História e memória de Vigário Geral

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Hist贸ria e Mem贸ria de Vig谩rio Geral


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Hist贸ria e Mem贸ria de Vig谩rio Geral Maria Paula Araujo e Ecio Salles

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Copyright © 2008 Maria Paula Araujo e Ecio Salles COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES projeto gráfico CUBÍCULO HISTÓRIA E MEMÓRIA DE VIGÁRIO GERAL produção editorial ROBSON CÂMARA revisão TETÊ OLIVEIRA revisão tipográfica ROBSON CÂMARA fotos RODRIGO GOROSITO, NICOLA DRACOULIS, ARQUIVO NACIONAL e CPDOC JB. A editora agracede a ajuda do pessoal do AfroReggae, especialmente Daniela Roffi, e a simpatia dos moradores de Vigário Geral.

A69h Araujo, Maria Paula Nascimento História e memória de Vigário Geral / Maria Paula Araujo e Ecio Salles. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2008. . -(Tramas Urbanas; 6) ISBN 978-85-7820-003-9 1. Vigário Geral (Rio de Janeiro, RJ) - História. 2. Vigário Geral (Rio de Janeiro, RJ) - Condições sociais. 3. Favelas - Rio de Janeiro (RJ) - História. I. Salles, Ecio. II. Título. III. Série. 08-1405.

CDD: 307.760981531 CDU: 316.334.56(815.31)

09.04.08

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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia social – se reforçam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam os de alguns segmentos específicos: grupos musicais, grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas de idêntica importância, embora com menos visibilidade, é a produção intelectual que cuida, além de questões artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos. A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produção amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que não são originários de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis das elites intelectuais”. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século, cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.


A todos os integrantes do AfroReggae, aos moradores de Vigário Geral e estudiosos do tema que compartilharam conosco suas idéias: Manoel Ribeiro, Rosilene Alvim, Eugênia Paim, Regina Novaes e Ilana Strozenberg.


Sumário 09

Prefácio

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Mapa de Vigário Geral

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Apresentação

Cap.01 Pensando a favela no Rio de Janeiro 16 Um resumo da bibliografia sobre o tema Cap.02 36

Apresentando Vigário Geral Uma descrição etnográfica de Vigário Geral e uma apresentação das diferentes versões sobre sua origem na década de 1950

Cap.03 74

Histórias, histórias de vida, histórias de Vigário Uma narrativa sobre a história e a memória de VigárioGeral nas décadas de 1960 e 1970, a partir do depoimento e das lembranças de seus moradores

110 Cap.04 Violência, criminalidade e mediação de conflitos Uma discussão sobre o crescimento da violência, e as tentativas de solucionar o problema, nas últimas décadas (1980 e 1990) 136 Cap.05 O Afro Reggae em Vigário Geral Um resumo da trajetória do grupo em Vigário e dos projetos que desenvolve desde 1993 158 Cap.06 A Guerra Um histórico da rivalidade entre Vigário Geral e Parada de Lucas ao longo das últimas décadas 182 Cap.07 Conclusão 186

Bibliografia geral da pesquisa

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Crédto de Imagens

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Sobre os autores



Prefácio Tendo como fonte de informação privilegiada a memória de seus habitantes mais antigos, os “Pioneiros”, a história da favela se constrói num jogo dinâmico entre as narrativas desses personagens e a análise do contexto sócio-econômico e político do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro em que estão situados. Nesse jogo, vão se tornando evidentes as várias e intrincadas relações que ligam favela e asfalto, a cidade informal e a cidade formal. Desde as primeiras páginas, quando é levado a um passeio pelas ruas e praças de Vigário, o leitor se sente ingressando num universo de vivências individuais e coletivas em que as diversas dimensões da vida afetiva, política, social e econômica vão se articulando num quadro complexo, muitas vezes contraditório mas, sempre, profundamente humano. Sem cair na armadilha de uma visão romântica nem fugir do tema da violência, o livro, é, sem dúvida, uma contribuição da maior importância para a construção de uma cidade em que o diálogo e a colaboração venham substituir a discriminação e os confrontos que são o flagelo da vida urbana contemporânea.

Ilana Strozenberg


DUQUE DE CAXIAS

LINHA VERMELHA

MARINHA DO BRASIL

BEIRA

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BEIRA

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PARADA DE LUCAS


Vigário Geral 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 †

PRAÇA DA MOCIDADE QUADRA POLIESPORTIVA PRAÇA DA MOCIDADE CAIXA D’ÁGUA AFRO REGGAE ONDA AZUL POSTO MÉDICO BAR DO SR.SANDOVAL ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES QUADRA VILA NOVA CIEP - MESTRE CARTOLA POSTO DA POLÍCIA MILITAR PASSARELA SOBRE FERROVIA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE VIGÁRIO GERAL IGREJAS


Apresentação

A idéia deste livro surgiu a partir de uma entrevista com José Junior, coordenador executivo do Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR).1 A entrevista, feita por mim e por um grupo de alunos bolsistas do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), era uma etapa de uma pesquisa que tinha por objetivo estudar lideranças comunitárias e dirigentes de projetos artísticos de cunho social. No meio da conversa Junior propôs: “Por que vocês não fazem uma história de Vigário Geral?” Topamos na hora e iniciamos, a partir daí, um processo que culminou na assinatura de um convênio entre o AfroReggae e a UFRJ para a realização de uma pesquisa que teria como produto final um livro sobre a história de Vigário Geral, favela localizada no bairro homônimo na Zona Norte carioca. Nesta parceria eu, como professora de História Contemporânea da UFRJ, e Ecio Salles, como coordenador cultural do 1 O Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR) surgiu em 1993 com o intuito de “oferecer uma formação cultural e artística para jovens moradores de favelas de modo que eles tivessem meios de construir suas cidadanias e com isto pudessem escapar do caminho do narcotráfico e do subemprego, transformando-se também em multiplicadores para outros jovens”. Inicialmente atuando apenas em Vigário Geral, o GCAR desenvolve hoje projetos em outras quatro comunidades (Parada de Lucas, Complexo do Alemão, Cantagalo e Nova Era, em Nova Iguaçu).


AfroReggae, dividimos a coordenação da pesquisa. Cíntia Aparecida Almeida Ramos e Luiz Felipe Félix da Silva, então alunos do curso de História, foram contratados como estagiários. Os equipamentos para a realização de uma pesquisa com base principalmente em depoimentos orais (gravadores digitais, computadores, gravadores de CD, máquinas filmadora e fotográfica) tinham sido comprados havia pouco tempo com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) para um amplo estudo (do qual a história de Vigário Geral faria parte) chamada “Vidas Cariocas”. Araci Alves Santos, ex-aluna da universidade, ficou responsável pelas transcrições das entrevistas. Contamos também com a colaboração do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Infância e Juventude (NEPI), um grupo de pesquisa coordenado pelas professoras Rosilene Alvim e Eugênia Paim que, junto com estudantes de Ciências Sociais da UFRJ, realizara um trabalho de pesquisa e reflexão sobre o episódio que ficou conhecido como “a chacina de Vigário Geral”, quando 21 moradores da favela foram assassinados por policiais militares.2 O NEPI nos cedeu parte deste material e partilhou conosco sua reflexão sobre o dramático evento. Mas se a UFRJ entrava com alunos, equipamentos, técnica em pesquisa e suporte analítico, o AfroReggae entrava com o passaporte de livre trânsito dentro da favela, com a confiança dos moradores, com o conhecimento da região e com tudo que tornava possível nosso trabalho. Neste sentido, a parceria era completa e total, e gerou também um outro dado mais do que positivo: a colaboração e participação de muitos moradores no projeto da pesquisa – concedendo entrevistas, emprestando fotos antigas, passeando com nossa equipe pela favela, nos recebendo com carinho e simpatia. De tal forma que creio que podemos dizer que muitos desses moradores são co-autores deste livro. 2 O trabalho do NEPI tem o título “Vigário Geral: uma noite tão comprida” e foi organizado por Rosilene Alvim e Eugênia Paim.


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Apresentação

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Nosso principal desafio foi encontrar um tom adequado para o texto: queríamos que fosse uma narrativa histórica, resultado de pesquisa com fontes primárias e secundárias, com análise da bibliografia sobre o tema, com procedimentos metodológicos científicos. Mas queríamos que fosse, também, um livro de divulgação. Nossa maior ambição é que pudesse ser lido por moradores de Vigário Geral. Não necessariamente por todos, mas pelos jovens, pelos estudantes. Este livro é resultado desse esforço. Um esforço em traduzir, em linguagem não acadêmica, o resultado de um trabalho feito a partir de técnicas e métodos de pesquisa histórica. Um esforço que só foi possível por esse encontro/parceria entre universidade, organização não-governamental e moradores da favela. A idéia que norteou nossa equipe o tempo todo, foi a proposta de buscar um tipo de conhecimento que fosse além do acadêmico. Acreditamos que o papel do historiador não é se encerrar numa torre de marfim, e que a universidade não deve se isolar da sociedade. Acreditamos que articulações ricas e produtivas podem e devem se estabelecer entre a linguagem e o saber acadêmico e as linguagens e saberes da sociedade. Além disso, não fazemos coro com aqueles que advogam que a distância seja essencial para a seriedade e a cientificidade da análise histórica. Não acreditamos neste historiador neutro, distante, imparcial. Pelo contrário, acreditamos que assumindo claramente seus posicionamentos o historiador pode até lidar melhor com eles. Portanto, assumimos que este trabalho é fruto de um profundo envolvimento nosso não só com a favela de Vigário Geral e seus moradores, mas principalmente, com a perspectiva de aprofundar os laços entre a favela e o asfalto – representadas no caso, por Vigário Geral e pela UFRJ. Assim, ele se soma a muitos outros que têm a mesma preocupação: contribuir para a superação da dicotomia ainda existente entre favela e “cidade formal” e para a construção de uma cidadania ampla, republicana e inclusiva.


Cap.01

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Cap.01


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Desde que surgiu, na virada do século XIX para o século XX, congregando no Morro da Providência1 (também chamado de Morro da Favella) soldados sobreviventes das inúmeras campanhas da Guerra de Canudos, a favela faz parte do cenário e da crônica do Rio de Janeiro.2 E das pesquisas dos estudiosos que procuram entender a cidade – seus problemas e suas soluções. Nas últimas décadas, e principalmente nos últimos anos, o tema favela – e seus múltiplos aspectos - tem sido abordado, discutido e analisado por diferentes pesquisadores e especialistas. A favela tem sido estudada como questão urbana, como problema social, como imagem das gigantescas desigualdades de nosso país e de nossa cidade. Muitas vezes a abordagem associa os temas criminalidade, tráfico de drogas, violência policial, alta taxa de mortalidade entre jovens. Outras vezes a favela é abordada justamente pelo ângulo contrário, pelo que oferece de solução em termos de moradia, de relações de solidariedade, de vida comunitária. Ela tem sido estudada, também, como locus importante de produção artística e cultural. Inúmeros grupos de música, teatro, dança e expressão corporal têm sido implantados em comunidades populares e vêm desenvolvendo 1  Morro localizado entre os bairros Santo e Cristo e Gamboa no Centro do Rio de Janeiro. 2  ZYLBERBERG, Sonia. Morro da Providência: memórias da Favella. Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

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experiências estéticas interessantes e criativas. Jornais locais, criação coletiva de teatro e dança, recuperação da memória e da história local são alguns exemplos dessa recente produção artística, cultural e intelectual nascida e crescida nas favelas. Muitas vezes a favela é abordada como contraponto ao asfalto, à “cidade formal”, produzindo uma narrativa que se constrói o tempo todo em torno desta polaridade, desta oposição, deste contraste. Outras vezes, pelo contrário, o que se acentua são as pontes entre uma e outra, as ligações entre estas duas faces da cidade. Ligações que podem ser culturais, políticas, econômicas ou criminosas. Os fios que unem (ou desunem) a favela e o asfalto podem ser vistos de forma positiva ou negativa. As relações políticas possibilitadas pela realidade da favela têm sido objetos de muitos estudos: nas décadas de 1960 e 1970, essas comunidades foram palco de lutas contra a remoção, de formação de movimentos associativos (as associações de moradores tiveram importante papel na história política do Rio de Janeiro) e tornaram-se alvos de políticos dos mais variados matizes. Sobre tudo isso muito se escreveu. Nos últimos anos, a ação de diversas organizações não governamentais tem criado um cenário novo e original em muitas favelas do Rio de Janeiro: trabalhos artísticos e culturais, de cunho social e comunitário vêm esboçando estratégias de inclusão para inúmeros jovens moradores. O AfroReggae, em Vigário Geral; o Nós do Morro, no Vidigal; a Companhia Étnica de Dança, no Andaraí e o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), na favela da Maré, são bons exemplos desse processo. Alguns trabalhos renderam produtos de divulgação como livros, revistas, jornais e páginas na internet. O site Favela tem memória3 é uma das realizações mais interessantes desse movimento. A favela, portanto, tem sido objeto de estudo freqüente da sociologia, da ciência política, da história e da antropologia. 3 http://www.favelatemmemoria.com.br


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Personagem da crônica jornalística e da crônica policial, palco de iniciativas artísticas e culturais. Entre essas diferentes abordagens um ponto em comum se sobressai: a certeza de que é impossível pensar a cidade do Rio de Janeiro sem pensar a favela. É impossível entender os problemas de nossa cidade sem levar em conta a favela, assim como é impossível apontar soluções para esses problemas que não passem também pela favela. Melhor dizendo pelas inúmeras favelas do Rio de Janeiro. O conjunto da bibliografia sobre as favelas cariocas espelha essa convicção. É impossível traçar uma síntese dessa bibliografia. Mas as pesquisadoras Licia do Prado Valladares e Lídia Medeiros conseguiram levantar praticamente tudo que se escreveu sobre o tema no último século. O livro Pensando as favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000: uma bibliografia analítica4 é um excelente guia para quem deseja se aprofundar no assunto. De uma forma geral, essa bibliografia apresenta algumas temáticas recorrentes, dependendo da abordagem do autor. Em primeira instância, o tema favela é quase sempre associado aos temas cidade, metrópole, explosão demográfica e êxodo rural. Vista por este ângulo a favela está longe de ser fenômeno exclusivo do Rio de Janeiro ou, mesmo, do Brasil. Existe toda uma literatura que analisa o surgimento e crescimento das favelas como expressão do processo de urbanização da América Latina. Um processo marcado por acentuada explosão demográfica, pelo êxodo rural e por soluções elitistas e excludentes de amplas parcelas da população que ficaram fora da cidadania urbana. O contexto latino-americano é apresentado, por exemplo, por Anthony e Elizabeth Leeds, em um livro escrito em 1978, que se

4 VALLADARES, Licia do Prado e MEDEIROS, Lidia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000: uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro, Relume Dumará, FAPERJ: URBANDATA, 2003.


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tornou um clássico sobre o assunto: A sociologia do Brasil urbano.5 A obra analisa experiências de áreas invadidas em várias cidades latino-americanas como Lima, Santiago e Rio de Janeiro e relaciona o surgimento das favelas à precarização das condições de vida no campo que teria gerado migrações crescentes para os grandes centros urbanos. Uma abordagem mais moderna do tema favela articulado com a questão da urbanização na América Latina aparece no livro do historiador argentino José Luis Romero, América Latina: as cidades e as idéias.6 Romero também aponta o processo de desenraizamento rural e a contundente marcha para as cidades que ocorreu em quase todos os países latino-americanos na primeira metade do século XX como responsáveis pela vertiginosa explosão demográfica e urbana vivida pelo continente. Os dados são surpreendentes: por volta do ano 1900 apenas umas dez cidades na América Latina superavam a marca de cem mil habitantes. Mas em 1940 quatro cidades ultrapassavam um milhão de habitantes: Buenos Aires, México, Rio de Janeiro, São Paulo. E mais quatro, o meio milhão: Lima, Havana, Montevidéu, Santiago. Nas décadas subseqüentes, México e Buenos Aires ultrapassaram os oito milhões de habitantes; Rio de Janeiro, os seis milhões e São Paulo, os sete milhões e meio. A explosão demográfica modificou o perfil das cidades. Além de promover um intenso processo de massificação, produziu também, na visão de Romero, uma divisão no interior da urbes: de um lado a cidade normatizada, de outro a cidade anômica. A “cidade normatizada” é aquela submetida às normas tradicionais e oficiais do espaço urbano. A “cidade anômica” é a que cresceu à margem da – e muitas vezes contra a – cidade oficial. As favelas são uma de suas maiores expressões. Cresceram intensamente, sobretudo a partir de 1940, e receberam vários nomes: callampas no Chile, 5 LEEDS, Anthony e LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1978. 6 ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as idéias. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004.


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villas na Argentina, favelas no Brasil, cantegriles no Uruguai, barriadas no Peru, cidades perdidas no México, pueblos piratas na Colômbia. Apesar de apontar para um binômio e uma oposição entre metrópole (sociedade normatizada) e favela (sociedade anômica), Romero enfatiza a integração entre os dois pólos, salientando que um não pode viver sem o outro: “São dois irmãos inimigos que se vêem forçados a integrarem-se, como as sociedades que os habitam”. Para ele, no entanto, entre o confronto e a integração há um longo caminho a ser percorrido. Este ponto do confronto entre a favela e a sociedade normatizada aparece também, com muita freqüência, na literatura brasileira. A oposição entre “morro” e “asfalto” é recorrente não só na bibliografia especializada, mas também no senso comum, na linguagem coloquial e na crônica jornalística. O título do livro de Zuenir Ventura Cidade partida7 é uma boa expressão dessa forma de ver a questão. A obra, que trata especificamente de Vigário Geral, corrobora a tese de duas cidades opostas: uma regida por leis, com seu elenco de direitos e deveres; outra à margem da lei, desassistida pelo Estado, desprovida de serviços básicos. Mas Zuenir não pretende defender teses sociológicas. Trata-se, na verdade, de um relato jornalístico que teve por objetivo principal contar a história de como a favela vivenciou e superou a trágica experiência da chacina de 1993, quando 21 trabalhadores foram mortos por policiais. O livro é, antes de tudo, o registro e a valorização da experiência comunitária de Vigário Geral. Indo em outra direção, Adair Rocha aborda o tema confronto entre a cidade formal e as favelas para negá-lo. Seu livro Cidade cerzida: a costura da cidadania no morro Santa Marta8 tem esse objetivo. A idéia da “cidade cerzida” opõe-se à tese da “cidade partida”. Adair combate a visão de duas cidades opostas, antagônicas, que mal se conhecem, regidas por códigos completa7 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 8 ROCHA, Adair. Cidade cerzida: a costura da cidadania no morro Santa Marta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000.


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mente distintos. Para ele, estas duas realidades, embora diferentes, são expressões da moderna vida urbana e produzem, o tempo todo, relações de intercâmbio, de troca e de sociabilidade que atravessam as diferenças. Essas relações são as costuras da cidade cerzida. Segundo Adair, a idéia de uma dicotomia intransponível é extremamente nociva porque justifica a segregação e a discriminação dos moradores das favelas – que passam a ser vistas, essencialmente, como lugares fora-da-lei, marginais, guetos de violência, que só prejudicam a “cidade oficial”. Adair sugere que esta visão, que aprisiona o favelado como o “outro”, pode ser combatida pelas atividades associativas das comunidades, principalmente aquelas ligadas à cultura, à comunicação, ao lazer. Estas atividades, para ele, consolidam e valorizam a identidade dos moradores e, ao mesmo tempo, permitem a criação de pontes entre o morro e o asfalto. O jornal comunitário Eco, produzido no morro Santa Marta desde a década de 1970, é o exemplo que Adair utiliza para expor sua tese. A noção de oposição entre a favela e a “cidade formal” perpassa outras obras, geralmente sendo combatida pelos autores que identificam nessa dualidade o germe da discriminação e do estranhamento em relação aos moradores das favelas. Marcos Alvito e Alba Zaluar, em Um século de favela,9 afirmam que a dualidade serviu para alimentar o estigma da favela como lugar de desordem, de doenças, de imoralidade e de crime. No livro, organizado por eles, mostram que esse processo vem de longe, do final do século XIX, ganhando corpo com os projetos de modernização do Rio de Janeiro – todos envolvendo estratégias de “embranquecimento” e “refinamento” da cidade. A reforma de Pereira Passos,10 no início do século XX, já delineara duas cidades separadas: uma, “civilizada”, que se mirava em Paris; 9 ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998. 10 Francisco Pereira Passos, então prefeito do Rio.


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outra, povoada de negros e mestiços, ex-escravos e brancos pobres, afastada do centro e das áreas nobres urbanas. Para Alba e Alvito, superar esta divisão dicotômica é fundamental para romper o estigma das “classes perigosas” e tornar possível a aposta na integração entre esses dois mundos. A imagem das “classes perigosas” também é utilizada por Cecília Coimbra em um livro que tem por objetivo a análise das políticas de segurança pública. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública11 analisa o convênio firmado entre o Governo do Estado e as Forças Armadas para garantir a segurança do Rio de Janeiro, em uma clara violação dos direitos das populações moradoras das favelas cariocas. Mais uma vez é feito um paralelo com a cidade do início do século, na qual as elites, através de argumentos higienistas e criminais, discriminavam a população pobre, confinada nos morros e periferias, considerados por essas elites locais potencialmente perigosos e violentos. A “Operação Rio” trazia embutida uma concepção de segurança pública que criminalizava preliminarmente todo e qualquer habitante de favela. Tornava-o potencialmente, até prova em contrário, um assaltante, um malfeitor, um traficante. Um outro aspecto da abordagem clássica sobre a favela é aquele que enfoca o problema de ordem urbanística e habitacional. Deste ponto de vista, ela é abordada como problema ou solução para a questão da moradia, especialmente das camadas populares. Sua geografia, as questões referentes ao saneamento básico (ou à falta dele), a estética peculiar das favelas, os “puxadinhos”, as soluções em termos de transporte, a visão da favela como um bairro popular são os temas dessa abordagem que privilegia a discussão da sua integração na malha urbana. Existem dois clássicos trabalhos com esta perspectiva. Um 11 COIMBRA, Cecília. Operação Rio. O mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, Niterói, Intertexto, 2001.


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deles é o livro de Lucien Parisse, publicado em 1969, pelo Centro Nacional de Pesquisas Habitacionais, Favelas do Rio de Janeiro – evolução – sentido.12 O outro é o de Janice Perlman, O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro,13 lançado em 1977. A antropóloga norte-americana, então professora de Planejamento Urbano e Regional da Universidade da Califórnia, residiu dois anos no Brasil para realizar seus estudos sobre as comunidades cariocas. O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ tem tido um destacado papel na produção de análises e propostas nesta direção. O livro A crise da moradia nas grandes cidades,14 organizado por Luiz César Queiroz, professor e pesquisador do instituto, é um bom exemplo desta abordagem. A favela é vista como expressão de uma crise de moradia requerendo, neste sentido, soluções urbanísticas e de planejamento habitacional. Neste eixo de abordagem (moradia/planejamento habitacional), o problema das favelas no Rio de Janeiro deu origem a mais uma dicotomia: remoção x urbanização. que esteve presente, durante as últimas quatro décadas, na literatura especializada e, é claro, nos movimentos de resistência dos moradores de favelas. O livro de Licia Valladares do Prado Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro15 é uma boa contribuição a esse debate. A autora analisa as políticas públicas de habitação voltadas para a população favelada e conclui pelo fracasso das políticas de remoção. O próprio título da obra demonstra que os programas habitacionais não atingiram o 12 PARISSE, Lucien. Favelas do Rio de Janeiro – evolução – sentido. Rio de Janeiro: Centro Nacional de Pesquisas Habitacionais, 1969. 13 PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 14 QUEIROZ, Luiz César (ver comentário 52). A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996. 15 VALLADARES, Licia do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção das favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1978.


