Panfleto, de Junior Perim

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PAN FLE TO Junior Perim



PAN FLE TO Junior Perim

Petrobras Cultural


Copyright © 2012 Junior Perim COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOiSA BUARqUE dE HOLLANdA consultoria ECiO SALLES coordenação editorial CAMiLLA SAvOiA projeto gráfico FLAviA CASTRO PANFLETO produção gráfica SidNEi BALBiNO revisão CAMiLLA SAvOiA FERNANdA MELLO revisão tipográfica CAMiLLA SAvOiA foto da capa Aluno do Programa de Circo Social do Crescer e viver. Crédito: ierê Ferreira CiP-BRASiL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SiNdiCATO NACiONAL dOS EdiTORES dE LivROS, RJ

P521p Perim, Junior Panfleto / Junior Perim. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. 196p.: il.; 19 cm (Tramas urbanas) Índice iSBN 978-85-7820-085-5 1. Perim, Junior. 2. Movimentos estudantis - Brasil. 3. Artistas circenses. 4. Artistas. 5. Crônica brasileira. i. Título. ii. Série. 12-6579.

Cdd: 869.98 CdU: 821.134.3(81)-8

11.09.12 25.09.12 TOdOS OS diREiTOS RESERvAdOS AEROPLANO EdiTORA E CONSULTORiA LTdA.

Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon — Rio de Janeiro — RJ CEP: 22.440-030 Tel: (21) 2529-6974 Telefax: (21) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXi”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXi, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Agradecimentos

Sou uma bricolagem de generosidades. Produto de atravessamentos humanos gerados por encontros com pessoas de diferentes estratos sociais com as quais cruzei nos meus percursos. Tomei delas sempre o melhor que colocaram a minha disposição para me fazer sujeito. Para não ser injusto com todos aqueles que contribuíram no meu desenvolvimento e existência, e que cooperaram em meus fazimentos e realizações, peço que entendam a limitação física deste livro — nele não caberiam todas as histórias, gestos e manifestações de afeto, solidariedade e generosidade. Peço a cada parceiro(a), comparsa e amigo(a) que ao não se sentir contemplado neste livro, lembre-se de que são parte constitutiva da minha melhor metade. dito isso, com a consciência menos pesada por não poder citar todos, faço aqui o registro de alguns cúmplices: Regina Guimãraes, Ronaldo Laura, Regina Figueiroa, Luis Carlos Gá, Flávio, vanessa e Rafael — família da minha mulher pelo acolhimento cotidiano e pelas mãos amigas em momentos difíceis; os colaboradores e ex-colabores, parcei-


ros, apoiadores, incentivadores, participantes e beneficiários do Crescer e viver e dos empreendimentos que realizamos dividindo comigo o sonho de construir uma organização que, a despeito das fragilidades, consegue ser uma referência de picadeiro capaz de juntar arte circense e transformação social; Eliane Costa — ela é a primeira culpada deste livro chegar as suas mãos, foi ela quem em um papo me deu de presente todas os títulos que integram a coleção Tramas Urbanas até aqui lançados e sugeriu aos seu organizadores o meu nome como um potencial autor; a Heloisa Buarque de Hollanda, Ecio Salles e toda a equipe da Aeroplano que assumiram o risco e apostaram nesta publicação; a Marcus vinícius Faustini que me encorajou em cada passo, ou melhor, em cada palavra que escrevi no difícil desafio que é escrever um livro; e por último a deus e as boas energias do universo que me ajudam a acreditar em novos encontros que, espero, sejam a fonte dos conhecimentos, saberes e habilidades que melhoram minha pior metade, contribuindo na minha tarefa de ser, estar e existir no mundo de forma produtiva, vivendo a felicidade de múltiplas realizações.



Aos meus pais, Enaura e Sergio, que me fizeram chegar à vida – com a qual tenho tido a chance de fazer coisas. À Fernanda Guimarães Lauria, que suportou tantas dificuldades e dividiu comigo a chance da minha principal realização: Carolina Lauria Perim, minha filha, à quem também dedico este livro de maneira especial. Ao meu irmão Felipe, como um registro do que tenho dito: seja qual for, desde que pautado no bem, construa um caminho, moleque. Ao meu maior amigo, Vinicius Daumas, que me introduziu no universo circense e com quem divido cada conquista que alcancei no picadeiro.


SUMÁRIO 14

PREFÁcIO - MARcUS vINícIUS FAUSTINI

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OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM 18 21 26 28 32 37 43 49 56 61 66

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OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ 74 80 85 95 105 114 121 130 138 144 147 152 157 166 170 178

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BRINcANdO dE MILITANTE NO RITMO dOS ATABAQUES EU QUERIA UM kIchUTE FÁBRIcA dE UMA BIcIcLETA Só O MATAdOR dE FRANgOS "LULA-LÁ": EU QUERIA vESTIR A cAMISA MEU PRIMEIRO PANFLETO MINhA BREvE ATUAçãO NO MOvIMENTO ESTUdANTIL dE dOIdãO POR ALgUNS MESES A cABO ELEITORAL dEcIdI SER SOcIALISTA O POdER PERvERTE A IdEOLOgIA

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FOLIA E dIREITOS dA cRIANçA E dO AdOLEScENTE O FRAcASSO dE UMA IdEIA é O cAMPO PARA A INvENçãO dE UM NOvO MOvIMENTO NAScE O cREScER E vIvER ALTRUíSMO E vOLUNTARISMO NãO BASTAM cIRcO – MELhOR LUgAR IMPOSSívEL PARA dAR O SALTO NAS PERdAS ENcONTRAMOS O cAMINhO cIRcO SOcIAL – O cAMPO PARA A cONSTRUçãO dE UMA METOdOLOgIA O PRIMEIRO PATROcíNIO A gENTE NUNcA ESQUEcE ATRAvESSANdO A PONTE RIO-NITERóI EU gANhEI UM cIRcO dE PRESENTE ONdE cOLOcAR O cIRcO? “ISSO vAI dAR MERdA!” LEI ROUANET? QUE PORRA é ESSA? NOSSO ESPETÁcULO é PARA cREScER E vIvER!!! cONQUISTANdO ESPAçO NA cENA ARTíSTIcA PERdEMOS A ÁREA, MAS AINdA NãO PERdEMOS O TERRITóRIO


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OS FAZIMENTOS QUE ESTテ」O POR SER FEITOS 186

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Sテ」O OS PASSOS QUE FAZEM OS cAMINhOS

POSFテ…IO - ANA STUdART

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Prefácio

Para se fazer uma única pessoa é preciso várias vidas. E não é algo fora deste mundo que dispara essas várias vidas no fazimento de uma pessoa. Basta apenas um som de atabaque, um kichute, um saco de leite B, um encontro num bar com um antigo amigo que enlaça uma parceria ou até mesmo um panfleto que você pega das mãos “de um negro alto, gordo com espessa barba branca”, como nos conta Junior Perim, neste livro. É assim, de maneira direta, em pequenos encontros, que a vida começa e deixa para nós a tarefa de invenção da trajetória e da significação destes momentos. O autor nos apresenta, em seu relato, as várias vidas disparadas por encontros em sua trajetória. As várias vidas inventadas que o fizeram e que o significaram. Conhecemos sua vida de militante, moleque de periferia, matador de frango, trabalhador de Xerox, estudante de supletivo, gestor, diretor de escola de samba, ativista cultural, pensador e realizador de circo. Tudo relatado com uma sinceridade estruturante que ajuda a dar novos contornos, principalmente, à ideia de sujeito militante. No senso comum das representações, esta figura é desprovida de subjetividade, reta, caricata, sem atravessamentos. de forma oposta, o militante de Junior Perim tem sensibilidade rara, atento aos sons,

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cores e objetos presentes em seu cotidiano, “penseiro” vigoroso de suas contradições e condição, rindo de si e com pulsão de vida infinita rumo a superação. Só isto já confere um lugar importante ao livro como um precioso flagrante do sentimento de crença política e estética de uma geração de jovens de origem popular da metrópole do Rio de Janeiro. Entretanto, o livro vai além, nos brindando com a consolidação da ideia da própria coleção, onde os bravos curadores apontaram a necessidade de um lugar de fala na literatura aos atores sociais do que é chamado hoje de movimento cultural das periferias. Mostra, como disse Roland Barthes, que “a palavra é de uma leve substância química que opera as mais violentas alterações”. Acompanhar a feitura desta nova vida inventada do Perim, agora escritor, e tantos outros colegas nesta coleção, contando suas histórias, inclusive comigo, é perceber a potência das palavras de um panfleto, observado pelo autor neste livro. É ver a alteração que esta coleção faz, inclusive na ideia de panfleto. Nosso panfleto deixa tinta no corpo, se mistura com a digital. que o leitor viva a mesma sensação encorajadora vivida por Perim ao receber o Panfleto.

