva da criatividade. E da resistência como uma nova forma de existir, como (re)existência. Diferente do sentido de permanecer, o verbo resistir aqui ganha a dimensão de movimento, de impulsionar novas formas de criação. A grande contribuição do Centro Cultural A História Que Eu Conto foi exatamente contar a história de pessoas que foram despossuídas de suas próprias histórias; foi querer ouvir a história de cada uma dessas pessoas e articulá-las em torno de um grande projeto comunitário. Trabalhar estrategicamente na chave do pertencimento e do desenvolvimento local foi fundamental para que cada uma dessas pessoas pudesse recontar sua história e para que o Centro Cultural pudesse recontar a história da Vila Aliança. Milton Santos usa a expressão "território usado" para falar sobre as múltiplas dimensões do espaço geográfico. Caracteriza o território como abrigo de todas as pessoas, de todas as instituições e de todas as organizações. E coloca o território como espaço usado, vivido, permeado por questões políticas; convocando-nos a pensar o futuro com todas as possibilidades de transformação nele contidas. A ideia de território usado impõe pensarmos o território como espaço de todos, porque precisa necessariamente contemplar os interesses e as razões de ser e de existir de todos os agentes. Assim, pensar no território usado é essencial para a elaboração do futuro, sob a perspectiva da dinâmica dos lugares. O lugar é proposto pelo autor como o espaço do acontecer solidário. Essas solidariedades definem usos e geram valores de múltiplas naturezas: culturais, antropológicos, econômicos, sociais, financeiros; e coexistem no espaço geográfico. É no território, portanto, que reside a única possibilidade de resistência aos processos perversos do mundo, dada a possibilidade real e efetiva da construção política. 17


E é nesse território, é a partir dele, que se articulam as trajetórias de vidas sonhadoras, potentes e teimosas para construir um espaço de ser, agir e pensar coletivo: o Centro Cultural A História Que Eu Conto. A fênix, ave lendária que tem a capacidade de renascer das próprias cinzas, é descrita no livro como um símbolo do Centro Cultural. Em todas as mitologias, o significado da ave de fogo é a ressurreição, a esperança que nunca tem fim. Como em um jogo de luz e sombra, é da adversidade, das dificuldades cotidianas que surgem o sonho, a utopia, o futuro. Permito-me aqui dizer que tive o prazer de conviver com o pessoal do Centro Cultural durante dois anos — de 2009 a 2011 —, ocasião em que desenvolvemos em parceria entre a Fase e o CCHC o projeto Acesso à Justiça e Cultura de Direitos. Nesse período, acompanhei de perto os processos que se desenrolavam no Centro Cultural e, desde o primeiro contato com seus fundadores, compreendi a importância desse símbolo no imaginário das pessoas que circulavam naquele espaço vivo. Neste livro, se vê descrito — de maneira emocionante e em detalhes — todo o processo de construção do Centro Cultural, desde os primeiros momentos, de sonho, até as conquistas atuais. No primeiro capítulo, temos o encontro dos fundadores — carinhosamente chamados de “Os Três Loucos”. No segundo, ocorre a ocupação do Centro Cultural “consciente, organizada, coletiva”. No terceiro, registramos a conquista da cessão de uso do espaço ocupado, descrita como o reconhecimento de toda a caminhada. O quarto capítulo apresenta alguns “causos inesquecíveis”, como o primeiro projeto aprovado, alguns dos encontros com representantes dos poderes públicos, as disputas de poder no local e a construção da legitimidade. No quinto capítulo, ao tratar das crises e conquistas, analisam-se as dificuldades da construção coletiva, avaliam-se as conquistas e lança-se um olhar para o futuro e os desafios do Centro Cultural. Como costumam dizer os fundadores do CCHC, “a Vila Aliança não tem Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), não tem Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e não é rota do marketing cultural”. Apesar das críticas em relação aos investimentos públicos 18


que organizam o espaço urbano em guetos, aportando recursos em políticas e programas que segregam as favelas da dinâmica da cidade, deve-se reconhecer que a histórica falta de investimento público na Zona Oeste do Rio constitui um obstáculo de difícil superação para a promoção dos direitos e das políticas públicas no território. O autor deste livro não se furta de tal análise. Assim, ele nos permite conhecer a experiência singular de luta e resistência, porém, mais do que isso, nos ajuda a criar uma agenda estimulante para os grupos juvenis urbanos, demonstrando que a organização popular ainda é uma proposta possível. O livro nos ensina, acima de tudo, que a potência transformadora das juventudes de favelas está viva, presente e pulsando em propostas de novas formas associativas. Melisanda Trentin é advogada, mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ e técnica do Núcleo de Justiça Ambiental e Direitos da Fase.

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01 Das Cinzas surge a FĂŞnix


“O que há num determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas (...). Essas técnicas particulares (...) são manejadas por grupos sociais portadores de técnicas socioculturais diversas e se dão sobre um território que, ele próprio, em sua constituição material, é diverso, do ponto de vista técnico. São todas essas técnicas, incluindo as técnicas da vida, que nos dão a estrutura de um lugar.” Milton Santos (2006)


A História Que Eu Conto

O Lugar O lugar é o espaço específico para todas as contradições, é nele que o tudo e o nada acontecem sem ser por acaso. Mas, de fato, podem ser condicionais e/ou condicionantes a perspectiva e a expectativa sobre ele. Nenhum lugar é um lugar qualquer porque é ponto de partida, de chegada e de circulação de ideias, sonhos, construções e desconstruções. Pessoas são agentes de transformação, responsáveis pela dinâmica que muda ou estagna o lugar em que vivem, passam, trabalham ou governam. Nenhuma espécie tem a capacidade de transformá-lo, positiva ou negativamente, mais do que o próprio ser humano. No entanto, não dá para ficar de braços cruzados assistindo pela janela a todo este panorama social, sabendo que de qualquer forma é um agente deste processo, por ação ou por omissão. Qual é o meu papel? Quando esta pergunta surge, é porque chegou a hora de tomar alguma atitude. Peço a devida licença ao leitor para sair da condição de espectador e narrador e me permitir me incluir nesta história que está sendo contada, quando falar da sociedade, pois devo saber em que lugar me encontro nela, a fim de facilitar o entendimento sobre os rumos desta prosa. Falo de um lugar específico, o lugar em que nasci, cresci e senti suas facetas influenciarem desde o meu cotidiano aos meus sonhos para o futuro. Quando ouvia que somos produtos do meio, muitas interrogações me vinham e ainda vêm, todas sem respostas. Enquanto me calei sobre as causas e os efeitos, enquanto não li a respeito, não pude perceber que não era o único a ter tais indagações; contudo, como reclamar nunca foi minha característica, guardava as 22


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opiniões até compreender que agir é a melhor forma de gritar. É atuando que somos percebidos; deixamos de ser invisíveis quando nos posicionamos. Daí em diante tudo muda; um movimento interessante passa surpreendentemente a acontecer, pois descubro outros de mim, outros de nós, nos identificamos nas nossas diferenças, compartilhamos nossas angústias; mais do que isso, reconhecemos que somos capazes de fazer algo, neste lugar que não atende às nossas expectativas. Em vez de buscar culpados, que tal fazer o que acreditamos que possa ser feito ainda? Isso é mais que um convite, é o retrato de uma ação, uma história, a história que eu conto!!! A relação de Samuca, Jê e Binho com o lugar tem uma singularidade: três gerações, vivências e pontos de vista que se cruzaram. Algo tinha de ser feito, e não foi casualmente que suas histórias se interligaram muito antes deste encontro marcante, deste divisor de águas. O lugar em questão, uma rua chamada Antenor Correia, mais conhecida como Vacaria, pelo fato de em outros tempos ter sido pasto da criação de gado de Dona Abigail, foi onde os Três Loucos se criaram e foram criados.

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A História Que Eu Conto

Tempo A época foi a década de 1980; nestes meandros, 1988, Samuca, com 20 anos, está no auge; aos 16 deixou sua vida de pescador, quando perdeu a mãe no Dia das Mães, e tomou a decisão de entrar para a criminalidade. Aos 18, já era considerado o "Moleque Sinistro" pelos criminosos mais antigos. Binho, com 8 anos, e Jê, com 4, mal sabem que este é o ano da Promulgação da Constituição. O Brasil saía finalmente da ditadura militar, enquanto cada um vivia sua particularidade. Foi uma década difícil para todos os brasileiros. Em 1990, ano de Copa do Mundo, Samuca, àquela altura um dos mais procurados pela Polícia Especializada do estado do Rio de Janeiro, desfruta de sua fama, seu poder e da admiração da garotada, que não o via armado, nem usando drogas; a molecada o adorava, não estava nem aí para o que ele fazia, não sabia ou não entendia. Só sei que entre os moleques que cercavam o Samuca para ajudar a enfeitar a Vacaria para a Copa do Mundo estava Binho, que guarda em sua memória este dia, quando a patrulhinha da polícia (na época o Fusquinha) abordou Samuca e, instintivamente, a molecada cercou a viatura. Binho ainda ouviu quando um dos policiais pediu para que o abordado solicitasse o afastamento das crianças. Elas podiam não saber o que Samuca fazia ou deixava de fazer, isso nunca ficou muito claro, até ele ser preso pouco tempo depois daquele dia, mas os moleques sabiam muito bem o que os canas queriam. Não me lembro da Copa do Mundo em si, mas este episódio foi marcante. Samuca foi condenado a 15 anos por sequestro, sete dos quais cumpriu em regime fechado, e muita coisa aconteceu. Era 1997, Binho tinha 16, e Jê, 12. Aquele ano, quando Binho deixou a escola prestes a completar seus 24


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17, foi marcante para ele, pois teve uma adolescência conturbada por questões familiares e chegou a ser pichador. Não se envolveu com o crime, não por falta de convites e oportunidades, mas a consciência o levava à sua mãe, ela não merecia mais sofrimento do que já tinha. Sem recursos para comprar o livro paradidático, ele deixou de ser referência na escola como vândalo e foi eleito representante de turma pela mesma professora que não compreendera a sua condição quando pediu a ela uma chance de fazer a prova do livro paradidático em segunda chamada, pois seu pai não havia comprado o livro por lhe faltarem condições financeiras. A professora, a princípio, foi compreensiva, mas no dia da prova falou em alto e bom-tom que não tinha culpa e não poderia abrir exceção. Constrangido, este foi o último dia em que Binho foi à aula. No ano seguinte, fundou a primeira Biblioteca Comunitária da Vila Aliança e Senador Camará, com o propósito de que nem seu irmão nem ninguém mais na comunidade passasse pela mesma situação. O irmão em questão é o próprio Jê, que, com seus 16 anos, já em 2002, vivia os conflitos da adolescência. Ambos tiveram problemas relacionados com o pai. Essa geração de adolescentes foi muito mais complexa, diversos amigos de Jê estavam envolvidos com as drogas, as brigas de bailes funks e o crime. Jê se encontrava praticamente a um passo desse caminho, porém, mais uma vez, a mãe, Dona Maria, que, aliás, também tinha o mesmo nome da saudosa mãe de Samuca, martelava na consciência. Jê fazia de tudo para chamar a atenção do pai, que o subestimava e não tinha ideia de que o que seu filho caçula fazia superava tudo o que o outro teria feito. Talentoso, traçava seus primeiros riscos e demonstrava habilidade para o desenho. Tal como seu irmão, Jê se tornou pichador, mas transcendeu, pois passou também a desenhar armas que posteriormente viriam a estampar as camisas e os bonés de criminosos. 25


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De um extremo ao outro, fala-se de períodos críticos que tiveram em comum entre os 16 e os 18 anos, coincidência ou não, de 1997 (ano em que Binho completou 17 anos) a 2002 (quando Jê completou 18 anos). Samuca deixaria em breve o regime fechado para o condicional naquele ano de 1997, após passar por vários estágios como interno do Sistema Prisional e algumas unidades prisionais, como a Delegacia de Pilares, à qual pertencia a equipe que o prendera, onde ficou seis meses. No Presídio Ary Franco, na Água Santa, ficou um ano e quatro meses. Posteriormente, foi transferido e, por ser considerado de alta periculosidade, não foi aceito em dois presídios, o Evaristo de Morais (Galpão da Quinta da Boa Vista) e Moniz Sodré (Complexo do Gericinó), quando então foi para o Esmeraldino Bandeira, no mesmo Complexo. Chegou a pensar em terrorismo, em fugir etc. Mas foi traído pelo maior inimigo do bandido, segundo sua teoria, vivida por ele na prática, que não é a polícia, e sim o próprio sentimento. Sem fazer mea culpa ou tirar o corpo fora, Samuca sempre deixa evidente que, mesmo sendo bandido, há um ser humano por trás que pode ser sensibilizado. Ele sempre resgata a história de Pablo Escobar, encontrado e morto após ser rastreado ao falar com um familiar. Samuca foi pego pelo mesmo inimigo que traíra Pablo Escobar, sendo que já em cárcere, onde sua revolta já havia condicionado a planejar atrocidades, passou a perceber que aquilo afastaria qualquer possibilidade de ver seus filhos crescerem. Após conversar com a psicóloga Fátima, do Esmeraldino Bandeira, passou também a frequentar reuniões kardecistas, o que fez toda a diferença dali em diante. Certa noite, teve uma revelação por meio de um sonho, em que Deus anunciava sua liberdade. Após dispensar o advogado, que era pago pelo crime, e a ajuda financeira que também recebia, foi considerado louco pelos companheiros de crime, tanto os de dentro quanto os de fora de cadeia, até porque tudo o que conquistara com o dinheiro advindo dos assaltos e sequestros, o que não foi pouco, Samuca não usufruiu, perdera tudo. 26


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Samuca recebeu ajuda de um advogado, amigo de seu cunhado. Mesmo sem ser da área criminal, o advogado se propôs a ajudar na causa sem cobrar seus honorários, e tão logo conseguiu a transferência em novembro de 1996 de Samuca para a unidade prisional Plácido de Sá Carvalho, onde permaneceu até o dia 4 de abril de 1997, quando enfim, já em liberdade condicional, voltou a ver a luz do dia, agora por outro ângulo. Como já foi dito, os cinco anos entre 1997 e 2002 não foram nada fáceis. Em liberdade, Samuca tinha a chance de assumir a chefia da Vila Aliança, o que não o seduziu por várias razões, entre elas a promessa feita a Deus, de que uma vez em liberdade usaria a sua história de vida para que outros adolescentes e jovens não seguissem o caminho que ele trilhou. Ele estava convicto de que sobrevivera somente para contar esta história e ser um exemplo para os que ainda continuavam vivendo este tipo de vida. Stanley Tookie Williams, fundador da Crips, a maior gangue dos Estados Unidos, condenado à pena de morte, dentro da prisão começou a escrever livros infantis com o objetivo de evitar que as crianças se envolvessem com gangues. Ele foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura e o Prêmio Nobel da Paz. Em 2004 foi lançado o filme Redemption, The Stanley Williams Story. Enquanto governador do Estado da Califórnia, Arnold Schwarzenegger detinha o poder de executar ou anistiar o prisioneiro que virou referência internacional, inclusive para Samuca, mas ele foi executado em 23 de dezembro de 2005 por injeção letal. Samuca trabalhou na construção civil e à noite tocava em um grupo de pagode. Passou necessidade e resistiu à tentação de se render às seduções do crime e às propostas indecorosas que recebia, para coordenar, orquestrar ou simplesmente planejar novos assaltos e sequestros. Ainda que não atuasse diretamente, receberia sua parte igual à dos demais. Sem aceitar, teve de provar sua condição dian27


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te da nova geração de bandidos da área e que não ofereceria risco, mas precisava garantir que a sua vida também estaria em segurança. Andou de cabeça erguida, manteve-se firme e continuou compondo canções de diversos gêneros musicais, habilidade que adquirira ainda na prisão, onde recebera instruções do compositor que é sua referência, Marquinhos PQD. O sonho de Samuca era transmitir sua história como mensagem de superação por meio da música, atingindo, sobretudo, a juventude dentro e fora do Brasil. Tornou-se líder de uma banda que mais tarde seria batizada de “Movimento na Rua”. Com a banda, criou-se o Projeto Social Ponto Br, no qual cada componente ensinava seu instrumento em oficinas para crianças, adolescentes e jovens da comunidade. Em 2002, Samuca coordenava o Projeto Ponto Br que, naquele ano, passaria a oferecer oficina de graffiti. Binho trabalhava em uma empresa multinacional e, ao ser dispensado, pôde ter noção do que acontecia com seu irmão, porque, mesmo alertando o pai para o comportamento do irmão, algo de concreto só foi feito quando falou com Samuca sobre aquela situação. Imediatamente, ele chamou Jê para uma conversa e percebeu sua potencialidade; dali em diante passaram a ser grandes companheiros. Este foi o sinal de que o encontro do trio seria transformador. Jê seguiu adiante com Samuca, mesmo sendo aluno de graffiti. Ainda teve uma recaída pela pichação, que só viria a abandonar de vez quando, junto com seus colegas, foi confundido com assaltantes, ao picharem os fundos de um estabelecimento na linha do trem. Acionados pelo dono, bandidos foram surpreendê-los e chegaram atirando. Como Jê era o maior, virou alvo fácil. Ele só não foi atingido porque, segundo o atirador, que por ironia era primo de Samuca, sua arma emperrou.

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Jê e seu grupo tiveram de dar explicações na boca de fumo e recorreram a Binho para comprar uma nova lata de spray para comprovar que estavam pichando, já que perderam a outra durante a fuga. Dali por diante, o graffiti passou a ser sua vida. Antes de passar a coordenar este projeto chamado Ponto Br, que faz parte do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS), Samuca perambulou em busca de emprego, como todo egresso, e já se sabe o que ele ouvia. Conseguiu sua oportunidade para trabalhar como servente de pedreiro na obra da Escola Municipal Edison Carneiro, situada dentro da própria comunidade onde Samuca se projetou para o crime antes de ser preso. Logo que saiu em regime condicional teve a chance de ser o “dono da favela”, mas preferiu tentar a vida como um cidadão do bem. Enquanto Jê e Samuca seguiam no Projeto Ponto Br, Binho continuava com seu plano de disseminar a leitura e formar novas bibliotecas, nas associações de moradores, realizando colônias de férias, escrevendo poesias e peças teatrais. Passou a desempenhar um papel de articulador entre a comunidade e os órgãos públicos, facilitando a relação e estreitando as possibilidades de melhorar as condições de vida dos moradores. Militou na saúde, educação e meio ambiente, mas foi na cultura que teve mais identificação. Entre 2002 e 2006 muitas coisas aconteceram; Samuca liderava uma banda de pop rock — a Banda Movimento na Rua —, com a qual viajou para a Europa duas vezes e para o Canadá uma vez. Em uma das viagens para a Holanda, durante uma escala no voo Paris-Rio de Janeiro, conheceu Adriano Londres, conselheiro do Sesc-Rio, que se interessou pela história contada por Samuca, a partir dali surgiu uma amizade que possibilitou palestras em várias Unidades do Sesc do estado do Rio de Janeiro.

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Já na viagem para Toronto, em 2005, Jê foi convidado pelo Colégio sem Fronteiras para o Seminário Internacional de Violência Urbana. A essa altura, ele já havia feito curso de Jovem Liderança e Educador Social no Espaço Ipê, também do IBISS. Juntamente com Eduardo Cipriano e Geovani Fernandes, em 2005 Binho fundou a BEG TV, primeiro canal de TV comunitário da região, para fazer a cobertura das ações realizadas dentro do Complexo da Vila Aliança e de Senador Camará. Iniciou a Feuc (Faculdade de Ciências Sociais na Fundação Educacional Campo-grandense Unificada), em 2006. O canal foi reconhecido imediatamente pelos moradores e ganhou audiência. Nesse mesmo ano, fez a cobertura do evento Aliança Cultural. Um dos sonhos de Jê era promover um dia de encontro entre grafiteiros para que fizessem sua arte nos quatro cantos da comunidade, encerrando com show de artistas locais. Samuca recorreu ao amigo Adriano Londres, que se prontificou juntamente ao seu irmão Roberto e seu pai dr. Londres, a mobilizar a Clínica São Vicente e a White Martins para apoiar o tão sonhado evento. O Aliança Cultural marcou o reencontro do trio. Foi este evento que marcou a despedida de Samuca e de Jê do Projeto Ponto Br, onde aprenderam bastante e jamais esconderam a enorme gratidão pelos anos vividos lá; porém, eles precisavam conduzir seus próprios projetos de vida, da maneira como acreditavam, sem que se sentissem limitados. A saída de Binho da BEG TV deu início ao planejamento de novos tempos. O que fez o tempo senão articular para que, após exatos vinte anos da Promulgação da Constituição de 1988, marco histórico das transformações sociais no Brasil inteiro, fosse fundado o Centro Cultural A História Que Eu Conto.

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Melk, Guri (in memoriam), Samuca, Jê, Binho, Cety e dona Luzia (avó de Binho e Jê).

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Ninho da FĂŞnix 32


O direito à cidade manifesta-se como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitá-la e a morar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implícitos no direito à cidade." Henri Lefebvre (2001)


A História Que Eu Conto

Planejamento O Centro Cultural A História Que Eu Conto levou dois anos para ganhar forma, com exaustivas reuniões de planejamento, busca de informações e muita, mais muita persistência. Tudo o que os Três Loucos tinham era um ao outro. Quanto ao lugar? Sem conforto algum, mas sem coitadismos, sentados na escada, na casa um do outro, reuniam-se todos os dias e discutiam seus planos, nada faraônicos, porém, aos olhos daqueles que assim como eles cresceram em um lugar que nada tinha, não fica difícil compreender a razão do apelido que ganharam. Na casa da Dona Maria foram realizados os três primeiros encontros; dali em diante, o escritório itinerante alimentava o sonho e os estimulava a seguir em frente. Era uma tempestade de ideias: Produtora! Cooperativa! Empresa! ONG! Oscip! Tanto entusiasmo não era à toa, jamais duvidaram do que fariam. Sabiam o que queriam, o que precisavam e o que empreenderiam para concretizar suas ideias, e o primeiro passo era organizá-las! Binho sugeriu uma capacitação no Sebrae na área de empreendedorismo, Empretec, acreditando que lá conseguiriam transformar seus sonhos em metas. Samuca conversou com Adriano Londres, que providenciou duas bolsas de 100%, e ambos, Binho e Samuca, fizeram o curso, enquanto Jê tomava outras providências relevantes. Foram nove dias de seminário intensivo com empresários de vários setores, em que os únicos peixes fora d'água eram Samuca e Binho. Aliando a teoria à prática, logo o aprendizado estava sendo aplicado. Paralelamente outras capacitações foram sendo realizadas. Uma vez decidido o caminho 34


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que queriam seguir, não se arriscariam em compartilhar com qualquer pessoa os planos desenvolvidos para realizarem seus sonhos e os grandes feitos que visavam para o futuro. Após optarem pela estrutura jurídica de organização não governamental (ONG), precisavam definir a diretoria e elaborar o estatuto social. Para isso recorreram aos membros do Ciespi, sediado na Gávea, pois não havia distância que os separasse das informações — que estavam sempre a quilômetros geograficamente —, contudo o empenho encurtava e superava qualquer dificuldade em potencial. A superação foi o critério que cada um dos três utilizou para argumentar e indicar cada pessoa. Teoricamente, a história de superação serviria como referência para aquelas que seriam atendidas futuramente. Ao gerar identificação, o sentimento de pertencimento e amor ao trabalho desempenhado seria consequência, resultando em uma história coletiva. Na prática superaram as expectativas. Naquela época, já havia uma equipe, cada um com sua peculiaridade, e quase ninguém com experiência em projetos, e todos com um projeto de vida em comum: tornar o lugar em que moravam um lugar melhor. Impossível? De acordo com os planos, tinham um grande desafio pela frente: o lugar! Onde abrigariam todos aqueles sonhos? Mas não era qualquer lugar, tinha de ser um ponto estratégico, de fácil acesso e espaçoso. Tinham que ser chamados de loucos mesmo, pois mal tinham onde dormir, sem emprego, sem dinheiro, casamentos em crise, (o do Samuca ficou no caminho), o Jê com o Juan, seu filho recém-nascido, todos três passaram muitas privações. Isso os fortalecia cada vez mais, não que tivessem que provar aos outros, não, isso seria perda de tempo. O que movia a coragem deste trio era a certeza de que daria certo, por isso tinham foco, e nada os desviava.

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A equipe foi formada em 2008, mas um ano antes provaram a eles mesmos o que eram capazes de fazer. Foi um ano marcante porque fizeram um curta-metragem chamado "A História Que Eu Conto – Melk". Contaram a história do adolescente, primo de Jê e Binho, que estava na boca de fumo; ele tinha 16 anos, e seu irmão mais velho havia morrido nas mãos da polícia, mesmo depois de se render. Ele se sentia culpado, pois Lobo, como era conhecido, havia saído da vida do crime e só regressou porque somente assim teria “poder” para destituir o irmão mais novo. O pai de Melk procurou Samuca e implorou ajuda. Foram juntos ao “chefe”, que não hesitou em atender à reivindicação de Samuca, que lhe fez um pedido, para que ele mesmo, o “chefe”, desse a ordem. Feito isso, ele ainda explicou ao pai do Melk que não chamava ninguém para entrar para o crime; ao contrário, mandava que vendessem alho, mas a molecada só quer saber da vida do crime, que não tem nada de fácil. Enfim, aquela vida não se perderia como a de Lobo, seu enteado, desabafou aliviado Ilberto, o pai. Jê e Binho haviam feito um curso de produção audiovisual no Instituto Terrazul, na Lagoa das Gigoias, na Barra da Tijuca. Com os conhecimentos adquiridos, eles consideraram a proposta de Samuca para registrar todo o processo de mudança de Melk, que queria ser cantor e já tinha algumas composições, o ponto forte do Samuca. Este lamentava não ter nenhum registro do trabalho que fez com Jê que, de menino inseguro e com baixa autoestima, tornara-se uma jovem liderança incrível. Binho sugeriu convidarem o coordenador do Instituto Terrazul, Marcos Lacerda, e sua equipe para uma possível parceria na produção de um documentário, com o argumento de que seria o resultado do curso, unindo o aprendizado e a prática. Ao apresentar a proposta e a justificativa, Jê percebeu o entusiasmo de Marcos e sua equipe, que de imediato aceitaram. Houve vários encontros, em que discutiram ro36


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teiro, ideias e mais ideias, em que Melk era o centro das atenções. Com as câmeras mini DVD e todos os custos de produção pagos pelo Instituto, colocaram o plano na rua, uma câmera na mão e muita tecnologia social e criatividade na cabeça. Meses depois o curta estava pronto, o que provocou um choro inevitável quando foi visto o resultado de tanto sacrifício. Certo dia, Samuca, Jê e Binho levaram suas esposas e Melk ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro para a entrega do Prêmio Orilaxé, do Afro Reggae. Na entrada, da qual não passaram por problema de superlotação, havia um banner enorme de um menino. Binho apontou para o banner e disse no ouvido do Melk: em breve será você. Quinze dias depois, Binho recebeu um telefonema do Instituto Terrazul; o documentário A História Que Eu Conto – Melk havia inspirado a instituição a promover uma mostra de curtas (Mostre a sua Comunidade), e estavam convidando Melk para ser uma das pessoas que entregariam os prêmios. No dia do evento, no Centro Cultural da Light, Rio de Janeiro, lá estava o banner, na entrada, com a cara de moleque do Melk. Foi inevitável perguntar: “E aí, moleque, o que eu te falei? De quem é aquela cara feia no banner?”, disse Binho, emocionado. O documentário abriu a tarde de premiações e foi ovacionado. Atualmente Melk é casado com a mulher que sonhava em conquistar enquanto estava no crime e não dava a mínima para ele. É padeiro e aproveitou a chance que teve. Esta história aconteceu e serviu para motivar mais ainda os Três Loucos, que, mesmo sem espaço, sem recursos, somente com ideias e força de vontade, fizeram aquilo tudo. Imaginem quando tivessem a própria sede.