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objetivo de fixar os antigos moradores de favelas nos conjuntos habitacionais para os quais eram enviados. A população removida, depois de algum tempo, “passava sua casa”, com o intuito de retornar às suas antigas moradias nas favelas. Nos últimos anos, os estudos sobre a favela têm colocado em relevo questões como educação, cultura, relações políticas, universo simbólico e memória. A educação popular ligada a projetos de desenvolvimento comunitário foi analisada por Victor Valla em Educação e favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985.16 Publicado em 1986, o livro mostra como que, durante o longo período analisado, as favelas foram objeto de intervenções externas, vindas principalmente da Igreja Católica e do Governo do Estado. Para Valla, os inúmeros projetos educacionais implementados nas comunidades ao longo de mais de quarenta anos, tinham por principal objetivo o controle social e político de seus moradores. No entanto, os temas educação e cultura têm aparecido de forma diferente nas análises que são feitas. Eles aparecem, muitas vezes, entrelaçados com estudos sobre juventude, exclusão social, violência. A educação, a arte e a cultura aparecem como respostas políticas e estratégias de inclusão social. O livro Cultivando vida, desarmando violências: experiências em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em situações de pobreza,17 organizado por Mary Castro e editado pela Unesco, procura fazer uma análise de vários grupos e trabalhos comunitários, ao mesmo tempo em que apresenta uma reflexão sobre este tipo de iniciativa de forma geral. Projetos artísticos, culturais e comunitários passam a ser vistos não como tentativas de controle da população das favelas (tal como é sugerido por 16 VALLA, Victor Vincent (org.). Educação e favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985. Petrópolis, Vozes/ABRASCO, 1986. 17 CASTRO, Mary Garcia (org). Cultivando vida, desarmando violências: experiências em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em situações de pobreza. Edições Unesco, 2001.


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Valla), mas sim como legítimas expressões dos anseios, desejos, carências e visões de mundo destas comunidades. As relações políticas vivenciadas no universo das favelas constituem um tema importante da sociologia política contemporânea. Uma das abordagens mais clássicas foi proposta em Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro.18 O estudo pioneiro de Eli Diniz procura situar as relações de tipo clientelistas no dia-a-dia das comunidades, em redes que ligam as suas formas associativas (como associações de trabalhadores ou religiosas e escolas de samba) aos parlamentares e representantes do poder público, numa relação de troca de benefícios por votos. Para a autora, a base dessas relações teria sido questionada a partir da década de 1970 quando as associações populares passaram a ter uma atenção maior para a questão da “autonomia” em relação ao Estado. Mas a vinculação entre populismo e clientelismo permaneceria, ainda, como um forte traço das relações políticas entre o Estado e as favelas. Apesar da visão crítica sobre o problema, o livro de Diniz nos mostra que o clientelismo é, de certa maneira, filho da ampliação da democracia partidária. É o aumento da democracia política que cria um cenário propício para a proliferação de relações de troca de tipo clientelista. Seguindo e aprofundando esta idéia básica de Diniz, o cientista político Paulo D’Ávila, no texto Tanto aqui como alhures: o clientelismo como fenômeno moderno,19 sugere que o clientelismo pode ser encarado como “um instrumento de ação popular na busca para auferir benefícios que, de outro modo, dificilmente poderiam ser alcançados pelos canais formais da política”. O clientelismo seria, portanto, uma forma específica de comunidades carentes

18 DINIZ, Eli. Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 19 D’ÁVILA FILHO, Paulo. “Tanto aqui como lá ou alhures: o clientelismo como fenômeno moderno”, VII Encontro Luso Afro Brasileiro, IUPERJ (www.iuperj.br/lusofonia/ papers). Disponível no site da IUPERJ.


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se relacionarem com o poder público, perfeitamente conscientes de quanto valem na disputa de votos característica do jogo democrático parlamentar. Um outro tema nobre da literatura sobre favela é memória. Para muitos historiadores, ultimamente, recuperar a memória popular, a memória de grupos sociais excluídos dos registros oficiais da história, tem sido uma preocupação recorrente e uma meta constante. Voltaremos a este ponto num capítulo mais adiante, quando explicitaremos a nossa própria abordagem historiográfica. Mas gostaríamos de relacionar aqui alguns livros importantes que procuram justamente trabalhar essa perspectiva, valorizando a memória social e comunitária das favelas, os depoimentos de seus moradores, suas histórias, suas vivências. O próprio site Favela tem memória, que mencionamos no início deste capítulo, é um exemplo. Alguns bons livros foram editados com a preocupação do resgate da memória da favela ou com o intuito de dar voz aos moradores para que contassem suas próprias experiências. Entre eles cabe citar A favela fala: depoimentos ao CPDOC,20 organizado por Dulce Pandolfi e Mário Gryspan, que registra os depoimentos de vários líderes comunitários. O livro tem um teor mais político. Afinal, são líderes comunitários que falam. Em um outro viés, existe toda uma literatura dedicada à memória social das favelas, seu arsenal de casos – alguns folclóricos, outros tristes ou engraçados –, seu cabedal de lembranças. Enfim, sua história e sua memória. É deste viés o livro de Lygia Segalla e Tânia Regina Varal de Lembranças: histórias e causos da Rocinha,21 pioneiro sobre o tema e publicado em 1983. Fora do eixo acadêmico um outro tipo de literatura sobre a favela merece destaque: obras por pessoas profundamente envol-

20 PANDOLFI, Dulce e GRYNSPAN, Mário. A favela fala: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro, FGV, 2003. 21 SEGALLA, Lygia e Tânia Regina (orgs.). Varal de lembranças: histórias e causos da Rocinha. Rio de Janeiro, Tempo e Presença, 1983.


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vidas no cotidiano das comunidades que descrevem. Relatam episódios importantes, descrevem a geografia da favela, trazem a público personagens e casos marcantes da vida dos moradores e, geralmente, estão ligados a projetos culturais e artísticos. São deste tipo Maré, vida na favela,22 organizada por Dráuzio Varella, e Da favela para o mundo,23 que conta a história do Grupo Cultural AfroReggae e de sua relação com Vigário Geral, a partir da trajetória de vida de José Junior, um dos fundadores e hoje coordenador executivo da ONG. Gostaria de encerrar esta pequena síntese da bibliografia sobre favelas lembrando As cores de Acari.24 Este livro de Marcos Alvito possui uma especificidade em relação aos temas que foram abordados aqui. Ele nos apresenta uma abordagem antropológica da favela de Acari (Zona Norte carioca), de seu universo simbólico, de seu código moral, procurando desenhar a visão de mundo de seus moradores. Realiza também uma etnografia detalhada, delimitando fronteiras simbólicas, mapeando o que chamou de “microáreas” da favela – como Coroado, Amarelinho, Vila Esperança, Parque Acari, mostrando que em cada uma delas há uma organicidade e como que uma identidade de vizinhança específica à área. Enfatizando a existência destas várias “localidades”, Alvito faz uma crítica à noção de “comunidade” aplicada à favela. Para ele existiriam muitas comunidades e não uma só. A idéia de uma comunidade (homogênea e fechada) correspondente à favela seria artificial. A palavra é, muitas vezes, usada por moradores e líderes comunitários no trato com as autoridades – sem dúvida para reforçar suas posições e reivindicações –, mas não espelha a realidade da multiplicidade interna da favela.

22 VARELLA, Drauzio (org.). Maré, vida na favela. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002. 23 JUNIOR, José. Da favela para o mundo. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2003. 24 ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2001.


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Nosso trabalho se inspirou em vários destes livros e, nesse sentido, é devedor de muitos dos autores citados. Como Lygia Segalla e Dulce Pandolfi, tivemos a preocupação de resgatar a memória dos moradores de Vigário Geral e assim recuperar a memória social e afetiva da favela. Tivemos o intuito de ampliar a voz destes moradores, citando seus depoimentos e utilizando suas falas como nossa fonte principal para a recuperação da história de Vigário. Entendemos, como Eli Diniz e Paulo D’Ávila, as relações políticas estabelecidas no interior da favela como relações de troca conscientes, engendradas e vividas por personagens políticos que buscam, de variadas formas, sua autonomia. E também procuramos, como Marcos Alvito, o caminho etnográfico, acreditando que ele nos permitiria descrever a favela em toda a sua heterogeneidade e captar seu universo simbólico. Mas a principal chave metodológica que utilizamos na pesquisa foi acreditar, firmemente, que este conhecimento e esta narrativa só poderiam ser produtos da inter-relação entre nós (professora e alunos da UFRJ), a turma do AfroReggae e os moradores de Vigário Geral.


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Percorrendo as ruas de Vigário1 O Parque Proletário de Vigário Geral2 está localizado no bairro de mesmo nome no subúrbio do Rio de Janeiro, fazendo fronteira com Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. A favela está enquadrada na XI Região Administrativa da cidade, no bairro da Penha, sendo composta, segundo dados da Prefeitura de 1998, de 1.430 domicílios e 5.533 habitantes.3 1  Este livro expressa os resultados de uma pesquisa feita em 2005, logo, retrata uma geografia física e humana daquela época. A realidade da favela muda muito rapidamente. Alguns dados relativos à localização geográfica podem estar desatualizados. 2  Os parques proletários nascem de uma política de eliminação de favelas substituindo-as pela construção de núcleos mínimos de habitações populares, “proletárias”. Essa política começa a ser desenvolvida na administração do prefeito do Distrito Federal em 1940, Henrique Dodsworth em pleno Estado Novo do período Getúlio Vargas. O primeiro parque foi construído na Gávea e manteve as características de ser uma moradia popular agradável, com escolas, creche, clínica médica, mercado, áreas de recreação. Muitos outros parques foram criados, mas sua estrutura foi se modificando e retornado (não foi um retorno, já que o projeto inicial previa a infra-estrutura, talvez “aproximando”, “igualando”) seu perfil ao mesmo das favelas que inicialmente vieram substituir. Sobre o tema consultar Anthony Leeds e Elizabeth Leeds. op.cit. 3  Anuário estatístico da cidade do Rio de Janeiro (1998): habitação – domicílios, população residente e percentual de crescimento populacional de favelas (setores censitários – aglomerados subnormais), segundo as áreas de planejamento, Região Administrativa e favelas. Fonte: IBGE, censo de 1991 e contagem populacional de 1996.

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Até meados da década de 1980, o único acesso à favela era através da vizinha Parada de Lucas. Como resultado de lutas dos moradores, foi construída uma passarela que ligou o Parque Proletário ao bairro de Vigário Geral, o que dispensou seus moradores da obrigatoriedade de passar por Parada de Lucas. Hoje também é possível entrar em Vigário através de um viaduto, construído durante o plano de intervenção do projeto municipal Favela-Bairro.4 Ao cruzarmos a passarela edificada sobre a linha férrea da Leopoldina, percebemos que toda essa região da favela é circundada pelo muro da ferrovia. As casas ali localizadas possuem uma arquitetura diferenciada das outras, caracterizadas, principalmente, pela existência de terreno ao seu redor, distanciando assim uma habitação da outra. A descida nos leva a uma praça – Praça da Mocidade – que se parece bastante com um pequeno largo. Nessa região há uma videolocadora; um bar-lanchonete e um bar maior, cujo proprietário é um senhor chamado Sandoval. O bar do seu Sandoval destaca-se como um ponto de encontro e referência entre os moradores e também entre os visitantes da favela. Lá se localiza também um altar com a imagem de Nossa Senhora da Aparecida, colocada, ao que parece, propositalmente na entrada da comunidade como um símbolo de proteção para os que nela habitam. Por ser esta a área da favela mais próxima de uma via de circulação de transportes públicos, podemos sempre notar grande circulação e concentração de pessoas. Encontramos ainda uma quadra poliesportiva, onde freqüentemente ocorrem jogos de futebol entre os moradores; uma das creches da localidade, administrada pela Prefeitura, e a sede da Associação de Moradores de Vigário Geral, que vem sendo utilizada, provisoriamente, pelo AfroReggae, até que as obras em sua nova sede sejam finalizadas. 4 Projeto de urbanização de algumas favelas realizado durante a primeira gestão de César Maia na Prefeitura do Rio de Janeiro.


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Chama a atenção o calçamento das ruas da favela. São todas de cimento, contendo diversas galerias pluviais que, de acordo com moradores, impedem que as casas sejam alagadas quando ocorrem chuvas fortes. No entanto, algumas, como a do senhor José Emídio, ainda são tomadas pelas águas. Segundo o entrevistado, isto ocorre porque na época em que os próprios moradores aterraram parte da favela para construírem suas casas sobre o mangue, muitos não utilizaram aterro suficiente, o que acabou deixando algumas construções abaixo do nível da rua. A atual urbanização da região é decorrente, em parte, da execução do Favela-Bairro levado a cabo pelo governo municipal entre 1998 e 1999. O projeto fez interferências positivas no espaço físico e urbano de Vigário – o que é reconhecido pela maioria de seus moradores. No entanto, é importante lembrar que as obras pesadas de aterramento da área de mangue, a criação das primeiras redes de esgoto, a instalação das primeiras bicas d’água e o fornecimento de luz foram frutos do trabalho dos habitantes da localidade, entre os anos de 1960 e 1980, realizado coletivamente através do sistema de mutirão. Era mutirão, a gente trabalhava de graça o dia todo, às vezes passava até da hora de comer, não vinha almoçar nem jantar, a minha patroa brigava comigo, mas não adiantava, a minha cachaça era aquilo [depoente refere-se ao auxílio que prestava aos outros moradores na construção de suas casas e nas melhorias realizadas na favela], durante a semana eu trabalhava. Depois eu fui trabalhar na Coderj, consegui um emprego que só trabalhava seis horas, eu pegava às seis da manhã e largava meio-dia. Aí meio-dia eu vinha pra aqui e ajudava a fazer pontes, fazer isso e aquilo, fazer aquilo outro até escurecer. Aí depois começamos a aterrar. Aqui não entrava caminhão, até bicicleta aqui dentro não tinha condições de andar, aqui dentro não. Aí começamos a aterrar a favela. 5

5 Depoimento do senhor José Emídio, concedido em 24 de julho de 2004.


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Seguindo em frente, através de uma das principais ruas da favela, chamada Antônio Mendes, encontramos pequenos pontos comerciais. É interessante ressaltar que, apesar da existência de lojas, entre as quais se destaca a de material de construção de um de nossos entrevistados – seu Nilson –, Vigário Geral, diferentemente de sua vizinha Parada de Lucas, não possui expressivo número de estabelecimentos comerciais. Esta característica faz com que seus moradores precisem sair da localidade para fazer suas compras, dirigindo-se para isto a Duque de Caxias ou a bairros próximos do subúrbio. Além deste pequeno comércio que reúne desde lojas que consertam eletrodomésticos até padarias, duas instituições importantes localizam-se na rua Antônio Mendes: as organizações não governamentais Movimento Organizado de Gestão Comunitária (MOGEC) e Fundação Onda Azul.6 A Onda Azul trabalha basicamente com reciclagem, no entanto, o fato da sua coordenação ser de fora da favela acaba dificultando a comunicação com os outros projetos desenvolvidos em Vigário Geral.7 O espaço ocupado pela Fundação foi anteriormente sede da Casa da Paz, instituição criada depois da chacina de 1993, justamente para promover intervenções que pacificassem a comunidade e tirassem dela o estigma da violência. Porém, devido a problemas administrativos, esta ONG acabou sendo extinta. A outra instituição é o MOGEC, criada em 1998, funcionando inicialmente em uma sala improvisada na associação de moradores, contando com a parceria da também ONG Médicos sem Fronteira, que passou a atuar na comunidade depois da chacina. O MOGEC é uma instituição, uma ONG e age na área da Saúde, com parceria da Secretaria de Saúde, que é posto de saúde, que agora está virando PSF [Programa de Saúde Familiar], que é a questão da assistência em casa, na sua própria casa. (...) Então 6 No próximo capítulo estaremos discutindo esta forma associativa em detalhes. 7 Informação obtida através da entrevista realizada com a Elaine Araújo de Moraes, uma das diretoras do MOGEC, em 28 de agosto de 2004.


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hoje, ele atua na parte da Saúde, na Educação, a gente trabalha com reforço escolar com as crianças, desde a primeira série. A gente tem quatro turnos de manhã e de tarde de primeira à quarta série, a gente tá tendo um trabalho diferenciado com um grupo de vinte e cinco crianças de quinta à oitava série, tudo no reforço escolar. A gente ajuda, na verdade a gente tenta ajudar as crianças nas dificuldades que elas têm na escola.8

Próximo à Onda Azul há ainda o posto de saúde da comunidade, que atende Vigário Geral e Parada de Lucas. Apesar de ser um órgão público municipal, o posto é administrado através da gestão comunitária, representada pelo MOGEC. É gerido por nós [pessoas que trabalham no MOGEC], quem assina a carteira somos nós, quem vê horário, quem vê tudo, somos nós. Os técnicos vêm da CAP, que é a Coordenação de Área Programática, que são divisões por área, a Secretaria Municipal vem, mas em conjunto com a gente. É como se fosse quase uma terceirização...9

Os atendimentos ali realizados são limitados, por falta de infraestrutura e pessoal especializado os pacientes acabam sendo encaminhados para hospitais fora da comunidade. Além disso, há projetos para acabar com o posto, oferecendo atendimento médico na área basicamente através do Programa de Saúde da Família. (...) Muita gente está sendo mandada embora por essa questão do PSF, de virar Programa da Família. Então, na verdade, a gente só vai ficar mesmo com os agentes comunitários, e, provavelmente, com os auxiliares de enfermagem, mas isso aí não tá exatamente fechado, porque está vindo direto da Saúde, as pessoas que fizeram concursos públicos. Então são enfermeiras, médicos que vão estar vindo lá do ministério, está tendo uma mudança radical, por esse lado.10

8 Idem. 9 Depoimento Elaine Araújo de Moraes. 10 Idem.


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Continuando o percurso, o visitante que vai a Vigário Geral pode optar por outro itinerário, seguindo o caminho entre as casas e o muro da Leopoldina. É uma passagem estreita, chamada pelos moradores de “Beco do Namoro”, por ser um lugar muito freqüentado por adolescentes e jovens que desejam namorar sem serem incomodados por seus pais. Ao caminharmos por este beco, notamos de maneira mais clara a diferença entre as casas ali localizadas e a maioria das outras que compõem a favela. A verticalização comum às habitações é substituída por residências, geralmente, com um único pavimento, com quintais e, às vezes, até varanda e cobertas por telhas francesas, dando um ar de bairro antigo de subúrbio a esta região de Vigário. A área da favela que beira a linha férrea é originária de loteamentos feitos pela administração da estrada de ferro, lotes que foram distribuídos entre seus funcionários. Ao fim da rua, encontramos a estação ferroviária de Vigário Geral. Iniciamos então nossa caminhada por um outro beco, chamado “Beco Final”, fazendo referência ao que seria o fim da favela. Nesse lado da favela, encontramos uma grande creche da prefeitura, construída durante a execução do Favela-Bairro. Esta segunda creche chama a atenção por seu tamanho e está localizada em uma praça também construída pelo governo municipal. A partir dali, até praticamente a outra extremidade da favela, estende-se uma longa e larga via, conhecida como “Beira”, nome dado porque a região está às margens do mangue, que hoje se resume à parte de trás da favela e já ocupou grande parte da área que hoje chamamos Parque Proletário de Vigário Geral. É importante também destacar que, ao caminhar pela “Beira”, notamos que as casas são bem mais pobres que as de outras regiões da favela, sendo algumas ainda de madeira. Um de nossos guias disse-nos que os moradores da área – conhecida como Nova Brasília – chamam as regiões mais centrais da favela de “Zona Sul”, em alusão à Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, justamente pelas melhores condições das habitações lá existentes.


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O número de moradias próximas ao mangue é menor do que o que havia antes da intervenção da prefeitura, pois algumas casas foram realocadas para a construção dessa via e também para a edificação do viaduto. Este viaduto, já referido, permite a entrada de carros na favela sem que precisem vir da Avenida Brasil, caminho através do qual a passagem por Parada de Lucas é inevitável. Ao final da “Beira” localiza-se a rua Onze Unidos, cujo nome faz referência a um importante time de futebol da região, presente na memória de grande parte dos moradores, principalmente dos mais antigos. O time foi extinto na década de 1980, devido a desentendimentos entre seus administradores e organizadores.11 Encontramos na Onze Unidos uma birosca, conhecida como “Barraca do Miúdo”, considerada um ponto de encontro dos moradores, principalmente dos que residem nas áreas mais internas da favela. Na rua Vila Nova fica um outro local de diversão comunitária, o “Centro de Lazer Vila Nova”, segundo denominação da Prefeitura. O que encontramos, na verdade, não é o que poderíamos chamar de centro de lazer, mas sim uma quadra de areia, com uma área para a realização de churrasco e um palco, onde se realizam shows, dentre os quais se destacam os famosos bailes funk. Na mesma via encontramos um templo da Igreja Deus é Amor. Além desta, podemos notar outras igrejas na favela, em sua grande maioria pentecostais e neopentecostais, com destaque para duas Assembléias de Deus uma na rua Vila Nova, e outra na avenida Vieira. Ali há um bar chamado “Boca do Chuveiro”, batizado assim pois na época das instalações das bicas d’água na comunidade foram colocados chuveiros para que os moradores pudessem refrescar-se do calor. 11 Informação obtida através da entrevista realizada com o senhor Denair, em 31 de julho de 2004.


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Na rua Santa Rita, encontramos uma imensa caixa d’água que abastece toda a favela, obra que também é resultado da intervenção promovida pelo governo municipal. Uma área não muito distante, na rua Nossa Senhora Aparecida, popularmente conhecida como Cruzeiro, é também identificada como “Centro dos Ceará”, por causa do número expressivo de nordestinos ali residentes. O estúdio do AfroReggae, utilizado para ensaio de bandas do grupo, também é um local de destaque em Vigário Geral, ponto de referência para muitos jovens que participam dos seus projetos. Um último local importante a destacar no espaço de Vigário é a região próxima à Parada de Lucas. A fronteira imaginária, conhecida também como “Faixa de Gaza”,12 é delimitada por uma escola – o CIEP Mestre Cartola13 - e pelo 16° Batalhão da Polícia Militar. Ao primeiro contato com a área, logo percebemos que é uma zona de disputa entre os comandos de tráfico de drogas das duas favelas e a polícia, principalmente pela grande quantidade de furos nas paredes das casas, causados por armamentos de diversos calibres utilizados durante os conflitos. Na região, o AfroReggae promove o ensaio de bandas do grupo, atitude interessante diante do que o local representa, significando um ato simbólico de integração entre as duas comunidades e um esforço pela paz. As indicações espaciais aqui apresentadas situam minimamente os visitantes que forem pela primeira vez a Vigário Geral. São também os pontos de referência, encontro e vivência de seus moradores. Um mapa com a sinalização destes pontos pode dar uma boa idéia não só da geografia, mas também do cenário social e urbano de Vigário.

12 O nome é uma referência à área de conflito entre Israel e Palestina. 13 Escola fundada em 1986, durante a administração de Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro.


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O nascimento de uma nação É praticamente impossível precisar a data exata do nascimento da favela de Vigário Geral. Existem diferentes versões sobre o processo de criação e expansão da favela. No Instituto Pereira Passos, em um documento intitulado “Relatório específico de favelas”14 há uma referência ao ano de 1951 e outra ao de 1958. Este relatório da prefeitura, produzido em 1981, visava mapear, conhecer e cadastrar as principais favelas cariocas, chamadas de “assentamentos de baixa renda”. Relaciona dados como localização, população, número de residências, área, nome e endereço da associação de moradores (quando existia), e assinala o registro histórico da primeira ocupação, a partir do depoimento de moradores. Os dois registros ali mencionados, indicam que Vigário Geral nasceu a partir da remoção de população de outras favelas em áreas que estavam sendo aterradas pela Prefeitura. Além deste relatório, não há fontes ou registros oficiais acerca do surgimento de Vigário. A grande fonte para a história das origens da favela é, realmente, a memória de seus moradores. Não é à toa que o próprio relatório recorre a depoimentos de moradores para fazer seu histórico da ocupação. É a eles que temos que buscar para definir como e quando nasceu Vigário Geral. As narrativas dos moradores mais antigos e mais representativos de Vigário – um grupo que batizamos de “Pioneiros”15 pela importância que eles tiveram no desenvolvimento das formas associativas da comunidade – apontam três caminhos para a origem da favela. Não são caminhos excludentes, mas representam diferentes acessos, diferentes origens de Vigário Geral. Na verdade, se referem ao processo de ocupação de áreas da favela, em diferentes momentos. Mas todas as narrativas situam o nascimento de Vigário na década de 1950. 14 Relatório específico de favelas. SABREN 6.0 (Sistema de Assentamentos de Baixa Renda). Instituto Pereira Passos. 15 Voltaremos a falar deste grupo de moradores históricos de Vigário Geral no capítulo III (em “Se organizando para viver melhor”).