Marcus Vinícius Faustini

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01 Os fazimentos que me fizeram


JUNIOR PERIM NO cIRcO cREScER E vIvER dURANTE ENcONTRO dE FORMAçãO dE EdUcAdORES dE cIRcO SOcIAL. cRédITO: IERê FERREIRA


PANFLETO

Brincando de militante Com a separação dos meus pais, no início da década de 1980, fomos morar de favor na casa de um tio por parte de mãe. Tio Celso, que nos abrigou, era a cara do Benito di Paula, tinha a voz do Belchior e tocava violão como o João Gilberto. Não era músico profissional, trabalhava como gerente do Lava Rápido Americano, um posto de gasolina ao lado do Horto, onde funcionava o zoológico de Niterói. Foi Celso quem me apresentou o universo da música popular brasileira nos saraus diários que organizava todas as noites após o jantar com toda a família, então formada por sua mulher, dois filhos, uma outra irmã sua e seus quatro filhos, além de nós — minha mãe, eu e minha irmã, falecida em 2005. Nos saraus diários, Celso, com o seu velho violão Giannini, nos estimulava a cantar um vasto repertório musical que ia de Roberto Carlos a Gonzaguinha. Como o repertório de músicas se repetia todas as noites, eu sempre esperava a hora em que ele tocaria “Nos bailes da vida”, de Milton Nascimento, e “Saia do meu caminho”, de Belchior — eram as que eu mais gostava. Não nos faltava o que comer, e todos os domingos rolava a boa e velha carne assada com macarrão no cardápio. Mas as acomodações eram precárias, afinal eram doze pessoas vivendo em uma pequena casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Parte de nós se revezava nos cômodos, e eu vivia torcendo para não chegar o meu dia de dormir em 18


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

uma cama improvisada com colchonetes e lençóis no corredor de piso vermelhão que ligava a sala à cozinha, especialmente em noites frias. Não foram poucas as vezes que vi o meu tio Celso caminhando cuidadosamente entre nós para ir ao banheiro, observando nós todos com um olhar de compaixão. O cara era afeto puro, cuidava da gente com um carinho singular que jamais tive de qualquer outro tio ou outra tia. Mas ele não poderia fazer mais do que já estava fazendo: a grana que ele ganhava como gerente de um posto de gasolina certamente era pouca para dar conta daquela “república familiar”, o obrigando a fazer horas extras todos os domingos, trabalhando pelo menos das seis da manhã às seis da noite, ou seja, o cara não folgava nunca. Hoje vejo que Celso era um cara que acreditava no ditado popular “Quem canta os seus males espanta”. Por certo ele gostava de tocar violão e de cantar. Mas aqueles saraus diários, pra mim, eram um método intuitivo desenvolvido por ele para tornar a nossa vida mais feliz frente às condições precárias. Os saraus do meu tio Celso influenciaram minha forma de lidar com as adversidades. Como eu não sei cantar, quando me vejo em uma dificuldade qualquer, meu método consiste em ouvir música até passar a ansiedade. Uma outra coisa que marcou bastante o tio Celso em minha memória foram os diálogos que ele mantinha com os apresentadores de telejornais. Ele discutia cada notícia com eles, expressando os seus pontos de vista, como se os âncoras fossem interlocutores que estavam ali na sala lhe dando uma notícia em particular. Seus comentários mais enfáticos diziam respeito às notícias sobre eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro. Ele emitia suas opiniões para os jornalistas da Tv como se fosse um comentarista. Os discursos que ele fazia eram superarticulados, e, invariavelmente, surgiam gritos com palavras de ordem que eu só entenderia mais tarde.

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PANFLETO

Estes debates que o meu tio travava com a Tv acabou por chamar a minha atenção de tal forma que passei a observar as campanhas eleitorais nas ruas e desenvolvi uma espécie de obsessão: andava olhando pro chão para catar panfletos dos candidatos ao governo do estado do Rio de Janeiro e depois brincava de cabo eleitoral, distribuindo-os para as pessoas nas ruas. Seu discursos eram eloquentes. Ele falava gesticulando e com uma entonação que o fazia parecer estar em um comício. Não sei por que em um destes dias de debate entre ele e a Tv soltei a seguinte frase: “Tio, vota no Lysâneas.” Eu havia desenvolvido uma espécie de simpatia pela candidatura do Lysâneas Maciel; pode ter sido tanto pelo jingle do candidato, do qual não me lembro mais, como por um dos panfletos que eu recolhia pelas ruas, mas que nem me dava conta de ler. Para quê fui falar isso?! Tio Celso disparou uma bateria retórica pra cima de mim, com um montão de argumentos pró-Brizola, e só parou de falar quando a sua mulher gritou da cozinha: “você não vai ficar maluco, você já está! discutindo política com um menino que mal aprendeu a amarrar os sapatos sozinho!” de fato eu não entendi nada do que o meu tio debateu comigo naquela noite. Mas, coincidência ou não, o PdT, partido do seu candidato do governo do estado do Rio de Janeiro, influenciaria a minha vida nos campos intelectual, social, humano, ideológico e até afetivo. E quem suportou chegar ao fim deste capítulo vai entender isso durante os demais...

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cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

No ritmo dos atabaques Sônia, prima da minha mãe, era professora da rede pública de ensino. Mãe de quatro filhos, dois deles gêmeos e dois maiores que regulavam minha idade, era casada com o proprietário de uma pequena rede de três abatedouros de frangos: o maior e mais lucrativo deles ficava no bairro do Barreto, em Niterói; outro, no bairro Teixeira de Freitas, na mesma cidade; e o terceiro, bem pequeno, na rua onde eles moravam, no bairro do Coelho, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. A vida de comerciante do seu marido conferia a sua família a condição de classe média alta. Ela residia em uma casa própria e bem decorada, com três quartos, cozinha, copa, sala de jantar, sala de estar, dois banheiros, área de serviço; todos os cômodos eram grandes. A propriedade tinha ainda um amplo e imponente quintal gramado, com uma piscina dessas de fibra que se compram prontas. Nos fundos havia uma meia-água adaptada que abrigava um centro de umbanda do qual Sônia era mãe de santo. Com o intuito de ajudar a minha mãe, separada e com um casal de filhos para criar, Sônia a contratou como faxineira nos fins de semana. Mesmo sabendo que minha mãe sofria com tanto trabalho para fazer naquela casa grande, eu gostava de acompanhá-la. Era a minha chance de jogar videogame, tomar banho de piscina e dormir em um quarto com ar-condicionado que eu achava o máximo. 21


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Estes fins de semana não eram tão lúdicos e divertidos quanto eu gostaria que fossem. Minha mãe me colocava para ajudá-la em algumas tarefas, o que me privava de só brincar. Não poder dedicar todo o fim de semana a usufruir de tudo o que aquela casa oferecia, especialmente os banhos de piscina que eu tomava até quando estava frio, me decepcionava. Mas eu já tinha algum nível de compreensão e sabia que, além de mim, minha mãe não tinha com quem contar para ajudá-la com tanto trabalho. Entre as minhas tarefas estava a limpeza de parte do centro de umbanda instalado na meia-água aos fundos da propriedade. Retirava guimbas de cigarros e charutos deixados pelos guias e limpava imagens do gongá. O alerta da minha mãe para eu limpar com cuidado, sem deixar cair e quebrar nenhuma das imagens, não era o que me deixava apreensivo. Na verdade eu tinha a maior cautela porque sempre achei que se um dia eu, por algum descuido, deixasse quebrar uma daquelas imagens, o guia — santo — me castigaria implacavelmente. O envolvimento da minha mãe com esta atividade acabou levando-a a frequentar as giras do centro aos domingos, de 15 em 15 dias. Não demorou para ela ser iniciada como cambone e, em seguida, no processo de desenvolvimento da sua mediunidade. Eu assistia às giras, me relacionando com aquele universo e tentando entendê-lo. No ritual o que mais me encantava era a sonoridade dos atabaques. Além disso, eu prestava atenção à importância que tanto os médiuns como os guias conferiam aos ogãs. A fascinação pelos atabaques e pela liderança dos ogãs me despertou o desejo de ser um deles. isso fez com que a insatisfação de ter de deixar de brincar com os filhos da prima da minha mãe para ajudá-la na tarefa de limpar o centro se convertesse em uma excelente oportunidade para arriscar umas batidas nos atabaques. Embora eu alimentasse o sonho de me tornar um ogã, eu não sabia como 22


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

realizá-lo. Pensei algumas vezes em pedir à Sônia para me deixar tocar em uma das giras. Logo desisti. Como assim um moleque iria assumir um posto tão importante naquela estrutura?”, pensei comigo mesmo. Como muitas coisas na minha vida foram obra do acaso, em uma das giras os dois ogãs que frequentavam regularmente o centro faltaram. Um dos médiuns assumiu a tarefa, e a mãe de santo (Sônia), que em algum momento deve ter prestado atenção nos toques que eu arriscava enquanto ajudava a minha mãe na limpeza do centro, me convidou para substituir o segundo ogã. O medo que me tomou foi tão avassalador que ela deve ter percebido isso em meu olhar, e, antes que eu pudesse dizer não, ela sentenciou de maneira fulminante: “vai lá e toca. você está pronto.” Eu jamais achei que estivesse, mas aquela afirmação da mãe de santo me encheu de confiança. Fui!!!! Eu me sentei diante do atabaque e logo fui tomado por uma energia que só um ogã sente. É um tambor que acumula uma força mítica que invade quem está predestinado a se relacionar com ele. É uma familiarização instantânea. O atabaque tem uma partitura própria que conduz o ogã aos toques com perfeição. Jamais ouvi críticas à “qualidade musical” de um ogã. Todos aos que assisto tocando o fazem bem, porque não o fazem sozinho; o atabaque participa do “concerto”. Mesmo sentindo toda esta energia do atabaque que ampliou a minha segurança, fiz questão de bater forte durante todo o ritual daquele domingo. Tão forte que minhas mãos sangraram. isso porque a minha relação com aquela função não tinha qualquer carga de compreensão espiritual. Eu só queria me sentir importante e ser respeitado por aquela comunidade espiritual, isso era o que fazia sentido pra mim naquele momento. Por isso, a “assistência” — como é classificado o grupo de pessoas que frequentam o ritual da umbanda — virou plateia pra mim naquele dia. Enquanto eu 23


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batia e cantava, o que mais me preocupava era saber se as pessoas estavam gostando; passei todo o tempo tentando perceber e interpretar as suas expressões, com a intenção de saber se aprovavam ou reprovavam a minha atuação. Mandei bem e ganhei o posto de ogã. Eu era um moleque de pouco mais de 10 anos. Mesmo vivendo as restrições e os contingenciamentos que me foram impostos pela “loteria biológica” de ter nascido em uma família pobre, ocupar o posto de ogã foi o meio pelo qual superei facilmente as frustrações de não poder ter as coisas que um menino na minha idade naquela época gostaria de ter. É verdade que ser impedido de jogar Atari com os filhos da prima da minha mãe para ajudá-la na limpeza do centro de umbanda me deixava chateado, mas quando eu me lembrava do meu “show” quinzenal tocando atabaque eu me sentia importante. A umbanda foi o que provocou em mim o desejo de ser, sempre, alguém com missão e urgência nos contextos em que me envolvi durante a vida. O ritmo dos atabaques embalou meu senso de liderança.