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Antiga Escola Municipal AustregĂŠsilo de Athayde, sede do CCHC.

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Melk, protagonista do documentário A História Que Eu Conto – Melk.

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Primeiras articulações O ano de 2007 foi marcado, de forma negativa, por uma operação policial que ficou mundialmente famosa pela cena cinematográfica do helicóptero águia da polícia executando jovens que rolaram morro abaixo. Esta operação provocou o fechamento da Escola Municipal Austregésilo de Athayde, que ficava na Vacaria, rua em que os Três Loucos nasceram. Meses de abandono deram ao lugar a cara de um elefante branco e ele passou a ser alvo de disputa para sediar projetos políticos. Enquanto isso, já em 2008, os Três Loucos, que ficaram no ostracismo, propositalmente, deram início a uma articulação silenciosa, em busca de informações sobre como adquirir aquele espaço. Samuca tinha contato com Ana Maria Maia, irmã do então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Cesar Maia. Orientados por ela, os Três Loucos iniciaram uma saga por assinaturas, ao todo 840, em três noites e dois dias. Embora a comunidade não tivesse a mínima ideia do que seria um centro cultural, bastava argumentar que era o lugar onde tudo o que viam na televisão em outras comunidades não havia ali, o que garantia a assinatura. Neste intervalo de tempo, em meio à disputa acirrada com as demais lideranças que tinham interesse no espaço, já eram de conhecimento da comunidade, em todas as esferas, os planos de torná-lo um centro cultural. Ocorreu, certo dia, uma invasão para saquear o prédio escolar, do qual 40


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foram subtraídos ventiladores e utensílios de cozinha, entre outros artigos de valor, que foram vendidos por preços irrisórios, em grande parte por usuários de drogas. Num domingo chuvoso, em uma noite fria, alguém foi à casa de Jê. Pelo tom da voz, antes de atender, ele já sabia que não se tratava de notícia boa; era a voz de Melk, anunciando que alguns dos saqueadores estavam em poder de traficantes, que repudiavam tal atitude. Jê foi à casa de Samuca, e juntos foram ao local em que estavam dominados os saqueadores, todos crias do lugar e sabedores do erro que haviam cometido. O telefone de Binho tocou e, assim, formou-se o trio de mediadores. O passado de Samuca na vida do crime, somado ao trabalho desenvolvido pelo trio, resultava em extremo respeito por parte dos moradores, incluindo os traficantes, que viam nas ações dos três uma saída possível, mais que isso, uma esperança para que seus filhos ou parentes não seguissem o mesmo caminho. Quem se apoderava dos “defuntos em potencial” era Léo Vascão, um dos bandidos mais temidos da história da Vila Aliança, conhecido por matar a sangue-frio, a quem os próprios traficantes temiam. Na adolescência ele estudou com Binho e foi seu companheiro de pichação. Posteriormente, deram rumos bastante distintos para suas vidas. Samuca o abordou, pois queria saber o panorama da situação, eram oito cabeças, entre elas um primo de terceiro grau de Binho e Jê; família grande é isso: há grandes chances de estar em 60% dos problemas que acontecem. Léo Vascão perguntou se havia algum parente de um dos três ali, e Samuca respondeu positivamente, mas sua experiência fez ver que mereciam uma punição, e que seria complicado livrar apenas um em vez de todos que estavam sob sua custódia. Nessa época, foi necessária muita frieza para fazer a negociação, havia muita pressão, com rua cheia de parentes e 41


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amigos na expectativa, temendo pelo pior. De repente, ouviram-se tiros! Um de cada vez até serem disparados a quantidade equivalente ao número de jovens. À beira do valão, no escuro e sem visibilidade alguma, a cinquenta metros de onde estavam, Samuca, Jê e Binho somente abaixaram a cabeça em sinal de frustração e impotência; acreditavam ser o fim. Atrás deles, o irmão de um dos saqueadores quase desmaiou e foi amparado por amigos. Chegou um grupo de pastores. Durante longo tempo foi assim, nas situações de conflito ou chamavam os Três Loucos ou algum pastor. Naquele momento específico, chamaram todos. O pastor chegou depois dos tiros, abordou Léo Vascão e, tão logo se dirigiu à esquina em que se concentravam os amigos e familiares, falou que não havia morrido ninguém, os tiros foram para “botar terror” depois de mandá-los se jogar no valão e correrem. Depois da tensão, Léo Vascão apareceu rindo e chamou Binho: “Enganei geral, né? Vocês pensaram que eu tinha matado todo mundo!” Ele reforçou o risco de um fato como esse acontecer na favela e os responsáveis não serem punidos, pois ele é que poderia ser punido por seu superior, que não estava presente na área; na ocasião Léo Vascão era o chefe em exercício. Passado o susto, os Três Loucos se reuniram para definir as estratégias de recuperação dos pertences roubados. Sem citar nomes, deram dicas de onde deveriam devolver tudo o que estivesse em poder deles. Apareceu de pano de prato a ventilador, era muita coisa. Ao saírem do local, foram fazer contatos com funcionários da escola e, no dia seguinte, junto à direção e à Coordenação Regional de Educação, realizaram a contagem do que foi roubado e do que foi recuperado: cerca de 70% dos itens foram recuperados. Binho constantemente se correspondia com o prefeito. Este delegou ao então secretário Municipal de Cultura, Ricardo 42


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Macieira, que ocupou esta função durante 16 anos, a tarefa de ouvir o que os Três Loucos tinham a dizer. Outra articulação foi feita com a subsecretária Municipal de Educação, Marisa Lomba: as duas possibilidades de adquirirem aquele espaço ocioso para sediar o Centro Cultural A História Que Eu Conto. As reuniões foram marcadas em dois dias consecutivos, mas naquela semana havia ocorrido um fato que alteraria toda a história. Na FEUC, faculdade onde estudava, mais precisamente na disciplina de Sociologia Urbana, a professora Rosilaine falava sobre o Estatuto da Cidade. Após pedir explicações detalhadas sobre aquele instrumento, a vontade de Binho era voar e chegar o mais rápido possível até Jê e Samuca e apresentar o que havia acabado de aprender. Tempos antes, Samuca o conteve da ansiedade de invadir o espaço. Agora era a oportunidade de ocupar e dar uma função social ao espaço ocioso. Ainda teriam as reuniões, porém, acertaram que, se o resultado não fosse favorável, já teriam uma data marcada para a ocupação. Ouvimos os lamentos do secretário Municipal de Cultura, dizendo que reconhecia o fato de que nos 16 anos em que estivera à frente da SMC não fizera nenhum investimento em cultura no Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, e que, àquela altura de 2008, final de maio, às vésperas das eleições municipais, último mandato de Cesar Maia, se via de mãos atadas. A única providência foi escrever uma carta de reconhecimento da importância do Centro Cultural A História Que Eu Conto. Registrados os dois momentos, com a subsecretária Marisa Lomba não foi nada diferente. Com visão de águia, solicitaram a autorização para fazerem uma foto histórica, que iria para o primeiro livro.

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Reuni達o na Secretaria Municipal de Cultura, em 2008.

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Reunião na Secretaria Municipal de Educação, em 2008.

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Seguindo o planejamento, a segunda-feira, 23 de junho de 2008, seria o Dia D. Às sete horas de uma manhã chuvosa, ninguém na rua, Jê de um lado, Samuca vindo de outro, Binho de outro, de três pontos diferentes. Parecia cena de filme: armados de baldes, mangueiras, vassouras e rodo, sem esquecer a serra para quebrar definitivamente o cadeado que trancava a comunidade nas correntes do abandono. Alguns minutos de observação... Lágrimas nos olhos. Eram dez salas, cinco banheiros, secretaria, cozinha, refeitório, almoxarifado, pátio e um espaço para lazer. Em três módulos de madeira, uma estrutura-piloto construída em 2003, no terreno onde funcionava o campo de futebol do Sr. Aroldo, pai de Jê e Binho. Era uma verdadeira viagem no tempo por todas as razões que os trouxeram e motivaram a planejar tudo aquilo. O futuro tão esperado chegou e somente naquele momento se deram conta do grande desafio que era colocar em prática tudo o que haviam planejado. Chegou a hora de agir, pois havia muita sujeira para limpar. Enquanto Samuca e Jê articulavam com Carlinhos do Alho e o chaveiro para abrir as portas, Binho conseguia duas Kombis para a tão sonhada mudança da Biblioteca Comunitária Quilombo dos Poetas, que funcionava há dez anos na casa em que morava, para a sede do Centro Cultural A História Que Eu Conto.

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Logo da Biblioteca Quilombo dos Poetas.

Mudanรงa da Biblioteca Quilombo dos Poetas da casa do seu fundador para a sede do CCHC.

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Os primeiros registros foram feitos pelas lentes de Waldemir Corrêa, o Mimi, do Centro Cultural Caixa de Surpresa. Ele e sua equipe haviam ocupado o prédio que sediava o Tribunal Regional Eleitoral. Chegou junto com Marcelo Princeswal e Alexandre Bárbara, ambos do Ciespi, que ajudaram desde o início com ricas orientações institucionais. Mesmo à revelia, o chaveiro abriu todas as portas. Mas ali estavam pessoas que faziam parte da diretoria; além delas, adolescentes e crianças que também colaboravam.

Binho, Marcelo Princeswal, Alexandre Bárbara, Samuca, Jê e Bruno (in memoriam) no dia da ocupação.

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Ninguém percebia, mas os Três Loucos tinham ideia do que estava por vir, a repressão poderia ser forte por parte dos órgãos do governo. Um e-mail foi enviado à Secretaria Municipal de Educação e logo repudiado pela subsecretária, que somente depois compreendeu os argumentos. No dia seguinte à ocupação, lá estava o representante da Rio Urbe, Dr. José Milton, que foi cumprir a ordem de desocupação e desmonte dos módulos de madeira. Logo ouviu que dali não sairia nada antes de uma reunião com representantes da Secretaria e da própria Rio Urbe. Uma vez atendida a exigência, chegam no dia seguinte os “Josés”, que passariam, sem saber, a fazer parte da história do Centro Cultural A História Que Eu Conto — José Milton e José Mauro, este segundo, já conhecido, era coordenador do Departamento de Infraestrutura da Secretaria Municipal de Educação. Ele ouviu atentamente os Três Loucos e deu seu parecer sobre o posicionamento da Secretaria. O argumento era de que seria injusta a remoção dos módulos de madeira para outra comunidade. No clima tenso, José Mauro propôs, para acalmar os ânimos, um caminho legal para a aquisição daquele espaço — a cessão de uso.

“Cessão de uso é o ato unilateral de transferência gratuita de posse de um bem público de uma entidade ou órgão, para outro, a fim de que o cessionário o utilize nas condições estabelecidas no termo respectivo, por tempo certo ou indeterminado. É ato de colaboração entre repartições públicas em que aquela que tem bens desnecessários aos seus serviços cede o uso a outra que o está precisando.”

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Venha participar da construção do Centro Cultural A História Que Eu Conto: esta era a chamada que estampava a faixa colocada no alambrado, tão logo as pessoas foram chegando, ávidas para darem suas contribuições, o que estivesse ao alcance. Foi assim que chegou Lula, líder comunitário do Conjunto Taquaral e perguntou se havia algum problema de levar, sem compromisso, o então candidato a vereador Jorge Felippe e ouviu o seguinte: "desde que venha como cidadão, sem querer fazer politicagem, tudo bem", respondeu Samuca. Era noite, os corredores mal-iluminados e a sala com cadeiras improvisadas foi o local onde realizaram a primeira reunião política. O candidato a parlamentar já possuía larga experiência e logo percebeu que aqueles três caras tinham um propósito, um foco diferenciado. Após ouvir a visão sobre os políticos, sobretudo quanto às suas atuações na região, Jorge Felippe foi categórico ao reconhecer a motivação dos idealizadores daquela instituição e disse que não queria nada em troca, apenas ajudaria no que fosse possível, pondo sua contadora à disposição para orientar na institucionalização. Com a ajuda dela o Centro Cultural A História Que Eu Conto passou a existir como instituição, com Estatuto Social, CNPJ e tudo a que tinha direito, dando início a uma relação incrível com Dona Teresa Castro, que se recusou a receber pelos serviços após tomar conhecimento da história dos protagonistas daquele feito. Jorge Felippe foi eleito vereador e assumiu também a cadeira de presidente da Câmara dos Vereadores, sempre se dispondo a contribuir, muito embora aquela tenha sido a única vez em que visitou a sede da instituição que ajudara a formalizar.

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A convocat贸ria.

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Primeiras atividades É evidente que as primeiras atividades em registro foram a inesquecível e cinematográfica ocupação, consciente, organizada e coletiva. As cenas dos baldes e do cadeado sendo cerrado jamais sairão da lembrança. Aquelas pessoas limpando os corredores e as salas como se fossem suas casas acreditavam que aquela seria a casa da comunidade, e passaria realmente a ser. Jê, que atuava como instrutor de graffiti no antigo projeto de que fazia parte, juntou as latas velhas de spray e o resto de tinta de seus trampos como grafiteiro! Ali estava o material da oficina que daria para a molecada. As doações de materiais didáticos das escolas da região foram suficientes para dar início aos trabalhos. Binho bem que tentou dar continuidade como instrutor de teatro, mas não passou de um mês, pois, como foi designado por Samuca e Jê para ser o presidente da instituição, tinha muito o que aprender e praticar na nova função, com tamanha responsabilidade, que era impossível conciliar ambas as atividades, por mais boa vontade que tivesse. Atendendo ao chamado da faixa, Emiluce, uma jovem moradora de Senador Camará, se prontificou a oferecer sua experiência como professora de Reforço Escolar; Robson foi convidado para ser instrutor de kick boxing; Wilson, cunhado de Binho e Jê, mesmo sendo funcionário de um supermercado, se dispôs a ensinar capoeira no horário em que tinha disponível. 52


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A saudosa Dona Bia, que foi presidente da Associação de Moradores do Bairro Araújo, sempre contribuía enviando seus garis comunitários para fazerem mensalmente a limpeza do espaço. Nami, que também era gestor de garis comunitários, reforçava sempre que necessário, aliás, foi ele quem forneceu as primeiras cadeiras universitárias para que os alunos pudessem realizar suas atividades, complementadas após a visita da professora Regina Célia, da Feuc, que foi a única professora do Binho a aceitar seu convite naquele momento. Junto à faculdade, ela conseguiu novas cadeiras que ajudaram bastante. No final de 2008, o Centro Cultural A História Que Eu Conto precisava chegar com mais efetividade ao seu público beneficiário; para isso foi adotada como estratégia de atração da molecada a Colônia de Férias Amigoteca, a IV edição realizada desde que Binho iniciou em 2003, porém, a primeira no novo espaço. Foram beneficiadas duzentas crianças e adolescentes durante duas semanas; parcerias foram feitas para dar conta da estrutura de entretenimento — Joh Rei Center, Guara Jovem, Pousada do Sossego, professores de Educação Física voluntários, Supermarket, Charlotte Modas. Estava pronta a festa, brindes, lanches e muito entretenimento, além de Educação Ambiental, tudo no mesmo pacote!

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Robson, professor de kick boxing, em aula.

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Wilson, professor de capoeira, em aula.


Equipe CCHC e convidados.

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Primeiras parcerias Desde o cafezinho e a garrafa d’água da vizinha de frente às maiores instituições públicas e privadas do Brasil, parceria que se preze tem de beneficiar ambos os lados. Mesmo quando tudo era apenas projeto, as ideias fervilhavam com as estratégias de ações e impactos em escala glocal, que partiram do território e ratificaram junto aos vizinhos (residenciais e comerciais), esclarecendo a proposta para o desenvolvimento local do Complexo de Vila Aliança e Senador Camará. No outro extremo, as instituições com larga experiência e atuação poderiam contribuir com a ponte entre o global e o local, uma vez que a visão é tornar a metodologia do CCHC uma referência para instituições de dentro e fora do Brasil que tenham como foco a cultura para o desenvolvimento e o empreendedorismo cultural. Cada um dos Três Loucos já havia experimentado relações anteriores que sufragariam suas opiniões a respeito de quem queriam por perto; afinal, não colocariam tudo a perder associando o nome do CCHC a qualquer instituição ou pessoa que oferecesse risco em qualquer tempo que fosse. O caminho era trilhado a passos firmes e milimetricamente pensado, pondo em prática o que Samuca e Binho aprenderam no Sebrae, com o Empretec, sobre avaliação de riscos. Mapear e identificar o perfil dos parceiros em potencial foi uma tarefa árdua, não menos do que conquistar em tão pouco tempo de existência a confiança deles, afinal, sem histórico, o recém-inaugurado centro cultural não tinha 56


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nada que comprovasse seus antecedentes além do seu planejamento e comportamento empreendedor, o que fez toda a diferença na construção deste relacionamento com parceiros e investidores. No empreendorismo chama-se busca de oportunidades e persuasão. Partindo do pleno conhecimento das metas e tendo segurança quanto ao ponto de partida e ao ponto aonde se quer chegar, com quem chegar, torna-se relevante para criar a própria networking. Por quê? Para quê? Com quem? Aonde? E quando? Perguntas feitas entre si e para si; a cada resposta encontrada e argumentada, um passo à frente. Retaguarda coberta a partir da potencialidade de cada um, era definido quem teria propriedade para falar com o parceiro em potencial. O cafezinho e a água gelada foram fáceis; Lídia Cristina, vizinha de frente, prima de Jê e Binho, também passou a exercer a função de olheira; assim que alguém se atrevia a pular no CCHC, ela fazia uma ligação e em menos de dez minutos um dos loucos surgia para o flagrante. Na sequência, sem móveis, sem nada, Nami, líder comunitário que representava o antigo Centro Social Vila Aliança, ao fechar as portas, doou suas carteiras universitárias. De bem longe daqui, mais precisamente de Xerém, Nei, amigo da Net, uma das diretoras do CCHC, fez uma grande doação de móveis, livros etc. A quase totalidade das lideranças locais nem sequer se aproximou daquela iniciativa dos Três Loucos, pois ninguém ousaria correr tal risco, que, afinal, tinha tudo para dar errado. Houve até gente da própria diretoria que ficou apenas de espectador. Deu certo! Não houve presença de polícia, ordem de despejo, tampouco confrontos a respeito do lugar ocupado. O que ocorreu foi muito disse me disse: ora a sede do CCHC daria lugar a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), uma UPA 24 horas (Unidade de Pronto Atendimento), es57


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cola, creche e até batalhão foi cogitado pelos burburinhos de quem torcia contra. Compreensível, pois pairava no ar a pergunta: Para que serve um centro cultural? Ricardo Ananias, da Associação Pró-Melhoramentos de Vila Aliança, já era parceiro tempos antes e ofereceu as dependências da instituição quando os Três Loucos ainda se reuniam nas calçadas da vida. Esteve junto principalmente nos momentos críticos e também fez declarações para darem credibilidade ao CCHC. No comércio local, foram parceiros a padaria West Pão, as lojas de roupas Charlotte Modas, o Supermarket de Senador Camará, o Guara Jovem e o amigo Choc Bar, que fazia os fretes das doações recebidas. A Rádio Inovasom FM, Rádio Club São Francisco, Life FM e a BEG TV, sempre colaboraram fazendo a divulgação. Focando na motivação da equipe, a parceria com os colégios Asa e Oliveira Galeno concederam bolsas de 100% com a indicação do CCHC, onde os filhos de pessoas da equipe, ainda que fossem voluntárias, tinham o direito de receber uma educação de melhor qualidade. Uma das crianças beneficiadas já havia sofrido maus-tratos da professora da rede pública aos seis anos de idade, o que o levou a ter pavor de ir à escola. Ao iniciar no colégio particular, passou a ter um excelente aproveitamento, o que não tem preço! Com o Centro Comunitário de Defesa da Cidadania, pessoas eram orientadas a tirar seus documentos; mesmo nos casos em que era cobrada taxa, o beneficiário recebia isenção.

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Após circular nessas instituições e fortalecer os vínculos comunitários, chegou a vez de ampliar a rede na região. A Associação Comercial e Empresarial da Região de Bangu (Acerb) foi procurada com o objetivo de sensibilizar e mobilizar os empreendedores da região, a começar por Bangu e logo se estender para toda a Zona Oeste. Fábio Quadros, seu diretor executivo, era a pessoa de contato para esta articulação.


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Foi em uma apresentação à diretoria, a convite de Fábio Quadros, que a cultura passou a ser pauta nas reuniões daquela instituição que, desde 14 de fevereiro de 1968, atua em Bangu. Culturalmente a Zona Oeste ainda caminha a passos lentos no que diz respeito à responsabilidade social por parte das empresas, e o CCHC está avançando para quebrar estes paradigmas, a começar com a parceria com as associações comerciais e industriais da região. A conversa surtiu efeito: Toninho, da Eletrônica Líder, tornou-se um grande colaborador, assim como Claudionísio, do Universo dos Carros, virou amigo. Ambos se aliaram a Fábio Quadros para fortalecer o apoio às iniciativas do CCHC. Aliás, a Acerb criou uma forma de condecorar empresários, artistas e personalidades que atuam na região de Bangu e adjacências. Em 2008, foi criada a Cruz do Mérito Empresarial e a solenidade aconteceu logo após a fundação do CCHC. Binho foi convidado para este evento, que foi realizado no Centro Esportivo Miécimo da Silva, em Campo Grande, durante a Oeste Export. Na ocasião, Binho determinou que na primeira oportunidade realizaria um evento parecido. Lá, ele pôde reencontrar um de seus incentivadores na área da literatura, o Sr. Murilo, que em cerimônia de certificação do 4º Concurso de Poesia do Grêmio Literário José Mauro Vasconcelos, em 1998, disse ao menino Binho: “Não desista, siga este caminho que você vai muito longe.” Reencontrá-lo e agradecer pessoalmente foi uma dupla honra. Dois anos se passaram. Depois de cumpridas todas as tarefas do CCHC, em uma tarde de conversa com Michel Robin, Binho expressou a vontade de realizar uma homenagem às pessoas que ajudaram o CCHC desde o começo. Foi então que Michel explanou seus sentimentos ao falar de seu pertencimento ao lugar — à Vila Aliança — e àquela história que vivia, ainda que fosse nas suas longas viagens a milhas de distância, quando realiza suas palestras e ministra cur59


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sos na Europa e em países da América Latina. Ele disse: “Meu sentimento quando estou nestes lugares e falo sobre o CCHC é de que sou uma espécie de embaixador cultural da Vila Aliança.” “É isso”, pensou Binho, “e se nós fizéssemos uma medalha como a da Acerb, mas homenageando os embaixadores culturais?” Feito! Em dezembro de 2010 as pessoas, físicas e jurídicas, que apoiaram o CCHC e promoviam suas ações, foram lembradas e homenageadas. No final de 2011, em mais uma edição da Cruz do Mérito Empresarial, Samuca foi um dos homenageados, para a felicidade não somente do CCHC, como também do Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, por ter um representante homenageado pela primeira vez. Em seguida, veio o convite para que Binho compusesse a diretoria da Acerb. Assim, a cultura estava sendo representada, o que possibilitava a aproximação com os grupos e agentes culturais das demais comunidades da região, o que seria um grande avanço! Mais do que apenas romper com o discurso, o CCHC mostrou na prática que o conceito de cidade partida estava mais na cabeça das pessoas que fomentavam as diferenças sociais como barreiras para uma relação de parceria. Portanto, o discurso frequente de que na Zona Sul tem isso e aquilo e na Zona Oeste não tem nada, que o lugar X é para playboy e o lugar Y para favelado, que negro entra aqui e ali não, enfim, tudo o que alimentou as separações e desestimulou as parcerias não foi acatado pelos Três Loucos, que não se ativeram a estas ideias e foram bem-sucedidos. Por isso o CCHC vai ganhando espaço na cena cultural, trabalhando a cultura como instrumento de transformação e desenvolvimento humano. Do Instituto Terrazul, Marcos Lacerda, seu coordenador, contribuiu com aulas de Gestão de Projetos e Prestação de Contas, além de doar todo o acervo de sua biblioteca para o CCHC. Os conhecimentos adquiridos foram fundamentais para elaborar seus projetos com linguagem técnica de acordo com as exigências, sobretudo da Petrobras. 60


cap.02 O Ninho da Fênix

Deixo para este capítulo a resposta a uma pergunta perturbadora, porém compreensível, sobre a posição do tráfico diante das ações do CCHC. Samuca sempre falou com propriedade, por ter vivido a criminalidade e não o tráfico, por não ter deixado furo quando viveu o crime, a reclusão e, ao sair, voltar para o lugar de onde veio somente para viver a longa experiência que o tornaria uma das grandes e poucas referências positivas de resgate de cidadania, reinclusão social e não a reclusão que fora imposta a ele desde a infância. Esta não é a história de Samuel Muniz de Araújo, o moleque sinistro conhecido como Samuca. Há centenas, talvez milhares deles, que estão por aí à espera de uma conversa, uma oportunidade, uma chance a que possam se apegar, em vez de apontamentos e condenações preconcebidas em parâmetros socioculturais infundados. Fato é que o tráfico fez várias ofertas no começo do CCHC e faz até os dias atuais. Sempre há o reconhecimento e o agradecimento por um trabalho como este, ao qual seus filhos e os jovens da comunidade poderão ter acesso, o que não lhes foi permitido. Eles perguntam como podem ajudar. Samuca, com todo o seu talento e conhecimento criminológico, aceita: “Sim, claro que vocês podem nos ajudar, não usando drogas na frente do CCHC, não desfilando armados nos eventos que fazemos e não incomodando nossos visitantes e pessoas que trabalham aqui. No mais, a hora que quiserem sair desta vida, assim como eu, estaremos aqui de braços abertos.” Samuca jamais se omitiu em falar isso em entrevistas ou até mesmo com autoridades, para que fique clara sua relação com o que estiver vivendo na criminalidade. Independentemente de facção ou território, ele é uma referência, que não precisa de conivência, mas a convivência torna-se inevitável quando se trata de uma missão para a qual fora escolhido.