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Vejamos, então, um panorama do país e da cidade do Rio de Janeiro naquela época.

O Brasil e o Rio de Janeiro na década de 1950 Em janeiro de 1951 Getúlio Vargas tomou posse como presidente da República. Tendo sido eleito por voto popular, iniciou seu governo tentando desempenhar, nas condições de um regime democrático, um papel que já vivera: de árbitro das diferentes forças sociais. Ao mesmo tempo em que tratava de dinamizar a economia, o governo Vargas se via diante de um problema com fortes repercussões sociais – o avanço da inflação. Getúlio foi obrigado a manobrar em um mar de correntes contraditórias. De um lado, não podia deixar de se preocupar com as reivindicações dos trabalhadores, atingidos pela alta do custo de vida; de outro, precisava tomar medidas impopulares no sentido de controlar a inflação. Entre as medidas polêmicas, destaca-se a alteração que realizou em seu ministério em 1953, nomeando como ministro do Trabalho João Goulart. O historiador Boris Fausto ressalta o papel simbólico de Goulart no governo Vargas: [João Goulart] ligara-se aos meios sindicais do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] e surgia como uma figura capaz de conter a crescente influência comunista nos sindicatos. Apesar do papel que poderia desempenhar, Jango [como era popularmente conhecido] foi transformado em uma figura odiosa pela UDN [União Democrática Nacional – partido conservador da época].16

Nos círculos militares antigetulistas e em setores das classes médias, Jango era visto como defensor de uma “República sindicalista”, sofrendo forte oposição por seus posicionamentos políticos considerados esquerdistas, entre os quais a proposta

16 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo, Editora EDUSP – FDE, 2000, p. 410.


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de aumento de 100% do salário mínimo, que resultou em uma tempestade de protestos. Desde o início de seu governo, Getúlio não esquecera de uma de suas principais bases de apoio – os trabalhadores urbanos. No entanto, não conseguiu controlar inteiramente o mundo do trabalho. A liberalização do movimento sindical e os problemas decorrentes da alta do custo de vida levaram a uma série de greves em 1953.17 Em termos internacionais, a eleição do general Eisenhower à Presidência dos Estados Unidos converteu o anticomunismo em uma verdadeira cruzada. O presidente norte-americano adotou uma postura rígida diante dos problemas financeiros dos países em desenvolvimento. A partir de então, a possibilidade de o Brasil obter créditos públicos para as obras de infra-estrutura e para cobrir os déficits do balanço de pagamento encolheu sensivelmente. No cenário interno, Carlos Lacerda, político da UDN, era o mais ferrenho opositor de Getúlio Vargas, sendo seus alvos principais políticas por ele consideradas comunistas ou populistas. A partir de seu jornal Tribuna da Imprensa, conduziu uma forte campanha pela renúncia de Vargas, desencadeando uma poderosa oposição ao presidente, apoiada principalmente por setores militares. Diante das crescentes pressões, Vargas se suicidou em 24 de agosto de 1954. Seu suicídio, no entanto, não exprimiu apenas desespero pessoal, mas teve também um profundo significado político. Na carta-testamento que deixou ao povo brasileiro, apontava como responsáveis ao impasse a que chegara os grupos internacionais aliados a inimigos internos, que, segundo ele, opunham-se às garantias sociais aos trabalhadores. Sua morte comoveu as camadas populares e levou-as à revolta contra aqueles que foram considerados responsáveis. Getúlio Vargas acabou ficando na memória das classes sociais mais

17 Idem, ib, p. 412.


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humildes como o seu defensor, apesar de ser esta uma imagem muito simplificadora e unilateral. Em 1956 assumiu a presidência da República brasileira Juscelino Kubitschek, tendo como seu vice o ex-ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart. Os anos do governo JK podem ser considerados de estabilidade política e otimismo, embalados pelos altos índices de desenvolvimento econômico. Os “cinqüenta anos em cinco” da propaganda oficial repercutiram em amplas camadas da população.18 A política econômica de Juscelino foi definida em um Programa de Metas. Ele abrangia 31 objetivos, distribuídos em cinco grandes grupos: energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação, além da construção de Brasília que marcaria a transferência da capital federal, até então localizada no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que o governo JK foi nacional-desenvolvimentista, e não nacionalista como o último governo Vargas. Os nacionalistas sustentavam a necessidade de controle pelo Estado da infraestrutura e da indústria básica, ficando as outras áreas da atividade econômica nas mãos da empresa privada nacional. Sem chegar a recusar em princípio o capital estrangeiro, insistiam na necessidade de só aceitá-lo com muitas restrições. A expressão nacional-desenvolvimentismo, em vez de nacionalismo, sintetiza uma política econômica que tratava de combinar o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro para promover o desenvolvimento, com ênfase na industrialização. Apesar do grande desenvolvimento do período, o governo teve problemas com as finanças, pois os gastos excessivos levaram a um déficit orçamentário acompanhado de altas taxas de inflação. Desta forma, os setores mais populares não foram diretamente beneficiados pelas medidas governamentais.

18 Idem, ib., p. 422.


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Enquanto o Brasil passava por importantes momentos políticos, a década de 1950 na cidade do Rio de Janeiro ficou na memória de muitos como “os anos dourados” ou “a época da inocência”. A precariedade material de muitos já era evidente na cidade, as favelas já haviam surgido havia aproximadamente cinqüenta anos, mas ainda não eram sinônimo de violência. A bandidagem residente nos morros tinha um ar romantizado, sendo vista muito mais como uma malandragem desocupada do que como criminosa e violenta. O Rio estava longe de ser uma cidade realmente perigosa. Tinha suas zonas de risco, mas poucas e delimitadas. As fronteiras eram conhecidas. A Praça Mauá (...) era um perigo nas noites em que desembarcavam os marinheiros americanos. A Zona do Mangue, residência do baixo meretrício, também não era um lugar recomendável. Para a Lapa, no velho centro da cidade, acorriam boêmios, sambistas e malandros. A Central do Brasil já era barra pesada por ser ponto de venda de maconha para os marginais. Copacabana, berço da Bossa Nova, continuava, porém, um bairro tranqüilo, a exemplo de toda a Zona Sul.19

As favelas já eram um problema para a “Cidade Maravilhosa”, mas principalmente por sua estética que não condizia com os ares que uma capital federal, que procurava mimetizar o estilo europeu, deveria ter. Assim, as intervenções realizadas nos anos 1950 pelo poder público nas favelas visavam basicamente à remoção das mesmas, transferindo-as para regiões da cidade que ficassem bem distantes dos olhares das elites. Neste período de remoções muitas localidades faveladas do Centro da cidade e da Zona Sul foram extintas e seus habitantes alojados em espaços provisórios no subúrbio. Como veremos a seguir, esta foi uma das origens do Parque Proletário de Vigário Geral. Uma das origens de Vigário Geral mais apontada nos depoimentos dos moradores fala de um processo de remoção de população de outras favelas cariocas que estavam sendo aterradas 19 VENTURA, Zuenir, op cit., p. 30-31.


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pela Prefeitura. Nas décadas de 1950 e 1960 este era um procedimento bastante comum: desejando ocupar áreas da cidade favelizadas – para embelezamento urbanístico ou construção civil –, o governo municipal retirava os moradores e os alocava em outra região, onde criava um “Parque Proletário”. Os parques proletários tinham então um sentido provisório – receberiam a população removida de outras favelas até que a prefeitura designasse um local adequado para que morasse. O problema era que, uma vez removidas temporariamente, essas famílias eram muitas vezes esquecidas pelas autoridades e a solução provisória virava uma situação definitiva, permanente. Muitas favelas nasceram assim. E essa foi, também, uma das origens de Vigário Geral. Seu Nilson, morador antigo, hoje um pequeno empresário local, dono de uma loja de material de construção, lembra da chegada de sua família em Vigário: A gente veio para a Cidade Alta, uma favela chamada Morro Azul, que ficava em Cordovil, que hoje é chamada Cidade Alta. Em 1953, eles [a Prefeitura] removeram o pessoal da Cidade Alta para Vigário Geral que recebeu o nome de Parque Proletário de Vigário Geral. Aqui era tudo mangue, da parte interna da linha [do trem] para cá era tudo mangue. Os primeiros moradores de Vigário Geral foram os de Cordovil. Depois vieram os do Morro de Santo Antônio, Morro da Glória e algumas invasões, onde parentes e amigos eram trazidos e colocados aqui também. Mas os três bairros que foram removidos para cá através da Prefeitura foram: o que é hoje a Cidade Alta, Aterro da Glória e Morro de Santo Antônio.20

Esta versão da origem da favela está presente também no relatório de favelas do Instituto Pereira Passos, que indica como primeiros moradores de Vigário “pessoas removidas das favelas de Cordovil e Morro de Santo Antônio”. O documento registra que, segundo os moradores, a Prefeitura promoveu a remoção transportando e cedendo madeiras para a construção no local. 20 Depoimento do senhor Nilson, concedido em 17 de janeiro de 2004.


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Especifica ainda que Morro Azul é a atual Cidade Alta, Morro de Santo Antônio é a avenida Chile e o Morro da Glória é onde se situa hoje o aterro da Glória. Foi para realizar estas intervenções na paisagem urbana carioca que esses morros foram aterrados e as populações removidas para o Parque Proletário de Vigário Geral. Mas a remoção para uma região dominada por mangues e lamaçais, acabou favorecendo um tipo de comércio ilícito por parte de funcionários municipais que “vendiam”, de forma irregular, lotes para a construção de casas. Quase todas as narrativas falam de um mítico “guarda da prefeitura”, que marcava as ruas, delimitava os espaços, distribuía os lotes. Enfim, exercia um poder local e informal, sem ser questionado pelas famílias e pelos candidatos a moradores. Talvez porque muito distante da sede política e administrativa real da cidade, essa autoridade era aceita, até mesmo de bom grado, pelas pessoas que estavam se estabelecendo na região – colocava alguma ordem, instituía algum limite. E, assim, o “guarda” vendia, distribuía e dispunha do que não era dele. Como o Parque Proletário de Vigário Geral havia sido criado como solução de moradia temporária para os moradores de outras favelas, era proibida a construção de casas de alvenaria. A prefeitura fornecia madeira para a construção de barracos provisórios. A idéia era que, mais tarde, com a remoção também desta população para uma outra região, definitiva, eles fossem derrubados. Daí a ordem explícita: barracos apenas de madeira e jamais de alvenaria, porque estes poderiam transformar uma solução provisória em definitiva. Mas o “guarda da prefeitura” também tinha poder de interferir nesta ordem geral. Apesar da proibição oficial, fazia vista grossa à construção de casas de alvenaria e toda uma área de Vigário foi construída assim. Seu Nilson lembra bem desta época: Meu pai tinha amizade com os guardas e resolveu construir bem afastado porque era proibido construir em alvenaria naquele


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tempo. Como meu pai tinha amizade com os guardas, um deles deixou que construíssemos em alvenaria, mas tinha que ser lá embaixo, bem longe, para que ninguém visse. Naquele tempo não tinha muro da Leopoldina, era uma linha aberta. Nós começamos a construir em 1950, mas tudo era muito difícil, tínhamos que carregar tudo com a mão, na cabeça; nós construímos três casas. Em 1953, quando nós mudamos, tinham três casas construídas de alvenaria. As primeiras casas de alvenaria da favela foram lá, na beira do rio, no final do que hoje é a rua Uranos, onde é a pista.21

Outros depoimentos se referem à figura do “guarda da prefeitura” alguns com simpatia, outros com severas críticas. O “guarda” era conhecido como “Cabo Meia Sete” (“Cabo 67”). Na visão de seu Denair, outro antigo morador da cidade, falecido, esse funcionário prestava um serviço à comunidade: marcava os lotes e garantia que cada um tivesse o seu pedacinho para morar. Seu Denair nos contou, inclusive, que ele próprio supervisionava o trabalho do “guarda”: Aqui tinha um guarda, o guarda 67 que tomava conta, então ele só marcava lugar pras pessoas na minha presença. O pessoal queria um lugar aqui para morar e era ele que tava sempre aqui, ele ficava com os papéis pra marcar o lugar.22

Para seu Denair, o Cabo 67 ajudava a comunidade. “Não tinha nada oficial, não tinha nada, era questão de consideração mesmo, não tinha mais nada.”23 Outros moradores têm uma visão diferente. Seu Lins, importante líder comunitário, também morador antigo que chegou a Vigário em 1959, se refere ao “guarda” em termos pouco elogiosos: Era um guarda da prefeitura, um guarda pilantra, que dominava. Quando tinha propina ele dava um terreno maior, se não tinha propina ele dava um terreninho pequeno, ele discriminava as

21 Depoimento do senhor Nilson. 22 Depoimento do senhor Denair. 23 Idem.


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pessoas. Se a mulher era bonita e desse um sorriso para ele, tinha tudo; não deu um sorriso para ele, não tinha nada.24

Um outro caminho apontado nas falas dos moradores, logo após a remoção das famílias de Morro Azul, Cordovil e Morro de Santo Antônio, promovida pela Prefeitura, foi a “invasão”. Ou seja, após o assentamento das famílias removidas no recémcriado Parque Proletário de Vigário Geral, muitas outras famílias, de várias regiões, vieram para o local. Isto porque a existência de um parque proletário funcionava como um chafariz para pessoas que não tinham onde morar. Não só porque ali o governo fornecia madeira para a construção de barracos, mas principalmente pelo fato de a localidade apresentar alguma infra-estrutura e uma coletividade humana que, de certa forma, agregava e protegia os recém-chegados. Não era a mesma coisa que chegar em um descampado sozinho e construir seu barraco sem nenhum tipo de apoio ou solidariedade de grupo. O Parque Proletário era uma comunidade nascente e, exatamente por isso, atraía famílias que procuravam um local para construir moradia. Esta “invasão” teve, também, várias origens. De um lado, moradores que haviam sido removidos chamavam amigos e parentes para a nova comunidade que surgia. De outro, pessoas sem moradia ficavam sabendo do Parque Proletário de Vigário Geral e se dirigiam para lá. Ainda na lembrança de seu Nilson: Como quase tudo era mangue, o pessoal fazia o quê? Ia invadindo os campos de futebol. O primeiro campo a ser invadido foi o campo do Vigarinho, depois foi o Flamenguinho, depois foi o do Ferroviário, o de Vila Nova e o Verde da Floresta.25

Vale lembrar que a região na qual se criou o Parque Proletário de Vigário Geral tinha inúmeros campos de futebol. Na verdade, tinha mangues, lamaçais e campos de futebol. O futebol vai ter, aliás, grande importância na história da favela, como veremos 24 Depoimento do senhor Lins, concedido em 13 de março de 2004. 25 Depoimento do senhor Nilson.


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mais adiante. Os campos eram as partes mais secas da área, melhores para a construção. Os moradores que chegavam, invadiam estes terrenos para construir suas casas. Como vimos, esta “invasão” constitui a segunda forma de origem de Vigário Geral. Ela se distingue da origem da “remoção” porque não foi patrocinada pela prefeitura. Nas narrativas de nossos entrevistados a diferença é bem marcada: as famílias que foram “removidas” e as que chegaram com a “invasão” que se seguiu após a criação do Parque Proletário. Dois processos diferentes, duas origens diferentes que povoaram e ocuparam áreas da região que hoje é a favela de Vigário Geral. Os moradores que chegaram com a remoção, em sua maioria, ocuparam a área que hoje é o miolo de Vigário, perto da quadra esportiva, onde se localiza a sede da associação de moradores. Os que migraram um pouco depois, espalharam-se pelos antigos campos de futebol. Para algumas pessoas que estavam na primeira leva, a “invasão” causou problemas de superlotação e descaracterizou o projeto inicial. Seu Nilson lembra deste processo: De 1954 até 1957 encheu tudo, em três anos veio o Morro de Santo Antônio, veio o Morro da Glória, veio tudo. E vieram os parentes, pois eles traziam os parentes. Aí, em 1962 nós demos um basta nisso, muitas ruas tinham sido invadidas. Têm muitas ruas [em] que até hoje não entram carros e no início eram avenidas largas, todas elas com dez, 12 metros de largura.26

Mas todos os moradores – removidos e “invasores” - enfrentaram o problema dos mangues e do lamaçal. E foi o trabalho da comunidade que realizou o primeiro aterramento da região. Seu Lins nos conta: No início foi muita luta, isso aqui era brejo, era pântano, era lamaçal mesmo, isso aqui era horrível para se morar. Eram aquelas palafitas e embaixo das palafitas aquele brejo de lama, afundava

26 Idem.


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mesmo. Tinha lugares que a gente tinha receio de passar porque era muito lamaçal mesmo. Mas com a nossa luta, a luta dos moradores que vieram para cá, começamos a trabalhar aterrando, trabalho nosso, não tivemos ajuda de ninguém na época, foi um trabalho dos moradores mesmo.27

A terceira versão para a origem de Vigário Geral menciona o loteamento da área próxima da ferrovia. Os lotes foram distribuídos entre os trabalhadores da ferrovia. Mas a distribuição era informal porque, na verdade, o terreno pertencia à União. A maioria das pessoas beneficiadas não tem título de propriedade dos lotes. A diferença destes imóveis em relação aos outros, é que eles foram distribuídos segundo uma padronização, têm todos a mesma metragem. Seu Farides trabalhou na ferrovia durante muitos anos: “Eu nunca trabalhei em outra coisa, eu sempre trabalhei na Leopoldina, 35 anos e seis meses”.28 É ele quem nos conta que o loteamento próximo da ferrovia foi feito, entre os trabalhadores da rede ferroviária, justamente para conter a “invasão” e preservar a área da Leopoldina. Com isso, atingiam-se dois objetivos diferentes: a preservação da região vizinha à estrada de ferro e o atendimento da demanda dos ferroviários por moradia. A entrada em massa dos ferroviários foi benéfica para Vigário Geral. Eles reestruturaram o parque proletário. Muitos tinham experiência de vida corporativa e sindical e isso trouxe vantagens para a comunidade. Seu Nilson lembra que depois das “invasões”, a chegada dos ferroviários reordenou a vida em Vigário: Aí depois começou a estruturar quando veio pessoal da Leopoldina. Vieram muitos ferroviários para cá. O ferroviário é um homem mais preparado, então eles começaram a assumir a direção da comunidade, começaram a trabalhar, a fazer reivindicações, a

27 Depoimento do senhor Lins. 28 Depoimento do senhor Farides, concedido em 19 de junho de 2004.


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trazer políticos. O primeiro político que entrou em Vigário Geral foi Mourão Filho que colocou a água. Depois, já na minha época, veio Délio dos Santos que forneceu mais de mil manilhas para a rede de esgotos. Depois dele, veio Aloísio Gama que botou o primeiro asfalto em Vigário Geral.29

Foi, portanto, com os ferroviários que os moradores de Vigário aprenderam a negociar com os políticos. Com a negociação conseguiram, em várias regiões da favela, água, luz, esgoto, calçamento. Alguns estudiosos da política e da sociedade brasileira apontam essa relação como exemplo típico de troca clientelista. O que não deixa de ser verdade. Pode-se argumentar, no entanto (e com o apoio de outros tantos estudiosos), que essas trocas representam a relação política possível para os setores populares, nos marcos de uma estrutura política marcadamente elitista que procura alijá-los de toda a forma. Podemos argumentar também que a negociação, longe de ser fruto do atraso de uma comunidade carente, é fruto da justa percepção que esta população tem do peso, da importância e do valor de seus votos. E que, neste sentido, mais do que uma relação clientelista é uma consciente barganha política entre partes desiguais.30 Vigário Geral se expandiu rapidamente. Na década de 1960 foram desenvolvidas formas associativas importantes como a Comissão de Luz e a associação de moradores. O clube de futebol Onze Unidos teve um importante papel na sociabilidade, na cultura e na vida cotidiana dos moradores de Vigário. Nos anos 1970, em plena ditadura militar, a associação de moradores experimentou uma dimensão mais politizada, inclusive servindo de abrigo e esconderijo para militantes políticos perseguidos pela ditadura. Grupos e partidos políticos – como o Partido Comunista Brasileiro – marcaram presença na associação e na favela. A partir da década seguinte Vigário viu a mudança de seu aspecto visual e estético: madeira e taipa foram substituídas por alvenaria na construção das casas. 29 Depoimento do senhor Nilson. 30 D’ÁVILA FILHO, Paulo, op cit.


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1983 foi um ano importante na vida não apenas de Vigário Geral, mas de muitas favelas cariocas. Era o primeiro governo de Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro. O novo governo estadual mudou a relação política com as favelas e, principalmente, a solução preconizada para resolver seus problemas. A idéia de urbanização das favelas substituiu a idéia de remoção. Mas foi também no final da década de 80 que o tráfico de drogas se instalou em Vigário Geral e começou a impor seu poder na maior parte das favelas cariocas. A década seguinte foi vivida, em Vigário, sob o domínio do tráfico, o fogo cruzado entre a polícia e os traficantes, a criminalidade e a violência. Violência não apenas ligada ao crime, mas perpetrada pela própria polícia contra trabalhadores e moradores. O ano de 1993 foi um triste marco deste processo. A “chacina de Vigário Geral” entrou para a história da cidade do Rio de Janeiro como terrível referência da violência policial. Mas esta tragédia encetou também toda uma reação de cidadania por parte dos moradores de Vigário. Uma rede de solidariedade, a construção da Casa da Paz, a tomada de consciência política e civil de sua população foram narradas com sensibilidade por Zuenir Ventura no livro Cidade partida. Foi a partir daí que se instalou na favela o trabalho do Grupo Cultural AfroReggae. Os jovens integrantes de sua banda e das oficinas de afro samba, afro lata, circo, teatro e dança, entre muitas, dinamizam a vida cultural da favela e da cidade do Rio de Janeiro, mostrando que é possível, através da arte, desenvolver estratégias de inclusão social e exercício de cidadania, solidariedade e alegria. Nos capítulos seguintes vamos conhecer um pouco deste processo.


Cap.03

Hist贸rias, hist贸rias de vida, hist贸rias de Vig谩rio



Nos últimos anos muitos historiadores passaram a pesquisar e a escrever a história de uma forma diferente da tradicional. Abandonando os chamados “grandes personagens” – como reis, generais, chefes de Estado, líderes políticos – e voltando-se para personagens comuns, anônimos. Uma “história vista de baixo” (“history from below”, nas palavras de um de seus fundadores, o historiador inglês Edward P. Thompson). A história passava a se preocupar com a vida de pessoas comuns, com os pequenos acontecimentos do cotidiano. Para esta nova perspectiva, a utilização de fontes orais revelou-se bastante útil. A prática de coletar depoimentos e entrevistas não era usual entre historiadores. Sociólogos, cientistas políticos e antropólogos eram muito mais afeitos a ela do que os historiadores, que preferiam recorrer ao registro oficial, às fontes escritas. O uso de depoimentos orais era visto com desconfiança, como uma fonte histórica carregada de subjetividade. Porém, o movimento da História Oral questionou profundamente este preconceito. A História Oral surgiu em países como a Inglaterra, a França, a Itália, procurando justamente recuperar episódios que tinham precário registro histórico – como as greves de trabalhadores, a experiência do Holocausto, a resistência contra o nazi-fascismo. Em muitos destes casos, o depoimento oral era a única forma de recuperar a memória e a experiência de determinados processos históricos.