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ATABAQUE - INSTRUMENTO QUE NO LUgAR dE MUSIcALIdAdE ME dEU AUTOESTIMA. cRédITO: chRIS cAMERON

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Eu queria um kichute Nos anos 1980, a educação pública não fornecia gratuitamente o uniforme composto de calça de tergal azul-marinho, camisa branca de botão com o brasão do estado do Rio de Janeiro estampado no bolso esquerdo, meias e calçados pretos para os meninos. As meninas se diferenciavam pela saia de pregas azul-marinho. Na entrada do Colégio Estadual Ministro José de Moura e Silva, um inspetor de turno se encarregava de checar se os alunos estavam devidamente fardados. Sem o uniforme completo e/ou a caderneta escolar, não havia jeito: o cara sisudo mandava voltar para casa. Esta era uma das maldades feitas na escola pública naquela época. Minha mãe conseguira comprar quase todo o meu uniforme, só ficou faltando o calçado. Com no máximo mais uma semana de faxina ela conseguiria arranjar a grana para comprá-lo. Então o jeito que ela encontrou para não comprometer a minha frequência nos primeiros dias de aula foi enfaixar um dos meus pés com uma atadura e me mandar à escola calçando sandálias havaianas, que, naquela época, não faziam o sucesso que fazem hoje. A orientação era mancar como se eu tivesse cortado o pé.

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Tive dificuldade para lembrar de realizar a performance de manco nas horas do recreio. quando tocava o sinal, eu disparava correndo em direção ao refeitório em busca dos primeiros lugares na fila da merenda, cujo cardápio, quando chegavam os provimentos, variava entre macarrão com salsicha ou carne moída, arroz e um ensopado de filé de peixe e batata. quando não chegavam, era biscoito de maisena com uma caneca de leite em pó.


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

Com alguns dias de uso, já não lembro quantos, a atadura ficou surrada e encardida, embora fosse lavada todos os dias e posta para secar atrás da geladeira. Não sei se pelo estado de desintegração da atadura ou pelo meu péssimo desempenho performático de manco, a diretora da escola me abordou na saída do refeitório e me conduziu ao seu gabinete. Assim que adentramos a sua sala, ela abriu um armário de aço onde guardava resmas de papel, papel carbono, um mimeógrafo e uma caixa de primeiros socorros. “Menino, o que você tem neste pé?” Respondi apavorado com a possibilidade de a mentira que eu tinha contado, que eu havia cortado a sola do pé enquanto brincava descalço em um terreno baldio, ser descoberta. “Esta atadura está muita suja. vamos refazer este curativo e colocar uma atadura nova para não infeccionar e sarar mais rápido.” quando me dei conta de que eu seria desmascarado, comecei a chorar copiosamente. A diretora que por certo já sabia a razão daquela atadura no meu pé, disse que não trocaria o curativo e me mandou voltar à sala de aula porque o recreio já estava prestes a acabar. Naquele mesmo dia, quando tocou o sinal de saída e eu iniciei a performance de sair da sala mancando vagarosamente, lá estava a diretora me esperando na porta com uma sacola nas mãos. discretamente, ela falou aos meus ouvidos: “Tome isto. Acho que até amanhã o seu machucado já estará sarado. Se não couber em você, diga a sua mãe para ela vir aqui que eu digo como trocá-lo.” Ao chegar em casa, retirei da sacola a caixa embrulhada em um papel de presente florido. dentro, um par de conga que coube certinho em mim e mais dois pares de meia. Abrir aquele presente provocou em mim duas sensações: uma de alívio por não ter de ir mais um dia à escola fazendo o papel de manco; e a outra de leve decepção por ser um conga. Eu queria um kichute. 27


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Fábrica de uma bicicleta só Catar caranguejo para vender em feiras, garrafas de suco Maguary e latas de óleo Zillo para vender em ferro velho era a única maneira de eu conseguir dinheiro para comprar a minha bicicross. Eu sabia que com a grana que esta atividade me rendia daria para comprar peça por peça dela, conseguindo montá-la por conta própria. A parte mais cara — o quadro — ficava sempre distante da grana auferida com as atividades de catação de crustáceos, latas e garrafas. Percebi que levaria anos para montar a minha bicicross. daí surgiu a ideia de investir o pouco dinheiro que conseguira juntar semanalmente em algum tipo de empreendimento próprio. Comprei duas dezenas de folhas finas de diferentes cores e uma vara grande de bambu. Com isso e mais um punhado de arroz para servir de cola, eu teria a minha própria fábrica de cafifas. Há uma grande diferença entre soltar e fabricar cafifas. Eu não tinha a manha de cortar o bambu em lascas, transformando-as em pequenas varas com espessura e tamanho ideais para utilização na atividade artesanal que é a fabricação de cafifas e pipas. A indústria de cafifas não decolou. As que consegui fabricar sem desperdiçar as folhas de papel fino nem eu mesmo consegui empinar. Mudei de ramo e investi em transporte de carga. Fabriquei meu rolimã, que não era destes carrinhos de madeira para apostar corridas. Com o design de uma caçamba, foi pensado para que eu pudesse oferecer serviços de frete em portas de supermercados e feiras de rua. Não consegui chegar a uma estrutura adequada porque utilizei rodas com bilha muito pequenas, e a madeira que usei, na 28


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

verdade resultante de restos de caixotes de alhos e tomate, era frágil. Então me dei conta de que aquele “veículo de carga” não suportaria mais do que duas bolsas de batatas. Abortei a ideia da “transportadora”. A segunda falência não me fez esmorecer. Estava chegando a época de São João, das quadrilhas e das festas juninas nas ruas. Era a minha chance de criar algo relacionado ao comércio varejista de fogos de artifício. Na época, eles eram encontrados nas esquinas em pequenas “casinhas”, bem parecidas com estas que a gente aprende a desenhar quando criança, dando forma aos primeiro rabiscos. Eram casinhas fáceis de se construir. Com dois caixotes de alho e um punhado de pregos 1,8x28, qualquer criança poderia construir a sua própria loja de estalinho, bombinha, cabeça de nego, busca pé e rojão. Em São Gonçalo, na minha infância, em cada esquina tinha uma casinha como esta no período entre junho e agosto. A oferta de fogos de artifício era grande, então a procura valorizava aquelas casinhas que tinham diferentes tipos de fogos de artifício. A reputação do meu comércio no ramo não era das melhores, a grana que eu conseguira com as garrafas de suco Maguary não era suficiente para adquirir um bom estoque de fogos, mas a minha casinha ganhou notoriedade entre os meus concorrentes. Além de compartimentos bem organizados, eu havia forrado cada tábua com chitão, e isso a diferenciava de centenas de outras casinhas de bomba. Embora meu “comércio” pirotécnico não fizesse o menor sucesso, me levando a usar em peraltices pessoais todo o meu arsenal explosivo, a minha casinha ficou conhecida, e eu acabei vendendo-a para outro “comerciante”; logo recebi encomenda para fabricar mais umas quatro. quando me animei com a possibilidade de o meu “negócio” na área de arquitetura crescer, a casa caiu com o término do período das festas de São João. depois da minha quarta falência, não consegui pensar em nenhuma outra possibilidade para criar a minha fábrica de uma bicicleta só. O sonho da bicicross acabou. 29



hOJE, NO cIRcO, O MONOcIcLO ME LEMBRA O SONhO dA BICICROSS. cRédITO: ARQUIvO cREScER E vIvER


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O matador de frangos No começo achei genial a ideia de ganhar uma grana semanalmente. Estava ali a chance de realizar alguns pequenos desejos de consumo, agora limitados a um par de All Star — que naquela época só existia nas cores azul-marinho e branco — e quem sabe um relógio Champion — aquele com pulseiras de várias cores, trocáveis. Ledo engano, a grana que eu ganhava por semana era toda entregue nas mãos da minha mãe, que a aplicava em nossas despesas familiares. O trabalho? Com o argumento de me ensinar uma profissão, o marido da prima da minha mãe, que é mãe de santo, me levou para trabalhar em um dos seus abatedouros. Não havia nada nas atividades que me foram delegadas que pudesse conferir a mim a condição de “aprendiz”, como estabelece atualmente o Eca (Estatuto da Criança e do Adolescente). Primeiro porque eu só tinha 11 anos e segundo pela quantidade de horas semanais, que passava longe das 40. Além disso, era uma atividade bastante insalubre para uma criança exercer. Aprendi tudo o que deveria fazer no primeiro dia de labor: chegar às sete da manhã, varrer e passar pano molhado com Pinho Sol em todo o chão da loja, e ainda, antes de ela ser aberta aos clientes, deveria me encarregar de encher os cochos das grandes gaiolas que acomodavam os frangos ca Anhanguera e outros 2/3 de areia peneirada, do tipo que 32


IMAgEM QUE LEMBRA UM TRABALhO dURO NA INFâNcIA. cRédITO: JORgE ANdRAdE


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se usa em construção civil. Esta era uma estratégia para manter o papo dos frangos cheios e pesados, aumentando o seu preço ao consumidor, afinal os frangos tinham o seu peso auferido antes do abate. Eu realizava aquela atividade sem me dar conta da esperteza que estava por trás dela. Aberto o abatedouro, eu me posicionava na área em que ficavam as grandes gaiolas abarrotadas de frangos: o primeiro lugar por onde entrava o cliente interessado em comprar o animal abatido na hora. Ali eu era responsável por auxiliar o cliente na escolha do frango com o peso e o tamanho ideal. desenvolvi uma certa habilidade nesta tarefa, e não eram poucos os clientes que elogiavam a minha destreza de buscar o frango com o peso bastante aproximado daquele que me era solicitado. Não raro ouvia: “você tem uma mão boa, hein, menino?!” depois da pesagem, eu colocava uma espécie de pequena algema com um número em um dos pés do frango e o anotava em um tíquete em que eu também incluía o peso e o valor final, para o cliente se dirigir ao caixa, pagar e aguardar o término do abate e a limpeza do seu frango. As algemas se diferenciavam umas das outras com um símbolo abaixo do número; assim, o magarefe saberia se o cliente queria o seu frango aos pedaços ou ao molho pardo. Nos fins de semana, o abatedouro tinha um movimento enorme. Não lembro bem a quantidade de frangos que eram vendidos. Mas em uma época em que ainda não havia sido desenvolvida a tecnologia do frango congelado, pode-se imaginar que se tratava de um excelente negócio, pois, além do frango inteiro abatido na hora, muitos eram abatidos para serem vendidos aos pedaços: peito, coxa e sobrecoxa, pescoço, asa, pé e miúdos.