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A História Que Eu Conto

Construção coletiva e suas controvérsias Facilidade é uma palavra que os membros do Centro Cultural A História Que Eu Conto desconhecem, não bastassem os desafios esperados. Chegar a um quadro de equipe efetiva sem recursos para mantê-la e, além disso, filtrar as pessoas que se candidatavam a voluntário com segundas e terceiras intenções, somadas àquelas que não correspondiam às expectativas dos gestores, os quais pautavam a gestão sob a égide da construção coletiva, não deu certo. Demorou muito para constatarmos que, no fundo mesmo, o que as pessoas querem é ser subordinadas e ganhar um mínimo que seja de recurso, ainda que irrisório. Grande controvérsia que confrontava com a proposta idealizada pelos Três Loucos, visto que acreditavam que as pessoas deviam ser protagonistas dotadas de iniciativas para buscarem realizar seus sonhos, como eles fizeram. Os voluntários eram motivados por algo que acreditavam: mudaria o lugar onde moravam, e de alguma forma queriam fazer parte daquela construção, fosse oferecendo o cafezinho e a água gelada, como era o caso de Lídia, vizinha de frente, fosse o caso de Luiz Fernando Sarmento e de Gilberto Fugimoto, da coordenação de Assessoria Comunitária 62


cap.02 O Ninho da Fênix

do Sesc-Rio, que já acompanhavam os planos de Samuca desde 2005-2006. Estiveram presentes ao evento Aliança Cultural e chegaram com suas experiências de trabalho em Redes Comunitárias para compartilhar aquele momento oportuno. A questão era empoderar aquelas pessoas que historicamente foram educadas para servir a uma estrutura socioeconômica imposta que os impedisse de se livrar das mazelas da subserviência e utilizar suas capacidades produtivas para serem empreendedores culturais a partir dos seus próprios conhecimentos empíricos. Segundo Freire, “os oprimidos, imersos na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de assumi-la” (p. 19). Acreditava-se, contudo, que investir na formação dessas pessoas a médio e longo prazo seria instrumentalizar cidadãos e cidadãs para um ideal de sociedade em que as camadas populares passariam a ter seus intelectuais, seus produtores culturais legitimados para responderem, por escrito ou por discurso, à realidade geralmente contada em teses, estudos e pesquisas de muitos que se apropriam da riqueza do saber popular para ascender, seja acadêmica, política ou profissionalmente, haja vista que não faltam pautas para estudo dentro das comunidades populares, cada qual com suas peculiaridades. Mas não seria uma tarefa fácil. Como foi dito, os gestores do Centro Cultural A História Que Eu Conto não têm uma história sequer para contar de uma faceta que não tenha tido o mínimo de dificuldade. Isso provava o seguinte: os coitados serão sempre vistos como pobres coitados. Não é qualquer pessoa que tem a capacidade de olhar nos olhos de autoridades, pessoas de camadas sociais superiores e ser respeitada ao entrar, se pronunciar com propriedade e, ao sair, ser reconhecida e muitas vezes ovacionada. Quantas pessoas com este perfil se conhece? 63


A História Que Eu Conto

Era isso que eles, os Três Loucos, idealizaram desde o início. Assim como eles, mais loucos comunidade adentro, comunidade afora, um verdadeiro colapso na intelectualidade, mudanças de paradigmas. Estas pessoas devem ser livres para multiplicar este “antídoto antidominação”. Daí por diante, as massas de manobras vão invertendo seus papéis e tornando-se condutoras de suas trajetórias, livres dos dominantes de todas as classes e de todos os lados. Talvez uma das maiores loucuras tenha sido acreditar que o ser humano que se reconhece cultural e historicamente na sociedade em que vive tem maior probabilidade de se perceber como um instrumento de mudança social, a curto, médio e longo prazo.

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Gabriela AraĂşjo fazendo arte.


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Redes comunitรกrias 66


“Identificamos que a autonomia é a primeira motivação para a cooperação identificada pelos gestores de rede. E, especificamente na rede comunitária de Vila Aliança, algumas formas de aprendizado profissional contribuem para a elaboração de cenários de desenvolvimento, o que sugere que a tomada de consciência do impacto cooperativo deve ser uma atividade permanente, uma parte integrante do processo de trabalho, e não se limitar a procurar uma memória de efetividade a posteriori.” (2011) Camila do Espírito Santo


A História Que Eu Conto

A razão de o Complexo de Vila Aliança e Senador Camará não ter se desenvolvido a ponto de evitar a triste constatação dos baixos indicadores sociais não foi a falta de ativismo ou de boas lideranças. Uma região formada por remoções de favelas em épocas diferentes justificava, talvez, a falta de uma identidade peculiar. A maior carência dessa região era o diálogo, havia um enorme abismo entre as pessoas que faziam, realizavam, davam seu jeito — todos por um objetivo comum — para melhorar o lugar onde moram! As divergências superavam a oportunidade de cederem ao diálogo, com o tempo a mágoa evitou as possibilidades de uma determinada liderança ouvir a outra, e ouvir, neste caso, é dar ouvidos a quem fala, ainda que o fizesse com proposições ou críticas. Não, na realidade, era cada um no seu quadrado, literalmente. Qualquer ação do Centro Cultural A História Que Eu Conto seria em vão caso não contasse com a parceria das lideranças locais e dos moradores. Foi quando Luiz Fernando Sarmento e Gilberto Fugimoto, que desenvolviam a metodologia de Oferta e Procura nas Redes Comunitárias do Sesc-Rio, se propuseram, junto ao Samuca, a realizar esta experiência na sede do CCHC. Foram ao todo 12 meses, totalizando 12 encontros, onde pessoas de várias partes da região se encontravam, ávidas por falar, por ouvir e, acima de tudo, por perceberem que algo estava acontecendo para que perspectivas fizessem a população local aspirar por dias melhores. Com o tempo, a dupla do Sesc-Rio foi trazendo convidados externos. Logo veio Cunca Bocayúva, que trouxe seus conhecimentos e experiência de militância na Fase (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional) e na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Em seguida vieram Alex Vargas e Jean Engel do Instituto GPS; Rodrigo Fonseca, da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos); Camila Santo (Coppe/UFRJ); Carolina Miranda (Sesc-Rio) que trouxe lideranças comunitárias da Tijuca; Claudia Pfeiffer 68


cap.03 Redes comunitárias

(UFRJ); Armênio Graça; Marcos Alvito. Roberto Pontes (Cia. Organismo); Elizeu Ewald (cineasta); Clemente Viscaíno (ator); E foi com Michel Robin que o trabalho iniciado pela rede comunitária pôde evoluir para a Terapia Comunitária, curso para educadores sociais. Com todas as influências locais e externas, os fundadores do CCHC percebiam o grande desafio que tinham pela frente, mas sabiam que estavam no caminho certo, embora este fosse árduo. Diferentemente das redes sociais virtuais, que têm alcance globalizado instantâneo, as Redes Comunitárias possuem um propósito sine qua non, às relações concretamente sociais — uma é essencial à outra no sentido de complementaridade. Conforme Santos:

“As redes seriam incompreensíveis se apenas as enxergássemos a partir de suas manifestações locais ou regionais. Mas estas são também indispensáveis para entender como trabalham as redes na escala do mundo (...) Através das redes, podemos reconhecer, grosso modo, três tipos ou níveis de solidariedade, cujo reverso são outros tantos níveis de contradições. Esses níveis são o nível mundial, o nível dos territórios dos Estados e o nível local.” (p. 182)

A ideia mais que sedutora da Oferta e Procura provoca no participante uma profunda e propositiva reflexão antes de colocar-se objetivamente em dois minutos — parece cruel, mas o exercício de ser breve com as palavras permite que a ideia seja exposta com clareza, sendo possível aos demais participantes a mesma condição, oferecendo-lhes tempo o suficiente para o momento das articulações, feitas durante o café ou o coquetel. Mas como é complicado conversar de boca cheia, os articuladores do CCHC quase sempre terminam estes encontros, famintos, porém, com a missão cumprida, de ter cooptado um novo parceiro para abraçar as inovações propostas.

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Redes Comunitárias – SESC-Rio/CCHC.

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Como e onde nasceram as Redes Comunitárias

Segundo seu idealizador – Luiz Fernando Sarmento

Gilberto Fugimoto é um amigo que tem a qualidade da escuta ativa e integra pessoas. Eu vi, vivi. Convidei-me para trabalhar junto, ele acolheu. Juntos fotografamos realidades, refletimos, conversamos e conversamos, planejamos, atuamos. Conto esta história com o que meu coração se recorda. Meu coração, parte de mim, corre o risco de se enganar. Arrisco. Cheguei ao Sesc-Rio em outubro de 2000. Em plena ebulição, a instituição passava de cerca de 3.000 funcionários para pouco mais de 1.000. Insegurança em todos os lugares, reforçada pela ausência de comunicação interativa. E de relações de afeto entre direção e comandados. 71


A História Que Eu Conto

Uma amiga me deu a dica anunciando procura por profissional experiente em assistência de produção. Mandei currículo, fiz entrevistas, sete meses de atenção. Soube depois que foram mais de 400 candidatos para 3 vagas, e fui selecionado para coordenador técnico do Sesc-Ramos, próximo ao Complexo do Alemão. Mergulhei de cabeça, corpo e alma. Antes de tudo, com quem ali me relacionei diretamente, procurei olhar o seu olhar, compreendê-lo, estabelecer relações de confiança mútua, vincular-me. Eterna, terna experimentação. Naquela época eu não sabia, hoje sei, meu grande capital são os afetos. Sempre — ou quase? — em parceria com cada novo colega, atuei. Para eliminar burocracias, acompanhei, passo a passo, os andamentos de papéis. Refleti, planejei, cortei fluxos, reorganizei, criei métodos, contribuí diretamente para, em pouco tempo, com os mesmos recursos, quadruplicar a programação. Cento e cinquenta pessoas, em média — quase sempre as mesmas —, frequentavam diariamente o prédio. De novo, reflexão, conversas e conversas, planejamento, ação. Filipetas-convites distribuídas por jovens moradores da região de porta em porta. Carro de som, faixas, livretos com programação, estímulo ao boca a boca... Ao mesmo tempo, escutar os moradores, readaptar a programação. Rapidamente conseguimos o afluxo de 1.000, 1.200 pessoas diariamente. Durante o processo, errei, erramos repetidamente, ao oferecer ao público o que nós gostávamos, sem conversar com ele, sem saber respeitar seus próprios desejos. Depois, às vezes, queriam açúcar, não conheciam o mel. Foi oferecido e aceito; por fim, experimentaram mel. Lídia Nobre, assistente social, construiu relações afetivo-profissionais com o pessoal do Alemão. Juntos coordenamos um fórum de transformações sociais — o Redes Comunitárias. Trezentos interessados na plateia, uma mesa com representantes de outras instituições, responsáveis 72


cap.03 Redes comunitárias

por projetos grandes que deram certo. Trinta minutos, evasão, já somente cinquenta, sessenta pessoas como público. Intuitivamente, ao microfone pergunto a um dos espectadores: o que você veio procurar aqui? Gritaria, outros querem falar, uma fila de pessoas se forma em busca de serem escutados. Eu oriento: dois minutos para cada um, olha a fila. Pense, diga seu nome e responda rápido: O que você veio procurar? O que você veio oferecer? Sucesso, pronto, nasceu a metodologia das Redes Comunitárias. Reuniões mensais, em roda, dependendo da quantidade de presentes, muitos minutos — ou só um ou dois — para cada pessoa falar sobre o que oferecia, o que procurava. Depois, ou antes, escrevia num papel seu nome, instituição se houvesse, telefone, e-mail... e ofertas e procuras. Após a reunião, digitávamos estas informações e as distribuíamos por e-mail. No encontro seguinte já as tínhamos em xerox e cada um levava para casa as informações. Logo ao final de cada reunião, um café. E cada um procurava quem desejava, com a intenção de saber mais... e fazer parcerias. Fora da reunião outros contatos e parcerias se faziam e as redes se expandiam. Outras unidades do Sesc-Rio adotaram espontaneamente a metodologia — Tijuca, Madureira, São Gonçalo, Engenho de Dentro, Santa Luzia, Nova Iguaçu, Niterói, Teresópolis, Petrópolis, Barra Mansa, Três Rios, Friburgo... Hoje já não sei quem mais utiliza ou adaptou este jeito de incrementar parcerias. Lembro-me da Rede Comunitária de Cultura de Minas Gerais, da Rede Brasileira de Artistas de Rua, algo em Cuiabá, há pouco a turma de psicologia da Universidade de Passo Fundo...

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O voo da fĂŞnix


“A Libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se”. (1987) Paulo Freire


A História Que Eu Conto

Desde a ideia mais prematura, uma postura já era dada como irreversível pelos Três Loucos — a de não atrelar o tão sonhado projeto a nenhum "PPP" (Projeto Político Partidário). Esta seria a Pedagogia do Oprimido na prática! Não era, e por que seria, uma tarefa fácil. Afinal, a dependência da população às promessas e feitos políticos, provisórios, inconstantes e superficiais, mantinha em rédeas curtas pessoas estratégicas, além de limitar a visão de que poderiam ir além, e terem uma postura diferente, impondo respeito ao apresentar o plano de caráter coletivo para aquele determinado representante eleito pelo povo, independente de seu partido. A história não favorecia esta linha de atuação, a cooptação de pessoas que exerciam forte representatividade política foi crescente nos fins da ditadura militar, muitas pessoas que foram caladas durante o regime ditatorial passaram a servir a partidos e fortalecerem o significado de "curral eleitoral" — como as regiões, sobretudo as periféricas, geralmente habitadas pelas camadas populares, eram denominadas. Segundo Paulo Freire: “A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural", para a liberdade, por isso mesmo ação com eles. A sua dependência emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada, a não ser pelo opressor. Este é o que se serve da dependência para gerar mais dependência.”

Em sua monografia de conclusão de curso, Binho, que antes mesmo de entrar para a faculdade já havia escolhido a favela como sua linha de estudo, percebeu com a fundação do Centro Cultural A História Que Eu Conto que precisavam conhecer a história do lugar onde moravam, pois somente assim poderiam atuar com ações efetivas e então, em cima 76


cap.04 O voo da fênix

da hora, muda o tema para A História Que Eu Conto — Vila Aliança, que passa a ser a primeira bibliografia exclusivamente dedicada ao Primeiro Conjunto Habitacional da América Latina. Começa então a tarefa de trazer a importância histórica desse lugar pouco conhecido — quando não destacado apenas por suas dinâmicas de violência urbana, que ganhavam as páginas dos jornais — e todo o trabalho contraposto feito por muitas pessoas que durante essa trajetória se organizaram em grupos ou individualmente visando fazer o que o Estado se negou, e que havia sido deixado por trás das cortinas. O caminho determinado era o mais árduo, exigia competências jamais exercidas pelos idealizadores do Centro Cultural, o conceito de empreendedorismo até então era visto apenas para empresários, a utilização dos artigos da lei para o seu cumprimento apenas por aqueles que exercem articulação somente para lobistas, gestão e planejamento somente para quem tem MBA, realização de trabalhos de primeira somente com materiais de primeira. Se fossem observar tamanho desafio a partir desta ótica, tenderiam a desistir, mas, passo a passo foram usando seus instintos, que lhes mostrava aquilo que deveria ser feito diante das necessidades. A partir da ocupação do espaço que passa a sediar as atividades culturais, a aplicação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 não dá alternativa ao Poder Público Municipal, a função social passa a ser cumprida, e, desde então, passa-se a trabalhar pelo desenvolvimento local do Complexo de Vila Aliança e Senador Camará. E só aqui se entende o recorte histórico a partir de 1988, enquanto Samuca ainda vivia seus primeiros passos na criminalidade e Binho e Jê aproveitavam sua infância; os três, sem terem a mínima ideia do que acontecia no país naquele ano, fariam toda a diferença vinte anos depois. Coincidências? Não, nada é por acaso! 77


A História Que Eu Conto

Quase ninguém acreditou que seria possível avançar com os planos de desenvolvimento sem ter que se render à sedução política. Com toda razão, mas em momento algum foi negada esta relação, apenas foi acordada a não cooptação partidária, entretanto, as relações políticas sempre foram vistas como imprescindíveis para debater, identificar e encaminhar as políticas públicas necessárias para aquela determinada região ou cidade. Morador de Vila Aliança, o vereador e também líder do governo na Câmara, Adílson Pires, teve notícias da ação do Centro Cultural por meio de alguns de seus representantes, e, entre eles, Ricardo Ananias, presidente da Associação Pró Melhoramentos de Vila Aliança. Ricardo, aliás, foi a única liderança que se expôs ao lado dos Três Loucos quando tudo ainda era apenas um plano. Ele acreditava! Chegou a oferecer uma das salas da associação para abrigar os projetos idealizados, além de pôr suas documentações e todo apoio institucional e pessoal à disposição. Foi Ricardo Ananias quem falou que a Vila Aliança tinha um projeto com histórias de acordo com o perfil que o Ministério da Justiça procurava para o Programa Nacional de Segurança com Cidadania — o Pronasci. Não lhe deram ouvidos. Foi ele quem falou do Centro Cultural para o parlamentar que trabalhava, e ao mesmo tempo fazia o contato inverso, dizendo aos idealizadores do Centro Cultural que o vereador Adílson Pires não era o que pensavam que fosse, ou seja, o que é quase senso comum sobre os políticos também se aplicava ao parlamentar, que mesmo sendo local não tinha proximidade alguma com o local. Mas foi depois de tantas tentativas que Ricardo Ananias, durante um daqueles churrascos políticos, resolveu capturar o chefe de gabinete do parlamentar em questão, Paulinho do Vidigal, que foi quem cobrou com veemência a visita do vereador ao espaço, que depois de ouvir o ponto de vista e os planos que os Três Loucos tinham para a região, lamen78


cap.04 O voo da fênix

tou por não ter dado ouvidos ao humilde e guerreiro presidente da Associação de Moradores. Os objetivos foram postos na mesa: Precisamos chegar ao prefeito, recém-eleito, Eduardo Paes, nossa prioridade é ter a cessão de uso do espaço, mas deixamos claro que não levantamos bandeiras de político nenhum, se quiser cumprir seu papel para o qual foi eleito para exercer, sem exigir contrapartida eleitoral, tudo bem." Disseram isso pessoalmente ao vereador, além de serem francos sobre a visão que tinham sobre ele. Depois de explanarem suas pretensões com franqueza, propuseram os investimentos que seriam necessários para o Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, enfatizando o que o ex-secretário municipal de Cultura, Ricardo Macieira, havia dito sobre não ter investido em cultura na região. Outras articulações foram feitas durante o processo para cercarem o prefeito, o objetivo era claro, ao ouvir falar da ousadia dos Três Loucos, ele pediria referências às pessoas de sua confiança, e a estratégia foi justamente esta, em vez de chegar direto nele, por que não chegar aos seus braços direitos? Entre seus homens de confiança estavam o vereador e presidente da Câmara, Jorge Felippe, o secretário de Obras na ocasião, Luiz Antônio Guaraná, e sua equipe. Aos poucos o Centro Cultural A História Que Eu Conto foi ganhando a cena da cultura fluminense. Era a fênix dando o seu voo. Não bastava circular na cidade, se fazia necessário trazer as pessoas para conhecer seu ninho. Assim sendo, no ano de 2009, foi realizado o Café com Autoridades, nessa ocasião, lideranças comunitárias, moradores, representantes das três esferas governamentais, parlamentares, empresários, gestores públicos e privados da região se fizeram presentes e atentos à exposição dos planos para a região. Foram demandados serviços primordiais, prontamente atendidos.

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A História Que Eu Conto

Meses depois foram realizados o I Seminário e, respectivamente, o I Fórum de Desenvolvimento Local do Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, que foi intensamente planejado identificando sete eixos fundamentais para que a população ficasse ciente das prioridades — Educação, Saúde, Cultura, Infraestrutura, Segurança Pública, Tecnologia e Meio Ambiente. Um intenso debate se estendeu durante um sábado inteiro, com especialistas em cada eixo fazendo sua exposição para que os moradores participantes pudessem ampliar suas visões sobre aquele determinado assunto e identificarem as prioridades que, quando votadas, seriam apenas três, no Fórum a ser realizado um mês depois. Chegado o dia do Fórum, ânimos aflorados — no comando do Fórum, Thamires Ribeiro, Gilberto Fugimoto e Binho — ouviam e encaminhavam atentamente as demandas que seriam enviadas aos órgãos competentes. E foi, ainda em 2009, depois de uma reunião no Unicef que tratava sobre violência letal, que Samuca e Binho se fizeram presentes, assim como representantes de importantes instituições. Era de se admirar que estivessem entre as grandes instituições que eles viam nos livros e nas notícias sobre os protagonistas das lutas no estado do Rio de Janeiro. Nesse dia, estavam presentes também o coordenador do Pronasci e sua equipe, e Binho se posicionou sobre a limitação da coordenação diante das demandas além de solicitar um encontro com o ministro da Justiça, na ocasião o senhor Tarso Genro. Depois do almoço, a equipe do Pronasci trouxe o convite para a cerimônia que seria feita para o ministro Tarso Genro na Câmara dos Vereadores, quando receberia o título de Cidadão Carioca. Luciana Phebo, coordenadora do Unicef, falou para Binho — é a sua chance, o convite é seu! Mas o convite credenciava apenas um lugar na plateia e seria impossível chegar ao ministro pelo forte aparato de segurança. Então surge ou80


cap.04 O voo da fênix

tro personagem importante nessa história, José Ribamar, chefe de gabinete da Liderança do Governo na Câmara, em visita ao Centro Cultural, levado por Ricardo Ananias, apontado como pessoa estratégica para fazer a ponte com o ministro, e fez. No dia do evento, Samuca e Binho foram com Ricardo Ananias. Samuca teve uma reunião na Aliança Francesa, e ao encontrar Ribamar, Binho e Ricardo Ananias foram conduzidos para onde o ministro estava reunido com as demais autoridades antes de a cerimônia começar. Três minutos foi o tempo suficiente para que fosse apresentado um dossiê sobre as demandas que a Vila Aliança necessitava suprir urgentemente; o ministro ficou surpreso com o fato de o primeiro conjunto habitacional da América Latina não ter recebido investimentos públicos e designou a equipe Pronasci para comparecer ao Centro Cultural e certificar a veracidade das informações. Ricardo Ananias não hesitou em lembrar que havia falado do projeto na Vila Aliança com o perfil deste programa. Feita a visita, constatadas as informações verídicas, a localidade passa a ser área Pronasci. Até aquela ocasião, somente Senador Camará estava apto a receber os investimentos desta pasta.

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A Hist贸ria Que Eu Conto

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Um novo ponto de cultura no mapa da geografia cultural brasileira 82


“Sob a influência de uma dada cultura, mesmo mudando através do tempo, a paisagem sofre desenvolvimento ou deformação, talvez atingindo mesmo o clímax do desenvolvimento, a não ser que o rejuvenescimento apareça com a introdução de novos elementos culturais.” (1927) Carl Ortwin Sauer


A História Que Eu Conto

A cultura é inerente à pessoa, ao local e seus costumes, por essa razão ninguém a leva a algum lugar senão por intercâmbios, ou seja, pode-se trocar experiências culturais, mas não se considera correto dizer que um determinado lugar é sem cultura só porque tem hábitos diferentes dos meios de produção ofertados. Quando Gilberto Gil foi convidado para ser ministro da Cultura no governo Lula, houve olhares desconfiados sobre o que um artista faria e como o seu ponto de vista alcançaria os movimentos culturais que viviam à margem dos investimentos daquela pasta. Sem saudosismo político algum, parafraseando o próprio ex-presidente, “nunca na história deste país” houve um ministro da Cultura com tanta sensibilidade que compreendesse o que foi dito no início deste texto. Nas palavras do idealizador do Programa Cultura Viva, Celio Turino, que foi secretário de Cidadania Cultural do ministério nesse tempo e contínuo com Juca Ferreira: “Quem faz cultura são as pessoas, não o governo, o governo pode favorecer ou dificultar...”, sendo assim o Ponto de Cultura, visto pelo ministro Gil como um “...do-in Antropológico funciona como acupuntura cultural e social”,1 tendo como base as ações existentes em cada ponto geográfico brasileiro, desde as comunidades ribeirinhas e indígenas às favelas. Desde os grotões às cidades periféricas no interior do Brasil afora, tão marginalizadas ou mais do que muitas regiões distantes que comportam as metrópoles brasileiras. A expressão cultural independe de aparecer ou não na grande mídia, contudo, os investimentos até então priorizavam os poucos grupos que realizavam suas produções no eixo RJ-SP e favoreciam principalmente as áreas nobres destas cidades. 1

Entrevista para o programa Melhor e Mais Justo: Políticas Culturais da TVT.org.br. Acesso em: http://www.tvt.org.br/watch.php?id=4520&category=203

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cap.05 Um novo ponto de cultura no mapa da geografia cultural brasileira

Para tentar romper com esta lógica, somente tendo um histórico respeitável, inteligência política, sensibilidade e ousadia. Foi determinante, um divisor de águas, tornar os recursos do Ministério da Cultura (MinC) acessíveis através de editais públicos que abrangessem todos os “fazedores culturais” do país, mesmo com seus prós e contras; tratava-se de uma iniciativa inédita que deu certo e os países latino-americanos passaram aos poucos a aderir. No ano de 2009 a Vila Aliança passa a integrar esta geografia cultural, pois ainda que existissem as ações, mesmo se constituindo em um Ponto que produz e desenvolve sua própria cultura, já peculiar aos territórios, ao ser contemplado pelo edital de Pontos de Cultura do programa Cultura Viva, em virtude das exigências para o conveniamento, assim como pelo fato de serem recursos públicos, há exigências a serem cumpridas, desde a apresentação escrita no momento da inscrição até o gerenciamento do projeto e sua prestação de contas. O Centro Cultural A História Que Eu Conto foi contemplado pelo edital lançado pela Secretaria de Estado de Cultura. Com o suporte da SEC-RJ, que criou o Escritório de Apoio à Produção Cultural (EapCult), os gestores do CCHC, que se empenham em reciclar seus conhecimentos, não se furtaram a mergulhar na oportunidade de aprender mais sobre elaboração e gerenciamento de projetos. Na SEC-RJ, Marcos André (atualmente Superintendente de Cultura e Sociedade), Bia Araújo (gerente de Pontos de Cultura) e suas equipes, além de Cissa Florence, consultora, fazem toda a diferença, e oferecem o atendimento digno e humano, respeitando todas as pessoas que procuram seus auxílios, sem exceção. No lançamento dos Pontos de Cultura contemplados pela SEC-RJ em 2009, no Palácio Guanabara, Binho, que participava de uma semana de capacitação do Cine Mais Cultura, (também programa do MinC para cineclube), representou o CCHC na culminância, e ficou honrado ao ver no mapa 85


A História Que Eu Conto

do estado do Rio de Janeiro, entre os pontos coloridos que diferenciavam as regiões, um pontinho sobressaindo entre os poucos pontos da Zona Oeste — o bairro de Bangu, geralmente destacado pelo complexo penitenciário ou pelo intenso calor. Sub-bairro de Bangu, a Vila Aliança resgata o valor cultural e histórico deste que foi precursor no país em muitos aspectos, desde o futebol à moda. O fechamento da Fábrica Têxtil no final dos anos 1990 levou consigo parte do potencial econômico do bairro, mas não a sua cultura. Como foi dito, o terreno onde a Vila Aliança foi construída pertencia à Fábrica Bangu, que vendera à Cehab (Companhia de Habitação do Estado do Rio de Janeiro). Por si só a Vila Aliança é histórica e geograficamente a cultura em forma de lugar. O papel desempenhado pelo CCHC busca justamente trazer à tona, em escala local e global, a história deste conjunto habitacional, construído com os recursos estratégicos do Projeto Aliança para o Progresso, citado no livro As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, como um programa de barganhas aos países latino-americanos por parte dos EUA. “Poderia parecer, à primeira vista, paradoxal que o Brasil tenha sido o país mais favorecido pela Aliança para o Progresso durante o governo nacionalista de João Goulart (1961-1964). Porém o paradoxo acaba, mal se conhece a distribuição interna da ajuda recebida: os créditos da Aliança foram semeados como minas explosivas no caminho de Goulart. Carlos Lacerda, governador da Guanabara e, então, líder da extrema direita, obteve sete vezes mais dólares do que todo o Nordeste: o Estado da Guanabara, com seus escassos quatro milhões de habitantes, pôde assim inventar formosos jardins para turistas nas bordas da baía mais espetacular do mundo, e os nordestinos continuaram sendo a chaga viva da América Latina.” (p. 182)

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cap.05 Um novo ponto de cultura no mapa da geografia cultural brasileira

Na terra onde nascera o revolucionário Ernesto Guevara, Rosário, Argentina, em 2011, quando Binho esteve lá para o Seminário Cultura para o Desenvolvimento, realizado pelo Centro Cultural Espanha, foi feita esta observação. O comunismo não avançou conforme temiam os EUA, mas não por seu programa, que nada progrediu na América Latina. O pertencimento está diretamente associado à história e ao desenvolvimento, pois somente conhecendo as raízes se (re)conhece em suas origens, e assim pode-se valorizar e mostrar que os valores históricos devem sobrepujar aos fatos negativos, pois os valores do lugar são os valores das pessoas que nele moram e vice-versa, somente quem a ele se sente pertencente pode ter esta percepção. Esta nada ambiciosa meta foi estabelecida pelos Três Loucos e está sendo alcançada, pois, em quatro anos de fundação, suas intervenções junto ao poder público e privado já vislumbram o que em cinquenta anos não fora feito. Isso porque, se orgulham em dizer, não fizeram acordos políticos e mantêm uma relação suprapartidária com os políticos que estiverem interessados em cumprir com as obrigações assumidas quando foram eleitos. Importante enfatizar que são poucos, dos muitos que se aproximaram, que aceitaram esta condição. Em 2012 foi o ano do cinquentenário, em que os primeiros moradores passaram a povoar o antigo laranjal, mas foi em 1964, ano do golpe militar, que a Vila Aliança recebeu os últimos moradores das remoções. Tantas histórias para contar, memórias perdidas a serem resgatadas amiúde. Os planos de cinquenta anos em cinco não foram bem-sucedidos nem para Juscelino Kubitschek, quando idealizou a nova capital federal, o que serviu de experiência para aqueles que se somaram ao CCHC para trabalhar pelo desenvolvimento local. Sabe-se que isso é uma tarefa a longo prazo, e o mais importante é que as próximas gerações se empoderem com o protagonismo latente e pulsante para continuá-lo. 87


A História Que Eu Conto

A Cultura pode reconhecer o que a memória guardou; a História e a Geografia, uma vez aliadas, poderão ressignificar a compreensão de Local; a Economia, somada ao Serviço Social, poderá fortalecer o desenvolvimento humano; o Direito acrescentará seus esforços na luta pela garantia de Políticas Públicas; e, finalmente, a Educação e a Saúde somente serão efetivamente melhoradas com o acesso ao conhecimento daqueles que delas usufruem. Em Vila Aliança, as Ciências Sociais são o grande exemplo disso, ao serem utilizadas por Binho como mecanismo de transformação social. Pelo menos neste território, no que depender do CCHC, nada chegará pronto e não se esperará de braços cruzados os investimentos que são realizados apenas em épocas de eleição. Com a experiência adquirida através da incansável articulação, ampliada com o auxílio dos embaixadores culturais, parceiros e amigos, “o caminho está sendo feito andando”, como diria o poeta, mas com metas estipuladas através de minuciosos planejamentos e “solucionatizações”, pois como sempre bem disse Samuca — “O problema já existe, então é preciso encontrar a solução.” "Chega de problematizar", reforça Jê! Enfim, o grande desafio que vem sendo vencido aos poucos e com muito esmero é o de atrair visitantes para este lugar situado a 40km do centro da cidade do Rio de Janeiro, onde tudo um dia foi distante por não ser tão seguro e interessante; bem, interessante passou a ser, e quando se encontra um bom motivo que desperte a atenção, não há distância que se torne impedimento. Assim o CCHC vem se fortalecendo, levando e trazendo a natureza do seu território a quem ainda não conhece. Quem ainda não o visitou está deixando de presenciar um importante divisor de águas na geografia cultural brasileira, que, além de romper paradigmas, constrói conexões entre o elo perdido da História e o afeto das novas possibilidades protagonizadas. 88


Jeferson Cora, Criz Silva e Lf Logs, grafiteiros da Zona Oeste.