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Uma outra vertente da História Oral se desenvolveu a partir da preocupação em resgatar a cultura e a história de sociedades fundadas na tradição oral. Neste terreno historiadores têm trabalhado com antropólogos na recuperação da história de sociedades africanas, na própria África e na diáspora. Também aqui no Brasil os depoimentos, por vezes, constituem a única fonte para conhecermos algumas realidades. A história e a memória de comunidades é um bom exemplo disso. São pouquíssimos os registros oficiais da trajetória de uma favela. Pelo seu próprio caráter de marginalização e informalidade, não há registros oficiais seguros a respeito de seu nascimento (como vimos no capítulo anterior). São poucas as informações sobre seu crescimento, expansão, vida cotidiana. Os registros tornam-se mais abundantes apenas quando as favelas são objeto de intervenção por parte do governo (como no caso do projeto FavelaBairro, este sim fartamente documentado) ou quando integra a crônica policial. A comunidade esteve fortemente presente na mídia impressa e televisiva em 1993, por ocasião da “chacina de Vigário Geral”, quando 21 moradores foram assassinados por integrantes da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Mesmo este episódio não foi ainda inteiramente esclarecido nem seus responsáveis apontados e punidos. Mas a história geral da favela, sua trajetória, seus personagens, só pode ser recuperada com a ajuda do recurso das fontes orais. Em nossa pesquisa sobre a história de Vigário Geral fizemos uso intenso das fontes orais, realizando inúmeras entrevistas e colhendo depoimentos de moradores, antigos e novos. Utilizamos também os acervos pessoais de fotos e recortes de jornais dos moradores de Vigário. Além destas fontes, a documentação da Prefeitura do Rio de Janeiro sobre o projeto Favela-Bairro implementado em Vigário Geral também foi de grande utilidade. Mas, sem dúvida nenhuma, para escrever sobre a história e a memória de Vigário Geral, a principal fonte foi fornecida pelos moradores de Vigário: suas memórias, seus acervos pessoais


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(como o valiosíssimo “baú do seu Naildo”), seus depoimentos, suas lembranças.

Se organizando para viver melhor Como muitas comunidades populares, Vigário Geral teve seu nascimento e expansão marcados por uma vida associativa forte e dinâmica. Na ausência do poder público são os vizinhos que se juntam e se organizam para enfrentar e resolver os problemas da comunidade nascente. As formas associativas não se voltam apenas para a resolução de problemas, mas também para o encaminhamento de reivindicações às autoridades e para a regulamentação e produção do lazer. Organizam mutirões, cuidam do fornecimento de luz, regulam sobre conflitos entre vizinhos e promovem as festas e os campeonatos de futebol. Do início da década de 1950 até hoje, Vigário Geral passou por diferentes experiências de vida associativa. Este processo é uma parte importante de sua história. Para falar sobre ele recorremos a um grupo de antigos moradores – todos chegados na década de 1950. Batizamos este grupo de “Pioneiros”, porque tiveram destacado papel na vida da comunidade, criando e participando ativamente de várias associações importantes na trajetória da favela. Muitos deles têm papel de destaque ainda hoje na vida de Vigário.

Os “Pioneiros” Seu Lins, seu Nilson, seu Farides, seu José Emídio, seu Denair. Antigos moradores de Vigário, personagens importantes de sua história, sobretudo pelo papel decisivo que desempenharam na vida associativa da comunidade. Vamos conhecer um pouco destes personagens.


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Seu Nilson. Chegou a Vigário com a remoção da Cidade Alta no início dos anos 1950. Foi um dos criadores da Associação de Moradores de Vigário Geral, entre 1961 e 1962, junto com seu Naildo, seu Lins, seu Farides, seu José Emídio. Foi também um dos criadores da Comissão de Luz. Hoje é um dos comerciantes mais respeitados de Vigário. Sua família participa de trabalhos sociais importantes da comunidade. Seu Lins. Antigo carpinteiro que perdeu um dedo no serviço e se transformou em comerciante. Seu Lins chegou em Vigário em 1959. Como ele lembra, “a comunidade já existia, mas era muito precária”. Também participou da criação da associação de moradores, integrando sua diretoria ao longo da década de 1960. Mais tarde, em 1964, foi eleito presidente da associação. Na época da pesquisa era o presidente, eleito para o mandato do período 2003/2005, em um movimento que pode representar a retomada da associação de moradores por seus membros mais atuantes e combativos. Seu Farides. Ferroviário que trabalhou a vida toda na antiga estação da estrada de ferro da Leopoldina, chegou a Vigário quando houve o loteamento da área próxima à via férrea entre os trabalhadores ferroviários, em 1953. Também foi integrante do grupo que criou a associação de moradores (da qual foi presidente duas vezes) e a Comissão de Luz. Seu Farides levou para o movimento associativo da favela sua experiência de trabalhador sindicalizado. Seu José Emídio. Eletricista, mudou-se para a comunidade em 1955. Como ele mesmo diz: “Eu me casei e vim morar aqui em Vigário Geral”.1 Também participou da criação da associação de moradores e da Comissão de Luz, integrando a diretoria destas entidades. Seu Denair. Outro que foi para Vigário logo após o casamento: “Eu me casei no dia 27 de setembro de 1952 e às cinco horas da manhã eu estava entrando aqui dentro, com a minha trouxa e a minha 1 Depoimento do senhor José Emídio, concedido em 24 de julho de 2004.


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noiva, minhas primas e minhas irmãs. Aqui ainda não era favela. Era só campo de futebol”.2 A ação de seu Denair na comunidade foi um pouco diferente da dos outros pioneiros. Ele atuou mais nas formas de lazer de Vigário, principalmente no futebol. Foi um dos principais criadores e responsáveis pelo Onze Unidos, que tem grande importância na crônica cotidiana de Vigário Geral.

O Brasil e o Rio de Janeiro na década de 1960 Do final da década de 1950 até o golpe militar de 64 foram anos de muita ebulição política. Jânio Quadros havia sido eleito presidente da República em uma esmagadora vitória. E João Goulart, representante do PTB e principal herdeiro político de Getúlio Vargas, reeleito vice-presidente. Lembramos que naquela época o eleitor podia votar no candidato a presidente de um partido e no candidato a vice-presidente de outro, juntando, às vezes, candidatos de partidos diferentes e mesmo opostos. Assim, a dobradinha “Jan-Jan” (Jânio-Jango) havia caído no gosto popular e vencido as eleições de 1960. Mas esta coligação durou pouco. No ano seguinte, em agosto, Jânio Quadros renunciou. Apesar de uma resistência inicial por parte dos militares, a Presidência da República foi ocupada pelo vice. O governo de Jango, que se apoiava nos trabalhistas, nos nacionalistas e nos comunistas, foi um dos fatores de incentivo ao clima de ebulição e radicalização política dos primeiros anos de 1960. Uma ebulição que atingiu não apenas o campo político, mas também a cultura, as artes, o movimento sindical, a vida universitária. Diferentes movimentos sociais se organizavam e apresentavam suas reivindicações. O sindicalismo marcava presença através de alguns sindicatos com alto índice de representatividade, como o sindicato dos ferroviários e o dos metalúrgicos. Os comunistas e os trabalhistas lideravam a luta pelas reformas de base, apoiando a iniciativa do governo João Goulart. 2 Depoimento do senhor Denair.


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A reforma agrária era uma das principais bandeiras deste movimento. No campo, as Ligas Camponesas levantavam a bandeira de “reforma agrária já! Reforma agrária na lei e na marra”. Mais moderados, os líderes rurais comunistas exigiam a extensão da legislação trabalhista urbana para o campo. Encontros Nacionais Sindicais foram realizados no Rio (agosto de 1960) e em São Paulo (1962).3 Nas universidades, ganhava força e expressão o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes – o CPC da UNE. O teatro procurava representar as grandes questões e os grandes temas do país. O grupo Teatro de Arena ficou famoso pela peça Arena canta Zumbi. O cinema, através do movimento Cinema Novo, também procurava refletir e expressar a realidade brasileira, criando uma estética e uma linguagem próprias. Os filmes de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em transe são os maiores exemplos dessa postura política e estética. Assim, a criação de várias associações de moradores de favelas e bairros populares na década de 1960 refletiu também a ebulição política e social que vivia o país. No Rio de Janeiro, estas associações enfrentaram a política de Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara entre 1961 e 1964. Durante este período as favelas tiveram um grande crescimento e expansão física no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro. Lacerda apontava as favelas como o principal problema da cidade e propunha como solução a política de remoção. Na verdade, o termo da época era “reacomodação”. Em seu livro sobre Carlos Lacerda, o historiador americano e brasilianista John Foster Dulles analisa o projeto do então governador para o problema das favelas. A idéia era “construir em várias localidades milhares de casas de baixo custo, com água, luz e esgoto,

3 Ver sobre este tema O sindicalismo brasileiro após 1930, de Marcelo Badaró, da Coleção Descobrindo o Brasil, Jorge Zahar Editor, 2003.


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para a relocação de favelados”.4 Mas o projeto não contava com o apoio dos moradores de favelas e era criticado também pelo próprio coordenador dos serviços sociais do governo, o sociólogo José Arthur Rios, que se indispôs com o governador e perdeu o cargo justamente pela discordância em relação ao projeto de remoção das populações residentes nas favelas. A resistência ao projeto de remoção foi a grande bandeira de luta de muitas das associações de moradores que surgiram naquela época. Além de impopular, o projeto de remoção acabava por incentivar o surgimento de outras favelas, como foi o caso do Parque Proletário de Vigário Geral. Na época, os partidos políticos também voltaram sua atenção para os movimentos associativos e reivindicatórios das favelas, reconhecendo o potencial de contestação social das comunidades. É neste contexto que moradores como os que chamamos de “Pioneiros” vão se conhecer, se juntar e criar as diversas formas associativas de Vigário Geral. A associação de moradores e a Comissão de Luz foram as primeiras e principais formas associativas de Vigário Geral. Através delas, sob a liderança de Naildo, Farides, Nilson, José Emídio e Lins, os moradores de Vigário se organizaram para resolver seus problemas, melhorar as condições de habitação da favela, aterrar a área, instalar luz e água encanada, limpar as valas, regular seus conflitos e estabelecer relações com o Poder Público.

A Associação de Moradores A Associação de Moradores de Vigário Geral foi fundada em 1962 e seu primeiro presidente foi Naildo Ferreira de Souza, o seu Naildo.

4 DULLES, John Foster. Carlos Lacerda, a vida de um lutador, Vol 2. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 98-99.


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Na verdade, a Associação já existia desde 1954, mas fazia parte da Federação das Associações de Parada de Lucas. A associação de Vigário Geral existia formalmente, mas não tinha sede própria e era subordinada a esta federação. Em 1962 Naildo, Nilson, Farides e José Emídio construíram uma sede em Vigário Geral e separaram a associação local da Federação. A partir daí, a comunidade ganhava uma entidade independente, registrada e com sede própria. Seu primeiro presidente foi escolhido justamente por ser um trabalhador ferroviário com experiência sindical e política. Nascia assim a Associação Amiga do Parque Proletário de Vigário Geral. Seu Nilson se lembra bem deste momento: A sede foi construída em 1962. Ela foi montada por mim, Naildo e Farides. Eu era comerciante e eles eram ferroviários. A gente uniu um grupo e construiu a sede de Vigário Geral. Depois fizemos as eleições e Naildo foi o primeiro presidente eleito da associação.5

A associação começou a ganhar respeito entre os moradores e a crescer. Organizava mutirões que erguiam barracos, aterravam áreas, construíam pontes sobre a lama e o matagal. Os moradores se associavam, pagavam uma mensalidade e, com este dinheiro, a associação comprava tubos, conexões, manilhas, madeira e coordenava o trabalho coletivo em prol da melhoria da favela. E, na medida em que trabalhava mais para a comunidade, a associação aumentava o número de seus sócios. Seu José Emídio conta: Então esse dinheiro que arrecadava na associação era pra compra de tubos, conexões, manilhas, porque tinha vala pra todo lado, por todo lugar que se andava era vala. Aí nós comprávamos tábuas de seis metros, comprava perna de três pra fazer aquelas palafitas, as pontes pra não andar na lama; era lama e mato. Então pra não andar na lama, as crianças, as senhoras, nós fomos construindo pontes. E fomos desenvolvendo. Fomos mexendo com a favela, a favela foi aumentando...6 5 Depoimento do senhor Nilson. 6 Depoimento do senhor José Emídio.


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Os mutirões eram realizados aos sábados, domingos e feriados. Até que um dia veio a idéia de aterrar. Porque, como lembra seu Emídio, em Vigário Geral não entrava carro nem caminhão, até bicicleta tinha dificuldade de circular dentro da favela. Ainda segundo seu Emídio, já legalizada, a associação assumiu a responsabilidade integral pela melhoria da favela. E, na medida em que ela encaminhava as obras de melhoramentos, aumentava o número de associados e, consequentemente sua capacidade de realizar melhorias na favela. Foi assim com o caso da água. Não existia rede de água nas ruas. Os moradores não tinham água em casa. Tinham que encher seus baldes nas bicas comunitárias. A associação começou a fazer a obra de instalação da rede de água para que os moradores a tivessem em casa. O morador que quisesse o benefício entrava para a associação, pagava uma “jóia” (taxa de adesão) e passava a participar dos mutirões. É importante destacar nesse processo o papel dos ferroviários. De uma forma geral, os ferroviários tinham experiência política e sindical, contato com parlamentares e prática de negociação política. Alguns deles, como seu Naildo, assumiram a direção da comunidade, organizaram as reivindicações dos moradores e levaram para Vigário Geral parlamentares que auxiliaram a associação a estabelecer melhorias como água encanada e rede de luz. A experiência dos ferroviários, sua combatividade e conhecimento dos trâmites das negociações políticas foram fundamentais para o estabelecimento de relações proveitosas da comunidade com o Poder Público. E o caso da água encanada é um dos melhores exemplos. A Associação de Moradores, com a liderança dos ferroviários, estabelecia relações com parlamentares e políticos e fazia valer as reivindicações da comunidade. Os políticos, desejosos de aumentarem o número de seus votos, estabeleciam de forma negociada algumas melhorias na favela. A água e a luz entraram em Vigário Geral por este caminho.


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A Associação de Moradores de Vigário Geral não deve, portanto, ser vista idilicamente como um local de organização de mutirões e espaço coletivo de resolução dos problemas da comunidade. Embora efetivamente ela tenha esta dimensão muito forte, seu conteúdo político nunca foi ingênuo nem avesso às contradições políticas que marcam o país. A associação inseriu suas práticas políticas nas relações clientelistas que ainda definem o campo político nacional. A barganha com parlamentares interessados em aumentar seus votos foi moeda corrente durante as décadas de 1960 e 1970. Além disso, a própria associação era um local de disputas políticas, de controvérsias e confrontos de pontos de vista diferentes. O grupo que participou de sua criação e que exercia a liderança internamente não era de todo homogêneo. Embora se respeitassem, brigavam e disputavam. Como lembra seu Farides: “Com o Naildo eu brigava ‘pra cachorro’. A gente se dava, mas na hora de pegar pra valer, a briga era feia”.7 A Associação de Moradores não era apenas a principal forma associativa dos moradores de Vigário Geral, era também uma instância de representação de seus interesses junto ao poder público. E representava a realidade plural, heterogênea e algumas vezes contraditória da favela, com seus diversos pontos de vista e interesses. Abrigava disputas e conflitos no seu interior, mediava o contato com as autoridades, barganhava com estas em nome dos interesses da comunidade. Como diz seu Nilson: (...) Todo político naquela época vinha através da Associação de Moradores, era apoiado pelo presidente da Associação; o presidente, com o conselho, era tudo muito organizado. A gente tinha a diretoria completa com treze pessoas, tinha conselho fiscal, tinha funcionário de esportes, a associação era muito grande.8

7 Depoimento do senhor Farides. 8 Depoimento do senhor Nilson.


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Mas, apesar da representatividade da Associação e da seriedade de seu trabalho, seu Nilson também sublinha o fato de que nenhuma ação política é inteiramente consensual. Existe sempre o dissenso, as discordâncias, as críticas. Este é, por excelência, o terreno da política. Você não consegue agradar o povo de um modo geral, não. Cada um tem o seu pedacinho. Naildo foi um esteio para esta favela e o pessoal falava dele pra caramba. Farides foi outro baluarte e o pessoal falava dele também. (...) Nem Jesus conseguiu agradar a todos.9

A Comissão de Luz A Comissão de Luz foi outra das mais importantes formas associativas, através da qual moradores de Vigário Geral conquistaram melhores condições de vida para a comunidade. A história da criação da comissão e da extensão da energia elétrica para toda a favela é contada com detalhes por seu Farides Picanço de Freitas, um dos principais responsáveis por este processo. Antes de 1962, a luz, na favela, era foco de corrupção. Havia nove cabines de luz que revendiam oficiosamente para os moradores o uso de energia elétrica. Os donos das cabines vendiam a energia pelo preço que queriam, pois não era um serviço regulamentado. Apenas a rede elétrica dos ferroviários era legalizada. Aos poucos os ferroviários foram ampliando a rede, do Lote 1 ao Lote 50.10 Em meados da década de 1960 a Comissão Estadual de Energia (CEE) decidiu regularizar o fornecimento em Vigário. A CEE encampou todas as cabines irregulares existentes e entrou em contato com a Associação de Moradores para iniciar o processo de extensão de luz para toda a favela. Para escolher o nome de quem dirigiria o processo foram realizadas eleições e

9 Idem. 10 Lotes eram os terrenos dos ferroviários, ao longo da estrada de ferro, como vimos no capítulo anterior.


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foi escolhido o ferroviário seu Farides, com o apoio da Associação, da população de Vigário e da CEE. Os antigos donos das cabines irregulares foram desapropriados e seu Farides conduziu o bem-sucedido processo de distribuição de luz para todos os moradores de Vigário. Como ele mesmo lembra, o processo não foi tranqüilo, teve “muita briga e confusão”. Os antigos donos das cabines resistiram a perdê-las: “Naquela época eu tinha muito jogo de cintura e contornei a coisa.”11 A partir de então, a Light entrou oficialmente em Vigário Geral. Foi construída uma subestação com seis metros de altura, perto da descida da passarela. Com a subestação, a luz passou a ser cobrada por medidor (relógio). Cada morador teve que comprar o seu medidor. Isso também provocou protestos. Alguns moradores reclamaram da despesa. Mas seu Farides os convenceu de que isto era melhor do que ficar à mercê de pagamentos informais. Em seu depoimento, José Emídio também se lembra do trabalho da comissão, que funcionou entre 1962 e 1982. E do enorme esforço de “juntar todas as cabines numa só e fazer uma subestação no pé da escada”, quando todo mundo passou a ter o seu relógio em casa. Seu Emídio era diretor do conselho fiscal da comissão e ensinava os moradores a lidarem com o medidor: (...) a gente sempre ensinava o morador a marcar no relógio. Eles mesmos faziam a leitura se quisessem e todo dia eles sabiam o quanto tinham gastado. E quando chegava no final do mês eles já sabiam quanto seria a conta deles.12

Mas seu Emídio conta também que, muitas vezes, a Associação de Moradores e a Comissão de Luz entravam em choque, porque seus presidentes tinham posições políticas diferentes. Seu Farides, presidente da comissão de luz, e seu Naildo, presidente da Associação de Moradores divergiam em muitos pontos. Seu Farides, trabalhador ferroviário de longa data, era mais ligado à tradição sindicalista. Naildo era influenciado pelas idéias e 11 Depoimento senhor Farides. 12 Depoimento senhor José Emídio.


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posições do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Muitas vezes, entre estes dois homens, líderes comunitários incontestes, se instalavam conflitos políticos profundos. Mas, como lembra o próprio Farides, os conflitos eram resolvidos no interior das assembléias da associação de moradores. As divergências eram sempre superadas em nome de um projeto comum: o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida de Vigário Geral. É neste sentido o depoimento de Farides: (...) nós trabalhávamos em conjunto, mesmo eu brigando com o Naildo, quando era em prol da comunidade, não tinha briga não, nós ficávamos unidos. Nós saíamos, íamos a reuniões, fomos muitas vezes ao Palácio do Catete. Eu não gosto de política, mas muitas vezes eu era obrigado a ir porque era para o bem da comunidade.13

O Onze Unidos Mas os moradores de Vigário Geral se associaram também para o exercício do lazer, em especial para a prática do futebol. Os times tiveram grande importância na vida social da comunidade. No início da existência da favela, ainda na década de 1950, quando Vigário Geral tinha, no máximo, uns cinqüenta barracos, no meio do mangue e do matagal, o que não faltava era campo de futebol. Os moradores mais antigos se lembram muito bem do movimento em torno deles nos sábados, domingos e feriados. E cada um dos campos tinha um time de futebol próprio: da Floresta, Ferroviário, Vila Nova, Flamenguinho, Vigarinho, Cruzada, Cadete eram alguns dos times da época. E o mais famoso de todos: o Onze Unidos. Seu Nilson fala sobre essa movimentação na favela nos finais de semana: Domingo em Vigário Geral tinha mais gente do que em Copacabana, era muita gente, os times traziam torcida para ver o jogo, tudo era campo de futebol, era muita gente mesmo.14 13 Depoimento senhor Farides. 14 Depoimento senhor Nilson.


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Seu Denair foi presidente do Onze Unidos por quase vinte anos e conta que o time se formou entre 1953 e 1954, mas na época não tinha camisa nem organização, era um grupo de garotos que jogava na rua. Ele diz que quando foi convidado a fazer parte do grupo relutou, pois já era um homem casado: “Antigamente as pessoas casadas, tinha uma diferença enorme; a gente mantinha um respeito”. Mas, justamente pelo fato de ser casado, Denair resolveu entrar no grupo e promover a organização do time. O Onze Unidos se transformou em um time organizado “que não jogava com camisa amarrotada”: O Onze Unidos era um adversário forte. Nós éramos convidados a jogar contra outros times da Baixada e não perdíamos para ninguém. Nós ficamos sessenta e três jogos sem perder pra ninguém aqui das redondezas.15

Segundo seu Denair, o time – forte, organizado e famoso – quase chegou à segunda divisão de futebol do estado. Foi construída uma sede na rua que, em sua homenagem, passou a se chamar Onze Unidos . O time foi registrado na administração do estado como Onze Unidos Social Clube. Seu Nilson também conta que essa foi a primeira diretoria de clube esportivo em Vigário Geral e que o Onze Unidos surgiu a partir de um grupo de pessoas, que se reuniam para comprar uniforme, bola, e faziam bailes para arrecadar fundos para o time. Um grupo do qual ele também fazia parte. O Onze Unidos é lembrado com carinho pelos moradores mais antigos de Vigário e pelos mais jovens que cresceram ouvindo falar no lendário clube e time de futebol. O imóvel onde funcionou a sede do clube ainda existe, mas hoje é ocupado por uma padaria.

15 Depoimento do senhor Denair.


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A presença da política A atividade política sempre esteve presente, e de variadas formas, na vida de Vigário Geral. A primeira dimensão política que salta aos olhos é a da própria vida comunitária. Uma forma de política não partidária, mas que põe em relevo, justamente, o sentimento de pertencer a uma comunidade, o exercício da solidariedade, a construção de lideranças comunitárias com representatividade baseada no enfrentamento dos problemas locais. Foi dessa forma que se construiu a liderança de homens como seu Nilson, seu Farides, seu Lins. Lideranças comunitárias que tinham entre si, apesar das divergências, sólidos laços de amizade, de solidariedade e de cumplicidade. A fala de seu Nilson é expressiva nesse sentido: A primeira enchente que eu me lembro foi em 1957, foram quase dois metros d´água. Mas a pior enchente mesmo foi em 1962. Foi quando eu passei a ter amizade com o Naildo, porque Naildo participou comigo de salvar as pessoas, salvar os animais. Muita gente criava porco, galinha... E Naildo tinha um amigo ali na ponte, que era o seu Miguel, ele tinha uma canoa grande e a gente ficava dia e noite salvando gente, salvando bicho, foi aí que eu comecei a fazer amizade com ele. Eu e Naildo ficamos quarenta e oito horas sem dormir, salvando gente, salvando bicho. Foi onde nós começamos nossa amizade de confiança.16

Mas um outro tipo de militância política, mais ideológica, também se fez presente na história de Vigário Geral. Líderes comunitários como seu Farides, seu Naildo e seu Lins tiveram contato com o movimento sindical e com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essas influências políticas e ideológicas marcaram a atuação destes homens que estavam à frente de diferentes formas associativas da comunidade. Seu Lins conta que, por ocasião do golpe de 1964, ele e seu Naildo sofreram pressões e perseguições políticas. Não chegaram a ser presos, mas foram procurados e interrogados pela polícia. Naildo, 16  Depoimento do senhor Nilson.