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quando a coisa apertava na “cozinha”, nome dado ao departamento onde eram abatidas as aves, o dono do abatedouro tirava alguém do balcão, colocava na minha função e me mandava para a cozinha a fim de ajudar o magarefe. Ele me orientava a pegar os frangos já mortos com o golpe de um fino punhal no pescoço, colocá-los em duas grandes panelas com água fervendo por alguns segundos para amolecer as penas e, em seguida, depená-los, preparando-os para que o magarefe pudesse, com duas incisões certeiras, cortá-los para a retirada das tripas, a separação dos miúdos e para o corte, se assim o cliente quisesse. Era duro o trabalho de “estagiário” de magarefe, pois, além das atividades secundárias de limpeza do frango, eu ainda tinha que limpar toda a cozinha a cada 30 minutos. O chão se enchia de penas molhadas e tripas, virava uma “pista de patinação”, e com uma pequena distração a gente ia de bunda no chão. Mas eu adorava aqueles momentos em que era chamado a socorrer o magarefe assoberbado de trabalho. Era a chance que eu tinha de aprender as manhas da profissão. Além disso, o Nelson — o magarefe — era um sujeito muito bacana. O cara estava sempre sorridente. Um negão atarracado, baixinho, com as pernas arcadas, que trabalhava cantando samba o tempo inteiro. Lembro que quando eu errava na conta do peso de um frango os esporros eram severos. invariavelmente os meus olhos se enchiam de lágrimas, e em cada pequena pausa no trabalho era Nelson que me confortava dizendo que eu não deveria chorar, que eu deveria resistir porque eu precisava do emprego. Além da grana semanal que era entregue a minha mãe, os restos de pedaços de frango, no geral pescoço, pés e carcaças que sobravam dos filés de peito de frango, contribuíram bastante para as canjas que a minha mãe preparava.

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Percebi no afeto do meu amigo magarefe que eu poderia pedir a ele que me ensinasse a matar frangos, e aos poucos, a cada ida para a cozinha em dias de pico de vendas, ele me inseria no universo do abate de aves. desenvolvi a habilidade com uma destreza tal que, quando o magarefe em um desentendimento com o patrão pediu as contas, eu fui escalado para o posto e me tornei o magarefe do abatedouro, exercendo a profissão dos 11 aos 14 anos. A promoção aumentou meu ganho, mas jamais consegui comprar o All Star e o relógio Champion. A grana continuava sendo toda entregue pelo dono do abatedouro diretamente nas mãos da minha mãe, que com certeza fez um melhor uso dela frente as nossas necessidades.

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cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

"Lula-lá": eu queria vestir a camisa depois de um bom tempo, meu pai reapareceu por volta de 1987 e me conseguiu a indicação para um emprego de office boy em uma agência de publicidade. O proprietário, um argentino radicado no Brasil, quando não estava ao telefone falando sem parar, percorria as salas fiscalizando os trabalhos de criação de anúncios enquanto bebia iogurte natural com mel. O cara era um personagem, cuspia o tempo inteiro, sem a menor cerimônia, nas lixeiras das salas, fumava como uma chaminé acendendo um Hollywood no outro e soltava gases estrondosos sem se preocupar com as pessoas que estavam ao seu lado. durante um tempo eu pensei que soltar gases em alto e bom som era algo cultural entre os argentinos. Eu sabia que eu não duraria muito naquele emprego. Não via ali a menor possibilidade de fazer outra coisa além de percorrer as sedes dos principais jornais do Rio de Janeiro entregando anúncios produzidos na agência. quando não estava fazendo isso, minha tarefa era realizar serviços bancários ou comprar iogurtes e caixas de Luftal para o argentino. Tempos depois vim a saber para que serve o Luftal e entendi que não é que o meu patrão peidasse sem cerimônia na frente das pessoas; na verdade, o cara tinha um sério problema de flatulência. 37


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Uma outra coisa que me chamava atenção naquele argentino espalhafatoso eram os seus discursos sobre política. Com seu “portunhol” veloz, emitia suas opiniões, diariamente, sobre os debates que já rolavam no Brasil em torno da eleição presidencial que ocorreria no ano seguinte. Não sei por que eu vivia comparando-o com o Odorico Paraguaçu — o personagem criado por dias Gomes vivido pelo ator Paulo Gracindo na televisão. Talvez fosse pelas suas calças e por seus paletós brancos, com camisas claras, tudo de linho. Na agência, o único cara que tinha coragem de contradizer os discursos do argentino era o diretor de arte — um jovem que aparentava uns 30 anos, andava super bem-vestido, sempre de calça e camisa social listrada, com uns óculos de intelectual que o faziam encarnar a figura do jovem nerd e de classe média alta. Tinha sempre um argumento estruturado para defender o voto no candidato Luiz inácio Lula da Silva. quando isso acontecia, o debate se tornava tenso, e o argentino gritava cada vez mais alto as razões pelas quais ele achava que o melhor candidato era Leonel Brizola. Às vezes, o embate entre eles se tornava tão tenso que eu pensava que o diretor de arte seria demitido. do meu lugar de contínuo na agência e sem quaisquer conhecimentos sobre os fatos históricos e as razões que embalavam os debates entre os dois, confesso que internamente eu estava sempre a favor do diretor de arte só porque eu era doido por uma camiseta daquelas com a inscrição “Lula-lá” usada por muitos jovens na Zona Sul do Rio de Janeiro. A agência ficava em ipanema, bairro de classe alta do Rio. Eu adorava caminhar pelas ruas do bairro, era a chance de esbarrar com artistas famosos, pessoas que no geral eu só via pela televisão. isso me rendia papos com os amigos do supletivo e os vizinhos quase todas as noites. Além dos artistas, gostava de observar o que os jovens que andavam pelo bairro faziam. Não era difícil encontrá-los vestindo 38


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“Lula-lá”; isso pra mim era cool, eu queria parecer com um deles e o mais perto que eu podia chegar disso era vestir a camisa “Lula-lá”. Por isso, eu cagava e andava para os discursos pró-Brizola do argentino. Eu chegava a pensar que vestir a camisa “Lula-lá” seria a minha chance de pegar uma daquelas gatinhas que andavam pra lá e prá cá na visconde de Pirajá. Como eu havia profetizado a mim mesmo, não demorou para eu me entediar com o trabalho na agência de publicidade, e comecei a correr atrás de outra empresa para trabalhar como office boy. Pintou uma oportunidade em uma empresa de navegação no centro do Rio de Janeiro. Eles pagavam praticamente a mesma coisa, mas pelo menos ofereciam alguns benefícios, como tíquete refeição, e, ainda, assinavam a carteira de trabalho — na minha época de adolescente, filho de pobre ter uma carteira assinada era motivo de orgulho; a minha mãe, por exemplo, não cansava de falar para os parentes e os vizinhos: “Juninho está indo muito bem, tá trabalhando em uma empresa de navegação com carteira assinada e fazendo supletivo. quando terminar os estudos, pode até ser promovido.” Passei a trabalhar nesta empresa de navegação em dezembro de 1988. dei a maior sorte: na semana posterior a minha entrada, foi realizada a festa de Natal dos funcionários, onde cada um ganhava uma senha para concorrer a um prêmio. Ganhei um walkman que tinha rádio AM/FM e um display para fitas cassete — melhor prêmio para um office boy, impossível. Na época deste emprego, conheci, andando, todo o centro do Rio de Janeiro. Como era final de ano, eu chegava todos os dias às 7h30, tomava um cafezinho e pegava dois malotes (destes grandes, tipo dos correios, com rodinhas). dentro havia centenas de agendas de bolso, cada uma delas com um protocolo de recebimento que eu entregava em bancos, empresas, para clientes e fornecedores, sindicatos de 39


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trabalhadores da área de navegação; enfim, toda sorte de pessoas e instituições que mantinham relações ou negócios com a companhia deveria receber aquele souvenir de final de ano, e a responsabilidade da entrega recaiu sobre mim. Afinal eu era, entre outros cinco office boys, o mais novo da equipe, restando-me o trabalho mais pesado enquanto os demais se ocupavam de serviços internos, levando documentos de um lado pra outro do prédio da empresa. Eu achava bem melhor andar pelo centro do Rio do que pelas ruas de ipanema. Sempre achei o centro mais vivo, mais orgânico e mais democrático. Sentia a sensação de pertencer àquela multidão, e isso me fazia sentir uma segurança que eu não tinha nas ruas da Zona Sul. Hoje, escrevendo sobre isso, fico “encasquetado” pensando se o incômodo que eu sentia com os olhares das pessoas da Zona Sul era um complexo meu de pobre ou se realmente havia nelas uma carga de preconceito. Ao melhor estilo office boy de uma empresa de navegação, eu navegava, inevitavelmente, todos os dias pela Cinelândia. Eu respirava a “brisa” da praça e sentia toda a sua energia invadir os meus pulmões, que pareciam separar e reter, além de oxigênio, uma espécie de vírus de paixão por aquele lugar. Na verdade, até hoje estou infectado por este vírus. Não é raro eu ir pelo menos uma vez por semana até o restaurante verdinho, ao lado do Cine Odeon, para beber chopp escuro e comer galeto assado. Sou tão viciado em fazer isso que chego a marcar alguns compromissos e reuniões com amigos lá, em geral com Heliana Marinho, Marcos Faustini e Ecio Salles, os que com mais frequência encontro por ali e que entendem quando eu ligo e digo: “vambora nos encontrar no escritório hoje.” voltando à Cinelândia do final dos anos 1980, eu me amarrava em tentar entender os fluxos das pessoas entre os prédios de arquitetura eclética, neoclássica, art nouveau e art déco, com todas aquelas barraquinhas que eram armadas 40