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Economia criativa a serviรงo da sustentabilidade institucional


“A Economia Criativa é um termo criado para nomear modelos de negócio ou gestão que se originam em atividades, produtos ou serviços desenvolvidos a partir do conhecimento, criatividade ou capital intelectual de indivíduos visando à geração de trabalho e renda.” Sebrae Nacional


A História Que Eu Conto

Como tornar sustentável uma instituição do terceiro setor diante das condições econômicas contemporâneas, ainda mais enfrentando o rastro deixado por algumas ONGs que foram utilizadas para desvios de recursos públicos, enriquecimento ilícito etc.? Os primeiros passos foram cruciais para obter a percepção imediata de que não daria para contar com patrocínio e ficar à mercê dos riscos. De um lado a crise econômica mundial, do outro a recessão do dia a dia, enfrentada pelos “de baixo”, que são as pessoas e instituições sem nenhuma visibilidade, com o mínimo de recursos e estrutura, mas que desempenham imprescindíveis ações em favor das suas causas.

“De acordo com o Relatório de Economia Criativa 2010, produzido pela Unctad — Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, apesar de uma queda de 12% no comércio global em 2008, os serviços e bens da economia criativa cresceram até 14%. Segundo o relatório, ainda, a China é o país com mais produção na economia criativa, seguida pelos Estados Unidos e pela Alemanha.”

Geralmente formadas e conduzidas por voluntários, seus salários são os aplausos, o sorriso de uma criança, e a satisfação de fazer o mundo um pouquinho melhor. É dessa maneira que cada um muda o mundo, fazendo o que acredita, o que lhe apraz. Ghandi disse para que sejamos a mudança que desejamos para o mundo, cada um muda um pouco quando se muda. Observar os potenciais criativos de cada pessoa é uma prática dos fundadores do CCHC, desde a dona Maria costureira, que costura a vida inteira para grandes marcas que pagam “merrecas”, fortalecendo a velha mais-valia apontada por Karl Marx, mas sem os custos da fábrica, ou seja, se 92


cap.06 Economia criativa a serviço da sustentabilidade institucional

ganha mais, explora-se mais, ao Thiago que é cenotécnico, mas poderia ser chamado de carpinteiro, marceneiro — faz desde móveis simples e sofisticados a estruturas para megaeventos. O que ambos têm em comum? Ainda na fase de planejamento do CCHC, o fator Empreendedorismo Cultural já estava em foco, ou seja, em 2006 pensava-se nos potenciais econômicos gerados pela mão de obra das pessoas que servem às grandes empresas tradicionais, quando na verdade o ímpeto empreendedor de cada indivíduo deveria ser estimulado, não para servir ao mercado capitalista, mas para capacitar e transformar esse potencial criativo em economia, tornando o detentor(a) do saber, isto é, aquele(a) que é criativo, “produz o show mas não assina a direção”, em gestor de seu próprio negócio. Ainda existe no país a cultura do “estudar para ser alguém na vida”, e esse ser alguém na vida significa apenas trabalhar para os outros e na verdade ser explorado por alguém. Por que em vez de trabalhar confeccionando para as grandes marcas não se produz em benefício próprio, por exemplo? A costureira, o cenotécnico, aquele que detém seu conhecimento in natura passa a ser seu próprio provedor(a), segundo a sua dedicação, de acordo com seus sonhos ou metas, a partir do acesso a cursos específicos de gestão e produção, hoje mais alcançáveis, tal como consultorias, presenciais ou online.

“O Brasil ainda não se encontra entre os vinte maiores produtores do setor, em nível internacional. No entanto, com base em dados do IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, é possível concluir que o setor representa 4% do Produto Interno Bruto brasileiro, que foi da ordem de R$ 2,4 trilhão em 2007. No Brasil, as empresas de pequeno porte são as mais criativas, pois têm uma força de trabalho jovem e instruída.” 93


Reportagem sobre o CCHC no Jornal Extra.

Camisas produzidas no CCHC.

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TÍTULO DO CAPÍTULO

Frente do CCHC.

Equipe e convidados com as camisas do CCHC.

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A História Que Eu Conto

Cada vez mais se reconhece o valor criativo e de consumo que as comunidades populares têm. O que está fazendo a diferença é que agora os antes explorados estão começando a (re)descobrir seus valores, estão cada vez mais ocupando espaços nos cursos técnicos e acadêmicos. Em palestras para as quais é convidado, Binho costuma dizer que estamos diante de um fenômeno que demonstrará que nos próximos dez anos haverá um novo perfil do favelado, não aquele pejorativo, que foi por mais de um século massacrado e marginalizado, mas o favelado intelectual, produtor, empreendedor e, o melhor, que toda esta dinâmica econômica e social se dará dentro da própria favela. Quando a professora Heloisa Buarque de Hollanda e o cenógrafo Gringo Cardia, ambos mais que respeitados em suas respectivas áreas, resolvem ocupar os mais importantes museus do Rio de Janeiro, Recife e São Paulo, expondo a Estética da Periferia, já se consagra a afirmação de que há uma arquitetura peculiar, um tipo de moda singular, e um jeito de ser e fazer que não se compara a outros modos de vida. Esse mesmo estilo de vida dá audiência aos canais de TV que antes exibiam apenas a violência e agora passam a incorporá-lo ao cenário, à semelhança do programa "Esquenta", de Regina Casé, uma exímia favelada da elite, como se autodenomina. Ao mesmo tempo em que alguns olham com desconfiança, assistimos a mais uma quebra de paradigmas quando este obtém mais audiência do que programas tradicionais. Em 2012, uma loja de grande rede inaugurou uma filial no Complexo do Alemão, dois anos após a ocupação pelas forças armadas, e foi surpreendida pela capacidade de consumo daquela população, o que provocou a ampliação da mesma. Divulgada pelo jornal A Voz da Comunidade, Binho comentou a postagem do responsável pelo jornal, Renê Silva, ressaltando que não era novidade alguma o alto consumo, e que as empresas perderam tempo deixando de 96


cap.06 Economia criativa a serviço da sustentabilidade institucional

investir nas favelas, além de observar a importância dos empreendedores favelados se organizarem para não perder espaço nem consumidores. E o que tem o CCHC a ver com essa história? O saudoso Sérgio Nogueira, amigo de Samuca, era dono da empresa Dilema Comunicação. Ao ouvir os planos para o CCHC, Sérgio, que não viveu para ver concretizado o sonho de seu camarada, sugeriu que fossem criados produtos com materiais reaproveitados de seus eventos. As telas ortofônicas ou lona sanet2 serviram para os três conceitos de sustentabilidade — econômico, social e ambiental. Com design de modelistas e estilistas da própria comunidade e outra de outro bairro também da Zona Oeste, as bolsas confeccionadas logo passaram a ser uma importante fonte de renda para o CCHC, oferecendo remuneração justa para as pessoas envolvidas nas fases de produção. Com os patrocínios da Casa da Moeda do Brasil, que possibilitaram a compra das máquinas de costura e a montagem da estamparia, foi realizada também a oficina para capacitar pessoas a fim de atenderem às demandas de produção das encomendas de bolsas para brindes em grandes eventos. Agora, tendo em vista este amplo mercado que se abriu, o CCHC está organizando sua marca — a Visão Coletiva — que atenderá às produções voltadas para a sustentabilidade. Acreditam os Três Loucos que, por meio da Visão Coletiva Produções, suas linhas de atuação nos setores cinematográfico, de moda e de música poderão, em médio e longo prazo, oferecer a sustentação e a sustentabilidade necessárias à sobrevivência de todo empreendimento.

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Tela ortofônica ou lona sanet é uma tela feita com lona especial geralmente posicionada à frente das caixas de som (PAs) de shows ou eventos. O tecido da tela ortofônica possui furos minúsculos que não comprometem a imagem impressa, porém fazem passar o som com alta definição.

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CĂŠlia Lolli (in memoriam) e Tamires Santos na venda das camisas do CCHC.


Primeiras alunas da turma de graffiti.


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Causos inesquecĂ­veis 100


“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível. Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase e o sofrimento alimenta mais a sua coragem.” Racionais Mc’s


A História Que Eu Conto

Causo 01 O primeiro projeto aprovado Já foi dito inúmeras vezes que nada foi nem tampouco tem sido conquistado fácil. Com o primeiro projeto patrocinado não poderia ser diferente. Aconteceu assim... O Jê tomou conhecimento do Edital da Casa da Moeda do Brasil, para inscrição de projetos no Programa Atitude Cidadã, em 2008. O problema era que o CCHC não poderia participar pois tinha apenas meses de existência, e o edital determinava que era necessário ter no mínimo um ano como pessoa jurídica formalizada. Entendendo que aquela seria a oportunidade e Jê não pestanejou em pedir socorro a uma instituição parceira para que fosse possível a inscrição do projeto. A resposta positiva possibilitou iniciar o processo de detalhar o projeto, aquele que seria o primeiro passo para iniciar a estruturação do Plano de Sustentabilidade a partir do Empreendedorismo Cultural. A História Que Eu Conto Em Graffiti — este foi o nome idealizado pelo Jê para abrir alas de uma nova era para a instituição que criara. O adolescente um dia atendido, tornou-se o jovem líder, idealizador, fundador, que utilizaria seus conhecimentos como educador social para elaborar um excelente projeto — o seu sonho! Projeto escrito, prazo curto. 102


cap.07 Causos inesquecíveis

Jê vai à instituição que havia se proposto a "emprestar o CNPJ", e foi surpreendido ao ser informado que a outra instituição não mais o apoiaria, pois resolvera também aproveitar a oportunidade e captar o recurso para seus próprios projetos. Decisão tomada, decepção e sofrimento suscitados. Sem se dar conta do "banho de chuva ácida", Jê ainda argumentou em vão. Mas este brasileiro, filho de Dona Maria, já havia superado situações piores. Claro que a dor era insuportável, o que para muitos era só mais um projeto, para Jê, sobretudo, era crucial. Sozinho, cadê o Binho? Cadê o Samuca? Coração acelerado, lágrimas nos olhos, turbulência de pensamentos. Na lan house encontra Samuca, que ao ser chamado pediu um momento. Jê empostou a voz: "Cara, é urgente!" Pronto, Samuca sabia que lá vinha bomba. E veio. Mas como os Três Loucos sempre falam, "o problema já temos, agora temos que encontrar a solução!" Entra em cena a "solucionatização" em vez de problematização. Procuraram o Alberto Nicodemos, do IBISS (Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social), do qual Jê e Samuca fizeram parte. Juntamente com o Diniz, Alberto dá o sinal verde, em consideração aos dois que, mesmo tendo saído da instituição, mantiveram uma relação de respeito mútuo. Boa! Naquele momento a música de Bob Marley, Three Little Birds, cairia muito bem: "Don't worry about a thing/ cause every little thing is gonna be alright." Tempos depois esta letra seria batizada como "Melô do Sequelado" e todas as vezes que enfrentassem desafios, mesmo esgotados, cantarolavam. Mas, espere, o causo ainda não está encerrado. Com o projeto escrito, Jê e Samuca buscaram no escritório do IBISS os documentos necessários, pois era o prazo final para postá-lo. 103


A História Que Eu Conto

Do bairro Castelo para Bangu, viagem longa, chegando foram direto à Acerb (Associação Comercial e Empresarial da Região de Bangu), à procura do Fábio Quadros, diretor executivo e parceiro, com o objetivo de imprimir o projeto e conseguir o recurso para postar no correio. Ele não estava. A areia da ampulheta estava nas últimas. Não adiantaria olhar um para cara a do outro; sem grana, foram a pé do centro de Bangu para a Vila Aliança, a última saída seria encontrar algum amigo. Vinte minutos a pé, sob o sol forte. Cortando caminho pelas vielas da favela Minha Deusa, ao chegar na Vila Aliança se deparam com o amigo Edson, que imediatamente, ao ser solicitado, deu o dinheiro da impressão e da postagem no correio. Passos largos e incansáveis, Jê e Samuca foram para o CCHC organizar os documentos. Chamaram o mototáxi, faltavam vinte minutos para os Correios fecharem. Turu, o mototaxista, levou Jê e, surpreendentemente, a gasolina da moto acabou — detalhe, na calçada onde ficam os Correios. Ufa, graças a Deus! Projeto enviado com sucesso! Tempos depois o resultado — APROVADO!!! Choro para todos os lados, oração de joelhos em agradecimento a Deus. Na visita dos membros da Casa da Moeda do Brasil, o gerente de Patrocínio, Anderson Willy, se depara com aquela realidade de pessoas empreendedoras cheias de amor para dar e trabalho para fazer — ao ver tamanha seriedade, nasce com a CMB uma grande parceria. Quanto à outra instituição, ao enviar o projeto se confundiu com a pegadinha do remetente e destinatário. Resultado: o projeto foi enviado para o endereço do próprio proponente. Com o recurso de R$ 25 mil da CMB, foi possível estruturar a oficina de graffiti, montar a sala de serigrafia, comprar computadores e, com a sobra dos recursos, devido aos descontos de compras à vista, foi dado início à Ilha de Edição. O CCHC se tornou referência dentro da CMB, devido a sua gestão. 104


cap.07 Causos inesquecíveis

Causo 02 Na sombra do poste Se o Rio de Janeiro é 40°, Bangu é 50°, um verdadeiro "vulcão habitacional". Os Três Loucos estavam prontos para mais uma jornada — reunião na Secretaria Municipal de Cultura. No ponto do ônibus sem cobertura, uma coisa chamou a atenção de Binho, as pessoas disputavam, literalmente, a sombra que o poste de iluminação fazia na calçada. "Caramba!", exclamou Binho, "essa vai para o livro!" — até então tudo o que vivenciavam, não tinham dúvidas, eram histórias que se tornariam livros, letras de músicas, curtas e longas-metragens. A eterna espera pelo 395 ou 389 fazia qualquer pessoa se sentir um penitente, não bastasse a distância e a incerteza de o ônibus concluir sua viagem, ou melhor, de levar com segurança os penitentes, quero dizer, os passageiros. Sem imprevistos nem surpresas no caminho, Samuca, Jê e Binho chegaram à Prefeitura para ter com o secretário de Cultura uma reunião que não levaria a lugar algum, nada além da simpatia e palavras de motivação, que àquela altura eram bem-vindas, porém nada de concreto aconteceria. Impossível esquecer as palavras do Ricardo Macieira: "Aqui neste gabinete nasceram os maiores projetos do Rio de Janeiro"! Enfim, se era para motivar, ao pensar que nenhum desses era do Complexo de Vila Aliança e Senador Camará, 105


A História Que Eu Conto

não fazia diferença alguma para os Três Loucos, que desde cedo aprenderam que as palavras são importantes, mas em muitos momentos a ação é imprescindível e insubstituível. Na volta para casa, hora do rush, para variar. Sem um tostão no bolso, só o da passagem, de trem (putz!), para evitar uma palavra pesada, porque depois da fila na sombra do poste para pegar o 395 ou 389, enfrentar uma distância de 40 quilômetros, no calor infernal, sem dinheiro, para ouvir lorotas e ainda voltar para casa de trem da Supervia, que é outra porcaria de transporte público, ninguém merece! Bateu a fome, e agora? Binho saca de sua mochila multiuso os três biscoitos club social, roubados da merenda escolar que comprara para o seu filho. Durante a viagem, risos no amontoado de trabalhadores que se atropelavam para um lugar no assento do trem. Só mesmo um louco, um não, Três Loucos para tirar fotos dentro do trem naquelas circunstâncias. Esse dia de hoje será lembrado no nosso primeiro livro. Dito em 2008, o livro três anos depois começou a ser escrito. Alguém duvida da loucura desses caras?

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cap.07 Causos inesquecíveis

Causo 03 A longa estrada Quanto mais longo o percurso, mais se tem a aprender no caminho. Certo dia, uma determinada liderança comunitária se atreveu a exigir uma das salas do CCHC para uma das associações de moradores locais. Nada sabia sobre a história contada naquele lugar e de como chegaram até ali. Como diz a música A estrada, do Cidade Negra, "Você não sabe o quanto eu caminhei, pra chegar até aqui". Autoritário, o cidadão despejou em tom imperativo suas palavras nos ouvidos do Samuca, que ouviu atentamente e tentou conduzir do melhor jeito “A história que eu conto de ser”, porém não deu certo. Dias depois ele voltou, agora com aparato bélico para tentar impressionar. Realmente era uma pessoa sem noção das coisas, que nada sabia de nossas origens e de quem havia colocado aqueles meninos (forma carinhosa como as pessoas que acreditaram neles os chamavam) naquele lugar de mudança. O cidadão chegou com um jovem, hoje já falecido, que na ocasião era um dos cabeças do tráfico. Mais respeitoso, o rapaz, que nem sabia que estava sendo usado, deixou o aparato bélico do lado de fora, e foi sendo apresentado pelo Jê ao CCHC, às salas e às metas para o desenvolvimento local, inclusive como oportunidade e alternativa para pessoas como ele, o que o deixou maravilhado a ponto de seus olhos brilharem ao dizer que o trabalho realizado estava de parabéns. 107


A História Que Eu Conto

O cidadão sem noção, enquanto isso, conversava com o Samuca, e na cabeça dele o recado já estava dado. Mal sabia que havia ocorrido o contrário. Um morador, independente de seu proceder, havia se apaixonado por aquela história da qual já havia ouvido falar, ao contrário daquele que o levara. Após este episódio, que assustou a equipe do CCHC, afinal ninguém sabia até onde o cara poderia chegar para atingir seu objetivo, Samuca convocou a chamada "reunião de crise" e expôs seu plano estratégico ao Jê e ao Binho. Com todos os riscos calculados, os três aprovaram o plano. Dias depois foram convocados para uma reunião de lideranças comunitárias. Não poderiam faltar, mas não sabiam o que lhes esperava. Sabiam apenas que Deus estava com eles — isso era o suficiente. Chegado o dia, relembrado o plano, a estratégia foi combinada: chegar em silêncio, ouvir tudo o que tinha para ser ouvido, no final entregar as chaves do CCHC e pedir apenas um tempo para retirar os pertences. Quem haveria de dar as explicações pelo fechamento do Centro Cultural não seriam os Três Loucos. Foram, passos firmes seguindo a Longa Estrada do Taquaral, para um destino que só Deus conhecia. As mais variadas possibilidades passaram pela cabeça dos três. Poderia, entre outras, ser seu último dia. Chegando ao local da reunião, uma surpresa positiva para as demais lideranças que buscavam se referenciar no trabalho promissor que aqueles três haviam iniciado e criado com um método próprio — uma identidade! Diferentemente de seus estados normais, os poucos que os conheciam, sabiam que algo estava errado. Os Três Loucos têm a capacidade de trabalhar as coisas mais complexas brincando e zoando um ao outro. Ricardo Ananias, o líder que sempre esteve ao lado dos Três, tomou ciência da situação e de qual era o plano para aquela manhã. Mesmo discordando, com medo, ele mais uma vez se manteve ao lado deles. 108


cap.07 Causos inesquecíveis

Com perdão dos ateus e dos céticos, nada melhor do que entregar nas mãos de Deus a sua vida. Na grande mesa, pessoas que os Três Loucos não conheciam ou conheciam pouco sabiam muito sobre eles, e, sem terem noção de nada que havia ocorrido e que estava para acontecer, não paravam de citar o CCHC como referência inúmeras vezes. Binho pediu a palavra e explanou o caminho trilhado por eles, suas dificuldades e conquistas, sobretudo sem dependerem de políticos ou do tráfico. Colocando à disposição dos presentes os conhecimentos em documentações, elaboração de projetos, que ele e Jê haviam estudado, compartilhando os saberes adquiridos, Binho encerrou sua fala, mas não antes de ter sido questionado sobre uma matéria que havia sido publicada no jornal Extra, relativa ao patrocínio da Casa da Moeda do Brasil e sobre o uso do recurso, por um candidato a político, também sem noção. As respostas, sutilmente, o colocaram em seu devido lugar. Após quase todos falarem, a mensagem do Samuca era esperada, afinal, trata-se de uma lenda viva. Samuca revelou o que havia ocorrido no CCHC, e discorreu sobre a opressão que o cidadão, apontado pelo Binho para que todos o olhassem, promoveu para darem uma sala ao outro líder, também apontado. Este, surpreso, logo saiu em defesa própria dizendo que não havia feito pedido algum. Com a indignação geral, o cidadão foi acuado e obrigado a pedir perdão aos Três, mesmo argumentando que passara casualmente com a rapaziada e que não levara o cara para intimidar. Em seguida, as demais lideranças, que estavam acuadas, ganharam voz e revelaram fatos similares. Após muito tempo de discussões, tudo foi resolvido além se ser prometido que não haveria mais comportamentos semelhantes. Para não haver dúvidas de que era obra de Deus, a reunião acabou num grande círculo de oração e lágrimas de alívio. Todos abraçaram e agradeceram aos Três Loucos por terem a coragem de fazerem o que fizeram. "People freedom and liberty", em Babylon System, mais uma vez Bob Marley. 109


A História Que Eu Conto

Causo 04 Encontro com o ministro da Justiça Era para ser apenas uma reunião sobre violência letal, com discussão objetiva, contando com as experiências de instituições renomadíssimas, entre elas o Centro de Estudos de Segurança com Cidadania (Cesec) da Universidade Candido Mendes, o Observatório de Favelas, entre outras que atuam ativamente na prevenção e combate à violência contra crianças e adolescentes. O encontro, convocado pela coordenadora do Unicef-RJ, Luciana Phebo, contava com a presença de representantes do Programa Nacional de Segurança com Cidadania, o Pronasci, do Ministério da Justiça. O objetivo principal era tê-los como parceiros na Plataforma dos Centros Urbanos, onde os recursos deste programa poderiam contribuir para as ações de combate à violência letal. Representando o CCHC estavam Binho e Samuca, que, aliás, eram os mais jovens, porém com experiências e propriedades para tratarem sobre o assunto. Melhor dizendo, ninguém naquele ambiente poderia falar melhor sobre a violência do que quem primeiro foi vítima dela, depois a praticou, pagou o preço e se regenerou, além de passar a contribuir com a sociedade para a diminuição da inserção de adolescentes e jovens na vida do crime — que é o caso do Samuca. 110


cap.07 Causos inesquecíveis

Todos ficaram atônitos com a sua explanação. Depois de expostas à mesa as metas do Unicef, e de cada instituição ter explanado sua abordagem e sua proposição, a coordenação do Pronasci colocou-se à disposição para contribuir no que fosse possível, contudo avaliariam sua efetiva atuação, deixando claro até onde poderiam contribuir. Após a palavra do então coordenador do Pronasci, Binho interveio dizendo não ser suficiente aquela ajuda oferecida, e perguntou diretamente a ele quem era o seu superior. Era o ministro da Justiça, Tarso Genro, atualmente governador do Rio Grande do Sul. — Temos então, Luciana — dirigiu-se Binho à coordenadora do Unicef —, que falar com o ministro, ou ele vem até aqui ou nós iremos à Brasília, você pode articular isso? Binho aprendera que não há limites quando há vontade política e não se pode parar no primeiro obstáculo, tampouco contentar-se com pouco quando se pode ter mais do que o oferecido. Após o almoço, uma das pessoas que acompanhavam o coordenador do Pronasci entregou à Luciana Phebo o convite para a cerimônia que condecoraria Tarso Genro como cidadão carioca. “Toma aí Binho, é a sua chance”, disse ela. “Não, pode ficar, este é seu!” Ela fez questão que Binho ficasse com o convite, mas, com todo respeito, ele disse que aquele convite não permitiria acesso ao ministro, e assim ele precisaria de muito mais do que isso. Uma semana depois, o chefe de Gabinete da Liderança do Governo na Câmara, José Ribamar, que já havia trabalhado no Ministério da Justiça e conhecia muito bem o ministro, disse diretamente a Binho, sabendo de seu objetivo: “Eu vou te levar para falar com o Tarso Genro!” Binho respondeu com firmeza, mas sem arrogância: “Acho bom!” 111


A História Que Eu Conto

O comportamento às vezes pode parecer petulante, porém os Três Loucos aprenderam como devem se comportar diante de autoridades e pessoas de qualquer classe ou representatividade — para eles ninguém é melhor que ninguém, então não há porque abaixar a cabeça, e rezar cartilhas conforme o costume, ou pior, a cultura da maioria que mora na favela. Respeito é respeito e o que é de direito é de direito. José Ribamar naquele instante passara a ser mais parceiro do CCHC e admirador daquela postura de dar o papo reto! No dia da homenagem, Samuca e Binho partiram para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro e lá encontraram Ricardo Ananias. Samuca teve de seguir para outro compromisso, e logo depois José Ribamar, ao avistar Binho e Ricardo, os conduziu ao andar superior, na sala onde estava o ministro Tarso Genro. O cômico foi ver que naquele espaço restrito até para parlamentares, uma autoridade aproveitou a carona para chegar ao "homem". Com o Dossiê Vila Aliança em mãos, Binho foi objetivo, conciso e claro ao apresentar a Vila Aliança como primeiro conjunto habitacional da América Latina, enfatizando que jamais havia recebido investimentos governamentais que condissessem com a sua importância. Falou sobre o CCHC e entregou-lhe em mãos o projeto relativo à meta de trabalhar pelo desenvolvimento local. Tarso Genro prontamente chamou seu assessor, dando-lhe a missão de providenciar uma equipe para ir visitar o CCHC, e se certificar de perto aquela história que havia sido contada. Cerca de não mais do que 15 dias depois lá ocorreu o reencontro com a equipe do Pronasci, conduzida por José Ribamar, que foi conhecer o CCHC, cumprindo a determinação do ministro — tempo depois a Vila Aliança foi incluída como um dos territórios de paz, os locais previstos para receberem investimentos do Programa. Somente Senador Camará estava incluída até o presente momento. Um grande avanço para a região! 112


Binho e Ricardo Ananias em reuni達o com Tarso Genro e seu assessor.