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inclusive, teve que se esconder durante um tempo. Seu Lins teve a casa revistada por policiais que procuravam livros, revistas e material subversivo. Ele fala com humor do episódio: Os policiais vieram na minha casa. Eles perguntaram: “Você tem revista?”. Eu respondi: “Tenho sim”. Eles insistiram: “Que tipo de revista?”. Eu falei: “Eu tenho uma duas ou três Fatos & Fotos e Manchete”. Eu estava mentindo, eu tinha duas pilhas de livros, dois pacotes enormes, tinha livro do Che Guevara, livro do Fidel Castro, tudo quanto era livro perigoso a gente tinha.17

Para seu Lins, o PCB teve grande importância para os líderes sindicais e comunitários do Rio de Janeiro durante as décadas de 1950 e 1960. Mas ele acredita que esta importância e a própria influência do partido ficou prejudicada depois da legalização do partido. Segundo ele, esta legalização teria posto a perder a história e a identidade do PCB. Entre 1960 e 1966 nós organizávamos o partido. Na minha opinião, o Partido Comunista nunca deveria ter sido legalizado, deveria ter ficado sempre na clandestinidade. (...) Quando o partido foi legalizado eu disse para um advogado amigo meu: “Acabou, agora acabou, tudo que nós tínhamos nós perdemos. Toda a nossa identidade foi perdida”.18

Depois do golpe de 1964, outro partido, bem diferente do PCB, tentou estreitar contato com as lideranças comunitárias de Vigário Geral. Durante os anos de 1970 a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do governo militar, procurou se aproximar do movimento comunitário e de seus líderes. A esse respeito seu Lins conta um fato interessante: ele era dono de uma birosquinha e colocou na parede uma placa com nomes de deputados da Arena. Isso desviou a atenção dos policiais das atividades políticas desenvolvidas por ele. Quando eles viram os nomes dos deputados da Arena me deixaram em paz. Assim eles deixaram de me perseguir e ao Naildo. 17 Depoimento do senhor Lins. 18 Depoimento do senhor Lins.


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Esta nossa atitude os desorientou. Para nós também era melhor, ficávamos mais à vontade, a língua da gente ficava mais solta. Na verdade, a gente estava apoiando a Arena para falar com mais liberdade dos nossos problemas. A gente estava usando uma capa, para falar mais solto sobre a nossa política. Então deixaram a gente em paz, mas antes era uma perseguição muito forte. Só deixaram a gente em paz quando eu botei aquela imagem da Arena.19

Para entender melhor este depoimento de seu Lins vamos ver como era a situação política do Brasil depois do golpe de 64 e ao longo da década de seguinte.

O Brasil durante o regime militar O golpe militar de 64 veio interromper um período de grande ebulição política no país. A deposição do presidente da República João Goulart, o Jango, pôs um fim violento à agitação política e cultural que o Brasil vivia desde meados da década de 1950. Jango assumira a presidência em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, enfrentando a oposição de setores das Forças Armadas que tentaram, inclusive, impedir sua posse e que impuseram como condição o parlamentarismo. O parlamentarismo era uma experiência ainda inédita na história do país e sua aplicação, em 1961, significou essencialmente, uma forma de limitar e controlar os poderes presidenciais. Em 1963, um plebiscito nacional restabeleceu o presidencialismo e concedeu a Jango os plenos poderes do cargo. A radicalização política aumentou. Apoiado pelo PTB, pelos comunistas e nacionalistas, João Goulart liderava a campanha pelas reformas de base; entre elas, a mais importante era a reforma agrária. O marco desta campanha foi o grande comício realizado no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que ficou conhecido como o “Comício da Central”.

19 Depoimento do senhor Lins.


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O presidente da República apontava o caminho das reformas como a única solução para os problemas econômicos e sociais do país: O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.20

O comício na Central funcionou como um estopim. Na semana seguinte, em São Paulo, donas de casa saíram às ruas em uma “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Ao longo de todo o país, marchas deste tipo aconteceram durante o mês de março. Pouco tempo depois o general Olympio Mourão precipitou os acontecimentos que resultaram no golpe militar. Jango exilou-se no Uruguai, as esquerdas não ofereceram resistência. Ninguém parecia ter muita clareza do significado do golpe e das conseqüências que daí adviriam. As direitas saudaram nas ruas a vitória imprevista. Uma grandiosa Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, com centenas de milhares de pessoas, no Rio de Janeiro, comemorou o golpe militar e festejou a derrocada de Jango, das forças favoráveis às reformas e do projeto nacional-estatista. Sem ainda saber exatamente o que iria acontecer, o país ingressara na longa noite da Ditadura Militar.21

O novo governo inaugurou um longo ciclo de regime militar que perdurou até 1985. Durante 21 anos a conjuntura brasileira sofreu algumas alterações e passou por diferentes períodos, com características distintas. Podemos definir três etapas diferentes durante a ditadura militar: De 1964 a 1968. Apesar do golpe, muito do clima de ebulição política do início da década perdurou até 1968: manifestações estudantis, passeatas, um clima de protesto nas artes, sobretudo

20 Discurso de João Goulart na Central do Brasil, 13 de março de 1964. Publicação da FAPERJ, março de 2002. 21 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, p. 33.


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no teatro. Mas o regime militar extinguiu os partidos políticos tradicionais e criou dois novos: Arena, partido da situação, e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição consentida pelo governo. No final deste período, o movimento estudantil passou a liderar uma forte oposição ao regime. Em 1968 a “Passeata dos Cem Mil”, no Rio de Janeiro, reunindo estudantes universitários e secundaristas, escritores, jornalistas, intelectuais, artistas e religiosos, foi o grande marco da oposição. Em dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que fechava o Parlamento por tempo indeterminado e dava ao governo militar amplos poderes, instituindo assim, verdadeiramente, uma ditadura militar. Para muitos foi “um golpe dentro do golpe”. De 1969 a 1974. Este período ficou conhecido como os “Anos de Chumbo” do regime militar. A ditadura havia silenciado o movimento sindical, os partidos e movimentos de oposição, estudantes, intelectuais e artistas. Com o campo de ação reduzido e vigiado, uma parte da esquerda buscou referência nos movimentos de guerrilha dos anos 1950 e 1960 (como as lutas anticoloniais, a guerrilha vietnamita e a revolução cubana) e optou pela luta armada para enfrentar o regime. Entre 1969 e os primeiros anos da década de 1970, proliferaram inúmeras tentativas de guerrilha urbana e rural no Brasil. A resposta a este movimento, por parte do regime militar, foi uma violenta repressão sobre os grupos e organizações de esquerda. Durante este período o cenário da luta política, no país, foi pesado, cor de chumbo. Mas, por outro lado, no mesmo período o país viveu um grande crescimento econômico, centrado no desenvolvimento de algumas indústrias, que foi chamado de “milagre econômico”. Um desenvolvimento impulsionado por um Estado forte e autoritário, com base em grandes indústrias estatais. O êxito do “milagre econômico” serviu para diluir, durante um tempo, o descontentamento da população com o regime militar.


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De 1974 a 1985. Foi o período em que se empreendeu a abertura política do regime e o processo de redemocratização do país. O ano de 1974 é um bom marco para definir este novo quadro conjuntural. O então presidente da República, general Ernesto Geisel, deu início a um processo de abertura política “lenta, gradual e segura”. O objetivo era promover uma transição lenta e controlada para um regime mais liberal, mas que, no entanto, mantivesse excluídos da esfera das decisões do poder setores mais radicais da oposição e os representantes dos movimentos populares. Na visão de muitos partidos e organizações de esquerda, clandestinos na época, o objetivo do projeto de abertura era empreender uma “transição por cima” para uma “ditadura reformada”. Para responder a este projeto do regime militar, a maior parte das forças políticas de esquerda elaborou uma estratégia para interferir decisivamente no projeto de abertura da ditadura: procurar alargar, o mais possível, os seus limites políticos. A estratégia foi viabilizada pela articulação de uma ampla frente de luta pelas liberdades democráticas. Esta plataforma – pelo estado de direito, contra as prisões arbitrárias, contra a tortura, pela anistia, pelas eleições diretas, por uma assembléia nacional constituinte, contra a Lei de Segurança Nacional etc. – reuniu não somente partidos e organizações de esquerda, mas diversos setores da sociedade que, àquela altura, se posicionavam contra a ditadura militar. O cenário da política era, então, bastante rico e dinâmico. A oposição se aproveitava de todo o tipo de brecha para se manifestar. Desta forma acabou se utilizando, inclusive, do próprio MDB – partido criado pela ditadura – que, a partir de 1974, passou a expressar uma verdadeira oposição ao regime militar e a obter grandes vitórias eleitorais. O movimento estudantil voltou a ocupar as ruas das grandes cidades com passeatas e manifestações. A oposição também crescia no interior de sindicatos de profissionais liberais como jornalistas, professores, médicos e arquitetos. Jornais chamados de “imprensa alternativa”, vendidos mano a mano ou em bancas, como Opinião, Movimento e


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Em Tempo, veiculavam posições críticas ao regime. E, em São Paulo, o operariado voltava a articular greves e a constituir um movimento sindical independente. No final da década de 1970 os operários do ABC paulista criaram um partido – o Partido dos Trabalhadores (PT), que nasceu e cresceu no bojo das greves de 1979 e 1980. O novo partido congregava o movimento operário sindical paulista ascendente, setores da esquerda radical e a ala progressista da Igreja Católica. O cenário de luta política acabou gerando duas grandes campanhas nacionais que unificaram a oposição em todo o Brasil: a luta pela anistia e as Diretas Já. A campanha pela anistia foi vitoriosa (embora a lei assinada pelo governo não contemplasse todas as exigências dos grupos de esquerda que participaram da campanha). Já a luta pelo restabelecimento das eleições diretas acabou representando uma das grandes frustrações políticas do povo brasileiro. A perspectiva de eleições diretas imediatas foi derrotada em detrimento de uma solução negociada entre o governo e a oposição que passaria a faixa presidencial para Tancredo Neves (velho político mineiro ligado à tradição varguista) e José Sarney (político maranhense que havia feito sua carreira na extinta Arena). Mas nem mesmo esta solução pôde ser implementada, pois Tancredo morreu antes de sua posse. De qualquer forma, em 1985, negociação e frustração davam fim à ditadura militar. O Brasil tinha de novo um presidente civil e reingressava – com problemas e mazelas, mas de forma segura – na experiência democrática.

A política amordaçada É neste contexto de ditadura e repressão a qualquer forma de oposição política que se pode compreender o depoimento de seu Lins sobre a propaganda da Arena em sua birosca. Entre o final dos anos 1960 e quase toda a década seguinte, a atividade política ficou extremamente difícil e perigosa, sobretudo para


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aqueles que representavam os interesses das camadas populares. Líderes comunitários foram perseguidos e vigiados. O depoimento de seu Lins é interessante porque nos mostra como se protegeu usando, como ele mesmo diz, a falsa política para realizar a verdadeira política dos interesses comunitários. Assim, ao longo da década de 1970, em plena ditadura militar, os líderes comunitários de Vigário Geral foram construindo um movimento em prol da melhoria das condições de vida de sua comunidade, muitas vezes se relacionando de forma ambígua com as autoridades representantes do poder público – um poder do qual os líderes populares se viam excluídos. Algumas vezes trocando melhorias concretas (como água e pavimentação) por votos. Outras vezes valendo-se da proteção que um mero cartaz de propaganda do partido do governo poderia oferecer. E com isso essas lideranças mostraram como é necessária uma grande criatividade para resistir em épocas de arbítrio. A década de 1980 marcou uma grande mudança no exercício da política nas favelas e bairros populares da cidade e do país. A democracia, de novo instalada, chamada agora de “Nova República” reconhecia as lideranças e movimentos comunitários como interlocutores legítimos da esfera pública. Pelo menos formalmente. Muito ainda teria que se andar para a efetivação deste processo – que, de resto, não se completou até hoje. Nesse período o tema dos Direitos Humanos, antes aplicado na defesa das vítimas da ditadura, voltou-se dramaticamente para a defesa das populações pobres e faveladas, constantemente vítimas de violência e abusos policiais. Uma nova realidade passou a ser vivida nas comunidades populares cariocas e brasileiras: tráfico, criminalidade e violência policial. Mas, ao mesmo tempo surgiram corajosas tentativas de pacificação e mediação de conflitos por parte dos moradores. É o que veremos no próximo capítulo.


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Violência, criminalidade e mediação de conflitos.

Cap.04


O Brasil da “Nova República”

A expressão “Nova República” foi criada por Ulysses Guimarães, parlamentar de longa tradição oposicionista, líder do MDB – partido que, de “oposição consentida” transformara-se em um partido de oposição real e teve importante papel na luta contra a ditadura militar e no processo de redemocratização vivido pelo país no final da década de 1970 e na primeira metade dos anos 1980. Como vimos no capítulo anterior, 1985 marcou o fim do ciclo da ditadura militar brasileira. Este fim foi o resultado dinâmico de um confronto político: de um lado o projeto de liberalização idealizado pelo próprio regime (pelos militares e pelos setores sociais que o apoiavam), e de outro a pressão do movimento popular que reivindicava liberdades democráticas e a restauração plena do estado de direito. A saída para a crise foi negociada entre os novos partidos políticos criados pela reforma partidária de 1979. A reforma, mais do que abrir horizontes, tinha por objetivo pulverizar a oposição que se concentrara, ao longo do regime militar, no MDB. Permitindo a criação de novos partidos o regime quebrava a unidade da oposição e enfraquecia o MDB. No início dos anos 1980, o Brasil tinha cinco novos partidos

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políticos: Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, antigo MDB), Partido Democrático Social (PDS, o partido do governo), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, criado um pouco mais tarde, Partido dos Trabalhadores (PT). O PDT e o PTB disputavam a herança de Vargas. Após o retorno do exílio, dois parlamentares cassados, ligados ao antigo PTB, disputaram o nome e a sigla do partido: Leonel Brizola e Ivete Vargas. Ivete ganhou na Justiça o direito de usar o nome e a sigla histórica. Com isso, Brizola criou o PDT e esforçou-se para levar para a nova sigla o conteúdo histórico e combativo do trabalhismo. Nesse cenário político, o Partido dos Trabalhadores era a grande novidade. Dirigido pelo então líder sindical Luis Inácio “Lula” da Silva, operário metalúrgico de São Bernardo do Campo, o PT não era ligado a políticos conhecidos nem àqueles que retornavam do exílio. O PT representava um outro campo: o movimento de oposição e de resistência política que havia se desenvolvido no Brasil, nos últimos anos, formado por trabalhadores (principalmente o operariado do ABC paulista), estudantes e profissionais liberais que haviam participado da luta contra a ditadura militar, setores da Igreja ligados às comunidades eclesiais de base, às pastorais e à Teologia da Libertação e membros das organizações de extrema esquerda das décadas de 1960 e 1970. Esta configuração dava ao PT um conteúdo político particular, distinto dos outros partidos. Por isso mesmo foi o único partido que não quis participar da solução negociada para o fim do regime militar que se construiu em 1985. Nos anos anteriores, entre 1983 e 1984, o país vivera uma grande campanha cívica pelas eleições diretas. A campanha Diretas Já! animou enormes comícios e manifestações em várias capitais. O Comício das Diretas no Rio de Janeiro, em frente à Igreja da Candelária, registrou um milhão de pessoas cantando, emocionadas, o hino nacional. Apesar disso, a Emenda Dante de Oliveira que propunha a realização imediata de eleições diretas para a


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sucessão de João Baptista Figueiredo, o último general presidente da República, foi derrotada no Congresso em abril de 1984. A solução preferida pelos partidos foi a realização de uma eleição indireta, por um Colégio Eleitoral composto por parlamentares: os partidos políticos deveriam apresentar seus candidatos, o Colégio Eleitoral escolheria o novo presidente da República. A negociação política que prevaleceu se expressou na chapa que marcava a aliança entre o PMDB e o recém-criado Partido da Frente Liberal (PFL). A chapa era composta por Tancredo Neves e José Sarney. O PFL agrupava uma dissidência do PDS que se recusara a apoiar o nome de Paulo Maluf, político paulista de extrema direita, que fora proposto pelo governo para integrar a chapa da Presidência da República. A chapa Tancredo-Sarney, lançada pela aliança entre o PMDB e o PFL, era, portanto, a exata expressão da negociação entre as elites políticas da época: de um lado excluía-se a saída mais democrática que seria a realização imediata das eleições diretas, de outro excluía-se também a extrema direita representada pelo candidato do PDS, o deputado Paulo Maluf. A chapa Tancredo-Sarney foi eleita no Congresso Nacional por larga margem de vantagem. O PT não quis participar, denunciou o processo como farsa e puniu com a expulsão seus parlamentares que votaram favoravelmente à chapa de Tancredo Neves. Apesar do caráter moderado, centrista e elitista da solução negociada, a eleição de Tancredo tinha uma simbologia política importante. Tancredo era identificado com a herança varguista. Havia sido ministro da Justiça de Getúlio em 1954 e primeiro-ministro do presidente João Goulart. Apesar de seu perfil moderado e conciliador, sua indicação para a Presidência da República tinha um certo gosto de retorno à democracia do pré-64. Um gostinho de revanche que o acaso negou à oposição e à sociedade brasileira: Tancredo adoeceu e morreu antes de ser empossado. Seu vice, José Sarney, político de tradição


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conservadora, da linhagem da extinta Arena, assumiu a Presidência da República do Brasil. Sob o duplo signo da negociação e da frustração, o Brasil encerrava o ciclo militar e reingressava na via democrática. O presidente Sarney tomou posse no dia 15 de março de 1985. Dois meses depois o Congresso Nacional restabeleceu as eleições diretas, aprovou o voto para os analfabetos e legalizou os partidos comunistas. O retorno à democracia, no entanto, evidenciou novos problemas: no plano econômico o país atravessava uma séria crise marcada pelo descontrole da inflação e pelo crescimento da dívida externa. O governo Sarney tentou enfrentar a inflação com o Plano Cruzado (congelamento de preços) e transformou donas de casa em “fiscais do Sarney”.1 No plano político a redemocratização se consolidou com a Assembléia Nacional Constituinte (1987-88). A Assembléia Constituinte tinha por objetivo elaborar uma nova Constituição para o país, que afirmasse o pacto político que nascia entre os cidadãos após o fim do regime autoritário. Segundo o historiador Boris Fausto, “a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocorrido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias”.2 No entanto, ao mesmo tempo em que representou avanços, gerou problemas, como o tempo iria demonstrar: O sistema tributário retirou muitos recursos da União, passando-os aos estados e municípios, sem que estes assumissem obrigações de gastos em nível correspondente. Por sua vez, a manutenção da aposentadoria por idade, para qualquer pro-

1 Houve uma campanha governamental na mídia incentivando a população a atuar na fiscalização dos preços, sobretudo nos supermercados. A TV exibia principalmente imagens de donas de casa exercendo esta fiscalização. Foram chamadas pela mídia impressa e televisiva de “fiscais do Sarney”. 2 FAUSTO, Boris. História do Brasil, 8ª ed. São Paulo, EDUSP, 2000, p. 525.


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fissão, sobrecarregou a Previdência Social a ponto de torná-la sempre deficitária, apesar da melhora de seu funcionamento. A manutenção da estabilidade de todos os funcionários públicos concursados, após dois anos de serviço, concorreu para dificultar a flexibilidade da máquina do Estado. Esses preceitos e outros mais concorreram para agravar a crise do Estado brasileiro, problema gritante dos últimos anos.3

De toda a forma podemos considerar a Constituição de 1988 – com seus avanços e seus problemas – como o marco final do período autoritário brasileiro. Mas a democracia que se consolidou no final dos anos 1980 enfrentaria novos problemas. Alguns ela enfrentou e venceu, dando provas de maturidade e vigor como a realização ordeira e institucional do impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, acusado de corrupção e deposto dentro da legalidade. Outra vitória foi o Plano Real, um pacote de medidas econômicas, financeiras e monetárias que conteve com sucesso a inflação e justificou os dois governos sucessivos do presidente Fernando Henrique Cardoso, o “pai do Plano Real”. No entanto, as décadas de 1980 e 1990 consolidaram e acentuaram um processo que vinha se desenvolvendo desde os anos 1950: o Brasil passara de um país essencialmente agrícola para um país urbano, industrial e de serviços. Este processo concentrou uma enorme gama de novos e velhos problemas nas cidades brasileiras, especialmente Rio, São Paulo, Brasília, Recife, Belo Horizonte, Salvador. O crescimento desordenado das cidades, a expansão urbana em áreas desprovidas de serviços, o aumento das desigualdades sociais, o desemprego, a violência, a criminalidade foram alguns destes problemas, já conhecidos, que se acentuaram. Outros novos surgiram ou cresceram em proporções ainda desconhecidas: o tráfico de drogas, a violência e a corrupção 3 Idem, ib.


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policial, o crime organizado estendendo seus tentáculos até mesmo às instituições políticas e sociais, a falta de perspectivas para a juventude. Nesse contexto as cidades se tornaram o foco mais dramático da insegurança e da criminalidade, mas também os locais onde tentativas mais profundas de mediação de conflitos, experiências de produção artística, trabalhos comunitários e estratégias de inclusão social têm sido vividos. É nas cidades que o drama contemporâneo se apresenta de forma mais aguda. É nas cidades que se tenta, com mais afinco, garra e criatividade, superá-lo.

O Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990 O Rio de Brizola “Rio, quarenta graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos.”

Os versos cantados por Fernanda Abreu dão a exata idéia da cidade do Rio de Janeiro nos últimos vinte anos. Cidade onde tudo de bom e de terrível pode acontecer. Mais do que qualquer outra cidade, o Rio tornou-se um emblema da crise urbana do país: expansão desordenada de moradias em áreas não atendidas por serviços básicos de urbanização e saneamento, desemprego, criminalidade, violência, corrupção policial, e o enorme impacto negativo nas perspectivas de vida da juventude carioca. Politicamente, o Rio viveu momentos extremamente importantes. Experimentou por duas vezes Leonel Brizola como governador – entre 1982 e 1986 e, um pouco mais tarde, entre 1990 e 1994. Ainda é muito cedo para uma avaliação profunda e isenta de paixões dos governos Brizola no estado do Rio de Janeiro. A questão despertou grande polêmica entre os estudiosos


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do período. Brizola foi lançado a um pedestal pela população carioca e também derrubado por esta mesma população. O cientista político João Trajano Sento-Sé analisa em seu livro Brizolismo: estetização da política e carisma, a ambigüidade de sentimentos que Brizola despertou, na população carioca, nas diferentes campanhas eleitorais de que participou. A campanha de 1982, na qual obteve grande vitória e foi eleito governador do Rio, foi um marco. Trajano analisa a ampla adesão à campanha: A reiteração do caráter francamente oposicionista de sua candidatura, a alusão ao legado varguista, a ênfase em questões com grande apelo em amplos setores da população, como educação e segurança, eram questões que tocavam fundo a parcela da elite formadora de opinião, um segmento social solidário às causas populares e simpático a propostas redistributivas.4

Ainda segundo Trajano, a falta de recursos para a campanha era compensada por grande dose de criatividade. Slogans como “Brizola na cabeça” e a marca do socialismo moreno combinavam com o espírito carioca. Trajano afirma em seu livro uma idéia bastante interessante para a compreensão do fenômeno Brizola: Em 82, a política carioca, pode-se dizer, recuperou, por um breve momento que seja, a dimensão festiva que caracteriza durante séculos a política. Foi uma celebração de adesões, identificações, expectativas e mobilização política.5

Ao final do tumultuado processo (que incluiu acusações de tentativas de fraudes), Brizola obteve apertada vitória contra os candidatos Moreira Franco (do PDS) e Miro Teixeira (do PMDB). No entanto, a campanha eleitoral de 1986 – em que o candidato de Brizola era o antropólogo Darcy Ribeiro – foi bastante diferente.