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em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, cada uma divulgando e difundindo os programas e as candidaturas dos chamados partidos políticos de esquerda e progressistas. E lá estavam, de novo, na barraquinha do PT, os jovens com as camisetas “Lula-lá”, que eu queria vestir desde o meu emprego na agência de publicidade como forma de me parecer com os jovens da Zona Sul do Rio. Aliás, os jovens da barraquinha me pareciam os mesmos com os quais eu esbarrava nas ruas de ipanema. Eu contava os dias para receber o meu pagamento e ao final do expediente correr para uma barraca onde trabalhavam umas mulheres lindas, negras e vestidas de baiana que vendiam vatapá, acarajé e outras iguarias da culinária baiana — entre elas, um espeto saboroso com três bolas de queijo recheadas com camarão. Eu era viciado nisso, comprava dois e um copo de limonada, para depois me sentar nas escadarias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e ficar observando o fluxo das pessoas e a intensa efervescência e militância do PT, do PdT, do PCB, do PCdoB e de alguns outros partidos, além de organizações sindicais e movimentos sociais que se instalavam por ali todos os dias. Os militantes mais ousados, que faziam discursos em megafones, se movimentavam o tempo inteiro e distribuíam por toda a Cinelândia manifestos impressos; eles eram da Brizolândia e se reuniam em torno de uma barraca de madeira pintada de vermelho, que parecia ser a única fixa, instalada numa esquina entre a Câmara Municipal e o restaurante Amarelinho. Eram militantes mais velhos, e vez ou outra eles provocavam os militantes do PT — a maioria jovens que vestiam a camiseta “Lula-lá”, que eu cobiçava fazia tempo. Elas eram vendidas naquela barraquinha da Cinelândia para arrecadar fundos para a campanha do Lula à presidência da república.

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Levou tempo até eu tomar coragem para me aproximar da barraca e perguntar quanto custava a camiseta. Na verdade, era um misto de complexo de pobre frente àquela galera jovem, cool e aparentemente de classe média da barraca do PT com a insegurança de acabar revelando a minha real intenção de vestir “Lula-lá”, que no fundo era ficar parecido com eles, aderir à moda. O dia em que, mesmo tomado pelo súbito medo de não ser aceito por aqueles jovens, resolvi enfrentar o meu complexo e perguntar quanto custava a camiseta do Lula, um militante agradeceu o meu interesse de colaborar com a campanha, mas disse que a camiseta estava em falta. No entanto, se eu quisesse, havia bótons do partido — aquela estrelinha vermelha com a sigla PT em branco no meio. Eu disse “não, obrigado” e meti o pé da barraca. Apesar de ficar por ali dando bandeira, nunca um militante daqueles partidos políticos e movimentos sociais me abordou para um papo ou para me entregar um dos seus panfletos e manifestos. Nem mesmo aquele que me atendera na barraca do PT quando tentei comprar a camiseta. Eu queria ser abordado; observar tudo aquilo que acontecia na Cinelândia no final da década de 1980 era um indício de que eu estava tomando gosto por política, muito embora minha relação com tudo aquilo tenha começado com o desejo de ter uma camiseta “Lula-Lá” no meu guarda-roupa.

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Meu primeiro panfleto

Era uma tarde de sexta-feira do mês de janeiro de 1989. Os debates sobre as eleições presidenciais iam ficando cada vez mais quentes, e a movimentação de militantes e cabos eleitorais na Cinelândia, cada vez mais intensa. Neste dia, naveguei apressado pela praça mais charmosa do Rio ao sair do trabalho. Eu não estava com tempo de parar e observar a movimentação, como eu fazia todos os dias. Além de só estar com a grana da passagem, sem condições de comprar os espetinhos de queijo com camarão e a limonada das baianas, eu tinha um compromisso — uma prova de matemática no supletivo. Então, passei apressado, seguindo o fluxo de outras gentes que, como eu, cortavam a avenida Rio Branco rumando para a praça Xv em direção ao terminal das barcas que fazem a travessia Rio-Niterói sobre a Baía de Guanabara.

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Um tédio me tomou durante a travessia da “poça” quando lembrei que ainda tinha que pegar um ônibus no antigo terminal rodoviário do centro de Niterói, faltando pelo menos mais uma hora de viagem até São Gonçalo — este era o tempo médio na hora do rush. No percurso entre o trabalho e o terminal das barcas, eu tinha decidido me dedicar, durante os 25 minutos de travessia da Baía de Guanabara, a estudar a apostila de matemática, como a minha última oportunidade de acumular algum conhecimento para não fazer tão feio na prova, afinal eu vinha faltando um montão de aulas da matéria. Seguindo o plano inicial de estudo, me sentei em uma daquelas cadeiras de madeira nada confortáveis da barca naquela época, abri a mochila para pegar a apostila e percebi a cara de nojo das pessoas que estavam ao meu redor. Também, não era por menos: tinha subido um cheiro insuportável de azedo, e me dei conta de que se tratava da marmita de que eu sequer tinha chegado perto no almoço. Naquele dia, um serviço bancário particular que fiz para um funcionário da empresa tinha me rendido um trocado, que deu na conta para um Big Bob e um refrigerante. Mesmo duro, eu usei o dinheiro nisso. Eu odiava comer em marmita, mas eu era obrigado a levá-la porque entregava todos os tíquetes de refeição nas mãos da minha mãe para ajudar nas compras do mês. Fiquei tão sem graça com o cheiro de azedo da marmita que fechei a mochila antes mesmo de retirar a bendita apostila. Pensei: “vai que o cheiro entranhou nas páginas?” O que me confortou de não conseguir seguir o plano foram duas certezas: a de que eu não entenderia nada mesmo, afinal tinha faltado a um bocado de aulas de matemática; e a, esta intuitiva, de que resolver equações matemáticas não faria parte do meu futuro e nem seria capaz de alterá-lo. Minha cabeça então se voltou para o meu maior problema naquele momento: era final de mês, início do fim de semana, e eu 44


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não teria grana para ir à matinê da boate One Way, no Clube Tamoio, em São Gonçalo. isso me fez desejar que a travessia da Baía de Guanabara virasse o Oceano Atlântico e durasse uma eternidade, mas em menos de 25 minutos estava eu desembarcando na Praça Arariboia, no centro de Niterói. Em meio à balbúrdia, ao cheiro de mijo e ao inconfundível som de uma corneta estridente, através do qual se ouvia o discurso de um ambulante vendendo a milagrosa “Pomada Peixe Boi — Peixe Elétrico”, que aos berros dizia curar de enxaquecas a hemorroidas, visualizei a figura de um negro alto, gordo e com uma espessa barba branca. Ele vestia uma camiseta com uma imagem verde, azul e amarela em degradê. Na parte superior da camiseta lia-se “Movimento Nacional Leonel Brizola”, e logo abaixo desta descrição havia uma imagem estampada do Brizola. A camiseta nem de longe era bacana como aquela “Lula-lá” que eu queria vestir por modismo. Mas, não sei por que, fui atraído por aquela figura que destoava da multidão de transeuntes que se formava na Praça Arariboia depois da atracação de uma das embarcações que faziam a travessia Rio-Niterói. O negão parecia não estar tendo sucesso na distribuição de uma pilha de panfletos que guardava embaixo do braço. E me abordou com a mesma perspicácia dos vendedores de bugigangas do Pelourinho em Salvador: quando você pensa em dizer que não quer aquela pulseirinha do Senhor do Bonfim, ela já está amarrada em uma de suas munhecas como a forma de se iniciar o processo de venda de um artesanato. A primeira pergunta foi a minha idade e a segunda se eu tinha título de eleitor. Respondi que faria 16 naquele ano, e o cara disparou uma explicação sobre como eu poderia realizar o meu alistamento eleitoral. Logo em seguida desandou a falar sobre a importância do voto dos jovens e que eles deveriam valorizar esta oportunidade. definiu a sua geração como aquela que tomou porrada e foi torturada na ditadura 45


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para que a minha pudesse, agora, depois de anos, interferir nos destinos do Brasil, escolhendo por voto direto o presidente da república. A aula de civismo, democracia, história e política que eu recebi daquele militante abordou temas como as Reformas de Base, a Marcha dos Cem Mil, a Cadeia da Legalidade, o movimento das diretas Já etc. A certa altura, eu, que no começo estava achando o negão um chato, tentei retribuir a sua generosidade intelectual de dividir os seus conhecimentos comigo tentando dedicar o máximo de atenção ao que ele dizia. Era difícil me concentrar para absorver tanta informação com a corneta estridente do ambulante que vendia a sua poção mágica — a “Pomada Peixe Boi — Peixe Elétrico” — prometendo a cura de doenças de que nem as mais complexas pesquisas no campo da medicina deram conta até hoje; de toda forma, continuei ouvindo o negão. Ao final da aula sobre política, recebi de suas mãos um panfleto grande e com várias dobras. Então me despedi dele e com o panfleto nas mãos rumei para o terminal do 422 (Niterói — Portão do Rosa), da autoviação Mauá. de maneira inconsciente, quando parei para ouvir o negão falante, militante do Movimento Nacional Leonel Brizola — meu primeiro professor de política —, eu tinha desistido da prova de matemática. Além disso, não havia mais tempo para chegar na hora da prova. Então, resolvi enfrentar a enorme fila do 422M para ir sentado até o ponto que ficava na esquina da rua de casa. Confortavelmente sentado, e olha que no geral eu só viajava de pé naquela condução sempre abarrotada, comecei a ler o panfleto que descrevia em síntese toda a trajetória do Brizola. Sua história de menino pobre de Carazinho, jovem militante da Juventude do Partido Trabalhista Brasileiro, deputado estadual, prefeito de Porto Alegre e governador