A História Que Eu Conto

Causo 05 A cessão de uso A experiência vivenciada no CCHC comprova por a + b o porquê de a educação e o conhecimento terem sido negados à camada popular da sociedade. Assim que os favelados tiveram mais acesso à educação, a relação dominante x dominado virou. E, o que é mais assustador, tem raiz profunda e está dando frutos. Onde já se viu, largar tudo de mão, ficar dois anos condicionados ao planejamento de um sonho, sem dinheiro, sem chão, sem teto? Muita loucura! Samuca havia feito sua promessa na cadeia, viveu o que viveu fora dela. Jê quis compartilhar o que aprendera oferecendo a oportunidade que tivera por meio da arte, e Binho, cuja experiência de vida começou com um constrangimento devido à falta do livro, fez de sua história um livro vivo. Juntos formam os Três Loucos. O nome pegou mesmo depois de uma matéria feita pelo dançarino e coreógrafo Carlinhos de Jesus para a coluna Arte pra Vida do RJ TV, da Rede Globo. A pauta era uma, mas ao ouvir a história contada por Samuca sobre como montaram o CCHC, Carlinhos de Jesus falou: “Muda tudo! Essa história dos Três Loucos vai ser a nossa pauta!” E foi. Depois o Luiz Fernando Sarmento fez um curta com o mesmo tema, os Três Loucos, e a perder de vista esta loucura foi dominando o ambiente e disseminada mundo afora. 114


cap.07 Causos inesquecíveis

Quem imaginaria a ousadia de ocupar aquela escola municipal com o nome de ninguém menos que Austregésilo Athayde? Seria um bom presságio a atitude, só por honrar o nome. Enfrentar de peito aberto, com atitude e firmeza, ao mesmo tempo amparado pela Constituição Federal e respeitando a autoridade dos representantes da prefeitura, como é isso? Naquela manhã do dia 24 de junho de 2008, um dia após a ocupação, a visita esperada de algum representante público não surpreendeu. Esta história já foi mencionada aqui. No dia seguinte, atendendo ao pedido dos líderes da ocupação, o representante da Secretaria Municipal de Educação somou-se ao representante da Rio Urbe, como já foi também mencionado. Encurralados, José Mauro e José Milton tentavam cumprir as ordens, enquanto Jê e Binho faziam coro de que nem o Bope os tiraria dali. Ao ouvir o argumento da SME de que levaria os módulos de madeira para ampliar as vagas de uma creche em outro bairro, Binho indagou: “É justo tirar a chupeta da boca de uma criança para fazer a outra parar de chorar?” Silêncio... Binho foi além, e apontando para José Mauro disse: “Você, como morador da Zona Oeste, sabe que o governo não investe em cultura aqui, o cargo que ocupa é temporário, mas o que estamos construindo é para as futuras gerações!” Ali eles viram que não haveria insanidade mais sã! Samuca mediou o conflito. No dia seguinte, Binho estava no gabinete de José Mauro — ele era diretor de Infraestrutura da SME, cargo que ocupou até o início do governo Eduardo Paes. Enquanto esteve lá auxiliou e acompanhou de perto toda a articulação junto às Secretarias de Fazenda e Cultura, quanto aos trâmites.

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A História Que Eu Conto

A subsecretária de Educação tornou-se chefe de gabinete da secretária de Educação no governo Paes. A importância do conhecimento provou que não é necessário enfrentamento com violência quando se está de posse da arma da inteligência, municiada de cultura e conhecimento. A estratégia foi esperar o período de transição do governo Cesar Maia para o de Eduardo Paes. Mapear os hábitos, os gostos e a postura com que o novo prefeito conduziria a cidade seria fundamental para definir a abordagem e dar o tiro certeiro. O alvo era a cessão de uso do espaço ocupado! Foi no primeiro gabinete itinerante realizado no Barata, no bairro de Realengo, que Binho se aproximou. Ali, percebeu que os secretários estavam à solta, enquanto o assédio ao prefeito era desesperador. O secretário que despertava mais interesse era o de Obras, na ocasião, Luiz Antônio Guaraná. Em outros tantos dias foram traçadas as mesmas estratégias com o propósito de cercar o prefeito por intermédio das pessoas de sua confiança, para que quando enfim houvesse o encontro direto, ao consultá-los, ele tivesse nossas referências. Durante meses foi assim, e quando o prefeito foi a Vila Aliança, a confusão foi ainda pior. De acordo com o plano dos Três Loucos, por questão estratégica, Binho teve o trabalho de apenas, como eles dizem, mostrar a cara! Ser visto ali para depois ser lembrado. O prefeito recebeu o documento, assinou, mal olhou para a cara do Binho, mas o objetivo foi cumprido. Jorge Felippe, o primeiro parlamentar a pisar no CCHC, tornou-se presidente da Câmara dos Vereadores. Adílson Pires foi líder do governo na mesma casa. Ambos braços direitos do prefeito, ambos com relações diretas com os Três Loucos. Em visita ao CCHC, o vereador Adílson Pires perguntou objetivamente: “O que posso fazer por vocês?” Resposta óbvia: “Queremos chegar ao prefeito e que ele nos dê a cessão de uso, e que seja assinada aqui no CCHC.” 116


cap.07 Causos inesquecíveis

Era 23 de junho de 2009, quando a reposta veio através do subsecretário de Educação. O prefeito autorizou a cessão de uso sem pedir nada em troca. Sem saberem, davam nosso presente de um ano de ocupação. Vamos seguir os trâmites. O que parecia fácil de resolver, fez lembrar a máxima de não haver facilidade para estes Três Loucos. A cessão de uso era fundamental para uma série de deveres a serem cumpridos — para a formalização no endereço, alvará, assinatura do Ponto de Cultura, que aliás, é o único investimento do governo do Estado até o momento em que este livro foi escrito. Mas o que é do Cabral está guardado — por aqui não tem Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) nem Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e muito menos, como o Jê sempre fala, não é rota do marketing cultural. Como diz o jargão do funk, “é nós na fita!” Os trâmites foram mais complicados do que o esperado. Foi descoberto que o terreno não pertencia à SME, fomos à Secretaria de Cultura, mas também não era da sua competência. Quando foi descoberto que o terreno pertencia à Fundação Parques e Jardins, em uma reunião com o engenheiro da FPJ, a Nena estava com Binho, e presenciou a dificuldade que foi ter de argumentar e convencê-lo da importância de um centro cultural naquele lugar. Irredutível, Binho fazia planos para uma praça e mostrou as que haviam ao redor sem estrutura nenhuma. Com muito custo, o documento foi assinado para dar prosseguimento aos trâmites. Foram, durante essas articulações, 14 longos meses de angústia, empenho, além de contar com parceiros que foram se somando no percurso: Ricardo do Espírito Santo, da Secretaria Municipal de Fazenda; Fabrício Tanuri, superintendente de Patrimônio também da SMF; Ariane Eloy, Marcus Biriba e Nelson Miraldi da Secretaria Municipal de Obras, da equipe do Guaraná, que se tornou chefe de gabinete do prefeito depois do trágico acidente aéreo da Air France, onde o seu antecessor foi vitimado. Na Secretaria de Cultura, o apoio do subsecretário Mario Del Rei foi decisivo para agilizar a tramitação.

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A História Que Eu Conto

Em companhia do vereador Adílson Pires, o prefeito foi anunciar uma obra em Senador Camará. Neste dia, Binho e Samuca foram convidados e, na chegada das autoridades, os dois foram chamados para que o prefeito desse uma palavra sobre a conversa que tivera com o Adílson durante o percurso. Em sua explanação, Eduardo Paes mencionou a luta dos Três Loucos e confirmou que a cessão de uso era uma conquista legítima. No dia 12 de agosto de 2010, finalmente, o prefeito foi ao CCHC assinar o tão sonhado documento. Foi inevitável para Samuca, Jê e Binho não rever mentalmente o filme de seus desafios para atingirem aquela meta.

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AdÍlson Pires, Jê, Eduardo Paes, Binho e Samuca na assinatura da cessão de uso da Escola Municipal Austregésilo de Athayde.

Os Três Loucos.

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A História Que Eu Conto

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Segundo o seu olhar Segundo o seu olhar nos lisonjeia não somente com o ponto de vista das pessoas que diretamente apoiaram desde o início — ou no decorrer desta trajetória — e agregaram suas próprias histórias de vida à Saga dos Três Loucos. É a expressão do sentimento dos que se motivam nos motivando com a inevitável emoção.

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“O quanto vale seu olhar Pra se materializar um sonho Pra que a radiação da bomba atômica De um outro olhar, de um ser humano Em desumana ação Não torne infértil a terra que Há de brotar a esperança Nem faça extinto o amor De um nobre coração De um erro há de se tirar A base que se faz acerto Das cinzas podem renascer as chamas Em asa pra voar Pra internamente se romper barreiras Ter seu direito de ser gente, gente Resgata a vida seu valor Segundo o seu olhar E o que é que importa o que eu sou Segundo o seu olhar? E o que significa a dor Segundo o seu olhar? A violência o que é Segundo o seu olhar? E o que significa o amor Segundo o seu olhar?”

Segundo o seu olhar, música composta por Samuca para a inauguração do CCHC.


A História Que Eu Conto

A minha visão é a que eu conto Segundo Douglas Cristóvão,* 15 anos

Minha vida mudou depois que eu entrei para o CCHC. Tudo o que fui aprendendo fui levando para a minha vida, amizade aprendi aqui, um mundo diferente que me fez saber quem eu sou, aprendi a me respeitar e também a respeitar outras pessoas, assim como na minha família, a minha relação com o meu pai mudou, agora eu o respeito, minhas irmãs, não as perturbo mais. Os conhecimentos que aqui aprendi eu os pratico na escola. Graças ao CCHC estou tentando me superar cada vez mais na escola, a roda de leitura me ajudou bastante, ampliando meus conhecimentos, mudou o meu modo de viver, me mostrou o que é cultura, e me mudou para melhor.

*Douglas Cristóvão é morador da Vila Aliança e aluno de teatro do CCHC.

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cap.08 Segundo o seu olhar

CCHC pra mim! Segundo Hendel da Silva de Souza*

Olá! Sou Hendel da Silva de Souza, tenho 14 anos. Sou da Instituição Centro Cultural A História que Eu Conto. Vivo na comunidade de Vila Aliança, pois é lá onde pretendo viver toda a minha vida. Graças a Deus por eu ter conhecido uma amiga que queria o meu bem, foi ela quem me mostrou o CCHC. Eu conheci o teatro. Foi na instituição onde eu aprendi a viver, pois eu era um moleque e achava que o mundo era brincadeira. Mas no CCHC vivi minha vida até hoje. O Centro Cultural pra mim é tudo que eu preciso para viver minha vida. A instituição é um lugar onde eu gosto de viver.

*Hendel da Silva de Souza é morador da Vila Aliança e aluno de teatro do CCHC.

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Peรงa teatral O Jovem Guri, produzida por Luiz Fernando Pereira Pinto, no Ciep Chiquinha Gonzaga.



A História Que Eu Conto

Uma história que eu conto... Segundo Michel Robin Rabinowitz*

Depois de diversas incursões em trabalhos em comunidades de baixa renda, eu havia chegado à triste conclusão que todo trabalho feito nestes locais, por mais bem-intencionados que fossem, resultava apenas em um “enxugar gelo”. A vida, no entanto, me levou a um encontro com um grupo de pessoas da Zona Oeste, moradores de Vila Aliança, criadores do Centro Cultural A História Que Eu Conto. Estes vêm me mostrando e ensinando coisas que reverteram essa minha perspectiva. Em outras palavras, vivo hoje a alegria de participar das transformações luminosas nesta comunidade. Mas afinal, quais foram os elementos que fizeram a diferença e mudaram meu olhar? O que faz com que este grupo de pessoas, em pouco mais de dois anos, tenha conquistado, não só uma melhoria em suas condições, mas produzido uma irradiação tão marcante em sua vizinhança e uma tão forte impressão nas muitas pessoas que com eles têm contato? São várias as razões e vale a pena enumerá-las. Assim, quem sabe isso possa inspirar pessoas que tenham interesse neste tema? Assim, quem sabe essas evidências possam fazê-las mudar os olhares que a mídia impinge constantemente quando menciona a Zona Oeste e as comunidades de baixa renda? Sempre nos jornais são tratados como locais onde só existem violência e degradação. Quem sabe possam ver também essas regiões como celeiros de criatividade, força, alegria e inspiração? A começar, vejamos a postura dos fundadores do Centro Cultural A História Que Eu Conto por meio do mote enun126


cap.08 Segundo o seu olhar

ciado por este grupo: “Aqui só pode fazer parte da diretoria gente com história de superação.” Em outros termos, a composição desta frente é constituída basicamente por três pessoas. Uma delas, tendo entrado para o crime, reconstruiu uma nova percepção de si e do mundo e, tendo comido o pão que o diabo amassou ao sair da cadeia, conseguiu mudar a trajetória predestinada a um fim dramático (que engole vários na mesma situação). Este passou a ser uma referência de transformação para muitos e muitos de seu entorno. Outro componente deste trio é um jovem que flertou com o tráfico e conseguiu, com ajuda deste primeiro, resistir à tentação e sair dessa. O terceiro formou-se em uma faculdade a custo de muito esforço. Agregaram-se a estes três “loucos” outras tantas pessoas que, apesar de suas perdas cruciais, e de graves histórias de abandono, encontraram apoio uns nos outros. São conduzidos neste centro trabalhos que mesclam cuidados, desenvolvimento de convívio social, educação e múltiplas formas de expressão cultural. Reunidas, estas pessoas se colocaram com uma atitude digna de nota que é a resistência à tentação de aceitar as famosas ajudas financeiras de políticos oportunistas que querem fazer seu nome à custa do sucesso deste grupo e de suas realizações. “Não queremos ter o rabo preso a nenhum político ou partido.” Outro ingrediente fundamental é sua avidez por aprender. Buscam, através de quaisquer vislumbres de oportunidade, frequentar cursos e se associarem a movimentos que consideram estimulantes para sua trajetória cultural. Não só aproveitam para si mesmos e para o Centro Cultural, mas, à medida que podem, procuram passar a outros os conhecimentos adquiridos. Neste movimento aprenderam a desenvolver projetos e apresentá-los a instituições financiadoras. Percebem o respeito que despertam por empenharem-se em apresentar relatórios e prestar contas. 127


A História Que Eu Conto

Uma das diferenças — com relação às outras experiências que tive em comunidades — fala de um tipo de discurso que ouvi muito e que entoa: “Você é um privilegiado, não sabe o que é viver nestas condições”; “Você vem da Zona Sul e não sabe o que a gente passa aqui”; “Você não tem a história de sofrimento que a gente tem”. Por certo estas frases têm algo de verdade, mas são colocadas numa atitude arrogante, que parece querer fazer ressoar culpa, e que resulta em um empurrão, esfriando o impulso das pessoas que se sentem envolvidas pelo desejo de contribuir de alguma forma para mudar essa realidade. Chamo a atenção para este fator específico, pois ele se reverte em um obstáculo forte que impede o fluxo de expressão de solidariedade sincera que percebo ressoar em um cada vez maior número de pessoas. Estas acabam se sentindo diminuídas e afastadas, e, em pouco tempo, acabam se retirando e deixando muito menos aportes do que poderiam. Esta é uma atitude que contribui para a manutenção do status quo e reafirma a decantada “cidade partida”. Faz parte da hipnose cotidiana ditada pelos modelos anacrônicos que nos envolvem, pela educação estagnada e pelos hábitos. Esta mescla de fatores, repito, é perversamente enfatizada e cristalizada pelos meios de comunicação. O contraste que faz a diferença é que no CCHC a filosofia é a abertura para receber aqueles que se aproximam, sem preconceito, incluindo e absorvendo o que cada um pode oferecer e deseja trocar. Isto faz com que rapidamente as pessoas que aí chegam se sintam parte do que o centro deseja construir. Penso que o contato com eles aciona um componente que carregamos dentro de nós. Aquele que podemos ver com mais clareza nas crianças. Aquele que ao ver um grupo animado, luminoso, realizando algo, nos impulsionava a querer participar da brincadeira, do grupo, a participar daquela vibração, daquela construção. Com o tempo vamos nos tornando pessoas sérias e isoladas em busca de um lugar ao 128


cap.08 Segundo o seu olhar

sol através de posses, poder, reconhecimento social e outras formas de redução de nossa capacidade de estar junto. Quem não teve a vontade de construir um lugar onde seja possível concretizar tudo que a gente imaginou quando éramos pequenos? Uma cura para a cidade. Internamente, a criança que faz parte de nossa constituição humana vive buscando um lugar onde realizar-se. É aquela parte que não desiste de buscar a realização de sonhos, de estar junto construindo, de voltar a acreditar no: "Vamos realizar um sonho?" A representação desta atitude é o abraço — uma manifestação que assinalo e que sempre me envolve nos encontros que vivo no CCHC. O abraço tem a característica de permitir àquele que abraça sentir a si mesmo e ao outro. Se eu sou parte do problema, também sou parte da solução. Um abraço e meu agradecimento ao Samuca, Binho e Jê.

*Michel Robin é embaixador cultural do CCHC, terapeuta psicocorporal.

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A História Que Eu Conto

Segundo Fábio Quadros*

A primeira vez que tive conhecimento da criação do Centro Cultural A História Que Eu Conto foi em uma reunião breve em que orientei o Binho para legalizar uma empresa. Eu recebo pessoas com estas dúvidas quase todos os dias na Acerb (Associação Comercial e Empresarial da Região de Bangu) e como é de costume passei as informações e desejei boa sorte. O tempo passou e tive o segundo contato com os “sonhadores favelados”, desta vez não foi um simples encontro, foi um pedido de apoio que mudaria o meu prazer de fazer negócios. Desta vez eu realmente conheci os Três Loucos e vi o quanto era belo o projeto que já estava sendo construído dentro da Vila Aliança com muito suor. Eu não poderia deixar de tentar ajudar pessoas maravilhosas que realmente prestam serviços à sociedade e fazem um grande esforço para mudar a imagem de uma comunidade carente, ou seja, deixar de mostrar os moradores como coitadinhos e passarem a ser vistos como artistas. Depois que consegui o primeiro apoio para o CCHC eu percebi o que é o retorno de um negócio prazeroso, abracei o projeto dos meninos e como contrapartida senti o verdadeiro prazer da vida, fazer por quem realmente precisa. A partir deste apoio, eu olho para os produtores culturais com outro ponto de vista e hoje posso dizer que nada se compara a oferecer apoio a pessoas certas. E sentir que o negócio não é somente o lucro e pode me dar um retorno que nenhum salário do mundo pode me oferecer, a satisfação plena.

*Fábio Quadros é embaixador cultural do CCHC e secretário executivo da Acerb (Associação Comercial e Empresarial da Região de Bangu).

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cap.08 Segundo o seu olhar

Segundo Luiz Fernando Sarmento*

Movimentos relacionados Há uma criança que vive em mim. Como em outros. Há um lugar na minha memória infantil que poderia ter sido Vila Aliança. Descubro que um quanto de tudo acontece um tanto ao mesmo tempo. Quando lembro A História Que Eu Conto surgem recordações paralelas, de alguma maneira relacionadas àquele espaço e movimento. Como se estivessem repousando na mesma caixa daquele tempo. Pra mim é a vida inesperada como acontece. Parece confuso e é.

Lembranças Admiro a inteligência do outro. Pressuponho o leitor — você — como editor, me permito escrever fora de ordem. Certeza mesmo não tenho. Arrisco contar o que me vem. Tudo misturado, nos mesmos tempos. Assim, esta é a história que eu conto. Em mim como em todos, ou quase, tudo começa em casa. Mamãe professora, eu quarto filho, uma terra com sal, Salinas. O sol das tardes, a feira e os cheiros, feijão, farinha, rapadura. O Vale do Jequitinhonha. Os barros, as botijas, os boizinhos. Requeijão e melado. Boas lembranças, difusas, de uma infância ali. Pra mim não havia pobreza nem riqueza. Os afetos me supriam. Havia os medos. Mas meu mundo era ali, aquele, não mais. E este mundo ficou em mim, mesmo depois que me tornei cidadão de outros mundos. Estas lembranças facilitam identificações, hoje e talvez sempre, com mundos de algum jeito semelhantes ao meu mundo original. Minha Salinas tem um tanto de Vila Aliança. E o Centro Cultural lembra quem sou. 131


A História Que Eu Conto

Sementes Sabe aquela imagem que você viu no Jornal Nacional da TV Globo? Aquela filmada de dentro de um helicóptero, ratátá-ratátá-ratátá de balas saindo à procura de jovens alvos humanos lá embaixo? Foi lá, em Vila Aliança. Os alvos correm ziguezagueiam, as balas alcançam, os corpos caem, pronto, missão cumprida. Naquele dia, há muito Samuca já tinha saído da prisão. Cumprira pena por sequestro. Condenação de 15 anos. Passam-se sete, reflete, tem conversas com a psicóloga, insights. Resolve redirecionar sua sabedoria. Cuidará de jovens da sua terra. Uma escola pública, em Vila Aliança, é desativada pela prefeitura. George Cleber, o Binho, sabe que prédios públicos abandonados podem ser ocupados em benefício da população. Já junto com Jeferson — o Cora — e Samuca, toma de baldes, vassouras e limpam a área. Está pronta a semente física do Centro Cultural A História Que Eu Conto. O sonho brota. Binho já acumulava livros em casa, embrião de biblioteca comunitária. Jeferson fazia arte, graffiti. Samuca, música. Imagino conversas e conversas com um e uma, outra e outro. Oscar, Bartolomeu, Neti, Luiz Fernando, Nena... Vínculos se reforçam, desejos se encontram, mais interessados chegam mais. A turma aumenta. Mulheres, homens, jovens, crianças. Mais gente que minha memória. Sei que nesta época eu trabalhava para o Sesc-Rio, com Gilberto Fugimoto. Um conselheiro, Adriano Londres, encontra-se com Samuca, se interessa, fala com o Dionino Colaneri, diretor-geral. Dionino fala com Gilberto. Gilberto e eu vamos lá. Sugerimos que pesquisem, mapeiem quem tem interesse em contribuir para a melhora de Vila Aliança. E convidem a eles e a nós para uma reunião. 132


cap.08 Segundo o seu olhar

Mais de quarenta pessoas na hora marcada. Curiosidades e desejos presentes. Uma roda, duas perguntas pra cada um: em relação à Vila Aliança, o que você oferece? O que você procura? Dois minutos para responder, por favor. Para facilitar, escreva suas respostas, inclua seu nome, telefone, e-mail. Cada fala, uma surpresa. Ofertas e procuras cruzam os ares. Um recreio, um lanche, as conversas rolam, aproximações, confianças estimuladas, parcerias aventadas, germinam vínculos. Depois, as ofertas e procuras são digitadas e compartilhadas com quem esteve no encontro e com quem não esteve. Ainda tímida, a rede se espalha. O tal do capital social mostra a cara. A inteligência coletiva fica clara. Em outros encontros, vêm mais pessoas. Instituições se interessam, chegam. Não sei como foi no detalhe, mas a cada ida a Vila Aliança, novidades. As pessoas se movimentam, se encontram, pensam, propõem, planejam, projetam, buscam e somam recursos, agem, realizam. A biblioteca se expande, o teatro atua, cursos e oficinas se experimentam. No dia a dia, imagino, diferentes visões de mundo geraram discussões, conflitos. Mas alguma coisa, não sei exatamente o quê, era diferente ali. Talvez a expressão dos afetos e dos desejos. Algo impalpável. Ética? Solidariedade? Delicadeza? Sei que este algo me mobilizava para me deslocar e estar volta e meia lá, com o que estava ao meu alcance. O Jean Engel Martinez, antes de Gilberto Fugimoto e eu, já atuava junto. Outras pessoas se interessaram, colaboraram voluntariamente ou como instituições. Vieram inteiros. Da Zona Sul, lembro de Pedro Cláudio Cunca Bocayúva, Alex Vargas, Cláudia Pfeiffer, Caio Silveira, Luciana Phebo, Márcia dos Anjos, Carolina Pellegrino, Lídia Nobre, Michel Robin, Armênio Graça, Bel Lobo, Thamires Ribeiro, Vitor Pordeus... Menos de três anos depois veio o prefeito, assina autorização formal para uso do espaço. Antes, pelo Ministério da Cultura, o Centro é feito Ponto de Cultura.

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A História Que Eu Conto

Livres associações Chutando, fui a Vila Aliança umas vinte, trinta vezes. Uma hora de viagem, se trânsito bom. Já nas primeiras ruas abaixávamos o vidro do carro, expondo quem estava dentro. Na primeira vez que fui, tudo novo pra mim, sentei na frente com quem dirigia e liguei minha câmera, direto, num plano sequência quase sem fim. Gravei o que via na frente, virava pro lado, voltava. Quando paramos o carro na porta do Centro Cultural, num átimo, freou também um carrão potente e da janela do motorista surgiu uma mão e voz firmes: me dá a câmera! Ingênuo, recusei, fala tranquila: não vou dar meu brinquedo não. A voz, com autoridade, repetiu: me dá esta câmera! Caiu minha ficha. Abri a porta do carro e quando levantei vi no colo dos dois homens armas potentes — fuzis, metralhadoras? Entreguei a câmera. Justo neste intervalo surgiu Samuca e se apresentou calmamente, digno mas respeitoso, aos dois homens. A câmera e a voz voltaram pra mim: vê lá, coroa, o que está filmando! Agradeci a compreensão. Já dentro do Centro, soube da tensão presente no bairro com uma esperada invasão inimiga. Vila Aliança faz, pra mim, jus ao nome. Gosto dos afetos que lá rolam. Gentileza gera gentileza, eu sei. Ali mais me aliei a outros amigos.