4 SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo: estetização da política e carisma. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 224. 5 Idem, ib., p. 225.


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O governo Brizola era acusado de promover uma verdadeira favelização do Rio de Janeiro, sua política de respeito aos direitos humanos era freqüentemente identificada como permissiva para os bandidos. Por essas razões, uma parcela da classe média, pouco numerosa, mas fundamental na dinâmica de formação de opinião, dava sinais de desagravo e desconfiança quanto às práticas do governador e sua equipe.6

Para Trajano, estava em curso o que poderia ser chamado de “demonização do brizolismo” que abrangia, inclusive, a acusação de “ligações perigosas” com o crime organizado. Brizola promoveu algumas transformações profundas na circulação da cidade, permitindo que as duas pontas da “cidade partida” se relacionassem com maior proximidade – para o bem e para o mal. Uma destas grandes transformações foi a maneira de encarar a questão das favelas cariocas. A idéia de remoção foi substituída pela perspectiva de urbanização. Apesar dos pontos obscuros e das questões ainda não esclarecidas em torno dos governos Brizola no Rio de Janeiro, não há como negar seu conteúdo fortemente popular e sua identificação com os marginalizados e desafortunados. Esta identificação com o lado mais pobre da “cidade partida” foi vista como populismo por muitos dos estudiosos do brizolismo. A opção pelos pobres do governo Brizola passou a ser vista como sinônimo de clientelismo e paternalismo. Trajano nos mostra, em seu livro, como a imagem de Brizola sempre foi associada a um “mal” pela mídia impressa e televisiva. Se, em 82, eram acenados os fantasmas da subversão e do golpismo, agora, o grande símbolo do ‘perigo brizolista’ residia na marginalidade, no apelo às invasões, na desordem, enfim, que as posições e propostas brizolistas traziam embutidas, gerando uma atmosfera de insegurança e instabilidade em todo o estado (...) Antes subversivo, golpista, antidemocrático, o brizolismo era tratado, agora, como o braço político da marginalidade e da contravenção.7

6 Idem, ib., p. 256. 7 Idem, ib., p. 258.


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Como os versos da canção de Fernanda Abreu, Brizola – purgatório do bem e do mal – colou sua trajetória à experiência política do Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990; foi marcado pela cidade e imprimiu nela a sua marca. Mas o Rio de Janeiro dos anos 1990, Rio 40 graus à sombra, foi palco da crise urbana contemporânea; cenário que expunha, como nenhuma outra cidade, as mazelas da democracia brasileira. Uma democracia que deixava de fora enormes parcelas da sociedade, que reproduzia imensas desigualdades sociais e que mostrava diariamente nos jornais uma face terrível marcada pela corrupção, violência e impunidade. Corrupção e impunidade que desgastavam, como uma infecção, o tecido social. E as vítimas eram, sempre, os setores mais desprotegidos. O terrível episódio que ficou conhecido como a chacina de Vigário Geral é um dos mais contundentes e dramáticos exemplos desse processo.

A chacina Um dos episódios que tornou o Parque Proletário de Vigário Geral conhecido pelos cariocas foi a chacina de 1993, em que 21 moradores da comunidade foram assassinados por policiais militares. A chacina provocou grande comoção em toda a sociedade e produziu respostas e ações comunitárias, dentro e fora de Vigário, de pessoas interessadas em denunciar o ocorrido, pressionar por justiça, assistir parentes de vítimas e proteger sobreviventes. O jornalista Zuenir Ventura foi um dos que se engajou neste processo e, de seu envolvimento com Vigário Geral, resultou Cidade partida.8 Neste livro, Zuenir não procura apenas analisar como se constituiu esta cisão, mas, principalmente, nos mostra pessoas e instituições que, de um lado e de outro, tentam superá-la. 8 VENTURA, Zuenir, op. cit.


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A obra é, sobretudo, um alerta para a absoluta necessidade de se enfrentar com democracia, justiça social e, ao mesmo tempo, rigor punitivo a situação de desigualdade social, criminalidade, violência e corrupção que corta o Rio de cima a baixo e de leste a oeste. O próprio Zuenir sintetiza seu objetivo no final da introdução intitulada Uma crônica noir: A experiência relatada neste livro mostra que nenhuma operação de força fará sentido se a expulsão da minoria delinqüente não se fizer acompanhar de uma ação de cidadania que incorpore socialmente a massa de excluídos do Império – no caso, da República. Será uma questão de distribuição: justiça social para muitos e repressão para poucos. O perigo é continuar destinando a uns o que é devido a outros.9

Além de Zuenir Ventura, outras pessoas – jornalistas, pesquisadores, escritores – se debruçaram sobre a chacina tentando compreender o significado de tanta violência e tanta dor. Entre estas pessoas cabe destacar o trabalho do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Infância e Juventude (NEPI) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, coordenado pela professora Rosilene Alvim. Este núcleo de pesquisas, composto por alunos de graduação e pós-graduação, classificou uma grande quantidade de notícias de jornal e organizou um acervo informativo sobre a chacina com base na imprensa, considerando que esta teve importante papel divulgando em larga escala o acontecimento e seus desdobramentos. Segundo Rosilene Alvim, “o material acumulado revelava e afirmava a posição de fragilidade das classes populares frente ao conflito, já rotineiro, que envolve traficantes e policiais e que tem nas chacinas seu momento de radicalidade”.10 Rosilene Alvim e Eugênia Paim partilharam conosco o levantamento e a reflexão que fizeram sobre a chacina de Vigário Geral. 9 Idem, ib. 10 ALVIM, Rosilene e PAIM, Eugênia. Vigário Geral: uma noite tão comprida. Material de pesquisa do NEPI/UFRJ, 2003.


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O texto de Rosilene, que reproduzimos aqui, é parte do trabalho elaborado pela equipe do NEPI, Vigário Geral: uma noite tão comprida e foi escrito em 2003 quando a chacina completava, ainda impune, dez anos.


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anos de uma chacina por Rosilene Alvim


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Em agosto de 2003 completaram-se dez anos do assassinato de 21 moradores do Parque Proletário de Vigário Geral. Relações ilegais, perigosas, entre policiais e bandidos resultaram no massacre de Vigário Geral: policiais executaram 21 pessoas como vingança ao assassinato de colegas alguns dias antes. Flávio Negão, o líder do tráfico local, teria ordenado a morte de PMs como resposta a conflitos surgidos entre o tráfico e policiais. Por que voltar a falar de um acontecimento de mais de dez anos atrás? O filme alemão Uma cidade sem passado1 mostra a dificuldade de lembrar o sofrimento imposto a uma pequena cidade durante o regime nazista. Lembrar significa mostrar a cumplicidade, a impunidade e a permanência no poder daqueles que participaram direta ou indiretamente das arbitrariedades cometidas no passado. O que aconteceu faz parte de uma repetição da forma com que são tratadas as classes populares, em particular por aqueles que deveriam manter a ordem e proteger os cidadãos de uma maneira geral. A descrição do massacre do Carandiru2 por André du Rap3 e a do massacre de Vigário Geral por seus moradores chamam a atenção para a ação policial brutal e abrangente que não leva em conta as diferenças existentes nem entre os 1 Uma cidade sem passado. Direção de Michael Verhoeven. Alemanha, 1989. 2 Para entender mais sobre a criminalidade e sua lógica ver José Ricardo Ramalho, O mundo do crime: a ordem pelo avesso, 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. Este livro é um precursor na revelação do que se passava dentro da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. 3. DU RAP, André. Sobrevivente André du Rap - do massacre do Carandiru. São Paulo: Labortexto, 2002. 3 DU RAP, André. Sobrevivente André du Rap - do massacre do Carandiru. São Paulo: Labortexto, 2002.


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diversos presos, com suas diferentes penas e graus de periculosidade, nem entre trabalhadores e bandidos que habitam o mesmo bairro/favela ou bairro/comunidade. As falas daqueles que sofreram a repressão sanguinária apontam para a desqualificação total das vítimas, a perversidade e a desigualdade em termos de poder. Desarmados, cumprindo pena sob a proteção do Estado, os detentos de Carandiru tornam-se objeto da força e do arbítrio: são criminosos e merecem morrer. Os moradores de Vigário Geral são criminosos em potencial; para os policiais a vingança se justifica pela proximidade social, pelo fato de os membros do tráfico fazerem parte dos habitantes de Vigário, ali nasceram, e ali foram criados. A partir de uma proximidade reconstruída, todos são considerados criminosos, sendo, portanto, legítima sua punição. A justificativa para atos violentos contra moradores de bairros populares e infratores da Lei está baseada em um senso comum que desconsidera as diferenças dentro dos grupos sociais em causa. Senso comum que é parte de uma visão externa a estes grupos, que justifica essas ações extremas, como o massacre, feitas por representantes da Lei. Ou seja, não só dentro dos presídios, mas dentro das casas e nas ruas dos bairros, todos são criminosos ou criminosos em potencial. Lembrar Vigário Geral hoje é denunciar não só as chacinas que se tornaram públicas contra as classes populares brasileiras, mas é também apontar para os vários assassinatos coletivos e individuais executados, seja por narcotraficantes, pela polícia mineira ou por policiais ou ainda pela ação conjunta dos que representam a Lei com os que estão fora da Lei. Em uma noite do mês de agosto de 1993, 21 moradores de Vigário Geral foram assassinados. Mais de dez anos se passaram e a lembrança daquela noite ainda permanece na memória dos habitantes do Parque Proletário de Vigário Geral.


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Todos os jornais da época registraram a indignação dos moradores quanto ao massacre. Os assassinados, segundo os moradores, eram trabalhadores e causava revolta a morte de uma família que era composta por membros de uma igreja evangélica. O discurso dos moradores denuncia o fato de que os assassinos tinham ignorado e atingido os valores do grupo. Aos “crentes” muitas vezes são atribuídas qualidades de honestidade que são admiradas e respeitadas. Tinham ignorado também a diferença entre “vagabundos” (criminosos) e trabalhadores, recusando-se a ver as carteiras de trabalho que suas vítimas tentaram mostrar para não morrer. Desrespeitaram o valor atribuído à família ao entrar dentro da casa em que a família dormia, como também a assassinaram, poupando apenas as crianças. Para o acerto de contas entre policiais e traficantes que explicaria a “incursão” noturna à favela para vingar a morte de policiais por traficantes, os moradores de Vigário Geral foram escolhidos como objeto de vingança. Os policiais praticaram um castigo exemplar. Ao realizarem um ato de tamanha violência, os policiais identificam moradores e traficantes, explicitam que os habitantes não se encontram protegidos pelos traficantes locais e, muito menos, pela polícia. Os moradores, através do massacre, vêm confirmando o que já sabem: que, além da precária “proteção” dos criminosos, também não contam com a proteção dos representantes da Lei. Encontram-se sitiados entre mundos de ilegalidades e sabiamente se protegem pelo silêncio e por isto mesmo sofrem por se encontrarem em um difícil equilíbrio em que o bem não é o bem e o mal, às vezes, parece ser bem. O fato de não denunciarem os criminosos significa muito mais uma estratégia de sobrevivência do que a concordância com a criminalidade. A foto com os caixões das vítimas dispostos no chão de um largo de Vigário Geral nos deixa alarmados e perplexos.


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Uma outra chacina, a da Candelária, era ainda muito recente. Como os meninos da Candelária, as pessoas foram assassinadas à noite e em um pequeno intervalo de tempo. A foto dos corpos expostos ilustra a exclusão social das classes populares, que se encontram espremidas entre a lei dos policiais e a dos bandidos. Nessa condição, os anos se passaram, mas a desigualdade, o número de jovens vítimas de morte violenta aumentou, havendo uma consolidação dos comandos que dirigem o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e que, por outro lado, disputam poder através das armas. Esse quadro vem gerando dificuldades de diversas ordens para as associações de moradores, para as associações religiosas e para outros grupos que atuam nas chamadas comunidades pobres. A atuação destas entidades e grupos cada vez mais vigiados e muitas vezes controlados pelo narcotráfico os leva a uma difícil luta na manutenção de sua autonomia, necessária às ações que desenvolvem nestes espaços. Exemplos como assassinatos de dirigentes de associações de moradores, expulsão de pessoas que atuam em ONGs, religiosos e de diversos projetos, que são proibidos de atuar nos territórios controlados pelos traficantes, são cada vez mais comuns. É importante que a chacina de Vigário Geral faça vislumbrar que bairros populares, favelas, comunidades pobres não são apenas os lugares em que se encontram os narcotraficantes e os fora-da-lei em geral, mas lugares em que famílias de trabalhadores, homens e mulheres vivem seu cotidiano numa relação com a sociedade a qual deve procurar “não deplorar, não rir, não detestar, mas compreender”.4

4 BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis, RJ, Vozes, l997.


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Espaços comunitários: oficinas culturais, escola, música e arte para promover cidadania e inclusão social Mas Vigário Geral não é apenas cenário para tragédias ligadas ao tráfico de drogas e à violência policial. Em Vigário existe toda uma rede de iniciativas governamentais e não governamentais que atua no sentido da promoção da cidadania, da inclusão social, da produção artística e cultural. Uma parte desta rede surgiu em resposta à tragédia da chacina. Outra parte já estava lá há muito tempo e procurou se aprimorar para mostrar que uma vida social e comunitária é possível mesmo nas regiões mais ameaçadas. O resultado é que hoje a comunidade oferece, para seus moradores e visitantes, diversas oficinas culturais e artísticas patrocinadas pelo Grupo Cultural AfroReggae; ONGs, como o MOGEC e a Fundação Onda Azul; uma escola situada bem na “zona de fronteira” entre Vigário Geral e Parada de Lucas (o CIEP Mestre Cartola) e, mais recentemente, tem procurado inclusive recuperar e dinamizar a própria Associação de Moradores que, nas últimas décadas, tinha perdido um pouco de sua combatividade. Neste cenário os moradores de Vigário procuram promover e exercer sua cidadania, superar conflitos e encontrar soluções para as duras condições de vida a que estão submetidos, muito distantes da ação do poder público. Vejamos um pouco como se constituiu este espaço comunitário. Uma das entidades mais atuantes na vida de Vigário Geral é o Movimento Organizado de Gestão Comunitária. O MOGEC foi criado em janeiro de 1998 com a ajuda da ONG internacional Médicos sem Fronteira e com o apoio das secretarias municipais de Saúde e de Desenvolvimento Social. Os gestores do projeto – todos moradores da comunidade – foram selecionados pelo grupo Médicos sem Fronteira após a realização de um curso para gestores comunitários. O MOGEC atua na área da saúde e da educação: trabalha com reforço escolar de crianças desde a primeira série, realiza campanhas informativas em relação a doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e Aids, vacinação


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infantil, higiene e saneamento. É também o MOGEC que gerencia o posto de saúde de Vigário Geral. Outra entidade importante é a Associação de Familiares das Vítimas da Chacina. Esta ONG acompanha o julgamento dos policiais envolvidos e atua com o objetivo de proteger os familiares e lutar para que se faça justiça – mesmo que tardia. Uma instituição extremamente importante na vida de Vigário que atua incansavelmente na promoção da cidadania e da paz na comunidade é o CIEP Mestre Cartola. A escola se situa bem na divisa entre Vigário Geral e Parada de Lucas, consideradas “comunidades rivais” porque estariam submetidas a diferentes grupos de traficantes de drogas. Ela atende a crianças das duas favelas e, por sua localização, já esteve no meio de tiroteios. Suas paredes ostentam inúmeros buracos de balas. As crianças, em um esforço de paz e mediação do conflito, desenharam pétalas de flores coloridas em torno destes buracos. O CIEP começou a funcionar em 1987. É uma escola municipal que atende crianças do primeiro segmento de educação infantil, da classe de alfabetização à quarta série; funciona em regime de turno integral, com 535 alunos e 27 professores. A diretora da escola, professora Marcy, reforça o papel integrador do CIEP em relação às duas comunidades. Para ela, as crianças não reproduzem a rivalidade dos mais velhos. Os professores e educadores procuram cortar logo no início qualquer manifestação de rivalidade bairrista e incentivam a solidariedade entre as crianças. As mães das crianças também ajudam a romper com o quadro de hostilidade, na medida em que se encontram na porta da escola e estabelecem relações de camaradagem. Comovente, por exemplo, como nos relata a professora Marcy, é a tentativa das crianças de superarem o conflito nos aniversários. Como, algumas vezes, a circulação entre Vigário e Lucas é perigosa, muitas crianças fazem questão de comemorar seus aniversários na escola para que os amiguinhos da outra comunidade possam cantar parabéns, comer o bolo e participar da festa.


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O CIEP Mestre Cartola tem sido um espaço importante na promoção da cidadania e da paz na “zona de fronteira” entre Vigário e Lucas. Todas essas organizações – políticas, educacionais e culturais – representam o grande esforço dos moradores de Vigário de enfrentarem e resolverem coletivamente seus problemas. São os elementos componentes da rede de cidadania que a comunidade se esforça em construir, ampliar e reproduzir. Mas entre todas as organizações, uma em especial teve papel de destaque e mudou a vida da comunidade: o Grupo Cultural AfroReggae. É o tema do próximo capítulo.


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Cap.05

O Afro Reggae em Vigรกrio Geral.


em


Em seu livro Da favela para o mundo,1 José Junior, coordenador executivo do AfroReggae, conta como começou a relação do grupo com Vigário Geral. O grupo já existia como uma entidade social que se reunia no Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), editando um jornal (AfroReggae Notícias), organizando festas. Depois da chacina de 1993, várias pessoas que formavam o Grupo Cultural AfroReggae participaram da organização da “Caminhada pela Paz”, uma marcha que reuniu cerca de oitenta pessoas que foram a pé, por mais de vinte quilômetros, da Candelária (Centro do Rio) até Vigário Geral. A marcha, segundo Junior, selou o vínculo do AfroReggae com a comunidade: Nós então começamos a freqüentar Vigário Geral sempre aos domingos, nos encontros promovidos na sede da Associação dos Amigos da Onze Unidos [nome de uma rua de Vigário]. As reuniões eram organizadas pelos próprios moradores. Além do GCAR, o CEAP, o Projeto Legal do IBISS [Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social],2 e o Centro de Teatro do Oprimido3 estavam sempre presentes.4

1 JUNIOR, José, op. cit. 2 IBISS: Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social 3 Teatro do Oprimido: técnica teatral, voltada para a conscientização, desenvolvida por Augusto Boal. 4 Idem, ib., p.47

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Vigário Geral foi, ao mesmo tempo, uma base e um laboratório de trabalho para o Grupo Cultural AfroReggae. À medida que se instalava lá, organizava oficinas de trabalhos artísticos e culturais, atraía jovens moradores e criava raízes na comunidade, o próprio AfroReggae crescia como um empreendimento artístico, cultural e social. O grupo atua em outras comunidades, mas Vigário Geral foi sua base, o território onde criou uma identidade, uma expressão artística e estética própria e desenvolveu uma proposta de ação social. O AfroReggae e Vigário Geral estão profundamente articulados e são identificados um com o outro, não apenas pela mídia em geral, mas também pelos moradores da favela, pelo mundo artístico e pela vasta rede de ONGs que atua em comunidades populares. Esta relação profunda e determinante, tanto para a história do AfroReggae como para a história de Vigário Geral, se iniciou com a Caminhada pela Paz. Hoje em dia é impossível falar de Vigário Geral sem falar do Afro Reggae e sem mencionar o trabalho sociocultural desenvolvido pelo grupo na comunidade. Da mesma forma que é impossível falar do Grupo Cultural AfroReggae sem lembrar de Vigário. Outro marco importante da relação entre a comunidade e o grupo foi a realização de um grande concerto musical. No dia 30 de outubro de 1993 o AfroReggae realizou o Vigário in concert geral. O evento, realizado na quadra da associação de moradores, teve a participação de grupos de reggae, samba-reggae, rap e hip hop. Junior conta como ficou surpreso ao perceber que a platéia era formada quase que exclusivamente por crianças. Segundo ele, a presença maciça de homens do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), em cima da passarela de acesso, revistando as pessoas, teria intimidado, sobretudo, os mais jovens – alvo preferencial da ação da polícia. De qualquer forma, o concerto foi um marco na relação do AfroReggae com Vigário Geral: “Estávamos fincando a nossa bandeira, agora oficialmente, naquela comunidade”.5 5 Idem, ib., p. 54.


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A partir daí, o grupo se instalou em Vigário e iniciou um trabalho artístico e cultural, com uma série de oficinas de trabalho e criação. Em 1994 foi criado o Núcleo Comunitário de Cultura. O projeto tinha um objetivo bem claro: desviar jovens do caminho do narcotráfico e do subemprego. O Núcleo abriu oficinas de reciclagem de lixo, de percussão, de dança afro. Foi o início de um imenso trabalho com crianças e adolescentes da favela. Vários meninos e meninas passaram a procurar o grupo, atraídos pelas oficinas de dança e percussão. Ao Núcleo Comunitário seguiu-se uma série de outras atividades artísticas: a banda, o Afro Lata, o Afro Samba, a escola de circo, as oficinas de música e de capoeira (em parceria com o grupo Abadá), o grupo de teatro, os programas de saúde. A rica história desta relação entre o AfroReggae e Vigário Geral é contada em detalhes por Junior em Da favela para o mundo. E vale a pena ser conhecida porque revela a imensa possibilidade de inclusão social a partir de trabalhos com foco no desenvolvimento artístico e cultural. O trabalho do AfroReggae em Vigário deu um enorme salto a partir da criação do Centro Cultural AfroReggae Vigário Legal. Este centro, inaugurado em julho de 1997, foi fundamental para centralizar e consolidar as atividades e oferecer um espaço de integração para os jovens integrantes (e aspirantes a integrantes) de todas as oficinas que eram desenvolvidas pelo grupo. A obra da reforma da casa que abrigou o centro teve financiamento das embaixadas da Grã-Bretanha e do Canadá. O espaço foi inaugurado com a exibição do musical Nova cara, que reunia vários gêneros musicais modernos, como o funk e o hip hop, conectados a ritmos tradicionais afro-brasileiros e nordestinos. A montagem do espetáculo envolveu um processo de criação coletiva dinâmico e alegre, no qual todos os integrantes do grupo e das oficinas do Afro Reggae, assistiram a vídeos, filmes, clipes, peças, shows, escutaram vários tipos de música e experimentaram vários tipos de dança.