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do Rio Grande do Sul, deputado federal, exilado político, fundador e presidente do Partido democrático Trabalhista, governador do Rio de Janeiro pela primeira vez em 1982 e agora (na época) candidato à presidência da República Federativa do Brasil. “Para quem nascera nas mesmas condições que ele, seria improvável construir uma carreira tão brilhante como essa”, pensei enquanto lia o panfleto. Fui tomando gosto pela leitura daquele panfleto e me deparei com descrições mais detalhadas de todos aqueles movimentos históricos sobre os quais o militante que me entregara o panfleto fez referência quando me abordou. Também me interessei pelas lutas e pelas propostas que o panfleto apresentava.Então me dei conta de que o Brizola interpretava o Brasil e suas complexidades de maneira profunda e que, de fato, se ele chegasse à presidência do Brasil, muita coisa poderia mudar na vida de pessoas que tinham trajetória e condições socioeconômicas iguais às minhas. Percebi que os temas abordados por aquele panfleto tinham muito a ver comigo. Mesmo sendo Brizola e Lula adversários eleitorais, me envergonhei de querer usar uma camiseta “Lula-Lá” apenas para entrar no que eu havia identificado como um modismo. Entendi que estávamos de fato vivendo um momento importante no Brasil. Li e reli vários trechos daquele panfleto. isso aflorou e ampliou um súbito desejo de me envolver naquele processo das eleições. Até me imaginei entre os militantes da Cinelândia, distribuindo manifestos, abordando e tentando convencer as pessoas, gritando palavras de ordem, enfim, dando a minha contribuição para envolver mais e mais pessoas naquele momento histórico que poderia definir o futuro do país.

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Não consegui uma porta de acesso às campanhas eleitorais para a presidência da república. Tirei meu título e, ancorado em influências que começaram com meu tio Celso falando de Brizola nas eleições de 1982, passando por um cartaz do Brizola com uma camisa azul que parecia o uniforme de um rodoviário que o meu pai mantinha colado na varanda da sua casa com a frase “Brizola, a força do povo” e pelos discursos empolgados de Alfredo, um concunhado do meu pai, meu primeiro voto para presidente do Brasil foi no Brizola. No segundo turno das eleições presidenciais de 1989, segui a orientação do Brizola e votei em Lula para presidente. Mal sabia eu que dali por diante Brizola influenciaria minha vida em muitas outras dimensões.

LEONEL BRIZOLA, MINhA EScOLA dE hUMANIdAdE.

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cRédITO: LEgALIdAdE 50! – ALExANdRE PEREIRA


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Minha breve atuação no movimento estudantil Eu já não aguentava mais o trampo de office boy na empresa de navegação, não pela pedreira que era andar de ponta a ponta a cidade do Rio — nunca corri de trabalho pesado —, mas porque aquela atividade já tinha me dado tudo o que podia: conhecer as ruas do Rio e me sentir parte daquela multidão já bastava. O desejo de ingressar na militância política era cada vez mais forte, mas eu não encontrava o meio. Tudo o que estava escrito naquele panfleto do Movimento Nacional Leonel Brizola aguçou minhas inquietações, mas não me explicou como fazer algo além de exercer o meu direito de votar. vira e mexe eu revisitava o texto do panfleto — o guardei como um livro de cabeceira. Eu gostava das propostas que estavam descritas nele, e me dava tristeza lembrar que o Brizola perdera as eleições de 1989.

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A ideia fixa de me tornar um militante foi o insight para perceber que aquele burburinho na noite de uma sexta-feira na escadaria de acesso ao supletivo se tratava de um movimento político. Um grupo de jovens que, pela forma de se vestirem, não tive dúvida, eram estudantes secundaristas, pronunciavam palavras de ordem e distribuíam panfletos para os alunos que subiam as escadarias apressadamente. A maioria dos jovens do turno noturno, como eu, era de estudantes do supletivo, ou seja, uma galera que dava duro durante o dia antes de sentar no banco escolar à noite, receber explicações sobre as apostilas e cumprir os créditos para pular de série a cada seis meses. Ninguém, exceto eu, estava a fim de ouvir o que aqueles jovens militantes do movimento estudantil tinham a dizer. Parei para ouvir os discursos e as palavras de ordem que os jovens pronunciavam sobre os direitos dos estudantes, a organização de grêmios livres e a retomada do movimento estudantil em São Gonçalo. Mesmo frente à indiferença da galera que subia apressada para assistir às aulas — alguns poucos, quando muito, pegavam um dos panfletos para embolá-lo e jogá-lo no chão passos adiante —, alguns jovens, cerca de dez, persistiram. Achei aquela atitude corajosa e digna. Na verdade, minha contemplação daquele movimento não tinha nada a ver com o meu interesse pelos direitos dos estudantes. Fiquei fascinado com um jovem que entoava as palavras de ordem e pronunciava um montão de jargões que eu só compreenderia tempos depois. Confesso que eu fiquei um pouco desconfiado dele; o moleque era o maior playboy, calçava um Redley e vestia uma bermuda Ala Moana — marcas que eu gostaria de poder usar, mas que com o salário de office boy eu não conseguia comprar. Talvez fosse um misto de inveja e desconfiança. Na minha cabeça, aquelas roupas não combinavam com o discurso do cara, mas pude perceber que o grupo de jovens usava broches de diversos partidos políticos, ele inclusive ostentava um broche do PT — a clássica estrelinha vermelha. 50


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Também me chamou a atenção um jovem baixinho atarracado que usava tênis e meias soquetes (aquelas com duas listras que se compravam em dúzias nos camelôs) e uma camiseta com a imagem do Recruta Zero (personagem de quadrinhos) segurando uma bandeira com a sigla OJL — Organização da Juventude pela Liberdade. Logo abaixo da sigla, a frase: “Contra o serviço militar obrigatório.” Eu estava perto de me alistar no Exército, e, quando passava pela minha cabeça a ideia de ser escolhido como soldado, eu me tremia todo, especialmente depois de ter me interessado pela história contemporânea do Brasil e de tomar conhecimento sobre as atrocidades que os militares cometeram durante a ditadura. Só de pensar na possibilidade de servir, a sensação era de pavor e asco. Havia ainda jovens com bótons e broches da UJS — União da Juventude Socialista, que mais tarde eu viria a descobrir ter relações estreitas com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e uma menina que usava um bóton onde se podia distinguir a figura de três jovens de perfil (um branco, um negro e um índio) segurando uma rosa com as respectivas mãos esquerdas. Logo abaixo, a descrição: “Juventude Socialista/PdT.” Estava ali o meu passaporte para a militância. desconsiderando completamente o objetivo da ação dela nas escadarias do meu supletivo, a abordei supondo ser ela militante da ala juvenil do partido do Brizola — em quem eu havia votado para a presidência do Brasil e por quem eu tinha desenvolvido uma profunda admiração. Márcia — o nome da menina que usava o broche da Juventude Socialista do PdT — disse algumas palavras elogiando minha preferência pelo Brizola e me convidou para participar de uma das reuniões da organização que ocorriam, semanalmente, às terças-feiras, vinte horas, na sede do diretório do PdT de São Gonçalo. Tratei de providenciar uma folha de caderno, onde ela anotou o endereço da sede, e, em seguida, me ofereci para integrar aquele grupo de mi51


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litantes do movimento estudantil. Como eu estava naquele turno e conhecia um montão de gente, minha desenvoltura na panfletagem foi bem melhor que os jovens que o faziam com consciência. Meus colegas de escola pegavam os panfletos da minha mão por cordialidade, mas seguiam jogando nas escadarias ou no chão do pátio da escola. Naquele dia, matei todas as aulas, fiquei distribuindo panfletos. depois segui pra casa, e o papel que continha o endereço do diretório do PdT estava no bolso da calça. No outro dia, me deparei com a calça secando do varal e corri para verificar o que eu já sabia que ocorrera àquela folha de caderno onde estava o meu passaporte para a militância política: ele havia se desintegrado. Não passou muito tempo, e ocorreram as eleições do grêmio da escola. Lá estava eu ajudando nas panfletagens e nas ações de mobilização de alunos para votarem na única chapa, liderada por jovens que integravam a OJL, na verdade uma instituição de estreitas ligações com o Partido dos Trabalhadores. Jamais reencontrei a Márcia ou qualquer outro estudante ligado à Juventude Socialista do PdT nas ações do grêmio que se seguiram. Fui convidado e cheguei a participar de duas ou três reuniões da OJL, mas não conseguia entender nada do que os caras diziam. O tempo inteiro falavam de stalinismo, leninismo, trotskismo e de correntes ideológicas como a Convergência Socialista e a democracia Socialista. Senti que aquilo não era pra mim, eu não conseguiria me incorporar.

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Também fui ficando de saco cheio por causa da falta de objetividade das ações que o grêmio propunha na escola e passei a entender que aquele movimento estudantil que ali se organizava não apresentava nada de concreto e nem que tivesse a ver com as reais necessidades e os interesses dos demais estudantes — alguns que não entendiam ou não se interessavam pelo grêmio e outros que sequer sabiam da sua existência.