Movimentos emocionais Michel Robin Rabinowitz, nos conhecemos nos anos 1970, aproximados pelo Ralph Viana com sua Rádice e seus simpósios focados em alternativas no espaço psi. Nos reaproximamos há poucos anos, em comum interessados no crescimento próprio e do outro, de outros. Cursamos jun134


cap.08 Segundo o seu olhar

tos Terapia Comunitária. Antes promovemos os encontros Mets — Movimento Emocional e Transformações Sociais. Uma tentativa de aprendermos o que provoca mudanças de comportamento. No meio do processo, já numa sala vazia do Centro de Deborah Colker cedida pelo João Elias, sem móveis, em roda, cada participante trazia sua experiência e eventualmente algo pro café coletivo. As apresentações eram respostas à pergunta “Quem sou?” e não “Que faço?”. Até que Maria Tereza Maldonado nos falou do movimento de Adalberto de Paula Barreto. Aprendemos e aplicamos. No Centro Cultural, em Vila Aliança, fizemos algumas vezes. A maioria dos participantes, mulheres.

Afetos Lembro que a Cidade de Deus é coirmã da Vila Aliança, da Vila Kennedy. Os moradores iniciais de todas elas, na década de 1960, são originários de favelas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Entre outras, uma reclamação constante é das novas localidades não terem infraestrutura para receber os novos moradores — faltavam, ainda faltam, escolas, hospitais, serviços básicos. E, grave, remoções efetuadas à revelia dos desejos de removidos. Mas nem tudo é economia. A cultura de Vila Aliança inclui solidariedade entre outros afetos básicos. Cultivos de quem vivenciou junto situações cômodas e incômodas. Sinto que o Centro Cultural marca bem quem dele participa e frequenta. Eu pessoalmente o admiro enquanto movimento. Confesso minha insegurança quando se consolida como instituição. Vejo o movimento como livre, inesperado, onde cada um faz o que está ao seu alcance. Já regras institucionais — só olhar o mundo ao redor — tendem a se enrijecer e recusar movimentos libertários. No espelho me pergunto o sentido da vida. O que me alegra, me dá sentido, são os afetos e os movimentos que geram e reproduzem. 135


A História Que Eu Conto

O Centro Cultural A História Que Eu Conto, pra mim, foi também um espaço para a prática esporádica do que venho aprendendo na vida. Meu grande capital é o afetivo, as relações que construí e construo. E mais: no dia a dia, tem me facilitado a vida separar o que é meu do que é do outro, especialmente as loucuras.

Agências de (in)Formações “Queremos ser referência pro mundo.” Não sei se dito assim, ouvi assim de Jeferson, Samuca ou Binho, não sei. Sei que, junto com Oscar Pereira, semearam, dentro do Centro Cultural, uma agência audiovisual de informações. Do outro lado, observa-se: há conteúdos de qualidade ainda invisíveis para a maioria da população. Há veículos potencialmente interessados em difundir estas informações. Há públicos potencialmente interessados nestes conteúdos. Há instituições potencialmente apoiadoras e/ou financiadoras de agências de informações de interesse das populações. Há pessoas e instituições interessadas em fazer circular estas informações. A ideia é simples. Uma agência, inicialmente com informações atemporais. Uma pessoa, computador, telefone, scanner, fax, internet, softwares que facilitem acesso a veículos de comunicação. Um espaço, que pode ser residência. Esta pessoa: contata e articula produtores de informações atemporais. Constrói um baú virtual de textos disponibilizáveis. Contata e articula editores e colunistas de veículos de comunicação em todo o país. Oferece os textos do baú. Esta pessoa: ao aprender, fazendo, testa e reconstrói uma metodologia singela que possa ser compartilhada com instituições e pessoas ativas, interessadas em montar suas próprias agências para fomentar a difusão — através de veículos de comunicação já existentes — de informações específicas atemporais. 136


cap.08 Segundo o seu olhar

Existem fontes — individuais, comunitárias, ongs, oscips... Existem veículos potencialmente interessados — jornais, revistas, rádios, tvs. E os virtuais, inventados ou por inventar — sites, blogs, Orkut... As fontes não têm normalmente conexão com os veículos. Agências de (in)Formações podem ter esta função: colher conteúdos de qualidade e disponibilizá-los para veículos que os ofereçam aos públicos.

O outro lado Uma vez, em Vila Aliança, impressionantes os helicópteros blindados sobrevoando a comunidade, enquanto embaixo viaturas da polícia e homens a pé buscavam seus alvos. Doze carros da imprensa acompanhavam a invasão. Em relação àquela imprensa, o morador mais próximo sussurra: “Lá vão os urubus.” É que se deslocavam pra onde havia sangue, mortos, violência. Neste dia, ao mesmo tempo — criada e organizada por moradores locais — acontecia nossa reunião de planejamento de um fórum de desenvolvimento local de Vila Aliança e, conforme os locais dos confrontos mudavam, mudávamos de sala. Isto no Centro Cultural.

Alianças Em Vila Aliança lembrei minha infância, especialmente pela solidariedade a que assisti. Vi práticas de redes onde cada um falou do que estava ao seu alcance em relação à comunidade. Muitas ofertas, muitas procuras. Vi rodas de conversas como livre pensar. Outras focadas em formação de universidades populares, agências de informações, desenvolvimento pessoal e comunitário, em teatro, música, dança, bibliotecas de uso comum, arquitetura, artes, cultura, terapia, estética, ética.

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A História Que Eu Conto

Assisti encontros de mães de família, avós. Encontros de trabalhadores em seus anseios e contribuições para o cotidiano ir além do trabalho e da sobrevivência. Vi resiliência germinando, aquilo de dar voltas por cima, transformações com os próprios recursos. Vi instituições externas se aproximarem, criarem vínculos, interagirem, cumprindo suas missões. Vi crianças e jovens em atividade. Tantas emoções, as cômodas, as incômodas, transformadoras. O Centro Cultural é um mundo. Nascido e mantido pelos desejos e gestos de cada um que o frequenta e colabora. O que lá vivi me diz que o Centro Cultural A História Que Eu Conto é uma ideia, um espaço e um processo de evolução. Composto por gente, passível de erros e acertos. Sorte minha ter estado ali neste tempo, nesta companhia.

*Luiz Fernando Sarmento é embaixador cultural do CCHC, idealizador e fomentador das Redes Comunitárias do Sesc.

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Oficina de cinema do CCHC.

Oficina de graffiti do CCHC.

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A História Que Eu Conto

Segundo Bel Lobo*

Estava calçando os sapatos logo após uma aula de dança, quando o professor Michel Robin sentou ao meu lado e disse: "Acho que arranjei clientes para a arquitetura solidária que você vive dizendo querer fazer!" E continuou... “São três guerreiros que desenvolvem um trabalho incrível em Bangu!” Contou mais um pouco e eu disse: “Oba!! Vou alugar uma van e levar o escritório todo para conhecê-los!” Na semana seguinte estávamos sendo recebidos com sorrisos e abraços, naquela construção de madeira que me lembrou a escola pública em que havia estudado na infância. Empatia instantânea! Binho e Jê foram nos apresentando o espaço, as pessoas e nos contando as primeiras histórias de muitas. Tenho algumas imagens na cabeça de cenas emocionantes que nunca vi: eles sentados na escada de suas casas planejando suas ações... Colhendo assinaturas por toda comunidade de Vila Aliança para poder ocupar o espaço da escola que fora abandonada por causa da violência... Fui querendo doar meu trabalho e percebi imediatamente que quem iria ganhar alguma coisa ali era eu! Sentamos na frente do Centro para tomar um café e começar a trocar desejos e ideias... Pude ver então como a comunidade em volta se relacionava de maneira íntima e tranquila com o lugar. O portão sempre aberto convidava crianças, adultos e velhinhos, que entravam calmamente nos cumprimentando e seguindo para suas atividades. 140


cap.08 Segundo o seu olhar

O espaço estava vivo, funcionando e muito bem-organizado. O meu trabalho seria criar uma arquitetura digna daquela alma! Para chegar ali, consultei o Google Maps e vi que por trás daquele mar de construções de três andares da comunidade existiam montanhas lindas que eram impossíveis de se ver da altura do solo. Em nosso tour de apresentação pelo Centro, encontrei no chão uma pipa do Fluminense clareada pelo sol. Andei com ela na mão pensando em levá-la para meu filho, Flu roxo, até que dois meninos, pelo lado de fora da cerca, me pediram o brinquedo para se juntarem aos outros muitos que empinavam ao redor. Resolvi então que independente da arquitetura que faria ali, o teto deveria ser uma grande praça verde, um "pipódromo" com vista para as montanhas. Na segunda ida ao local tivemos o prazer de ouvir Samuca cantar e contar suas histórias de superação e esperança. Um amigo arquiteto que nos acompanhou até lá, Argus Caruso, ao ouvi-lo traduziu bem: — Samuca desistiu de fazer terrorismo e resolveu praticar o "amorismo"! Voltamos algumas vezes para conversar com todos: coordenadores, professores e alunos. A equipe do Centro, sempre muito envolvida, sabia exatamente o que funcionaria ou não. A encomenda era uma arquitetura que colocasse Vila Aliança no mapa do Rio de Janeiro. Desenvolvemos vários estudos, todos com a premissa das duas praças verdes. Apresentamos dois caminhos para os três guerreiros e seus gurus Luiz Fernando Sarmento e Michel Robin. Escolhemos um a seguir. Precisaríamos então correr com um projeto básico que servisse para orçar, pois havia a possibilidade da obra ser licitada pela Prefeitura. 141


A História Que Eu Conto

Juntamos voluntários de dentro e de fora do escritório para depois do horário fazermos todo o trabalho na urgência que ele tinha. Encaminhamos as plantas para as pessoas responsáveis pelo processo de licitação, mas vi que utilizando só o tempo extra do escritório, não conseguiria dar conta das demandas e prazos. Para que tudo desse certo, precisaria de alguém fazendo aquele projeto integralmente. Contratei então para isso o meu "luxo", que é como chamo Antônio Coutinho. Um jovem arquiteto talentoso que havia sido meu estagiário e acabara de receber o primeiro prêmio no concurso "Opera Prima" com seu projeto de formatura. Ao convidá-lo para desenvolver o projeto dei-lhe a liberdade de modificar o que ele achasse necessário. Fomos novamente ao Centro para apresentá-lo para Antônio. Em seu método de trabalho ele costuma escrever antes de dar os primeiros traços. Encantou a todos lendo aquele texto que mais parecia uma poesia, enquanto nos refugiávamos agachados na cozinha do Centro (único espaço de alvenaria) para nos proteger de um tiroteio próximo dali. Na sequência do trabalho, arregimentou auxiliares no escritório e desenvolveram um novo desenho. Quando me apresentaram vi que tinham privilegiado uma arquitetura de impacto, mas haviam desconsiderado as praças. Insisti no conceito anterior e na necessidade daquela região de contar com espaços verdes amplos. O projeto foi desenvolvido e apresentado em uma festa em que o Centro homenageou seus colaboradores e amigos. Sucesso total! Agora era batalhar para botá-lo de pé! Antônio pegou para si esta incumbência junto com os meninos do Centro, todos muito articulados e destemidos.

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cap.08 Segundo o seu olhar

O resto desta história está sendo escrito linha a linha, com alguns parágrafos que emperram de vez em quando, mas que não nos desanimam. CCHC virou para mim uma sigla que traduz tudo que some amor, coragem e determinação.

*Bel Lobo é arquiteta e embaixadora cultural do CCHC, responsável pelo Escritório Be.Bo de Arquitetura.

Futura Sede do CCHC.

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A História Que Eu Conto

Era uma vez... A história que eles contam Segundo Alexandre Bárbara*

O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu, certa vez, que os pobres brasileiros não tiveram o direito de fazer história: estariam condenados, sim, a padecer dela — graças a toda exploração, opressão e sofrimento a que foram submetidos. Mas no início de um novo século, três jovens moradores de uma comunidade de baixa renda do subúrbio do Rio de Janeiro resolveram que esta máxima deveria abrir exceções. Binho, Samuca e Jê. George Cleber, Samuel e Jefferson. Um intelectual, um militante e um artista. Ou três intelectuais, três militantes e, acima de tudo, três artistas. Artistas porque ousaram criar vida onde os noticiários e reportagens só vendiam morte. Que ousaram oferecer arte ao invés da mão de obra barata, do corpo explorado, da vida sem vida. Que ousaram coletivizar em um território e um tempo em que se propaga o “cada um por si”. Tive o prazer de conhecer os três há alguns anos. Com cada um aprendi um pouco. Samuca, o guerreiro, de fala mansa e olhos nos olhos, de convicções rígidas e alma suave. Binho, uma mente que não para, um “favelado” (como ele mesmo sempre se autodenomina) que tem as antenas voltadas para o mundo, um sociólogo da vida e da Academia. Jê, o talento bruto, a criatividade que brota da escassez, da aridez, transformando em cor tudo que parece cinza. Juntos, coletivizando, compartilhando e aprendendo, estes três caras criaram em Vila Aliança, Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro, mais que uma instituição não governamental, que oferece atividades para crianças e adolescentes e que promove inclusão social. Juntos eles criaram uma nova janela para a comunidade. 144


cap.08 Segundo o seu olhar

Janela que deixa entrar a luz de fora, dos parceiros, daqueles que como eles querem coletivizar, criar, viver. Janela que deixa à mostra, para quem de fora quiser ver, o talento, a arte, a vontade e a determinação de uma gente que, do nada, cria vida, do cinza descobre cor, do impossível transborda esperança. O Centro Cultural A História que Eu Conto colocou Vila Aliança, antes famosa apenas nas páginas policiais, no circuito das artes, do desenvolvimento social, da educação popular. Tijolo a tijolo, parceiro a parceiro, ação a ação, compartilhando, coletivizando, aprendendo e dividindo. Colocou na cidade do Rio de Janeiro uma nova cor. E coloca no coração de todos aqueles que ainda acreditam que é possível mudar, coletivizar, compartilhar, criar, uma esperança e uma centelha de força a mais para seguir em frente. Eu agradeço a eles. Valeu meninos!

*Alexandre Bárbara é embaixador cultural do CCHC, psicólogo.

Binho e funcionários da obra da nave do conhecimento.

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A História Que Eu Conto

Pertencimento Segundo Antonio Pedro Coutinho*

“Pertencimento, ou o sentimento de pertencimento, é a crença subjetiva numa origem comum que une distintos indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como membros de uma coletividade na qual símbolos expressam valores, medos e aspirações.”(...) (...)“A sensação de pertencimento significa que precisamos nos sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse tal lugar nos pertence, e que assim acreditamos que podemos interferir e, mais do que tudo, que vale a pena interferir na rotina e nos rumos desse tal lugar.”(...) Dicionário de Direitos Humanos, Escola Superior do Ministério Público da União, 2006.

Penso que o sentido real da palavra tenha achado seu verdadeiro significado no projeto do Centro Cultural. Não me resta dúvida que aquele lugar pertence a muitas pessoas, e que ainda há espaço para muitos sonhos se sentirem pertencentes ao Centro Cultural. É possível enxergar toda a teia afetiva costurada por este grupo, a incrível capacidade de desfazer as barreiras socialmente construídas e da inesgotável habilidade de fazer com que a trama de interessados em torno daquele sonho se expanda. Só posso ter a certeza de que tudo somente foi possível graças ao imenso amor e certeza deste grupo pelo que fazem. Cidade partida, que nada!

*Antonio Pedro Coutinho é arquiteto, parceiro de Bel Lobo no Projeto Arquitetônico do Centro Cultural Parque — a futura sede do CCHC. 146


cap.08 Segundo o seu olhar

Segundo Julio Ludemir*

Como os três mosqueteiros, os Três Loucos são quatro: Samuca, Binho, Jeferson e, claro, Bartô. Aprendi muito com todos eles. O espaço de que disponho aqui é insuficiente para que exponha todas as aulas de cidadania e militância cultural que me deram. Comecemos pelo exemplo de Samuca. Foi um dos bandidos mais perigosos do Rio de Janeiro na década de 1980, que saiu da cadeia disposto a impedir que as crianças de sua comunidade tivessem o mesmo destino que ele. E com a coragem que apenas os bandidos têm organizou junto aos demais a ocupação de um espaço público muito antes que a classe média inventasse o Movimento Occupy.3 Esse patrimônio foi uma escola abandonada pelos professores depois de um tiroteio entre traficantes e policiais. Binho, o autor deste livro, é acima de tudo o poeta inspirado que incentiva os frequentadores dos saraus que organiza a fazer seus próprios poemas. Estudou sociologia na Feuc, criou em sua própria casa a aquecida Biblioteca Comunitária Quilombo dos Poetas, que foi a primeira ação concreta a ocupar espaço no recém-inaugurado Centro Cultural História Que Eu Conto, atualmente visitada por centenas de crianças dessa comunidade que parece estar longe, exatamente por ser tão longe, de ser contemplada por uma UPP. O livro o ajudou a mudar tanto o seu destino quanto o de sua comunidade.

3

Movimento Occupy é um movimento de protesto contra a influência empresarial na sociedade e no governo dos Estados Unidos iniciado em 17 de setembro de 2011. 147


A História Que Eu Conto

Irmão mais novo de Binho, Jeferson me parece a mais perfeita tradução para uma das máximas do artista multimídia Marcus Vinicius Faustini: “Pobre tem que aprender tudo rápido.” Com o sorriso que não lhe fugiu do rosto nem mesmo quando a conturbada travessia da Avenida Brasil o fazia se atrasar, esteve em todas as reuniões com as mais variadas instituições, em uma rede que teve como epicentro a Gerência de Assuntos Comunitários do Sesc-Rio, que ajudaram a colocar a Vila Aliança no mapa da cidade formal. Essa rede terminou capturando o prefeito Eduardo Paes, que investiu expressivos recursos para transformar o CCHC no primeiro equipamento cultural público da região. O quarto mosqueteiro é Bartô, um ex-vendedor de livro que me obrigou a rever os fundamentos da minha atividade com observações que apenas uma pessoa que lida diretamente com o público poderia fazer. O antropólogo Marcos Alvito, que já o convidou para uma palestra na UFF, o comparou a Deley do Acari. Ambos militantes do movimento negro e inspirados intelectuais autodidatas da periferia carioca, a principal diferença entre os dois é que Deley trabalha no campo da palavra e Bartô, no das artes plásticas. Seus quadros, inspirados nos personagens do samba, são literalmente uma pintura. *Julio Ludemir é escritor, roteirista e grande incentivador literário no Rio de Janeiro.

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Doação de livros feita por Carroceiro João SENDO RECEBIDA por Binho e GraSiela.


Espetรกculo teatral Quem matou o leรฃo, produzido por Luiz Fernando Pereira Pinto, com texto de Maria Clara Machado.



A História Que Eu Conto

Mudando a própria história Segundo Cleia José Silveira*

Falar sobre o Centro Cultural A História Que Eu Conto é também a oportunidade de destacar e valorizar tantas outras iniciativas que espontaneamente surgem e se firmam fora do centro cultural da cidade, assim como ele. É também homenagear aqueles que contam e constroem a sua própria história. Conviver com aqueles que fazem o Centro Cultural A História Que Eu Conto foi a confirmação de ter como parceiro uma organização que sabe tornar concreto seu sonho, porque faz com garra, faz com emoção e faz com profissionalismo, superando limites e expectativas. A existência deste Centro Cultural muda o rumo e refaz a história da própria Vila Aliança. A ocupação do prédio da antiga Escola Municipal Austregésilo de Athayde pelo Centro Cultural transforma o que poderia ter sido o símbolo da violência, quando uma ação policial deixou um saldo de 14 jovens mortos, no símbolo da resistência, da esperança e da mudança. Um lugar onde se constrói. A crença de que não basta cada um fazer a sua parte, que é preciso receber e envolver no processo de reexistência mais e mais adeptos, fez com que os Três Mosqueteiros — Samuca, Jê e Binho — recebessem e integrassem outros jovens, outros sonhos e novos parceiros para ecoar suas vozes. Nesta aposta também está o sucesso do centro que não se fechou e efetivamente promoveu o protagonismo.

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cap.08 Segundo o seu olhar

Acreditar na possibilidade de construir a própria história e abdicar da ideia de importar modelos é singular, ter a consciência de que seu papel é de defensores e promotores de direitos transcende ao fazer pontual. Ser parte da história foi fundamental nesta trajetória. A experiência do Centro Cultural A História Que Eu Conto quebra com o paradigma de que a cultura é produzida no centro das cidades, provando e construindo uma nova visão de centralidade da produção cultural nas periferias. *Cleia José Silveira é coordenadora do Serviço de Análise e Assessoria ao Projeto da Fase (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional).

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Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da quest達o)


"Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderás julgar. Cada um tem a sua própria história. Não compare a sua vida com a dos outros. Você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida." Clarice Lispector


A História Que Eu Conto

A perguntar — por que colocar em um mesmo capítulo crises e conquistas? Bem, sem presunção ou rodeios, os passos em direção à conquista, além de desafiantes, são conflitantes por demais. Aliás, em uma rica história de empreendedorismo que se preze tem de haver crise, não uma e nem menos que três, sobreviver a elas é ter muito mais que méritos para atingir metas, é estar pronto para avançar para o abraço da vitória. Depois da crise as pessoas têm a oportunidade de se autoavaliarem, expiarem suas atitudes e crescerem, ou não fazerem nada disso. A crise é sempre uma oportunidade de criação e superação, sobretudo, pessoal e emocional, pilares para um profissional saudável. Negócios são pessoas, por isso, se as pessoas estão inseguras, imaturas ou presunçosas, não se faz necessário mais que duas crises para se viver em questão de tempo o outro lado da moeda do outro, dentro de um vice-versa constante e intempestivo que tem a ver com o tempo que cada um tem para compreender-se dentro do que desempenha. Há o tempo de cada um e o tempo real, este não para enquanto as divergências acontecem, no final, prazo é prazo e deve ser cumprido, quem estiver despreparado fica no caminho, e, ao seu tempo, poderá fazer sua caminhada, mas ninguém é obrigado a esperar, o tempo não espera ninguém. Arrumando as ideias, vamos apontar para o norte, é lá onde está a conquista, no caminho, que se faz caminhando — diria o poeta! Existem muitas perguntas, dúvidas, e respostas, quase nenhuma. A maior motivação vem de dentro; chega um momento, porém, em que este dentro transborda a motivação dando lugar ao desgaste por esta busca, é onde mora o problema, qual é a chance de perceber o problema em si, que está na pessoa e não no outro? 156


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

Sempre o plano é visto do ângulo global para o local quando se atribui o problema que gera a crise. A crise parte de um ponto, daí se amplia. Quanto maior a responsabilidade do cargo ocupado ou posicionamento econômico e político, pior o estrago. Quanto mais tempo levar para reconhecer e retificá-la, não com julgamentos e condenações, mas com proposições e resoluções, menor será o estrago. De fato, quem está apto para assumir sua falha diante do próprio espelho? Quem dirá diante de um grupo, independente de seu tamanho ou importância, que errou? Isto exige uma série de preparos para os quais a maioria dos líderes, sobretudo, está distante de alcançar. Tantas voltas para dizer que a vida e convivência entre os Três Loucos não foram, para variar, nada fáceis. Também pudera, perfis diferentes, personalidades e pontos de vista que apontavam como chegar ao caminho comum por trilhas distintas. As divergências balancearam e valorizaram, e muito, as decisões tomadas — até aí não houve crise. Foram dois anos de planejamento, estudos e pesquisas, além de muita necessidade. As dificuldades alimentavam a alma mesmo com seus estômagos parcialmente saciados. Ouviram de tudo; serem chamados de vagabundos em vista disso era elogio. Em silêncio trabalharam e construíram a rota de seus sonhos, para conquistar o sonho comum que tão logo possibilitaria cada um realizar o seu, particular. Samuca sempre ressaltou que eles não teriam necessidade de ganhar dinheiro com a instituição, pois seus talentos e os resultados alcançados os levariam ao êxito, cada um na sua área, a dele, música, a do Jê, cinema e designer, e a do Binho, literatura e dramaturgia. Sempre se orgulharam deste diferencial entre si que se completava nas linguagens e segmentos culturais. Em pouco tempo de fundação o CCHC estava no olho do furacão, onde o problema varreu com o tempo as possibi157


A História Que Eu Conto

lidades de desenvolvimento do território, enquanto estes audaciosos escolhidos se dispuseram reconstruir o território através do resgate histórico. Tudo seguiu de acordo com o planejado, até mesmo o mapa de riscos calculados. Prepararam-se para as adversidades e todo o ataque que, porventura, sofreriam. Construíram uma fortaleza, mas ao contrário do previsto a blindagem foi além da munição utilizada para atacá-los. O elemento da imprevisibilidade estava do lado de dentro — dentro de cada um. Para isso não havia blindagem. A primeira crise foi em 2009. Devido às experiências externas que vivenciava, Binho, que é o presidente de Relações Institucionais, conflitava constantemente com Samuca e Jê, sempre colocando sua opinião e ponto de vista — era com Samuca que as divergências geralmente aconteciam. O Jê ficava, durante um bom tempo, na posição de mediador entre os dois. Neste ano o CCHC teve mais de trinta pessoas como voluntárias, o que tornou impossível evitar os desgastes internos, conversas paralelas que influenciavam negativamente. A Construção Coletiva, uma utopia que colocava em pé de igualdade todos os participantes, mais prejudicou do que contribuiu. A principal razão era simplesmente pelo fato de que a equipe queria ser comandada. Binho até comungava deste ideal, mas achava que era necessário que a equipe estivesse embasada para opinar e contestar, pois, afinal, como eles se preparariam, na hora de argumentar suas ideias? Teriam fundamentos técnicos e não apenas subjetivos? Junte tudo o que foi dito no início deste capítulo sobre as crises pessoais, some ao desgaste mediante as dificuldades temporais, acrescente ao número de pessoas ávidas em ajudar, porém, despreparadas e com pouca ou nenhuma iniciativa que correspondessem às expectativas dos idealizadores do CCHC, qual seria o resultado? 158


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

Binho delegava com mais naturalidade às pessoas, o que causava desconforto com Samuca que o acusava de atropelar sua função de coordenador, e Binho insistia em exigir dele mais pulso. A falta de experiência e até mesmo a imaturidade de Binho não faziam dele um lorde com as palavras, que constantemente as usava no imperativo, fato inadmissível para um lugar estabelecido no sentimento e no afeto. Samuca sempre disse que ficaria por um tempo e depois sairia para dar inicio à sua carreira musical, e durante um bom tempo procurou alguém para substituí-lo. Outros desgastes, e não foram poucos, aconteceram em virtude disso. Até que Binho chamou Jê para uma conversa sobre ele ter sido preparado desde o início para assumir esta função, e que não seria justo com o Samuca ele se eximir de coordenar o CCHC, pois até encontrar alguém poderia durar um tempo inestimável. Jê concordou, relutante, mas diante dos fatos e argumentos não viu alternativa. A liderança sempre esteve na essência de Jê, mas tudo o que vivera, até mesmo no projeto anterior à fundação do CCHC, em que era constantemente comparado ao Samuca, fez com que ele não quisesse assumir as funções mais de frente, não se importava com cargos, aliás, nenhum deles, que fique como ressalva, que em seu plano único os Três Loucos sempre disseram que idealizaram algo que as futuras gerações conduziriam, já a partir dos seus aprendizes atuais, que multiplicariam o conhecimento adquirido. Não era tarefa fácil para ninguém, muito menos para Jê, que praticamente foi intimado a assumir sua função de coordenador geral, posto anteriormente de Samuca. Àquela altura o CCHC já estava sendo reconhecido como um emergente cultural na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A bendita visibilidade, quando vem, tem seus prós e contras inevitáveis.