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A banda O Rappa foi grande parceira e compareceu à inauguração do Centro Cultural AfroRaggae Vigário Geral. O poeta Waly Salomão também estava lá. Nas palavras de Junior “Waly foi mais que padrinho, foi um mestre, um guru”. Aliás, a existência destes parceiros é marcante na trajetória do AfroReggae em Vigário Geral. O grupo sempre teve uma percepção muito aguda da relevância e do significado da mídia. Sempre teve em mente a importância não apenas de se fazer presente na mídia, mas, sobretudo, de utilizar a mídia para a difusão de seus projetos e de suas propostas. José Junior sempre teve clareza acerca do tamanho do objetivo do grupo: disputar com poderosa concorrência (a pobreza, a criminalidade, a violência policial e o tráfico de drogas) a adesão, o entusiasmo e o futuro de jovens e adolescentes de Vigário Geral. Nesta tarefa – extremamente difícil – a mídia poderia ser uma aliada. E foi usada como tal. Para tanto contribuiu bastante o apoio declarado e ostensivo de pessoas famosas – intelectuais, artistas, escritores, jornalistas, músicos, poetas –, que apoiaram e ajudaram a abrir espaços para o AfroReggae desde o seu início. A galeria destes padrinhos é vasta e variada: Wally Salomão, Regina Casé, Caetano Veloso, Betinho, Rubem César Fernandes, Manoel Ribeiro, Zuenir Ventura, Fernanda Abreu, Gilberto Gil, bandas como Cidade Negra e O Rappa, além de instituições acadêmicas, de pesquisa e de ação social, como Viva Rio, CEAP, Instituto de Estudos da Religião (ISER), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Médicos sem Fronteira, entre muitos outros e outras. Todas estas pessoas e instituições são mencionadas no livro de Junior que faz questão de declarar e homenagear estas parcerias. Uma das atividades mais importantes desenvolvidas pelo Afro Reggae em Vigário se dá no campo da saúde. É o grupo de teatro Trupe da Saúde, que utiliza técnicas de teatro de rua e de circo para discutir junto ao público questões como Aids, doenças


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sexualmente transmissíveis e prevenção do câncer de mama. Em seu folder, o grupo informa que, desde dezembro de 1997, data em que foi lançado o projeto, já fez mais de 250 apresentações, não apenas em Vigário Geral, mas em terminais rodoviários, escolas públicas, hospitais, postos de saúde, praças públicas e outras favelas. A metodologia de trabalho da Trupe da Saúde remete fortemente às propostas do Teatro do Oprimido, elaborado por Augusto Boal: criação coletiva, improviso, temas do cotidiano, teatro como denúncia ou como elemento de educação, estímulo ao debate com o público, apresentação em lugares abertos. Aliás, o Centro de Teatro do Oprimido (criado por Boal) é um dos parceiros mais antigos do Afro Reggae e a concepção mais geral do teatro como elemento de conscientização sempre esteve presente nos trabalhos do grupo. Para Lorenzo Zanetti, que foi coordenador de educação popular da FASE, a ação do AfroReggae em Vigário Geral (e também em outras favelas) pode ser considerada uma prática de educação popular próxima da tradição da educação dialógica desenvolvida por Paulo Freire,6 onde o processo educacional se dá numa relação de “mão dupla”, em que o “educador educa e é educado”. Analisando a metodologia de trabalho que embasa a prática das diversas oficinas culturais e artísticas, Zanetti aponta esta relação de “cumplicidade” entre educador/educando como a mola mestra de seu funcionamento. Além das oficinas de trabalho permanente, como as de música, teatro, dança, futebol, capoeira, a Batuque Legal (dirigida e realizada por jovens moradores que ensinam novas turmas de jovens e adolescentes) e a Trupe da Saúde, o AfroReggae oferece cursos profissionalizantes como o Usina Musical. Em todas as oficinas e cursos, afirma Zanetti, está posta a relação “dialógica” de educação e de aprendizado – tanto para os dirigentes

6 ZANETTI, Lorenzo. A prática educativa do Grupo Cultural Afro Reggae. Publicação conjunta GCAR/FASE/Fundação Ford, s/d.


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como para os integrantes que nelas aprendem e praticam uma arte ou um ofício. Mas Zanetti admite que raramente os membros do AfroReggae são chamados de “educadores”. Na verdade, eles não se vêem assim. Eles se vêem mais como “empreendedores sociais”. E disto advém uma enorme responsabilidade. Esta responsabilidade é muito clara não apenas para José Junior como também para os demais integrantes do grupo, da banda e dos projetos sociais – tanto os mais velhos, fundadores e iniciadores do movimento quanto os jovens que nele se agregaram e assumiram posição de liderança. Todos eles: Tekko, Zé Renato, Negueba, Altair, Anderson, Vitor e muitos outros. A responsabilidade social deriva do próprio objetivo definido pelo AfroReggae: ganhar o coração e a adesão dos meninos e meninas da favela, sobretudo aqueles em situação de risco; oferecer-lhes uma alternativa de vida econômica, social e existencial; mostrar que é possível um outro caminho de vida – e até de sucesso – através da arte e da produção cultural. Atrair, servir de exemplo. Nesta disputa, o AfroReggae não poderia vacilar, sua postura não poderia ser ambígua, nem leniente. É o que o próprio Junior nos declara num trecho de seu livro: Nada de drogas, bebida alcoólica ou tabaco. Além de fazer parte de uma geração saúde, os jovens tinham que ser politizados e conscientes do seu papel de artistas e empreendedores sociais.7

Eles deveriam ser responsáveis pela criação de uma nova cultura local. E, efetivamente, foram. Hoje, em Vigário, as oficinas e grupos de trabalho do AfroReggae não apenas criam música, arte, coreografias, números e espetáculos, mas estimulam uma nova forma de a favela se olhar e ser olhada não só pelo asfalto, mas pelo mundo; uma nova forma de presença na mídia e um 7 JUNIOR, José, op.cit., p. 127.


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novo lugar em relação à cultura produzida na cidade. Vigário Geral, a partir do AfroReggae, entrou no mapa da cultura do Rio de Janeiro. Através de suas oficinas e cursos, o AfroReggae mudou a vida de inúmeros jovens moradores da comunidade. E para muitos deles abriu uma ampla janela para o Brasil e para o mundo. Os jovens integrantes das bandas e das oficinas de música, teatro e dança já se apresentaram em várias cidades do Brasil, nos Estados Unidos e em vários países da Europa (França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Itália). Não é à toa que o nome do livro de Junior sobre a trajetória do Grupo Cultural AfroReggae é justamente Da favela para o mundo. E desta aventura participam muitos jovens de Vigário Geral. Alguns integrantes do AfroReggae, muitos deles moradores de Vigário, tornaram-se verdadeiros símbolos da comunidade. Eles a representam na mídia, no Brasil e no mundo. Entre eles o que talvez melhor encarne o espírito e a proposta artística do grupo, bem como o trabalho desenvolvido na favela é Anderson de Sá, vocalista da banda AfroReggae. Sua vida e sua trajetória artística na banda viraram um filme feito por cineastas californianos, premiado no Brasil e no exterior: Favela rising. Anderson, criado em Vigário Geral, segundo ele próprio conta, passou perto do envolvimento com o tráfico de drogas. Como ele diz, para muitos jovens moradores de favelas, andar com os traficantes “dá prestígio dentro da comunidade”. Muitos adolescentes são atraídos para o tráfico exatamente por causa disso: porque ele dá prestígio e poder. Anderson conta que, quando moleque, andava com uma galera que era identificada com o tráfico de drogas: (...) eu fui criado em Vigário, com essa tradição de galera, na época tinha esses grupinhos e eu andava com a galera do cruzeiro, que é uma galera que tem lá dentro de Vigário (...) nós éramos considerados os caras de disposição dentro da favela, os caras que mais


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brigavam, os malucos na verdade, né, os caras que não tinham medo de ganhar porrada, de levar tiro. E tinha um grande apadrinhamento dos traficantes, os traficantes tinham o maior orgulho pela gente porque eram os caras que brigavam, eram os caras que eles achavam que seria a nova geração do tráfico, alguns até foram, morreram. Da galera que eu fiz parte, éramos dezesseis, vinte, hoje vivos só tem uns seis, o restante tudo morreu.8

Anderson foi um dos jovens atraídos pelo trabalho artístico e musical do AfroReggae. Hoje, vocalista famoso, personagem de filme, morador querido na comunidade, é um dos principais atores do projeto social do AfroReggae e, mais ainda, um dos principais protagonistas das tentativas de mediação dos conflitos entre Vigário Geral e a vizinha Parada de Lucas. Assim como Anderson, muitos moradores de Vigário que se aproximaram do AfroReggae agora têm uma profissão, um projeto de vida, são bem sucedidos e se transformaram em exemplos para os mais jovens. Hoje o AfroReggae é profundamente enraizado em Vigário Geral. E participa, junto com a comunidade, do enfrentamento de seus problemas e das tentativas de solução e mediação de seus conflitos.

8 Entrevista de Anderson Sá. Núcleo de História Oral e Memória, Laboratório de Estudos do Tempo Presente, IFCS/UFRJ. Projeto Vidas Cariocas.


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Em um domingo de 1983, duas equipes entraram em campo para uma partida de futebol: um selecionado de Vigário e outro de Lucas se enfrentaram em um jogo que marcaria dura e longamente a vida de ambas as comunidades. Tudo indicava ser um domingo de festa. Afinal, o futebol sempre foi uma das principais – se não a principal – formas de lazer tanto de uma quanto de outra comunidade. Por isso mesmo, o campo estava cheio. Um jogo como aquele era um clássico e tinha tudo para tornar-se inesquecível. Todavia, de acordo com vários relatos, foi naquele local e momento que teve início a guerra entre Vigário Geral e Parada de Lucas. Um conflito que dura até hoje, mais de vinte anos depois do jogo, e que já fez incontáveis vítimas de um lado e outro. Uma versão da história já foi contada no livro Da favela para o mundo.1 É evidente que os acontecimentos relativos àquelas comunidades dizem respeito ao AfroReggae. Afinal, desde 1993 o grupo está presente em Vigário e desde 2001 em Lucas. O fato de estabelecer suas bases em uma fronteira em permanente conflito teve – e ainda tem - não poucos desdobramentos sobre a história, o desenvolvimento das atividades e certamente as perspectivas de atuação do AfroReggae.

1 Segunda edição do livro de José Junior, lançado em 2006 pela editora carioca Ediouro.

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De acordo com o livro, Vigário Geral e a favela vizinha, Parada de Lucas, vivem em um clima de guerra civil alimentado pela disputa dos pontos de venda de drogas. O início do conflito é atribuído à já mencionada partida de futebol, que era, pelo menos até ali, um dos principais motivadores da rivalidade entre as comunidades. Era 1983, e os dois times foram para a final de um torneio. O jogo foi duro e terminou empatado. Veio então a disputa de pênaltis. Na última cobrança do time de Parada de Lucas, o goleiro de Vigário, chamado Geléia, defendeu. Um traficante de Lucas atirou imediatamente: Geléia caiu morto, abraçado com a bola.2

A partir daí, as duas comunidades entrariam definitivamente em conflito. Até 1993, quando selaram uma trégua, devido à forte repercussão que a chacina alcançou, os combates eram extremamente violentos, quase sempre com o recurso de armamento de grosso calibre. Segundo relatos de quem viveu aquela época, os dois lados teriam empregado recursos cruéis: tortura aos “inimigos” capturados; estupro de moças e execução de rapazes no lado ocupado; e até execução dos animais de estimação que ousassem atravessar a linha divisória entre as comunidades. Passadas mais de duas décadas do início do conflito, essas histórias circulam como lendas de um lado e de outro da chamada fronteira. Verdadeiras ou não, elas alimentam a desconfiança, a hostilidade e o ódio recíprocos entre os moradores das comunidades. Em conseqüência, a maioria dos personagens dessa história, mesmo aqueles não ligados às facções do tráfico ou ao crime de maneira geral e também os que não chegaram a viver os momentos mais duros da guerra, acaba guardando sentimentos hostis em relação aos seus vizinhos. Vizinhos que sequer se conhecem, uma vez que, desde a fatídica partida de futebol, a fronteira – salvo em raros momentos, os quais narraremos aqui – tem permanecido fechada.

2 Idem.


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Certamente, a impossibilidade do convívio entre os moradores de Vigário e de Lucas contribui para a geração de histórias, mitos, que reforçam o sentimento de inimizade. Esse aspecto e a crescente rivalidade entre as diferentes facções do tráfico têm estimulado a difusão de estereótipos entre os moradores dos dois lados da fronteira, configurando-se como um empecilho às iniciativas que tentaram estabelecer novas formas de sociabilidade, abrindo a fronteira e procurando criar ali um espaço de convivência entre os moradores das comunidades. A partir de relatos e depoimentos de pessoas ligadas às duas favelas, podemos estabelecer três diferentes versões sobre a mítica partida de futebol.

O conflito visto de Vigário A maioria dos relatos, inclusive aqueles que informaram o livro Da favela para o mundo, fala de um jogo difícil, cuja decisão teria ido para os pênaltis, depois de renhido empate no tempo normal. A penalidade decisiva teria sido defendida pelo goleiro de Vigário, garantindo a vitória do time visitante, mas também selando a sua sorte. Um tiro certeiro disparado por um dos traficantes ligados ao time rival que assistia à partida teria dado fim à vida do jovem goleiro, à partida de futebol e à possibilidade de paz entre as duas favelas. Vigário Geral, em função da forma como o tráfico de drogas se organizou no Rio de Janeiro, foi submetida ao poder da facção conhecida como Comando Vermelho. Mais que isso, foi por muito tempo uma espécie de quartel-general da facção, uma referência na cidade, tornando-se famosa pela força que o narcotráfico adquiriu, sobretudo a partir da década de 1980. Seu Nilson, um dos moradores mais antigos de Vigário Geral, em depoimento para o livro Da favela para o mundo, confirmava: “Vigário passou a ser violenta na década de 80, com a chegada do tráfico e o começo da guerra com Lucas”.


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Um outro depoimento interessante e diferente sobre aquela época é o de Afif Mamede. Ostentando nome derivado de sua ascendência árabe, Mamede morou no bairro de Parada de Lucas nos anos 1960, na rua Balduíno de Aguiar. Depois casou-se e, em 1971, mudou-se para a rua Bulhões Marcial, em Vigário Geral, no endereço onde hoje funciona um ferro-velho. Trabalhava como motorista de táxi. Talvez por ter morado tanto em Lucas como em Vigário, o relato de Mamede incorpora elementos das versões correntes nas duas comunidades e apresenta, de certa forma, uma terceira versão para os acontecimentos. Ele fala de um tempo em que o tráfico de drogas propriamente dito era ainda muito fraco. O crime organizado, na época, referia-se, essencialmente, à prática de assaltos e roubos. Embora sua memória não lhe permita apontar as datas com precisão, Mamede se refere provavelmente à segunda metade da década de 1970. As conclusões de cientistas sociais e demais pesquisadores que estudam a criminalidade na cidade confirmam essa impressão de Mamede. Segundo Michel Misse, apesar de não haver estatísticas confiáveis de fonte policial em relação ao período anterior a 1977, (...) é significativo que, na área da delinqüência juvenil, para a qual existem estatísticas desde o início dos anos 60, se verifique uma extraordinária mudança de padrão de infrações a partir da primeira metade dos anos 70. O furto, infração amplamente dominante até o início dos anos 70, vai sendo substituído tendencialmente pelo roubo, a partir do mesmo período, até que as curvas se invertam em meados dos anos 80. A queda na curva de roubo, a partir do auge de 1985, coincide com o período de crescente visibilidade (e efetiva ampliação) do tráfico de drogas nas áreas urbanas pobres.3

Mamede assistiu de perto ao crescimento do tráfico de drogas nas comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas. Conheceu,

3 MISSE, Michel. “As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio de Janeiro”. In ContemporaneIdade e educação, v. 1, no 2.


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quando ainda eram crianças, homens que mais tarde se transformaram em grandes bandidos e personagens da crônica criminal – “Eu peguei no colo Marcinho VP, eu peguei no colo o Robson Caveirinha.” –, acompanhou os conflitos, as guerras e as perdas que fazem parte desse universo. Mamede recorda que, no início da década de 1970 já existiam nas duas favelas os chefes do tráfico de drogas local. Mas as favelas ainda não eram dominadas pelas facções ou comandos como acontece hoje. Na época, segundo ele, os moradores ainda podiam passar de um lado para o outro, sem serem incomodados. Ele não lembra em que momento exatamente a situação começou a mudar, mas garante que os conflitos entre Vigário e Lucas remontam a uma época anterior a 1983, portanto, antes mesmo da famosa partida de futebol. “Já havia umas rixazinhas”, afirma. Para Mamede, as guerras têm a ver com os bailes funk. Mas não apenas a guerra de hoje. Em sua opinião, também as rixas anteriores à partida de futebol tiveram origem no baile do União. Embora o atual presidente do clube, Paulo Roberto Júlio de Moraes, mais conhecido como Bolinha, conteste a informação. Bolinha faz parte da vida do clube há aproximadamente 50 anos (esta é a sua quinta gestão como presidente) e nega que acontecesse qualquer tipo de conflito no local, ainda mais entre moradores de Vigário e Lucas, uma vez que estes últimos não freqüentavam o União: “Tinha, sim, entrevero no baile do Pavunense.4 Aqui a galera de Lucas nunca veio”.5 Mesmo que o União não tenha sido um dos focos do conflito entre as comunidades, o fato é que em 1983, de acordo com o relato de Mamede, os comandos do tráfico já estavam estabelecidos nas comunidades – Vermelho, em Vigário; Terceiro,

4 Conhecido clube do bairro da Pavuna, na Zona Norte do Rio de Janeiro. 5 Depoimento de Paulo Roberto Júlio de Moraes (Bolinha) a Ecio Salles.


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em Lucas. Quando o jogo foi marcado, histórias de trairagem,6 pequenos conflitos e escaramuças já faziam parte do cotidiano do crime naquelas comunidades. E quanto ao jogo? (...) O jogo de futebol... Eu tô lá em Lucas, (eu ficava dos dois lados, não queria nem saber). Os caras de Lucas me falaram: “O pessoal de Vigário pode vir que a gente tá esperando. A hora que eles vier a gente toma aquilo”. Aí eu cheguei perto do Niltinho, o escuro, (tinha dois Niltinho, o branco e o preto) e falei: “Ó, cuidado, que eles vão convidar vocês para um jogo aí, é crocodilagem.7

Segundo o relato de Mamede, mesmo antes do jogo já não era possível atravessar a fronteira de Vigário para Lucas e viceversa. Mas, a partir daí, sem dúvida, a condição se agravou bastante. Na seqüência do episódio, houve tentativas recorrentes de invasão de um lado e de outro, duas delas de maior envergadura. Retornaremos a esse tema adiante. Em agosto de 1993, com a chacina de Vigário Geral, foi decretada uma trégua na guerra que, àquela altura, completava 10 anos. Conforme lemos no livro Da favela para o mundo, “até os bandidos da facção rival ficaram indignados com a barbárie e propuseram um período de paz”. De qualquer forma, pela primeira vez em mais de uma década, as duas favelas conheceram um período de relativa paz, no que se refere ao conflito entre ambas. Um período que duraria não mais que sete anos.

O conflito visto de Lucas De Lucas, como era de se esperar, vê-se outro conflito, narra-se outra história. De início, sob esse ponto de vista, o jogo não ter-

6 Gíria popular que se refere à traição. 7 Depoimento de Afif Mamede a Ecio Salles.


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minou empatado nem houve disputa de pênaltis. Nesta versão, o jogo não terminou porque foi interrompido pelos disparos. Na verdade, a partida mal tinha começado quando um grupo armado saiu do mato em torno do campo atirando. Um dos disparos atingiu o goleiro do time de Vigário, que morreu no local. Quem narra essa história é seu Antônio de Souza, 51 anos, morador de Parada de Lucas desde 1965. Ele era uma das pessoas que assistia à partida entre a seleção de Lucas e a de Vigário Geral. Acomodado próximo a uma das balizas, seu Antônio correu para se proteger assim que percebeu os tiros, mas foi alvejado por um tiro de 38 no tornozelo, que lhe rendeu uma ferida que perdura até hoje. A partida foi marcada no principal campo de Lucas, palco de memoráveis peladas dos times “luquenses”. Entre os jogadores, nomes famosos na comunidade vieram à lembrança de seu Antônio, como Cueca, Betinho e, na ponta-direita, Robertinho, o chefe do tráfico no local. Para Antônio, o jogo foi uma iniciativa de Lucas, que queria aproveitar a ocasião para “fazer a paz entre os dois lados”. Essa informação é interessante, porque se a partida tinha o fim de selar a paz, isso significa que a situação de conflito já estava dada mesmo antes do jogo. É possível que a partida, ou o seu resultado dramático, tenha acirrado os ânimos e agravado a rivalidade, tornando a situação insustentável a partir dali. É importante notar que neste ponto o depoimento de seu Antônio se aproxima da fala de Mamede. Os dois relatos apontam para a existência de um contexto de hostilidade anterior à data da partida. A fala de seu Antônio reforça esta idéia em mais de um momento. Em primeiro lugar, ele conta que não houve a disputa de pênaltis relatada na versão difundida em Vigário. A partida ainda estava nos dez minutos iniciais quando foi marcada uma falta a favor de Lucas. Um dos jogadores do time cobrou e fez o gol.


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O tiro começou quando o pessoal de Lucas fez o gol. Saiu um montão de gente de dentro do mato atirando. Foi na comemoração do jogador de Lucas, se abraçando e tudo. Aí foi quando surgiu aquele pessoal tudo de dentro do mato, atirando. Aí, ninguém sabe se foi de Lucas ou de Vigário, mas provavelmente era de Vigário.8

Dessa forma, a partida teria sido encerrada por volta dos dez minutos de jogo, com o placar 1 x 0 para o time de Lucas. O goleiro não teria conseguido defender o chute e teria sido alvejado por um tiro ao abaixar-se para apanhar a bola. Como lembra seu Antônio: “Ninguém sabia de onde vinham os tiros. Se era daqui, se era de lá. E tornou-se um bangue-bangue”. Segundo ele, a imensa maioria dos torcedores presentes à partida naquele dia era de moradores de Parada de Lucas, “o que tinha de Vigário era muito pouca gente”. O que o levou a intuir que os traficantes de Vigário haviam preparado uma armadilha, aproveitando a descontração do jogo, para invadir Lucas, ou executar o chefe do tráfico local, conhecido como Robertinho. Seu Antônio conta que, como o campo estava cheio, muitas pessoas se feriram durante o tiroteio. Não sabe se mais alguém morreu, mas lembra que havia diversas pessoas baleadas no mesmo hospital para onde ele foi levado pela esposa, após ser retirado do barranco no valão onde havia se escondido com um colega. As conseqüências do conflito só não foram mais graves, certamente, devido à intervenção dos militares do Centro de Reparos e Suprimentos Especiais do Corpo de Fuzileiros Navais, mais conhecido pelos moradores como “o quartel da Marinha”, localizado em frente a Lucas. Os soldados foram armados e em grande número ao local, repelindo os traficantes e fazendo cessar o tiroteio, o que permitiu o socorro às vítimas e garantiu o cessar-fogo, pelo menos por algum tempo.

8 Depoimento de seu Antônio de Souza a Ecio Salles.


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Água e café Em 1996, três anos após a chacina, as favelas de Vigário e Lucas foram ocupadas pela polícia. Ocupações policiais em favela seguem uma triste rotina no Rio de Janeiro. Arbitrariedade, violência, abuso de poder é o mínimo que se costuma concluir sobre as características da ação policial nessas comunidades cariocas. Como relatado no capítulo IV, o mais comum é a “ação policial brutal e abrangente que não leva em conta as diferenças existentes (...) entre trabalhadores e bandidos que habitam o mesmo bairro/favela ou bairro/comunidade”.9 Em 1996, no entanto, foi diferente. Era o governo Garotinho e o secretário de Polícia Civil era Hélio Luz. Nesse ano, sob a coordenação do chefe do Setor de Investigações da 6a DP, inspetor Marcos Pedra, foi implementada em Vigário Geral e Parada de Lucas a Operação Resgate II10 (a Resgate I tinha sido implementada em Acari, após a morte do traficante local Jorge Luiz). Segundo depoimento do inspetor Marcos Pedra, a Operação Resgate tinha o objetivo de ir além da tarefa policial repressiva. Buscava também auxiliar nas necessidades da população das favelas – “Uma criança que cai; um remédio que precisa ser ministrado; um marido que chega em casa alcoolizado e agride a esposa”11 – e sempre respeitando os direitos desses moradores. Em resumo, tratava-se de preencher a lacuna deixada pelo Estado nas favelas, atuando com respeito ao cidadão. Nos 45 dias em que as equipes de policiais permaneceram em Vigário Geral, foram registrados poucos casos de trocas de tiros; efetuaram-se algumas prisões, sempre de indivíduos realmente procurados pela Justiça e não houve registro de uso da violência contra os moradores. Ao contrário, o grupo de poli-

9 Trabalho da professora Rosilene Alvim, reproduzido no cap. IV. 10 Na verdade, havia muitas equipes de policiais envolvidas na operação, o inspetor Marcos Pedra era o coordenador de uma delas. 11 Depoimento do inspetor Marcos Pedra a Ecio Salles.