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cOM MILITANTES dA JUvENTUdE SOcIALISTA dO PdT. cRédITO: ARQUIvO PESSOAL


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de doidão por alguns meses a cabo eleitoral Larguei o supletivo e o emprego de office boy na empresa de navegação. Eu estava entrando naquela fase de tédio e depressão própria de todo jovem que acaba de sair da adolescência e não sabe o que vai fazer da vida. dei uma parte da grana da rescisão para a minha mãe, comprei dois pares de botas Commander e guardei o resto para investir no que se tornara a minha diversão diária: ouvir rock'n'roll na casa de alguns amigos todas as noites. Eu não tive coragem de dizer em casa que havia desistido do supletivo. Ouvia Black Sabbath, Whitesnake, deep Purple, iron Maiden, Marillion, Rainbow, Rush, AC/dC, Motörhead, Accept, entre outros clássicos do hard rock e do progressivo, que até hoje integram as minhas preferências musicais, embora eu escute gêneros mais variados atualmente, depois que comecei a beber. Todas as noites, eu e meus amigos roqueiros nos embebedávamos com uma mistura de cachaça e Coca-Cola. Experimentei também, uma única vez, maconha, e de cara não tive uma boa relação com essa planta. Ela me deu um baita bode, que jamais tinha sentido antes, mesmo quando enfrentei os problemas e os momentos mais difíceis da minha vida. Eu me viciei mesmo foi em rock'n'roll. Peguei a grana que me restava e comecei 56


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

a comprar LPs raros e a vendê-los. Passava o dia inteiro em sebos e lojas de discos em Niterói e no Rio de Janeiro atrás de LPs que eu revendia ou trocava em São Gonçalo. Cheguei a pensar naquilo como um negócio, mas não havia rentabilidade alguma nesse processo: tudo o que eu ganhava investia em novos LPs que em seguida eram trocados ou revendidos para que eu comprasse outros. Eu andava pra lá e pra cá com uma bolsa cheia de discos. A vida de roqueiro era um pouco mais difícil quando se tratava de arrumar namoradas. Em São Gonçalo, vivíamos em guetos que se formavam nas casas de um ou de outro. Não haviam espaços específicos destinados àquele público, e as meninas não eram muito de ouvir rock. Então nos fins de semana passei a frequentar com um primo mais velho e seus amigos os bailes funk — isso naquela época em que a porrada comia entre as galeras. Nossa turma não era de briga, nosso lance era dançar passos sincronizados para tentarmos nos dar bem com as meninas. Como a grana das transações de discos era pouca para ir todos os sábados ao Clube Tamoio e aos domingos ao Clube Unidos de Portugal, aceitei uma proposta de trabalho de um primo meu cujo pai havia acabado de montar um posto telefônico em São Gonçalo, onde ele teve a ideia de colocar uma máquina de Xerox alugada que eu passei a operar. A remuneração era tipo vinte por cento de cada cópia que eu fazia, o que ao fim de um mês renderia bem mais do que o que eu conseguia ganhar com os discos. Agora, além da grana para os bailes de sábado e domingo, dava pra comprar pelo menos uma muda de roupa nova todo mês e ainda sobrava algum para dar uma força no orçamento em casa. Zezé era um dos caras da minha turma de bailes em 1990. Ele era o único que tinha carteira de habilitação e vez ou outra aparecia com um carro emprestado de alguém, no qual dávamos algumas voltas. Em geral, parávamos nas saídas de escolas. 57


LEMBRA UM TEMPO EM QUE A ARTE JÁ hAvIA SIdO LUgAR dE ExISTêNcIA PARA MIM. cRédITO: vINyL - gALERIA dE dBREkkE

Certo dia, encontrei Zezé dirigindo uma Brasília Marrom onde estavam pintados os nomes de Adroaldo Peixoto, então candidato a deputado estadual, e Junot Abi-Ramia, candidato a deputado federal, ambos pelo PdT. Havia ainda diversos adesivos nos vidros onde se liam “Brizola — governador — 12”. Em cima da Brasília, uma corneta que repetia sem parar o jingle dos candidatos. Ele parou o carro e me perguntou se eu estava a fim de trabalhar na campanha. 58


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

“Surgia naquele convite uma oportunidade de ingressar na militância política”, pensei. Perguntei o que deveria fazer e no outro dia estava eu às sete da manhã no comitê onde conheci os coordenadores da campanha. Eram todos militantes da Juventude Socialista do PdT de São Gonçalo, e lá estava Márcia — a menina que tinha me dado o endereço onde ocorriam as reuniões da organização, mas que eu por descuido larguei no bolso da calça que a minha mãe lavou no dia seguinte sem ter tido o cuidado de retirar e guardar o que havia nela. Eles me explicaram que a relação com aquelas candidaturas tinha uma razão política e ideológica. que embora eles estivessem pagando uma grana semanal aos cabos eleitorais, todos eram militantes da Juventude Socialista do PdT, e, portanto, eu deveria me filiar para integrar a campanha. Além disso, fizeram questão de deixar claro que, embora o prefeito de São Gonçalo, na época o engenheiro Edson Ezequiel, fosse do mesmo partido, eles resolveram apoiar outras candidaturas que não a dele, porque estavam em conflito com algumas posições adotadas pelo chefe do Poder Executivo no governo. Embora eu tenha escutado tudo aquilo atentamente e lembre com exatidão a síntese daquele papo que gerou a minha contratação como cabo eleitoral e minha filiação à Juventude Socialista do PdT, não entendi bulhufas. Agradeci o “emprego” e perguntei se eu poderia começar no dia seguinte, pois eu tinha que me desligar da minha atividade de operador de máquina reprográfica do posto telefônico. No dia seguinte, às sete horas da manhã, lá estava eu no comitê; depois de um copo de café com pão, recebi a orientação sobre qual seria minha tarefa naquele dia. Não havia nada de ideológico nem de político na minha missão de segurar um pirulito das oito às doze horas e depois das quatorze às dezoito horas — com um cartaz do candidato a deputado estadual de um lado, e do deputado federal do outro, presos em uma das extremidades de um sarrafo de 59


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mais ou menos dois metros de comprimento — na Praça do Rodo, a mais movimentada de São Gonçalo. Além de diversos conhecidos, passou por mim o meu primo, com quem até o dia anterior eu estava trabalhando na máquina de Xerox. Ele ainda me deu uma sacaneada: “Tu largou a Xerox para trabalhar nesta merda aí? você está maluco.” Olha que eu nem havia contado que o que me ofereceram por semana era menos do que eu conseguia de comissão tirando cópias. Mas estava valendo; eu sabia que, de uma maneira ou de outra, aquele trabalho me levaria a um desejo inoculado de me tornar um militante. E eu estava certo: na primeira terça-feira que se sucedeu à minha atividade de cabo eleitoral, fui convidado a participar de uma plenária da Juventude Socialista do PdT. Como nas duas ou três reuniões que frequentei da Organização da Juventude pela Liberdade, não entendi nada do que os militantes debatiam. Além disso, percebi que havia um racha entre eles, uns eram do grupo do prefeito, também do PdT, e outros do grupo do qual eu fazia “parte” como cabo eleitoral de candidatos que não eram da preferência do prefeito em exercício. Segui na campanha eleitoral, segurando pirulitos nas ruas do centro de São Gonçalo, distribuindo panfletos em showmícios e pendurando faixas e galhardetes em postes de ruas dos diferentes bairros de São Gonçalo, bem como frequentando as plenárias da Juventude Socialista às terças-feiras à noite, mesmo depois do término da campanha, quando pedi de volta ao meu primo o emprego de operador de fotocopiadora. Fui atendido.

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cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

decidi ser socialista No diretório do PdT havia uma pequena biblioteca com diferentes títulos de história, sociologia e política que ficavam à disposição dos militantes para empréstimo. Percebi que a minha chance de entender aquele universo estava nas páginas daqueles livros e passei a tomá-los emprestado. Eu lia quase um por semana. Eu levava umas duas semanas para concluir a leitura dos livros maiores, às vezes eu não entendia o que lia, mas estava certo de que me faltava o acesso a outras literaturas e que prosseguir com a obsessão por ler aqueles títulos era o meio para compreender o que eu ainda não havia entendido muito bem. Tinha que fazer isso, estava decido a me tornar um socialista. Li de As veias abertas da América latina, de Eduardo Galeano, aos três livros clássicos de O capital, de Karl Marx, passando por livros de história que retratavam importantes momentos e eventos sociais e políticos da vida brasileira, bem como histórias das revoluções russa e cubana. Passei a frequentar as plenárias do partido e a desenvolver relações com os seus demais núcleos representativos: mulher; negro; e sindicalista. Resolvi participar das palestras e dos seminários organizados pela seção municipal da Fundação Alberto Pasqualini — que se dedicava à formação dos quadros de militantes do PdT —, da qual eu li todos os cadernos sobre a estrutura do partido, suas bandeiras, 61



hOJE ENTENdO SER PREcISO LEvANTAR MAIS dO QUE A MãO ESQUERdA. cRédITO: ARQUIvO cREScER E vIvER


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seus compromissos programáticos, suas prioridades na ação política e de governo. desenvolvi e passei a dominar um discurso sobre a Juventude Socialista e o PdT. quanto à grana que eu tinha voltado a ganhar com a comissão das cópias Xerox, parte dela ia para as despesas de casa, e o que sobrava era todo investido na participação em eventos, reuniões e ações de militância. Passei a frequentar também as reuniões da Juventude Socialista do PdT no Rio de Janeiro, e logo fui convidado a integrar o Núcleo de Estudos PdT pela Esquerda (NEPP) — um movimento que tinha como propósito criar uma corrente partidária focada em preservar a posição socialista do partido e na democratização das suas instâncias por meio da organização de núcleos de base que rompiam com as lógicas cartoriais dos diretórios, no geral entregues a políticos com mandato, que faziam deles meros veículos de curso dos seus projetos eleitorais. Eu me tornei presidente da Juventude Social em São Gonçalo e membro do seu diretório estadual. integrei também os diretórios municipal, estadual e nacional do PdT, neste último como o mais jovem integrante até então. Mergulhei fundo na militância. Fui designado para missões em congressos, fóruns, convenções e outros eventos. Conheci todas as capitais de todos os estados brasileiros e um sem-número de municípios nas diferentes regiões do Brasil. Estive em eventos da iUSY — international Union of Socialist Youth na Argentina, na Noruega e na Alemanha, e fui, algumas vezes, a Cuba, Nicarágua e México para eventos da Federação Mundial da Juventude democrática. Criei uma rede de relacionamento em diferentes outros partidos do chamado campo popular e de esquerda, tendo participado de conversas e mediações que deram origem a coligações entre eles. Sempre tomado pelo sentimento de que aquele era o caminho para a revolução. Eu pensava que, como passos decisivos para um objetivo final — construir 64


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

um Brasil socialista —, deveríamos ganhar os governos nas diferentes instâncias e radicalizar a democracia criando novos espaços de participação popular e controle social. Aprendi muito com a militância partidária. devo a ela boa parte do meu conhecimento e as minhas melhores experiências de vida. Foi na militância que conheci e me apaixonei por Fernanda Lauria, a mulher com quem vivo há 12 anos e que me deu a minha mais preciosa riqueza: minha filha Carolina Lauria Perim. Na militância, fiz e fortaleci amizades que perduram até hoje. Nela ampliei minha visão de mundo e meu senso de justiça. Por ela fui levado a lugares, posições e contextos a que um jovem da minha origem familiar e da minha condição socioeconômica improvavelmente chegaria. Tenho dela um ativo e um amplo capital social e afetivo acumulado no montante ideal para investimentos nos percursos e em outros campos da minha atuação como sujeito da vida e de diferentes processos sociais. Com a militância partidária veio também a atuação em governos, e aí a minha crença na militância político-partidária foi baixando aos poucos. Mas este é um papo para o próximo capítulo.