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A História Que Eu Conto

O CCHC, devido ao planejamento, foi alcançando e alçando voos cada vez mais altos em curto prazo de existência jurídica, um feito surpreendente até para os mais experientes e bem-sucedidos empreendedores. Contudo, as pessoas não têm o hábito de considerar esta etapa principal que é o planejamento, mas o sucesso da execução está nesta prática pouco explorada. Não tardou para que os conflitos entre Binho e Jê começassem, e o agravante foi envolver problemas familiares com os profissionais, era impossível de separar as duas coisas. Enquanto Binho via como problema comum entre sócios, o que acontece em toda instituição, levado mais pelo lado do afeto, Jê se angustiava cada vez mais com o passar do tempo. Houve um momento em que o CCHC praticamente esteve literalmente dividido entre os que estavam ao lado do Binho e os que estavam ao lado de Samuca e Jê. Lado A e Lado B. Isso não seria salutar para ninguém, muito menos aos beneficiários, o que poria em risco os planos, já que não estava no script o fogo amigo. Ainda assim, 2009 foi um ano de conquistas e aprovações de projetos importantes. Ponto de Cultura da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro; Cine Mais Cultura do Ministério da Cultura; Seminário e Fórum de Desenvolvimento Local com o patrocínio da Fase-RJ; viagens para fora do Rio de Janeiro, tendo Binho como representante do CCHC. O ano se encerra com uma forte tentativa de acertar e superar a crise. Na casa onde morava Binho foi feita a festa de encerramento, tudo indicava que a crise estava superada. No início de 2010 as primeiras semanas foram de exaustivos planejamentos. O plano de ter o Grupo de Atendimento à Família, com assistentes sociais, estava iniciando suas problematizações. Tal como fez com Samuca, Binho passa a cobrar do Jê sua postura como coordenador, com mais pulso firme, pois não concordava com o fato de ver Thamires tomando decisões que a seu ver caberiam mais ao coor160


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

denador geral, o Jê. Daí foi o estopim para uma crise maior e a ratificação da divisão. Binho sugere a saída de Thamires, eles não suportavam mais um ao outro. Naquela altura, ela tornara-se esposa do Samuca, como foi dito anteriormente, é impossível não misturar pessoal com o profissional. Binho aproveita sua função externa e se afasta dos dois Loucos; a saída de Thamires frustra profundamente Samuca, não por ser sua esposa, mas por interromper o plano de atender às famílias dos alunos do CCHC. O sentimento, base desta relação, vai se esfriando entre os idealizadores, provocando uma profunda angústia. Em seguida à saída de Thamires, sai também Nena, que era a coordenadora de projetos. Externamente o CCHC ganhava a cena, mas internamente a relação já estava insuportável, os Três Loucos já não eram mais os mesmos, de um lado Jê e Samuca, do outro, Binho, que prefere se afastar e realizar suas tarefas de casa direto para os compromissos externos, se isolando da convivência dos demais, o que abriu precedência para julgamentos, opiniões e conclusões sobre a postura de Binho, que tinha um porquê, mas que até ele mesmo não sabia entender. Os diálogos, mais conhecidos como “papo reto”, em que eram feitos os feedbacks, não aconteciam mais, a relação de afeto de irmão já estava exaurida por parte do Jê, que via Binho como uma referência, mas diante de atitudes que o desagradavam seu sentimento esfriou. Samuca chegou a dizer que sairia, e ficou fora por um tempo para tentar provar que não influenciava as atitudes de Jê. Também disse a Binho que a relação com seu irmão e com ele estava fadada ao fim. Tudo fazia parte de um processo, embora angustiante. Havia uma razão que resultaria num crescimento pessoal, emocional e profissional, o que seria salutar à instituição. Mesmo tendo razões para acreditar nisso, de um ponto de vista espiritual, a imaturidade de Binho não permitia tornar a convivência menos dolorosa. Durante meses esta mácula 161


A História Que Eu Conto

ocupou os Três Corações o espaço antes repleto de amor e cumplicidade. Se os comandantes não vão bem, a embarcação corre perigo, e a tripulação começou a abandonar o navio, não haveria mais razão para seguir e naufragar junto. Poucos ficaram. Não tiraria jamais suas razões. Nesta tempestuosa situação, a mais nova componente do CCHC, que chegou somente para conhecer e distrair-se dos problemas que vivia de cunho pessoal, passa a exercer, ainda que sem saber, um papel fundamental — ela não sabia, mas seria o instrumento que refaria o elo entre os Três Loucos. Vivi, com sua experiência profissional, psicopedagoga, professora e moradora, tinha muito amor para dar, amava a educação, se encantou pelo lugar, conhecido como Encontro dos Sonhos. Claro, o momento não era dos melhores, e aos poucos ela foi tomando conhecimento e adentrando cada vez mais na história. Seu primeiro contato foi com a Nena, mas era com Samuca que ela mais dialogava. Com Jê falava de algumas limitações para compreender a metodologia do CCHC, e Samuca a indicou para fazer a Nobre Arte do Palhaço, com Márcio Libar, que ele próprio havia feito há muito tempo. Através do Sesc-RJ, conseguiu recurso para dois trios do CCHC fazerem também, o foco era convencer Binho, pois Samuca sabia o quanto o chocaria, na primeira turma; Binho recusou-se a ir, pois teria de encontrar Jê, Thamires e Débora, seus desafetos naquele momento. Tempo depois, na segunda turma, com Tiago Borges e Vivi, ainda contrariado Binho foi, para não agravar ainda mais a situação entre eles, já que o Sesc-RJ havia patrocinado através da Assessoria de Projetos Comunitários. Dali por diante, a relação entre Binho e Vivi foi sendo construída com muito profissionalismo e parceria, o mesmo 162


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acontecia entre ela e os demais Loucos. Não foi nada fácil ouvir dos três o que incomodava e desagradava um nos dois e dos dois em um. Como foi escrito, ela seria o elo a partir deste momento em diante, pois ao mesmo tempo que ficava no CCHC e conversava, ouvindo mais do que falando com Jê e Samuca, Vivi saía para fazer cursos com Binho. Foi ela, com todo talento, que redirecionou, sem dar uma de leva e traz, os olhares de um sobre o outro e à medida que a confiança nela aumentava mais ela exercia essa condição de desconstruir a visão deturpada que pairou entre eles. Binho foi se reaproximando, sua angústia dava lugar a uma busca espiritual, sem recorrer à religião, pediu a Deus sabedoria, e a partir deste momento passou a compreender o que acontecia no começo da crise. Aos poucos Binho foi sendo conduzido por uma voz interior a pedir perdão. O grande momento desta etapa refere-se ao reconhecimento sincero de que havia errado, mas o que o impedira tantas vezes foi pensar no que o outro havia feito e que o outro deveria reconhecer sua parte no problema, que o outro isso e o outro aquilo, enfim, a partir do momento em que olhou para o outro lado, o lado de dentro, Binho abrandou-se e até suas feições ficaram amenas, seu coração passaria a encontrar uma paz difícil de ser descrita. Nesta reaproximação dos Três, muito amargurado ainda, Jê mal podia se aproximar de Binho, chegou a declarar por e-mail que se repudiava por compartilhar do mesmo sangue. Naquele momento para tentar jogar tudo por água abaixo, pelas razões que causaram o afastamento, Binho havia feito a gestão de dois projetos aprovados pela Casa da Moeda do Brasil. Mesmo sabendo que Jê era a pessoa mais indicada para fazer a administração dos recursos, ele se negou a fazer isso acreditando que daria conta; resultado: falha nas prestações de contas. Por incrível que pareça, este foi um mal necessário. Após seu desabafo caloroso, isso para não dizer que ele estava 163


A História Que Eu Conto

puto da vida com Binho, Jê chamou a responsabilidade para si, e buscou organizar as contas para serem prestadas devidamente. Assim passaram os Três a sentarem juntos novamente, agora com Vivi, mais uma louca! Jê era visto por Binho como um leão criado em cativeiro, com seus instintos domados. Mesmo sabendo que ao abrir a jaula seria ele o primeiro a alimentar a fome deste leão, Binho abriu a jaula, e correu para a selva, acreditando que ao chegar em seu habitat, Jê, melhor dizendo, o leão, se reconheceria e utilizaria sua garra para assumir o seu reinado. Jê não percebia, mas já estava mais empoderado, seu curso na Escola de Cinema Darcy Ribeiro contribuiu muito para ampliar mais ainda sua visão, o contato com pessoas de diversas culturas. Tendo que ler, o que não fazia até então, além de assistir a filmes e documentários que o levaram a contestar-se e a contestar muitas coisas. Pronto! O leão acaba de tomar posse de seu trono! Ao reconhecer-se enquanto líder, Jê passou a enxergar suas potencialidades que somente eram vistas por outros. De todo modo, valeu a pena a crise, pois Binho pôde reafirmar sua visão sobre a relação de Samuca e Jê, que é linda, por sinal, mas do ponto de vista avaliado por Binho havia causado uma relação de dependência de ambos, e isso foi visto por muito tempo como ciúmes ou coisa parecida. Binho chegou a dizer a Samuca, ilustrando, que via o Jê como um balão e Samuca era a bigorna que o prendia; na tentativa de cortar o cordão umbilical, Jê se expôs com ambos. O que por muito tempo pareceu ser um comportamento vaidoso, foi desvendando-se como trilhas e pontos de vistas distintos sobre o ponto comum. Isso deveria ser posto à mesa, e quando foi feito isso, relembrou-se o começo de tudo. Os perdões sob as orientações intraespirituais que guiavam Binho fizeram com que o elo refeito pela Vivi se estendesse e fortalecesse ainda mais. 164


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

Os sinais Atento aos sinais, Binho perguntava a Deus como solucionaria sua situação com seu irmão, por quem tinha um amor quase que paterno. Já havia pedido auxílio para um casal religioso, pastor João e a missionária Estela, que com muita sabedoria acalmaram seu coração. No mesmo dia, ao chegar à casa de sua mãe, Jê estava alterado por uma conversa que teve com a mãe deles onde ela fazia referência aos problemas dos três, saindo em defesa do Binho; se pudesse Jê daria umas porradas no seu irmão. Tranquilo, Binho se lembrou da conversa que havia acabado de ter, na qual a irmã Estela falara que o Jê não estava pronto para ouvi-lo, querendo respostas mediante o silêncio de Binho. Ele se irritou ainda mais, pensando ser omissão, era uma reunião de família, e no centro das atenções, de forma negativa, estava Binho, que disse apenas que mais à frente eles entenderiam tudo. Era véspera da viagem que Binho faria a São Paulo para participar do Seminário Estética da Periferia, indicado pela amiga Silvia Ramos, no qual Binho representaria o CCHC em importantes articulações em São Paulo. Em São Paulo, Binho conheceu Ana Tomé, do Centro Cultural Espanha-SP, com quem falou por cinco minutos sobre a meta de formar uma rede latino-americana com centros culturais que Trabalham com foco no desenvolvimento, por esta razão estava estudando o idioma espanhol. Logo em seguida, um mês depois, Binho foi a Rosário, Argentina, participar do Seminário de Cultura para o Desenvolvimento com representantes argentinos, chilenos, brasileiros, uruguaios, paraguaios, além dos facilitadores Jorge Melguizo da 165


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Colômbia, referência para Binho, devido às Bibliotecas Parques, Javier Brun, da Espanha, e Ernesto Ottoni, do Chile. Cinco dias fora do Brasil, Binho não tirava a cabeça da crise, tinha de resolver logo a situação, mas deveria esperar os sinais. Quando voltou de viagem, após as tensões das cinzas vulcânicas do chile, que poderiam impedir seu retorno, chegou em segurança ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, a insônia, que também atormentava Jê e Samuca, fez Binho levantar da cama e ir assistir qualquer coisa na televisão. Zapeando os canais, viu num desenho bíblico, que contava a história de Abraão, o sinal para dar o passo a fim de resolver de uma vez por todas os dilemas. Clareou o dia, Binho agradeceu a Deus, e foi falar com seu irmão. Lá, lhe pediu perdão por tê-lo ferido, e prosseguiu dizendo que se a proximidade deles o magoava ainda mais, em nome de seu amor por ele, abriria mão do CCHC para salvar sua relação de irmão. Deus sabe o quanto significa este lugar para Binho, tal como Binho sabia que aquele dia poderia representar seu último naquela história que construíra com os demais loucos e realizando seu sonho. Foi uma ação de fé e de amor, abrir mão daquilo que mais toca o seu coração em detrimento do amor a alguém. Deus está nas pessoas, amando-as estamos amando a Deus. Jê fez toda sua análise sobre a relação dos dois, sugeriu a saída de Binho apenas da presidência do CCHC — tanto ele quanto Samuca achavam que o cargo o envaidecia. Sabendo que não avançaria em provar o contrário por palavras, Binho declarou à equipe que restou ao CCHC o que dissera ao seu irmão. Em reunião para a retomada e redirecionamento dos próximos passos, a Sessão Papo Reto retomou a cena. A quatro meses de acabar o ano de 2011, a instituição encerrou suas atividades para entrar na fase de replanejamento com foco em 2012 — com os direcionamentos feitos por Jê, foram feitas as análises SWOT, avaliação de riscos e planejamento físico-financeiro. 166


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

Tudo recomeçou — a fênix alçou voo mais uma vez — superação! Lavadas as almas, Binho teve de seguir adiante, para prosseguir sabia que havia de retornar ao começo e refazer o caminho, a refazer-se, pondo em prática o efeito Shiva.4 A hora de zerar de vez os problemas havia chegado. Certo dia, seu até então desafeto Thamires estava lá no CCHC, ambos tinham ojeriza só em ouvir seus nomes. Naquele dia, o sinal, mesmo sem encará-la, a sua visão periférica permitiu perceber um olhar diferente e um semblante leve na face dela; imediatamente aquela voz interna brandamente falou ao coração de Binho que o momento de enfrentar o maior desafio havia chegado, não naquele dia, que foi apenas um aviso. Com o estado de graça retomando as pessoas e ao ambiente, as notícias não tardaram a chegar, projetos que estavam para sair há meses, outros com problemas que nada tinham a ver com o CCHC, mas que estavam comprometendo o planejamento começaram a ser liberados concomitantemente. Certa manhã, Binho enviou um e-mail para Marcos André, da Secretaria de Estado de Cultura do RJ, perguntando sobre o Projeto Petrobras. Sem respostas, ele ficou de verificar e minutos após vibrou com a notícia positiva de que o recurso com o qual a Petrobras pela primeira vez investiria em projetos, através da Lei de Incentivo à Cultura do ICMS, era o recurso que tiraria o CCHC de vez da crise, além de uma realização de um sonho-meta que estava nos planos dos Três Loucos desde a fase do planejamento. Eles sempre apontavam para o imponente edifício na Avenida Chile e diziam: “Brevemente estaremos aí, sendo patrocinados...”. Binho lembra muito bem do dia em que meses antes recebera o telefonema de Marcos André dando a feliz notícia de que o CCHC havia sido convidado para ser patrocinado pela Petrobras, com todo o respeito que ele tem por conhecer a trajetória destes guerreiros que haviam utilizado 4

Na tradição hindu, Shiva é o destruidor, que destrói para construir algo novo.

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A História Que Eu Conto

todos os esforços para atraírem o olhar dos patrocinadores em potencial, sobretudo da maior patrocinadora de projetos culturais do Brasil, ao levarem para o Palácio Gustavo Capanema o desfile Nossa História Tá na Moda, realizado com patrocínio da Casa da Moeda do Brasil e copatrocínio da Fase\Saap, levando a montanha a Maomé, como o ditado popular. A meta ficara clara para todos os parceiros e convidados, afinal, o CCHC já não sobreviveria um ano mais sem recursos para remunerar a equipe, a maioria saiu devido a impossibilidade de “viver do amor”. Foram perdas para um mercado de trabalho que jamais reconheceria o real valor intelectual daquelas pessoas, somente as exploraria sem deixar tempo para que se dedicassem aos seus crescimentos. Bem, era uma manhã daquelas em que se acorda pensando no que fazer mediante uma crise que não era segredo para ninguém, e quem conhece os Três Loucos sabe bem que não vivem de aparência. O telefone de Binho tocou, Marcos André na linha, do lado de lá a notícia dos sonhos, que parecia que jamais se realizaria, do lado de cá lágrimas copiosas como quem ganhasse ou perdesse algo ou alguém muito importante na sua vida — o sobrinho de Binho se preocupou em perguntar insistentemente o que havia acontecido e por que chorava tanto, ele mal ouvia o que o portador das boas-novas detalhava do outro lado da linha. Assim que encerrou a ligação, Binho foi direto para o quarto, ajoelhou-se com o rosto no chão, como aprendera com a sua mãe, e aos prantos agradeceu a Deus por ouvir suas orações — claro que era uma obra divina, Deus havia sondado os corações deles três e das demais pessoas da equipe que, àquela altura, reduziu-se a quase ninguém. Marcos André era coordenador da Diversidade Cultural da SEC-RJ quando foi convidado para visitar o CCHC em 2009 no I Seminário de Desenvolvimento Local. Na ocasião re168


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latou que o que vira naquela emergente instituição era o que a SEC-RJ e o MinC esperavam ver acontecer com mais frequência no país, principalmente no estado do Rio de Janeiro. O CCHC havia sido contemplado pelo Edital de Ponto de Cultura, o que validava ainda mais a credibilidade, aliada às demais experiências de editais anteriores e o “milagre da multiplicação” feito com os recursos advindos da CMB, Fase\Saap. Como Relações Institucionais, Binho recorda que levou dois anos para conhecer e conquistar a confiança de toda a repartição daquele 13º andar da rua da Ajuda nº 5, no centro da cidade do Rio de Janeiro, endereço frequentado assiduamente para buscar novos conhecimentos e oportunidades de ampliar sua rede. Lá também estava lotada a Superintendência de Bibliotecas, tendo à frente Vera Saboya, uma pessoa apaixonante e apaixonada por livros. Embora não seja uma bibliotecária de formação, não haveria especialista com tamanha sensibilidade para lidar com tal desafio de fazer dar certo as Bibliotecas Parques do Estado. Quando a conheceu Binho logo se identificou, falou do CCHC, de sua história com a literatura e, como de praxe, a convidou para ir conhecer o Ninho da Fênix ou o Hospício Cultural, tanto faz. Paralelamente Binho havia conhecido aquela que era a sua referência na literatura brasileira contemporânea e passara a ser também um exemplo de atuação no campo popular e acadêmico — Heloisa Buarque de Hollanda, com quem tivera aproximação no encerramento do Apalpe (A Palavra da Periferia) coordenada pela própria e por Faustini. Meses antes, ao saber deste curso, Binho designou Luiz Fernando Pinto, na época instrutor e coordenador de Teatro do CCHC, para se inscrever, aprender, articular e estreitar relações com a Heloisa Buarque, mas o destino reservou aquele encerramento para que houvesse o encontro do pupilo com sua mestra. Minutos de conversa 169


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foram suficientes para despertar o interesse de conhecer o CCHC, além de um convite para uma aula sobre poesia concreta no Instituto Moreira Salles — lá os dois conversariam com mais detalhes sobre uma futura parceria. Acompanhado de Vivi e Andressa, Binho não escondia seu contentamento em estar sentado naquela paisagem apresentando o CCHC, com grandes possibilidades de formalizarem uma parceria, claro, não antes de ela visitar o Centro Cultural. Vera Saboya e Heloisa Buarque eram mais do que parceiras literárias, eram amigas de Bel Lobo. Em uma dessas ruas do Leblon, elas se encontraram e, sabe-se lá por que, mencionaram a agenda que teriam na Vila Aliança. Bel na mesma hora ligou para Binho e falou sobre a sua companhia e o assunto que tratavam em plena Zona Sul. Ambas se articularam para ir ao CCHC — queriam as três, mas Bel já conhecia e como as agendas não conciliavam somente as duas foram. A pauta era literatura. Dispensadas as formalidades, Vera e Helô ouviram atentamente cada detalhe da saga dos Três Loucos. Sem pestanejar, após contarem também as suas histórias, Helô foi objetiva ao perguntar o que queriam dela. De igual maneira, Binho lhe disse que a meta era tê-la como parceira na área de literatura, devido ao seu respeito e experiência em nível internacional. Poderia ela também contribuir para que o neologismo criado para nomear as pessoas que atuam em bibliotecas comunitárias pudesse ser reconhecido — bibliotecomunitários uma alternativa aos bibliotecários, que na sua maioria não reconhecem os espaços literários como bibliotecas, caso não tenha à frente um bibliotecário. A outra proposta mais ambiciosa era a de futuramente publicar através da Aeroplano Editora o livro que contaria a trajetória do CCHC, além das antologias geradas a partir do Chá com Letras, o encontro de poetas e amantes da literatura, promovido pela Biblioteca Quilombo 170


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dos Poetas, sonho do Binho que Andressa tornou realidade e hoje é conhecido na maior parte do Rio de Janeiro. Foi neste encontro que Vera ouviu pela primeira vez que o CCHC precisava de um patrocínio forte. Quanto a isso não se comprometeram, mas Vera pôs seus conhecimentos e a possibilidade de apoiar com infraestrutura e tecnologia a Biblioteca do CCHC. Deste encontro resultaram muitas conquistas, os resultados vieram paulatinamente. Helô colocou o CCHC no cenário literário dentro e fora do estado do Rio de Janeiro, lembrando que nasceu do Seminário Estética da Periferia em São Paulo a oportunidade de Binho representar a instituição na Argentina. Andressa foi selecionada para a Universidade das Quebradas, coordenada por Helô, e cada vez mais a relação se estreitou entre elas, suas iniciativas, incluindo indicações para matérias em jornais, documentários e a Primavera dos Livros, onde Binho representou o CCHC sentado à mesa com ninguém menos que os representantes das maiores instituições do Rio de Janeiro, inclusive Eliane Costa, gerente de patrocínio da Petrobras Cultural. Foi ali onde anunciou que longe daquele lugar emergia uma nova instituição para somar por um Rio de Janeiro melhor. Nos bastidores Binho falou à Eliane Costa sobre o patrocínio e o livro da Coleção Tramas Urbanas que estava sendo escrito contando a história da caçulinha institucional ali representada no meio da Cufa, Nós do Morro, AfroReggae e Petrobras. Eliana não sabia, mesmo no rápido encontro na Universidade das Quebradas, quando Binho fora apresentado à ela, que já estava literalmente na mira para ser convidada a conhecer o CCHC. Helô fez as honras e apresentações, mas foi na Primavera dos Livros que puderam conversar, ainda que rapidamente — o mais importante era o fato de agora ela ter ouvido falar e saber que o Centro Cultural A História Que Eu Conto existe. 171


A História Que Eu Conto

Foi através de um bate-papo entre Marcos André e Vera Saboya que o nome do CCHC foi mencionado à Petrobras, e, junto a outras seis, houve o convite para pela primeira vez receberem o patrocínio de R$ 200 mil cada um, através do ICMS, uma oportunidade ímpar para a Zona Oeste, que passara a ter uma instituição que atraíra os olhares da maior patrocinadora cultural do país. Diferentemente do resultado do Ponto de Cultura e da final do Prêmio de Cultura do Estado (o CCHC foi finalista na categoria Empreendedorismo), que não foram comemorados mesmo depois de muita luta, por terem acontecido em meio à crise, o projeto Protagonismo Cultural veio quando a situação já estava se resolvendo, e os Três Loucos haviam se prontificado a reorganizar o CCHC, renascerem das cinzas e superarem aquela crise institucional, que por se tratar de uma instituição que prima pelo sentimento foi afetada mais do que uma outra que mantém apenas o relacionamento técnico. O ano de 2011 parecia perdido, mas é importante enfatizar que a maior conquista foi a retomada do relacionamento dos Três Irmãos Loucos, filhos de Maria. Samuel Muniz de Araújo, Jeferson Alves da Silva e George Cleber Alves da Silva, frutos do chão de terra da antiga Vacaria, graças a Deus reforçaram suas alianças, cresceram como pessoas, amigos, profissionais e gestores. Contrariando as estatísticas das instituições que não superam a crise e fecham as portas, a fé, o amor e o afeto sobrepujaram o orgulho, a vaidade e a desconfiança de que poderiam dar a volta por cima. E deram. Hoje as relações entre eles e a forma como conduzem são mais amadurecidas e a cumplicidade incomparavelmente mais intrínseca, isso é visível a todos que acompanham o cotidiano, e acima de tudo é motivo de alívio e orgulho para aqueles que ajudaram na medida do possível, no momento da crise. 172


Binho assinando o Projeto Protagonismo Cultural, na Petrobras.

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Dia histórico O Chegou o dia histórico; foi agendada a reunião na Petrobras, à qual compareceram Binho e Samuca, pois Jê estava com trabalhos de cinema para fazer: esse foi o primeiro sinal. Pela primeira vez Binho e Samuca saíam juntos depois de muito tempo. Chegando à Petrobras, uma longa espera fez com que conversassem acerca da espiritualidade. Binho falou sobre seu encontro intraespiritual e o quanto isso fizera bem à sua vida. Samuca, por sua vez, como espírita, contou sobre suas experiências com o perdão, suas relações com as pessoas a quem fizera mal, a dor que sentira ao fazer o caminho de volta e sua relação com Thamires, que já o acompanhava ao Centro Espírita havia dois anos, e o quanto isso fez bem a ela, a ele e aos dois. Ressaltou comportamentos dela que antes somente Binho havia percebido e conflitado. Segundo sinal. Eles sabiam que a Petrobras entraria para suas histórias, mas foi justamente naquela antessala que ambos tiveram o que Binho reconheceu como a melhor conversa deles, mesmo antes de tudo. Depois de serem atendidos, feitos os trâmites, Binho pediu a Samuca que ficassem e concluíssem aquele assunto, com lágrimas nos olhos e arrepios de emoção; ali lavaram de uma vez por todas sua alma. Pensando sobre Thamires, veio o terceiro sinal, para mostrar que bastava por aquele dia. No dia seguinte, deveriam dar o feedback a Jê e Vivi; aliás, somente ela sabia o esforço que Binho estava fazendo durante meses para conversar com Thamires. Ela também já 174


cap.09 Crises e conquistas (Lado A, Lado B e o Lado C da questão)

tinha ouvido sobre o sinal que Binho teve através do olhar, e que o dia estava chegando. Feito o feedback, como um tranco na alma, veio a reflexão e a sabedoria para em fração de segundos avaliar a emoção e a razão no momento de transmitir a notícia tão esperada, mas sem que pudessem prever em que tempo. Com voz suave, que transmitia a sua paz de espírito, Binho falou sobre suas atitudes sem justificar os porquês, voltou ao tempo até chegar à antessala da Petrobras, sem omitir todo o sentimento que tomara a ele e a Samuca. Enquanto falava, seu olhar percorria cada olhar; a emoção de Samuca era visível, de forma que ele nem imaginava o que estava por vir, afinal, não era nada planejado, não por eles. Dessa vez, houve uma conspiração divina naquele espaço de ilha de edição, que era o lugar menos quente. Quando começou a falar sobre sua visão a respeito do futuro do CCHC, a realização dos sonhos de cada um e a importância de cada pessoa, Binho dirigiu-se a Samuca e disse, olhando nos olhos, que não haveria em seus planos outra assistente social para ficar à frente da Equipe de Atendimento à Família senão Thamires. Continuou reafirmando todas as razões que ela teria para desconfiar dessa reaproximação, mas que estava tranquilo para isso, sem querer esperar qualquer retorno. O arranjo espiritual deu certo. Deus assumiu o controle para que todas as conquistas fossem atribuídas a ele; o CCHC é um lugar diferenciado que está longe de ser apenas uma instituição, é um catalisador de mudanças e transformações, a começar por seus escolhidos. Após a longa explanação emocionada e espiritualizada de Binho, Vivi parecia não acreditar no que estava acontecendo, pois não esperava ver e ouvir tudo aquilo, estava em lágrimas, o que levou Samuca e Binho a também se emocionarem. 175


A História Que Eu Conto

No dia seguinte Thamires foi ao CCHC, e Binho não se dirigiu a ela, agindo como se nada tivesse acontecido, aparentemente; mas tudo já estava diferente. No fim de semana aconteceu uma reunião para falar sobre o atendimento à família. Mesmo sem ser avisado, o sinal veio, e Binho falou, não antes de fazer suas avaliações e romper com os conflitos que poderiam impedi-lo de tomar qualquer atitude; ele sabia que aquele era o momento de avaliar como estavam os sentimentos entre os ex-desafetos, como seria sentar à mesma mesa. Somente na prática ele poderia saber. Perguntado a Samuca, ele respondeu que estava tranquilo para participar, como há muito não ocorria, com a fala dos Três Loucos. Samuca primeiramente; logo em seguida, Binho jogou a bomba, olhou nos olhos de Thamires e pediu perdão, era o último de sua lista de perdões. Saudou a chegada da psicopedagoga Rosiani Lau, que trabalhava com Thamires em outra instituição, onde, juntas, agregaram seus sonhos, experiências e ideias para criarem uma capacitação direcionada aos cuidadores, pessoas da equipe do CCHC que lidariam com o público beneficiário e seus familiares. Assim nasceu o Encontrar-se. O lado C da questão é exatamente a imprevisibilidade diante do Conhecimento — Coragem — Compreensão — Comunhão e o Centro, onde todas estas e as demais Coisas estão Concentradas, na nossa Cabeça e no nosso Coração. Quando os Cursos não forem Capazes de nos Clarear para Certas Circunstâncias da vida, devemos Crer, que não podemos nos limitar a apenas uma ou outra opção, temos que nos dar a Chance de Criar novos Caminhos, pois há muito que Construir em nós para Cuidarmos dos outros.