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ciais que ocupou a favela distribuiu material escolar, organizou eventos, restaurou o serviço de iluminação pública, entre outras ações do gênero. Um momento marcante e representativo do espírito que orientou essa operação foi um evento organizado pela equipe do inspetor Marcos Pedra no CIEP Mestre Cartola, na divisa entre Vigário e Lucas: “Jogos de Integração”. Reunindo serviços voltados para o exercício da cidadania (implantação de um posto do Instituto Félix Pacheco, para emissão de carteira de identidade; equipes médicas, que realizaram classificação de grupo sangüíneo, entre outros). Realizado em 1º de dezembro de 1996, mobilizando parcerias com a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e a Sony Music, entre outras empresas ou instituições, o evento não contou apenas com esses serviços, mas promoveu apresentações artísticas, como a de Dominguinhos do Estácio; sorteio de bicicletas, CDs e outros brindes; distribuição de revistas (doadas pela Editora Globo) e... um baile funk, promovido pela Furacão 2000, com as presenças dos então donos desta equipe de som, Rômulo e Verônica Costa.12 Como relata Marcos Pedra: (...) quando se fala em proibir o baile funk, a polícia promoveu um baile funk. Porque o funk em si é um dos gêneros que você tem que respeitar. É a cultura local, daquele cidadão que aprecia esse tipo de música.13

O ponto alto da operação foi o fato de a polícia ter tido êxito em penetrar no cotidiano da favela, ter conseguido contrariar o lugar comum da “ocupação” militar através da violência e, com isso, ter conseguido o respeito da comunidade. O inspetor Marcos Pedra conta que, certa noite, ele, à frente de um grupo de policiais armados, entrou em uma rua e avistou uma 12 Rômulo e Verônica se separaram em 2002. Rômulo continua à frente da Furacão 2000. Verônica fundou a sua própria equipe, a Glamurosa. 13 Depoimento do inspetor Marcos Pedra a Ecio Salles.


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casa onde estava acontecendo uma festa. Quando eles passaram, o som silenciou e as pessoas ficaram apreensivas. Marcos, então, cumprimentou o grupo – “Boa noite” – e informou que as pessoas podiam continuar a festa, que eles estavam ali apenas para garantir a segurança dos moradores. Depois continuou a marcha, sendo interrompido pelo dono da casa, que ofereceu salgados e refrigerantes aos policiais. Em outra ocasião, durante o dia, um senhor idoso, morador da favela, ao passar em frente ao grupamento de Marcos Pedra, discretamente deixou cair uma bolinha de papel amassado. O inspetor percebeu o movimento, pisou sobre a bolinha e a apanhou algum tempo depois. Era uma denúncia de onde os traficantes estavam malocados,14 vendendo drogas. Recentemente, em entrevista ao Espaço Aberto, apresentado pela jornalista Miriam Leitão, no canal Globo News, José Junior mencionou esse episódio. Ele participou do programa ao lado da pesquisadora Silvia Ramos, que tinha acabado de lançar o livro Elemento suspeito,15 escrito em parceria com a antropóloga Leonarda Musumeci, que trata justamente do comportamento preconceituoso da polícia em relação aos cidadãos. Na ocasião, Junior declarou: Pela primeira vez eu tinha visto, em Vigário e Parada de Lucas, os moradores darem água e café para os policiais.

As coisas quando têm que acontecer, realmente têm muita força. E acontecem sempre no momento certo. Em 1996 o inspetor Marcos Pedra esteve na sede do AfroReggae, que à época ficava na rua Senador Dantas, no Centro, e conversou com José Junior e Luiz “Tekko Rastafari” Lopes sobre a possibilidade de o grupo participar das atividades propostas pela polícia. Naquele momento, eles preferiram não participar. Afinal, ainda havia 14 Gíria popular que indica esconderijo. 15 RAMOS, SIlvia e MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.


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muitos ressentimentos na comunidade desde o episódio da chacina e o AfroReggae estava dando os primeiros passos, tinha apenas três anos de existência. Seis anos depois, o AfroReggae, entre inúmeros outros projetos, passaria a desenvolver uma parceira com a Polícia Militar de Minas Gerais – o Projeto Juventude e Polícia – que, além de pioneiro, tem obtido resultados absolutamente positivos na criação de uma relação menos preconceituosa entre polícia e jovens das favelas, investindo na cultura como forma de aproximação e reconhecimento entre esses dois universos. Uma experiência tão importante, que já está se desdobrando em outros projetos parecidos, por exemplo, na Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ). Um dos aspectos dessa nova relação é a parceria entre a Banda AfroReggae e a Banda 190, da PMERJ. Elas têm se apresentado juntas em diferentes eventos e, em 2006, participaram do programa Caldeirão do Huck, na TV Globo, interpretando a canção Imagine, de John Lennon. Um acontecimento que permite imaginar, como diz a letra da canção, “a brotherhood of men/ imagine all the people/ sharing all the world” (“uma fraternidade de homens/ imagine todas as pessoas/ compartilhando o mundo inteiro”).

Amor em tempos de guerra Mesmo nos tempos difíceis, nos piores momentos de guerra, é possível brotar esperança de dias melhores, momentos de amor e liberdade. Por exemplo, na guerra entre Israel e Palestina a hostilidade é tamanha que transcende o contexto dos governos, dos exércitos, dos conflitos bélicos. A linguagem se torna igualmente bélica, contagia as pessoas, o ódio se mostra uma força inexorável, uma verdade insuperável. Assim, judeus e palestinos se odeiam mutuamente, de forma que o diálogo se torna inviável. A fronteira dos afetos também se fecha e é vigiada constantemente por barreiras de preconceito, intolerância, ignorância e outros interesses mesquinhos.


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Mesmo assim, um judeu e um palestino resolveram dialogar. Em 1999 o escritor e crítico literário palestino Edward Said16 (autor de clássicos como Orientalismo e Cultura e Imperialismo) e o regente e pianista judeu, nascido argentino e cidadão israelense, Daniel Barenboim criaram uma orquestra, a West-Eastern Divan. A orquestra reúne jovens músicos de Israel, da Palestina e de outras nações árabes, além de um grupo de espanhóis da Andaluzia, onde judeus e muçulmanos conviveram até o século XV. Resultado de oficinas de música desenvolvidas por Barenboim e Said, a West-Eastern Divan, que se apresentou no Brasil pela primeira vez em 2005, procura criar, através da música, uma forma de diálogo entre culturas diferentes. No caso, entre culturas que há muito tempo vivem em conflito. Em um contexto diferente, mas igualmente dominado por hostilidades duradouras, surgiu na fronteira entre Vigário Geral e Parada de Lucas um projeto que visava desconstruir, mais uma vez, a lógica do fechamento, do isolamento e da imobilidade que dominava aquele território, tão hostil que recebeu apelidos significativos: “Vietnã”, num primeiro momento (é assim que a área é referida por Zuenir Ventura, em Cidade partida17); e, mais recentemente, “Faixa de Gaza” – remetendo à área conflagrada entre Israel e Palestina. O próprio nome do projeto já buscava unir, nas palavras, as comunidades separadas por uma linha imaginária: “Parada Geral”. A idéia surgiu a partir da peça Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, que estava sendo montada pelo dramaturgo inglês Paul Heritage,18 no âmbito de um projeto denominado “Amor em tem16 Infelizmente, Edward Said faleceu em 2003. 17 VENTURA, Zuenir, op. cit. 18 Paul Heritage é professor da London School of Theatre. Desenvolve no Brasil há vários anos, o projeto Direitos Humanos em Cena, levando oficinas de teatro para detentos do sistema penitenciário brasileiro de diversos estados. É fundador e diretor-presidente do People´s Palace Project, ONG que utiliza a arte para implementar projetos de desenvolvimento social, com especial atenção para os Direitos Humanos (cf. www.peoplespalace.org.br/default.asp).


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pos de guerra”. Como narra em seu livro Da favela para o mundo, depois de assistir a um ensaio da peça em um teatro de um bairro nobre carioca, Junior idealizou a apresentação da peça em uma favela, bem na fronteira entre Vigário e Lucas. Desse modo, Antônio e Cleópatra foi apresentada no dia 8 de junho de 2004 na zona de conflito entre as comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas, no CIEP Mestre Cartola. O evento fez parte do contexto do Parada Geral, desenvolvido pelo AfroReggae em parceria com a ONG People´s Palace, O evento contou com a participação da banda AfroReggae, de Adriana Calcanhoto, dos atores Maria Padilha, Chico Diaz e Ricardo Blat, entre outros. O Parada Geral não se restringiu à peça. Na verdade, reuniu atividades diferentes, procurando transformar a área em conflito em um corredor cultural. José Junior, em seu livro, explica os principais resultados do projeto: A trégua durou dezoito dias. Nesse período aconteceram partidas de futebol, animação infantil do Tio Carlos,19 que esteve presente pessoalmente em todos os momentos mais tensos e complicados, grafite com o grupo Nação e a implantação das oficinas de teatro e história em quadrinhos em parceria com o People’s Palace, oficinas de percussão e capoeira. As células se proliferaram e até hoje não param de se multiplicar. Nesse período, dava orgulho andar ao lado do Vitor.20 Por onde passávamos, seja na parte de Lucas, seja na de Vigário, as pessoas diziam: “Olha o cara da paz”.21

Todo o processo de realização do projeto foi descrito de forma mais eloqüente e detalhada na segunda edição do livro Da favela para o mundo e no documentário Shantytown Shakespeare.22 19 Famoso animador de festas infantis do Rio de Janeiro. 20 Um dos mais conhecidos dirigentes do Afro Reggae. 21 JUNIOR, José, op.cit. 22 Documentário dirigido por Kristine Clarke, e que narra todo o processo de produção da encenação da peça Antônio e Cleópatra, de William Shakespeare, com direção de Paul Heritage, na fronteira entre Vigário e Lucas, desde sua germinação até a noite da apresentação.


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De qualquer forma, fica aqui uma síntese de um momento importante. Um dos raros momentos de paz e diálogo entre Vigário Geral e Parada de Lucas.

Invasões e retaliações Após a chacina de 1993, houve uma trégua de sete anos entre os comandos de tráfico rivais de Vigário Geral e Parada de Lucas. No ano 2000, no entanto, as hostilidades voltaram a acontecer e se intensificaram. Primeiro, através de pequenas escaramuças e de boatos envolvendo moradores das duas comunidades. Foi nessa época que correram boatos de que até o Grupo Cultural AfroReggae seria atingido por ataques vindos do tráfico de Lucas. De qualquer forma, o esclarecimento dessa história resultou na criação de um núcleo do AfroReggae em Parada de Lucas, onde permanece até hoje. Entre 2000 e 2005 bandidos ligados aos diferentes comandos de tráfico de drogas com bases em Vigário Geral e em Parada de Lucas promoveram ameaças, invasões, seqüestros e assassinatos nas duas comunidades. Em 2005 a história do conflito entre os traficantes de Vigário Geral e Parada de Lucas conheceu um de seus episódios mais dramáticos. Em duas oportunidades, os traficantes de Lucas invadiram Vigário. Na primeira vez, ficaram dois dias. A polícia entrou, ocupou Vigário, obrigando a retirada dos bandidos de Lucas. Os traficantes de Vigário se refugiaram no Dique, uma comunidade próxima dali e depois voltaram aos poucos. Mas a invasão foi traumática para a população de Vigário Geral. Muitos moradores, temendo a violência, abandonaram a comunidade e suas casas – que eram saqueadas pelos bandidos de Lucas. Em seguida, no final de 2005, um novo ataque dos traficantes de Lucas resultou no desaparecimento de oito jovens de Vigário, cujos corpos (pelo menos até a publicação deste livro) jamais


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foram encontrados. Segundo matéria do jornal O Globo, de 25 de janeiro de 2006: Dos oito jovens levados - e que ainda estão desaparecidos – a polícia diz ter absoluta certeza de que pelo menos dois não tinham qualquer relação com o tráfico de drogas. Mesmo assim, disse o delegado da 38ª DP [Brás de Pina], Marcos Neves, os dois foram submetidos a torturas.

Segundo informaram os policiais que acompanharam a investigação do caso, os corpos podem ter sido esquartejados e jogados aos porcos ou no rio que margeia a comunidade. A mãe de um dos desaparecidos, que preferiu não se identificar, declarou ao mesmo jornal que o crime não teria solução, porque as vítimas “foram os filhos de umas marias-ninguém de Vigário Geral. Se fosse alguém importante, já teriam encontrado”.23 Ainda no contexto do conflito de 2005, um episódio marcou profundamente a experiência do AfroReggae nas favelas cariocas. Em meio à apreensão gerada pela invasão, um boato absurdo circulou entre Vigário e Lucas. Em Da favela para o mundo, Junior nos conta: Diziam que o Anderson estava armado de fuzil e pistola, com a camisa do AfroReggae amarrada na cabeça, agredindo os moradores de Parada de Lucas. A infâmia foi tamanha que disseram que ele havia seqüestrado vinte moradores de Parada de Lucas e estuprado uma menina.24

Insuflados pelo boato, moradores de Parada de Lucas ameaçaram diretamente a vida de seis jovens do AfroReggae – Altair, Anderson, Dada, Vítor, Samuel e Leandro. Felizmente, no final a verdade prevaleceu e todos saíram ilesos do episódio. Essa história foi narrada em detalhes no livro e referida nos documen-

23 Jornal O Globo. “Oito desaparecidos de favela foram mutilados”, 25 de janeiro de 2006. 24 JUNIOR, José, op.cit.


A Guerra

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tários Favela rising e Nenhum motivo explica a guerra.25 E terá grande destaque em um filme que está sendo feito com direção de Estevão Ciavatta que aborda especificamente o tema mediação de conflitos. De qualquer forma, as palavras de Junior são importantes para resumir o final desse caso: Depois de tudo isso, o AfroReggae cresceu e se fortaleceu nas duas comunidades – Vigário e Lucas – reforçando seu compromisso com a favela e a legitimidade de sua atuação nesse espaço. E aprofundou ainda mais sua presença no contexto social mais abrangente, no qual estamos inseridos. Anderson e Vítor são hoje símbolos vivos desse nosso engajamento.26

Um engajamento que aposta na possibilidade do diálogo. Este é o desejo e a meta não só do AfroReggae, mas também dos autores deste livro e de todas as pessoas – moradores, ex-moradores, professores, alunos, artistas e intelectuais que contribuíram para a sua realização.

25 Documentário, disponível em DVD, dirigido por Cacá Diegues e Rafael Dragaud. Registra um show da banda AfroReggae gravado no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Traz ainda registros de integrantes do AfroReggae, revelando a vivências dos fundadores e as experiências dos integrantes e recém-chegados ao grupo. 26 Depoimento do inspetor Marcos Pedra a Ecio Salles.


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Hist贸ria e Mem贸ria de Vig谩rio Geral


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Conclusão “O que pode a história nos dizer sobre a sociedade contemporânea?” Com esta pergunta o historiador inglês Eric Hobsbawm começa um capítulo de seu livro Sobre história.1 É inevitável fazer comparações entre o passado e o presente: é essa a finalidade dos álbuns de fotos de família e dos filmes domésticos. Não podemos deixar de aprender com isso, pois é o que a experiência significa.2

Para Hobsbawm, podemos até mesmo aprender coisas erradas – mas não podemos deixar de recorrer ao passado para tentar entender a nós mesmos, no tempo presente. E, segundo ele, os “historiadores são o banco de memória da experiência”.3 Este foi o objetivo deste livro: resgatar memórias e compor uma história a partir delas, a história de Vigário Geral – a trajetória da comunidade e de seus moradores. Nossa proposta era realizar um cruzamento entre a história do país, a da cidade e a da comunidade, para que os moradores se reconheçam no que é contado aqui.

1 HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 2 Idem. 3 Idem.


Nos últimos anos, em várias favelas e bairros populares têm se desenvolvido uma consciência que valoriza a trajetória da comunidade, sua cultura, sua memória, seus marcos históricos, seus personagens e que busca a inserção desta memória na história oficial da cidade. O trabalho da Rede Memória, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, é um bom exemplo deste tipo de iniciativa. Sites na Internet como o “Observatório de Favelas” e o “Favela tem memória” compartilham esta preocupação e esta postura. Sabemos que muitas vezes a vivência da população em seus bairros de periferia, e em comunidades populares, não é levada em conta na construção da memória da cidade. Muitas vezes estas vivências terminam por se constituir como vozes e experiências periféricas, à margem da memória oficial da cidade e da história contada nos livros. Nos últimos anos, no entanto, os historiadores têm tido uma especial preocupação em trazer à tona estas memórias, estas experiências, esta vivência. E fazer com que elas se integrem à narrativa oficial da história da cidade e do país. A equipe que trabalhou nesta pesquisa faz parte deste movimento. Esperamos que este livro possa ser usado nas escolas de Vigário Geral por jovens estudantes que estejam lendo e aprendendo sobre a História do Brasil. Porque a história de um país, na verdade, é feita assim: pela curiosidade de seus jovens e pelas lembranças de seus velhos.


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Referências bibliográficas Fontes primárias e documentos oficiais: Depoimentos – Núcleo de História Oral e Memória/UFRJ Senhor Nilson – entrevista realizada em 17/01/2004 Senhor Lins – entrevista realizada em 13/03/2004 Senhor Farides – entrevista realizada em 19/06/2004 Senhor José Emídio – entrevista realizada em 24/07/04 Senhor Denair – entrevista realizada em 31/07/2004 Elaine Araújo de Moraes – entrevista realizada em 28/08/2004 Professora Marcy – entrevista realizada em 10/03/2005 Entrevistas realizadas por Ecio Salles para o capítulo 04 “A Guerra”: Afif Mendes Antônio de Souza Inspetor Marcos Pedra Paulo Roberto Julio de Moraes (“Bolinha”) Relatório específico de favelas. SABREN 6.0 (Sistema de Assentamentos de Baixa Renda). Instituto Pereira Passos Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Arquivos de Microdados do Censo Demográfico 1991 e Contagem da População 1996.

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Documentários: Favela rising (2005), de Matt Mochary e Jeff Zimbalist Nenhum motivo explica a guerra (2006), de Cacá Diegues e Rafael Dragaud



Imagens:

índice e créditos P. 14

PP. 22-23 P. 30 P. 33 P. 35

P. 43 PP. 44-45 PP. 46-47 P. 48 PP. 50-51 PP. 52-53 P. 55 P. 58 P. 62 P. 65 P. 66

APRESENTAÇÃO: PASSARELA que separa a comunidade Vigário Geral do bairro Vigário Geral. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos do AfroReggae. CAP. 01: CASAS DA COMUNIDADE. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos do AfroReggae. QUADRA em Vigário vista da passarela. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. PASSARELA em Vigário. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. DETALHE DE POSTE. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. CAP. 02: Sede do MOGEC. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. Trabalho na Fundação ONDA AZUL. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. POSTO DE SAÚDE. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. FRONTEIRA entre a linha do trem e o Beco do Namoro. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. A BEIRA. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. Arredores da CRECHE. Fotos: Nicola Draucolis. QUADRA POLIESPORTIVA onde acontecem treinos das oficinas do AfroReggae. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. ENCHENTE em Vigário Geral em janeiro de 1966. Foto: Milton. Arquivo Nacional, acervo Correio da Manhã. PROPAGANDA de apoio de Luís Carlos Prestes a Juscelino e Jango. Foto: Acervo da família de Luís Carlos Prestes. CASAS na comunidade. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. CASAS na comunidade. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivo AfroReggae.


P. 77 PP. 86-87 PP. 92-93 P. 94 P. 97

P. 99 PP. 100-101

P. 104 P. 107

P. 115

P. 121 P. 130 P. 131 P.134 P.135

CAP. 03: SEU NILSON concedendo depoimento. Foto: equipe de alunos da UFRJ. ASSEMBLÉIA para a criação da Comissão de Luz em 1962. Arquivo do seu Naildo. Moradores realizando LIMPEZA DE VALAS em regime de mutirão. Arquivo do seu Naildo. SEU LINS concedendo depoimento. Foto: equipe de alunos da UFRJ. MORADORES carregam seus pertences na enchente de 1966. Foto: Erno. Arquivo Nacional, acervo Correio da Manhã. MORADORA NA ENCHENTE de 1966. Foto: Erno. Arquivo Nacional, acervo Correio da Manhã. APURAÇÃO DAS ELEIÇÕES de 1962 para a diretoria da Associação de Moradores. Arquivo do seu Naildo. Fonte: http://sti.br.inter.net/rafaas/regmilbra/images/. JOÃO GOULART no COMÍCIO DA CENTRAL do Brasil, em 13 de março de 1964. COMÍCIO DIRETAS JÁ. Após as manifestações de abril, cerca de 30 mil pessoas voltaram ao Centro do Rio de Janeiro para reivindicar eleições diretas em 27 de junho de 1984. Foto: Evandro Teixeira/CPDoc JB. CAP. 04: COMÍCIO DIRETAS JÁ na Praça da Candelária que reuniu mais de 800 mil pessoas em 10 de abril de 1984. Foto: Almir Veiga/CPDoc JB. BRIZOLA em campanha eleitoral. Foto: klepsidra.net CIEP Mestre Cartola. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. CRIANÇA EM FRENTE A UM MURO FURADO POR BALA. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Detalhe de foto. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. CIEP MESTRE CARTOLA na fronteira que separa Vigário Geral de Parada de Lucas. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae.


P.140 P..146 PP.148 149 PP.150 -151 P.152 P.153 P.154 155 P.156 P.157.

P.163. P.166.

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Cap. 05: SEDE do Núcleo Comunitário de Cultura do AfroReggae em Vigário. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Ensaio de um grupo no Centro de Lazer Vila Nova. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. ENSAIO de grupos do AfroReggae. Fotos: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. ENSAIO da oficina de dança do AfroReggae. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. ENSAIO de um grupo no Centro de Lazer Vila Nova. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008. AFRO LATA, um dos grupos artísticos do AfroReggae. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. TRIBO NEGRA, um dos grupos artísticos do AfroReggae. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. OFICINA DE PERCUSSÃO do AfroReggae. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. No topo: Detalhe de MENINAS de um grupo do AfroReggae. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Na parte inferior: Detalhe de aula da oficina de dança do AfroReggae. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. Cap. 06: Detalhe da quadra de areia do CENTRO DE LAZER VILA NOVA. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. Na parte superior: CASA FURADA POR BALAS localizada na chamada “Faixa de Gaza”, a fronteira entre Vigário e Parada de Lucas. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. Na parte inferior: CASA PICHADA COM A SIGLA DO COMANDO VERMELHO. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Na parte superior: CASA PICHADA EM VIGÁRIO GERAL. Foto: Rodrigo Gorosito, 2008. P arte inferior: CASA EM VIGÁRIO PICHADA COM A SIGLA DO COMANDO VERMELHO. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Estrela com os dedos. Foto: Nicola Dracoulis. Arquivos AfroReggae. Conclusão: VISTAS PANORÂMICAS de Vigário Geral. Fotos: Rodrigo Gorosito, 2008


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Sobre os autores Maria Paula Araujo é mestre em História pela UFF e doutora em Ciência Política pelo IUPERJ. É professora do Departamento de História da UFRJ, onde atua no Programa de Pós-Graduação em História Social e no Laboratório de Estudos do Tempo Presente. Desenvolve pesquisas no campo da história política, história oral e memória, enfocando os movimentos sociais e as esquerdas no Brasil e na América Latina. É autora dos livros A Utopia Fragmentada. Novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970 (FGV, 2000) e Memórias Estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias (Relume Dumará, 2007). Ecio Salles nasceu no bairro de Olaria, subúrbio carioca, e é mestre em Literatura Brasileira pela UFF. Sua dissertação abordou a produção textual da cultura hip-hop no Brasil. Foi Coordenador de Pesquisa e Conteúdo do grupo artístico Afro Samba, do Grupo Cultural Afro Reggae; hoje, integra o Conselho Editorial da revista do grupo, a Conexões Urbanas. Atualmente, é doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. A partir de uma pesquisa sobre grupos culturais que atuam em favelas desenvolvida na UFRJ, Maria Paula Araujo conheceu Ecio Salles, então trabalhando no jornal do AfroReggae. Desse contato inicial, surgiu não apenas uma proposta de pesquisa conjunta, como também uma grande amizade.


Este livro foi composto em Akkurat. O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m2

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica Morada do Livro, em junho de 2008, no Rio de Janeiro. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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