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Graffiti.

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Encontrar-se Segundo Thamires Ribeiro e Rosiani Lau Thamires Ribeiro, assistente social, e Rosiani Lau, psicopedagoga, são responsáveis pelo Desenvolvimento do Atendimento à Equipe, Alunos e seus Familiares.


“Buscar minha história, mudar os personagens, sair da plateia e ser protagonista da minha história foi o motivo de querer levar às pessoas a importância de ‘encontrar-se’ consigo mesma. Como sentar no banco da praça e se ouvir; desse modo, ouvir suas próprias queixas, suas vontades e seus desejos e entender que, se eu não me encontrar, me entender, me ouvir, me amar, me cuidar... não poderei encontrar, ouvir, amar e cuidar do outro.” (2012) Rosiani Lau Pacheco


A História Que Eu Conto

Esta proposta nasceu do encontro de sonhos de duas profissionais de diferentes áreas, uma assistente social e outra psicopedagoga, que compartilhavam a frustração de terem trabalhado numa instituição do terceiro setor que não valorizava o desenvolvimento humano nos projetos executados. Ansiavam pelo desejo de estimular e contribuir para o desenvolvimento humano de profissionais que tinham atuação direta com a pessoa. A partir da identificação desse desejo, numa tarde ensolarada, começaram a montar uma proposta de capacitação para o Centro Cultural A História Que Eu Conto (CCHC), instituição na qual o foco é o desenvolvimento integral. Concomitantemente a esse processo, no Centro Cultural A História Que Eu Conto, estava sendo formada uma equipe de atendimento para atuar diretamente com crianças, adolescentes, famílias e educadores. Houve, então, a união dos desejos que desencadearam a construção de uma capacitação voltada para toda a equipe do CCHC e alguns convidados. Esse processo de construção foi árduo, pois tínhamos o propósito de montar algo diferente e ousado que pudesse desencadear nos envolvidos um processo reflexivo de autoconhecimento e quebra de paradigmas. Mas como fazer? De que forma? Bom, iniciamos (psicopedagoga e assistente social) experimentando o autoconhecimento, por meio do diálogo intenso e contínuo, além de alguns exercícios e estudos. A partir daí, começamos a eleger temáticas essenciais que não poderiam faltar na capacitação. Em seguida, selecionamos e criamos algumas vivências, dinâmicas, jogos interativos e atividades lúdicas, integrativas e participativas que contemplassem o desenvolvimento das temáticas escolhidas. 180


cap.10 Encontrar-se

Utilizamos como princípio norteador a questão do cuidado, em suas diferentes formas, sobretudo o autocuidado em todos os processos da capacitação. No que tange a abordar os princípios e as diretrizes que nortearão o nosso trabalho, é necessário ressaltar, detalhar e até mesmo desconstruir e reconstruir alguns pontos cruciais vividos como diretrizes dentro da nossa proposta de capacitação. Para começar, partimos do pressuposto de que todo o processo de conscientização, empoderamento ou empowerment, desenvolvimento, transformação ou qualquer terminologia que trate da mudança do indivíduo é realizado por ele próprio. Em outras palavras, queremos dizer que ninguém conscientiza ninguém, empodera ninguém, desenvolve ninguém, transforma ninguém... Esse processo ocorre numa relação do eu comigo mesmo e não do eu com o outro, além de ser no tempo de cada um. Nesse sentido, cabe a nós educadores e profissionais somente o papel de facilitar, estimular e/ou contribuir, possibilitando, por meio de diversos instrumentos, principalmente os participativos, interativos, dinâmicos, lúdicos, vivenciais, entre outros, que esse processo aconteça, e respeitando sempre o tempo e a escolha do indivíduo. Conforme esse pressuposto, podemos passar para a próxima diretriz de nosso trabalho, que é a questão do protagonismo. Partimos do princípio de que se o meu objetivo é contribuir para o protagonismo, tenho que ser em primeiro lugar protagonista da minha história. E será que estamos sendo??? Se o meu desejo é cuidar do outro, tenho que me cuidar primeiro. Bom, o que queremos dizer com isso é que todo o 181


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processo de transformação começa pelo eu, pois nós, seres humanos, nascemos com possibilidades infinitas e compartilhamos uma essência única, que são os sentimentos. É isso que nos iguala e nos permite ser humanos! Dessa forma, acreditamos que os sentimentos não são confinados em bons ou ruins, mas necessários, pois todos são inerentes à essência humana. A questão é o que faço com eles e o tempo que fico com eles. Outra questão é que estamos vivendo na era do automático ou, conforme Michel Robin, da mecanicidade, em que, devido a um contexto político, econômico, social, educacional, pautado pelo sistema neoliberal, somos conduzidos a viver em busca do capital, nos mascarando de diversas formas para nos adequarmos a um modelo dito padrão e “ideal”. Com isso, estamos cada vez mais distantes da nossa essência, que são nossos sentimentos, nosso eu interior; assim, acreditamos que a solução para os desafios está dentro de cada um de nós. A partir dessas diretrizes, chegamos à conclusão de que, para trabalhar com o outro (não para o outro), precisamos nos conhecer, perceber e nos revelar. Dessa forma, é imprescindível citar uma de nossas referências teóricas, Carl Gustav Jung, que diz: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.” Com base nesses princípios e nessas diretrizes podemos avançar para alguns dos referenciais teóricos e metodológicos que nortearam, permearam e propiciaram a capacitação, conforme descrito a seguir: Educar — É criar espaços para que o educando possa empreender ele próprio a construção do seu ser, ou seja, a realização de suas potencialidades em termos pessoais e sociais. (Antonio Carlos Gomes da Costa) 182


cap.10 Encontrar-se

Aprendizado — É isso: de repente você compreende alguma coisa que sempre entendeu, mas de uma nova maneira. (Doris May Lessing) Ética Biofílica e Pedagogia do Cuidar, da Organização das Nações Unidas (ONU) — Deve ser uma atitude básica diante da vida. Ela é expressa por meio da relação de cuidado que cada pessoa estabelece consigo mesma (autocuidado); na relação com as outras pessoas a sua volta (altercuidado); na preocupação com as redes que sustentam a vida, como o meio ambiente em que estamos inseridos (ecocuidado); e com tudo aquilo que dá sentido à nossa vida — os grandes temas da existência humana (transcuidado). Dessa forma, as atitudes frente aos fatores de risco dependem da atitude individual diante da vida, e esta atitude depende da qualidade da sua relação consigo mesmo, com os outros, com o meio ambiente e com o sentido maior da existência. (Antonio Carlos Gomes da Costa) Educação Popular de Paulo Freire — A educação popular busca a emancipação do indivíduo na dimensão social, cultural e política, além de basear-se na metodologia dialógica da reflexão ação, onde há a autorreflexão, a escuta, o diálogo, a ação e a síntese. Metodologia Participativa — Método de Trabalho Corporal Expressivo de Luz Marina Gutiérrez Haan, denominado “Ritmo do Corpo”. A proposta metodológica é facilitar o processo de autoconhecimento (eu + eu) e da interação com o outro (eu + outro — conhecimento do outro), além de possibilitar a ampliação e/ou ressignificação do olhar sobre o mundo. “Tornar pessoas flexíveis para ver e aceitar a realidade dos outros, pessoas sensíveis para compreender essa realidade, e pessoas comunicativas e criativas que estimulem as descobertas dos participantes sem temor das suas próprias descobertas.” ( Luz Marina Gutiérrez Haan, 2010)

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A História Que Eu Conto

Ao estudar e aplicar essas diretrizes e metodologias, entendemos que o que propomos não se configura um caminho novo, porém, sim, uma nova maneira de se caminhar ou, apenas, estimular a ressignificação, ampliando o olhar, o pensar, o ser e a prática profissional. Dessa maneira, a capacitação integrou cinco encontros, nos quais reunimos diversas vivências, dinâmicas, jogos interativos e atividades lúdicas, integrativas e participativas que objetivaram desenvolver o processo de aprendizado, propiciando uma ligação entre o pensar, o sentir e o agir.

Assim, as temáticas trabalhadas foram desenvolvidas sempre em três fases:

1ª FASE — eu + eu (eu comigo mesmo) — Olhar para si e identificar pensamentos, sentimentos e sensações sobre o tema proposto.

2ª FASE — eu + tu (eu e o/com outro) — Olhar para o outro e escutar, perceber e compreender com o outro.

3ª FASE — eu + meio (eu e o/com meio) — Olhar para o meio, seu entorno, escutar, perceber e compreender os impactos desse na temática abordada.

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cap.10 Encontrar-se

1° ENCONTRO Tema Central: Identidade. Objetivo: Facilitar o processo de autoconhecimento, por meio de vivências que propiciem a reflexão, a integração e a unificação do encontro consigo mesmo (eu + eu). Introdução: Relaxamento. Desenvolvimento: Trabalhar quatro vivências que abordam as temáticas de identidade, autoestima, autoimagem, autoaceitação e motivação. Finalização: Relaxamento e avaliação diária.

2° ENCONTRO Tema Central: Emoções e Família. Objetivo de Emoções: Possibilitar aos participantes a identificação de seus próprios sentimentos, do outro e despertar a capacidade de empatia. Objetivo de Família: Ampliar a apreensão e compreensão sobre as relações, as dinâmicas e os papéis familiares em seu universo de complexidade. Introdução: Relaxamento. Desenvolvimento: Trabalhar vivências e dinâmicas que abordam as temáticas de identificação e verbalização de sentimentos, aceitação do outro (juízos, preconceitos e saber escutar), conceitos, relações, dinâmicas e papéis familiares. Finalização: Relaxamento e avaliação diária.

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A História Que Eu Conto

3° ENCONTRO Tema Central: Adolescência e Educação. Objetivo de Adolescência: Levar os participantes a perceberem que tudo que fazemos, pensamos ou a forma como vivemos, tudo está diretamente ligado ao estilo que escolhemos para nos comunicar e relacionar com o mundo. Objetivo de Educação: Ampliar o olhar sobre o contexto social e educacional. Introdução: Relaxamento. Desenvolvimento: Trabalhar vivências, discussões e dinâmicas em grupo que abordam as temáticas de aceitação do outro (juízos, preconceitos e saber escutar), estilos de adolescentes e de pais, compromisso das ações sociais e educação social. Finalização: Relaxamento, avaliação diária e avaliação durante o processo.

4° ENCONTRO Tema Central: Violência. Objetivo: Reconhecer, refletir, discutir e ressignificar o olhar sobre a temática da violência nas práticas sociais e educacionais. Introdução: Relaxamento. Desenvolvimento: Trabalhar o corpo grupal através de dinâmicas, vivências, jogos e discussões em grupo que abordam as temáticas de aceitação do outro (juízos, preconceitos e saber escutar), identidade grupal, violência, tipos, conceitos, reações e desdobramentos. Finalização: Relaxamento e avaliação diária. 186


cap.10 Encontrar-se

5° ENCONTRO Tema Central: Construção. Objetivo: Reconhecer, refletir, discutir e significar a importância do ser humano. Estimular um olhar sobre si mesmo e sobre o outro como um ser de direito ampliado. Introdução: Relaxamento. Desenvolvimento: Trabalhar dinâmicas, vivências, jogos e discussões em grupo que abordam o desenvolvimento humano. Finalização: Relaxamento, avaliação diária e avaliação final.

Durante a execução da capacitação percebemos a evolução do grupo em todos os sentidos, nas suas risadas, lágrimas, comportamentos, resistências, adesões, fugas, expressões, falações, silêncios, sensações, sentimentos e pensamentos expressos a cada encontro. Além disso, a avaliação antes, diária, durante e final serviu como termômetro no desenvolvimento da capacitação; posteriormente, essas avaliações se transformaram em indicadores imprescindíveis para aferir o impacto do nosso trabalho. E, por meio da análise das avaliações, constatamos que em cada um foi estimulado, ou desencadeado, ou resgatado, ou fortalecido, um processo de autoconhecimento, no qual se desenvolveu uma ampliação e em alguns casos ressignificação do olhar sobre si, o outro e o meio em que vive, além das temáticas trabalhadas, que foram absorvidas, de acordo com a entrega de cada um.

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A História Que Eu Conto

Entendemos que o processo de autoconhecimento é contínuo e dura a vida toda, mas se começarmos a olhar para nós e identificarmos os sentimentos, os pensamentos e as sensações que perpassam a todo o momento no nosso cotidiano, poderemos lidar melhor com tudo o que acontece conosco, com os outros e com o nosso planeta.

Chaves da liberdade - A conquista das chaves cedidas pela Secretaria Municipal de Educação após a ocupação.


cap.10 Encontrar-se

Com a mão no coração Fechou os olhos E sentiu-se descoberta. Antes, tímida, perdeu o medo Aprendeu a colocar seus sentimentos Encontrou o seu valor; E aumentou a sua visão de mundo. Não tendo preconceitos, Aceitou as diferenças, Escutou, viu, percebeu o outro E descobriu que, Fazendo parte desse quebra-cabeça, É uma peça importante Que contribui, participa E caminha com o objetivo comum De transformar, E saber que, para isto, É preciso sonhar. Poema de Vanda Farias, educadora popular

Convido todos a experimentarem a SUSPENSÃO DO COTIDIANO!!!!!!!! 189


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Ep铆logo A hist贸ria e a loucura continuam...


“A loucura é rara em indivíduos, mas em grupos, partidos, nações e épocas é a regra.” Friedrich Nietzsche


A História Que Eu Conto

Durante essa história, as certezas que cada um dos Três Loucos tinha dentro de si se tornaram fatos incontestáveis. Somente o viver poderia permitir arrancar a descrença dos olhares, as palavras farpadas e os apontamentos fulminantes. Cada lágrima de dor derramada antes foi inundada pelas lágrimas das conquistas. A vida dos Três Loucos nada teria de diferente das demais vidas que habitam naquele lugar chamado Vila Aliança. Mas, nesta história, eles se tornaram roteiristas, diretores, montadores e protagonistas em suas trajetórias, tendo como autor, o Divino Mestre. Seguem rompendo paradigmas, costurando uma cidade excludente a uma parte dela que insistia em se sentir esquecida. No talento, com as ferramentas do conhecimento, chegam representando a si mesmos, cansados de serem representados, dando conta do recado. O que em 50 anos não fora feito não tornaria a se repetir, não se depender deste hospício cultural fomentador das insanidades agregadoras dos sonhadores abolidos deste convívio social das pessoas frustradas e condicionadas a seguirem o fluxo que as controla. A grande descoberta nesta caminhada foi saber que em cada canto deste mundo há Loucos. O Centro Cultural A História Que Eu Conto é, sim, O Encontro dos Sonhos — a concretização de que se pode transformar sonhos em metas, e espelhar-se no legado dos sábios que por esta existência passaram acreditar em si e utilizar as circunstâncias a seu favor. Negar a vida em uma sociedade de consumo é rejeitar as razões de seus conflitos. Reproduzir as formas de enfrentamentos em plena era do conhecimento tecnológico não seria uma estratégia inteligente. Agora, quando todos olham para a Lua e questionam se o homem pisou lá ou não, ou se há vida em Marte, a grande loucura desses três talvez 192


cap.11 Epílogo - A história e a loucura continuam...

tenha sido olhar para a educação primitiva, como base para a educação popular; olhar para suas próprias histórias e na linha do tempo ousarem interromper o ciclo vicioso da estagnação. A mudança em cada um está no conhecimento que cada pessoa deve ter de si própria, como seres históricos, como livros vivos. Atuando em redes sociais, aproximando mundos conectados e reais, histórias comuns, pessoas comuns, condições e visões diferentes que se complementam por um fio condutor da realidade que pede por mudanças. É chegada a hora de mudar, e o combustível é a fé. De nada adiantará ter fé em Deus e não ter nas pessoas. Feliz ou infelizmente, temos de ter fé no ser humano, mesmo com toda a sua complexidade, lembrando que suas histórias são condicionantes para que atuem neste espetáculo chamado vida, conforme construíram seus próprios papéis em suas vivências. Esta história não tem fim, porque o ciclo não se encerra, um novo ciclo se fez, novas histórias vêm à tona, ainda que tenha sido necessário voltar no tempo 50 anos, convictos de que para os próximos 50 não haverá o ostracismo a que foi fadada. O lugar mais seguro está dentro de cada um, como foi dito várias vezes durante a capacitação da equipe, no Encontrar-se: cada ser humano é um universo. Sendo assim, se a segurança estiver lá, os medos também estarão, mas não há universo autossuficiente, não existe autossuficiência. Quem se atrever a julgar assim contará para si a pior das mentiras. Precisamos uns dos outros, não há como negar isso, o que explica a “razão de toda a loucura”, porque tudo nos impele para o sentido oposto, quando o oposto se tornou o imposto, e enfrentar os desafios da própria escolha é construir sua rota principal. 193


A História Que Eu Conto

O Centro Cultural A História Que Eu Conto é um lugar construído por pessoas que acreditam em seres humanos, escolhidas vocacionalmente para estes fins, em que o abraço é marca registrada, e o afeto tem o jeitinho da história que eu conto de ser. Ainda que esteja cada vez mais raro ser e agir humanamente sem se aproveitar das limitações ou condições do outro, lugares como o CCHC estão em extinção e serão procurados por muita gente em busca de um pouquinho de humanidade. Não estamos falando de algo para o próximo milênio, isso está acontecendo agora, todos estamos cansados, frustrados e temerosos, como boa parte desta sociedade também está. A “Inovação Primitiva” está em valorizar o humano em vez da tecnologia; afinal, são as mentes brilhantes e as mãos talentosas que produzem o saber, seja para o bem, seja para o mal. Voltar à essência humana nas raízes da nossa existência se faz necessário, ou voltamos e nos encontramos ou então nos perderemos mais ainda; quem nunca ouviu a expressão “Está tudo perdido!”? A maestria está na ação mais simples, que é ser. Pois a preocupação de querer ter e se enquadrar para agradar aos outros pode comprometer o belo que somos. E isso não é exclusividade dos mais humildes, existe em todas as esferas socioeconômicas e culturais. Por isso, o mundo deseja conhecer e se encontrar aqui. Há no mapa uma nova geografia cultural, e a Vila Aliança faz parte deste território. O que o CCHC tem de melhor para oferecer é a Aliança. Quem faz parte, apoia, investe, é beneficiário ou apenas visita este lugar sente a atmosfera que paira, é o que de melhor exala, flui e contagia. E assim, a história continua...

Os Três Loucos 194


Graffiti de Gleydston Santos (Barba) e Lf logs.

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A História Que Eu Conto

Referências bibliográficas ATHAYDE, Celso et al. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. BRASIL. Política Nacional de Assistência Social — PNAS. Aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social por intermédio da Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004, e publicado no Diário Oficial da União – DOU do dia 28 de outubro de 2004. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social — LOAS. Lei Orgânica de Assistência Social. nº 8,742/93, de 7 de dezembro de 1993. BROSE, Markus. Metodologia participativa: uma introdução a 29 instrumentos. Markus Brose (org.). 2ª ed. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2010. CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado no Rio de Janeiro”. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2003. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Brasília, 1988. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2003. COSTA, Antonio Carlos Gomes. Protagonismo juvenil – adolescência, educação e participação demográfica. Salvador: Fundação Odebrecht, 1998. CREMA, Roberto. Introdução à visão holística, breve relato de viagem do velho ao novo paradigma. São Paulo: Ed. Summus, 1989. DA SILVA, George Cleber Alves. A História Que Eu Conto Vila Aliança. Monografia de Conclusão de Curso. Rio de Janeiro: FEUC (Fundação Educacional Unificada Campo Grandense), 2008. DIAS, Cristina Jorge. Compartilhar jogos e vivências: manual prático de intervenções grupais em educação, saúde, empresas e organizações sociais. Penha Lopes. São Paulo: Expressão e Arte Editora, 2008. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - Lei nº 8069/90 / Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Assessoria de Comunicação Social - Brasília: MEC, ACS, 2005. FÉRREZ (org.). Literatura marginal: Talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido.17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina, Tradução de Galeano de Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra (estudos latino-americanos, v.12). Do original do espanhol Las Venas Abiertas da América Latina. GRAMSCI, Antônio. 1891-1937. Cadernos do cárcere, vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização, 2006. 196


Referências bibliográficas

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A História Que Eu Conto

Sites e blogs de referência: Centro Cultural A História Que Eu Conto www.ahistoriaqueeuconto.blogspot.com www.videolog.tv/ahistoriaqueeuconto Jeferson Cora (Artes Visuais) www.jefersoncora84.blogspot.com www.flickr.com/photos/jefersoncora www.vimeo.com/jefersoncora Luiz Fernando Sarmento (Redes e Terapia Comunitária) www.videolog.tv/luizfernandosarmento www.luizsarmento.blogspot.com Metodologias Arte de Cuidar www.unipazrj.org.br http://artepresenca.blogspot.com.br/2010/11/futuro-e-tempo-do-coracao.html Cultura e Desenvolvimento: Ministério da Cultura http://www.cultura.gov.br/site Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro http://www.rj.gov.br/web/sec Programa Avançado de Cultura Contemporânea http://www.pacc.ufrj.br/projetos/em-andamento/ Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento http://www.pnud.org.br/home/ Sebrae http://www.sebrae.com.br/setor/economia-criativa/

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Porta-revistas feito com reaproveitamento de lata de tinta.


A História Que Eu Conto

Anexo Pessoas que eternamente farão parte da história do CCHC Gestão Binho, Jê e Samuca

Estilista Camila Loren

Equipe inicial Ana Maria — Adam — André — Ariel — Bartolomeu Jr. — Camila Loren — Célia Loli — Cintia Guimarães — Cristiano — Daiana — Daniela Araújo — Débora Targino — Dinaiara — Fábio Alcoforado — Fábio Silva — Emiluci — Heloísa Helena — Juliana — Junior — Lúcia Valente — Luiz Fernando Pinto — Mestre Poeira — Moisés Thomás — Nega — Nena — Net Correa — Rafael Góes — Régis Gonçalves — Robson — Rosa — Sheiva Sherman —Thiago Borges — Thiago Guimarães — Vera Serqueira — Wilson

Equipe atual Biblioteca Quilombo dos Poetas Andressa Gonçalves e Bartolomeu Jr. Gestão - Binho, Jê e Samuca Estilista - Camila Loren Instrutor de Pintura em Tela - Cety Soledade Instrutor de Teatro - Edson Ferreira 200


ANEXO - Pessoas que eternamente farão parte da história do CCHC

Comunicação e Multimídia Grasiela Araújo, Oscar Pereira e Tamires Silva Instrutor de Graffiti - Luiz Fernando (Iogs) Gerente Financeiro - Paulo Cesar Instrutor de Dança - Régis Gonçalves Instrutor de Dança - Samir Atendimento à Família - Rosiani Lau e Thamires Ribeiro Cinema - Tadeu e Paulo Instrutor de Cinema - Paulo Tavares Instrutor de Fotografia - Thiago Luiz Coordenadora de Projetos - Viviane Oliveira

Embaixadores culturais Adílson Pires - Alexandre Bárbara - Anderson Willy Argus Caruso - Aroldo Nunes da Silva - Bel Lobo - Caio Márcio Silveira - Claudionísio - Cléia J. Silveira - Cunca Bocayúva - Dada Oliveira - Dona Marília - Dona Zica - Fábio Quadros - Geovani Fernandes - Gilberto Fugimoto - Jorge Fellipe - José Mauro da Silva - José Ribamar Pereira Filho - Junior Rosa - Leandro Almeida - Leidimar Machado - Luiz Fernando Sarmento - Lula - Marcelo Princeswal - Marcos André - Marcos Lacerda (Terrazul) - Marcus Vinicius Biriba - Maria Cristina (CMB) - Marise Annes Melisanda Trentim - Michel Robin - Nei (Xerém) - Paulinho Vidigal - Pedro Cunca Bocaiúva - Ricardo Ananias - Sandra Galeno - Teresa Castro - Toninho (Eletrônica Líder) - Vitor Pordeus - Zé Hildo.

201



Contatos Centro Cultural A História Que Eu Conto E-mail: ahistoriaqueeuconto@gmail.com Tel: (55) 21 2404-0942 Os Três Loucos E-mail: binho.mjc@hotmail.com Tel: (55) 21 7766-4706 — 98* 42060 E-mail: jefersoncora@gmail.com Tel: (55) 21 7766-5304 — 98*45641 E-mail: samucasamuca.muniz@gmail.com Tel: (55) 21 7766-4326 — 98*55700


Este livro foi composto em DIN. O papel utilizado para a capa foi o Cart達o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o Lux Cream 90 g/m2. Impresso pela Edelbra para a Aeroplano Editora em abril de 2013.



George Cleber, Binho para os amigos, é homem de talento, criatividade e senso de oportunidade. Essas foram as chaves para abrir as portas de uma escola abandonada e transformá-la no Centro Cultu-

ral A História Que Eu Conto.

O que esse livro conta é a história que faz a humanidade avançar. Muito mais do que a vontade de ensinar aos outros ou de influenciar suas vidas com um repertório literário e artístico, Binho entende que é por meio da arte, das experiências estéticas, que a educação se dá de maneira carinhosa, libertando a inteligência e a imaginação.

Vera Saboya Superintendente da Leitura e do Conhecimento da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelas bibliotecas do Estado, incluindo as bibliotecas-parque, como a de Manguinhos, Rocinha e Niterói, com um novo conceito, mais acolhedor. Também está à frente do projeto de novas políticas para as bibliotecas do Estado. É criadora do Ateliê Culinário.

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