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O poder perverte a ideologia A minha militância e a minha ascensão político-partidária me levaram à gestão pública. Trabalhei na Secretaria de Estado de Planejamento do governo do estado do Rio de Janeiro. Atuei como assessor da Secretaria Municipal de Governo e do gabinete do prefeito na Prefeitura de São Gonçalo, em dois governos consecutivos. Exerci cargos na Secretaria de Estado de Administração, na Secretaria de Estado de Saúde e no departamento de Trânsito do governo do estado do Rio de Janeiro. Fui também assessor na Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro. A leitura de mundo que construí na militância partidária ressignificou a compreensão das dimensões republicanas e sociais dos cargos que exerci. Minha ideia de socialismo era sintetizada no senso de justiça, democracia e transformação social: estes eram os pressupostos a partir dos quais lidei com os cargos que exerci na administração pública. Não sou partidário da ideia de que apenas os mais letrados, bem-formados e cheios de títulos são os mais preparados para o exercício da função pública. Longe de me colocar como um exemplo de que isso não é verdade, cito na recente história do Brasil o desempenho do ex-presidente Lula. Com os cargos vieram as funções, e as estudei usando o recurso que me formou militante: a leitura continuada e disciplinada que sempre tive. Mesmo não escrevendo bem, e este livro denuncia isso, desenvolvi a arte de compreen66


cap.01 OS FAZIMENTOS QUE ME FIZERAM

der e interpretar textos, por mais técnicos e específicos que eles fossem. Foi trabalhoso, mas não tão difícil, desenvolver na administração pública um repertório de conhecimentos sobre gestão. depois do partido político, a gestão pública foi a minha principal escola. A fase de maior aprendizado se deu na Prefeitura de São Gonçalo. A habilidade política desenvolvida no partido foi o mote para me escalarem na função de assessor especial de assuntos legislativos. No plano político eu era corresponsável e auxiliava o secretário Municipal de Governo com toda sorte de demandas que vinham da articulação política com a Câmara de vereadores e os movimentos sociais da cidade. Eu me tornei amigo de todos os vereadores de oposição; empreguei na relação com eles toda a minha inteligência interpessoal. Eles me respeitavam antes de tudo porque eu era um jovem com um discurso bastante articulado e gozava de amplo respeito de todos os movimentos sociais de São Gonçalo. Fui designado pelo prefeito para todos os conselhos de direito do município. Fui conselheiro de direitos da Criança e do Adolescente, de Saúde, de Assistência Social e de Trabalho; membro do Conselho do Orçamento Participativo; membro da Comissão Paritária do Plano diretor da cidade; enfim, eu lidava com todo o tipo de organização social, me policiando para não ter a arrogância de muitos militantes de base que atuaram comigo, tão logo foram mordidos pela mosca azul do poder. Esta postura de respeito e escuta à oposição na Câmara de vereadores e aos movimentos sociais me conferiu uma certa autoridade na cidade. Além disso, as lideranças sociais e comunitárias, os vereadores da situação e da oposição, sabiam que eu, diferentemente dos quadros que manejam articulações no governo, não tinha quaisquer pretensões eleitorais.

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Eu me tornei também um articulador interno. Atuava mediando conflitos entre quadros do governo que disputavam entre si. Ajudei particularmente aqueles dirigentes de órgão que eram relegados ao segundo plano nas prioridades políticas do governo. isso me deu liberdade de trânsito em diferentes órgãos, alguns deles em que os gestores me pediam ajuda para agilizar seus processos e programas. Eu frequentava todos os eventos institucionais, desde inauguração de obras públicas até calendário das efemérides das escolas municipais. Fazia questão de frequentar tudo o que um grande amigo que fiz na Prefeitura de São Gonçalo — o professor João Luis de Souza, que por dois governos consecutivos exerceu o cargo de subsecretário de Cultura

vISITA à OcUPAçãO dO MST EM cONcEIçãO dE MAcABU. cRédITO: ARQUIvO PESSOAL


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da Secretaria Municipal de Educação e Cultura — realizava. Eu gostava do esforço do professor João Luis. O cara era um guerreiro que, mesmo sem muitos recursos, conseguia mobilizar e dar visibilidade às produções artística e cultural da cidade. vi nascer o hoje badalado Corujão da Poesia, que acontece em diferentes partes do Rio de Janeiro, no Bar Totonto, em São Gonçalo — um botequim criado em uma garagem, ponto de encontro de poetas, músicos e artistas de diversos segmentos do município, que foi o laboratório do que viria a se tornar a maior vigília poética da América Latina. Comecei a me interessar por arte e cultura frequentando os eventos organizados por João Luis. A primeira vez que visitei, na vida, uma exposição de artes plásticas foi na Casa das Artes de São Gonçalo — um ponto de ônibus sob um viaduto que foi transformado, pelo meu amigo, em um equipamento de cultura e arte. Por causa do encontro com a comunidade artística, proporcionado pelos eventos que frequentei como assessor do prefeito de São Gonçalo, que pude também conhecer e passar a frequentar o universo do samba. E conheci compositores brilhantes, como Paulinho Freitas — hoje um fiel colaborador e parceiro dos meus fazimentos. Militância partidária e atuação pública eram algo simbiótico na minha vida. Levei tempo para perceber que minha mobilidade e meu trânsito por diferentes forças políticas e movimentos sociais estavam sendo usados apenas para interesses eleitorais e de poder. Comecei a perceber que muitos daqueles que vieram comigo de campanhas eleitorais, das lutas justas e ideológicas, foram chegando ao governo e ficando com as bundas quadradas. Remar pra frente com um montão de gente remando para trás foi me deixando sem tesão. A prática de governo se distanciou da ideologia propagada no âmbito do partido e do grupo político. A incoerência entre discurso e prática de muitos amigos e companheiros, enfim, a retórica como mera justificativa 69


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de intenções nunca reveladas começou a me afastar pouco a pouco do universo político. Claro que há pessoas que ainda admiro e respeito, estas que já citei aqui e algumas outras que exigiriam muitas páginas para serem listadas, mas que faço questão de mencionar nos meu agradecimentos. verdade que algumas delas se renderam às conveniências do poder por pura estratégia de sobrevivência. A julgar por tudo o que eu sofri para dar um novo rumo à vida, hoje eu consigo entendê-las. Não é fácil criar novas estratégias para ser, estar e existir no mundo. Eu continuei na vida pública até 2002, mas no final dos anos 1990 já me sentia vencido pela incapacidade de lidar com a hipocrisia do poder, as estruturas cartorárias dos partidos políticos e a forma de os movimentos sociais clássicos operarem as suas reivindicações, demandas e lutas, quase sempre se deixando cooptar pelos projetos eleitorais. Não me restou outra saída: eu precisava exercer uma nova estratégia e um novo percurso na vida. Comecei a mudar de rumo caindo no samba.

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JUNIOR PERIM NO cIRcO cREScER E vIvER EM FOTO PARA LIvRO dE FOTOgRAFIA SOBRE A dOR E O RIScO NO cIRcO, dO FOT贸gRAFO gUSTAvO MALhEIROS. cR茅dITO: gUgU MALhEIROS

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dESFILANdO PELO g.R.E.S. UNIdOS dO PORTO dA PEdRA. cRédITO: ARQUIvO PESSOAL


Os fazimentos que eu fiz

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Folia e direitos da criança e do adolescente Com o enredo “Ordem e Progresso, Amor e Folia no Milênio da Fantasia”, no carnaval de 2000, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Porto da Pedra sofreu o seu segundo rebaixamento para o Grupo A, desde que chegara ao Grupo Especial das Escolas Samba do Rio de Janeiro, em 1996. O segundo rebaixamento levou a diretoria a ameaçar não mais desfilar no Rio de Janeiro. Tal notícia, além de chocar os componentes da agremiação, foi recebida com tristeza pela população. Afinal, o município confere à escola de samba a qualidade de seu principal ator de cultura, motivo pelo qual há alguns anos o “Tigre” — ela é popular e carinhosamente conhecida por ter como símbolo um tigre de bengala — adotou o slogan “Paixão e orgulho de São Gonçalo”. A diretoria da Unidos do Porto da Pedra estava de fato decidida a retirar a agremiação dos desfiles de carnaval no Rio de Janeiro, tendo comunicado tal decisão a diferentes veículos de comunicação. Alguns deles, como os jornais de maior circulação na cidade na época — O Fluminense, O Povo e o jornal O São Gonçalo —, registraram em matérias e enquetes a população, os políticos e pessoas de diferentes estratos sociais do município manifestando, sim, sua concordância com a crítica da diretoria à injustiça no re74


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

baixamento, mas dizendo que achavam importante a cidade continuar tendo uma representação na maior festa popular do mundo. Componentes de diversos segmentos da Unidos do Porto da Pedra fizeram abaixo-assinados, enviaram cartas, enfim, se utilizaram de diferentes meios para demover a diretoria da agremiação da decisão, apelando à sensibilidade dos diretores. O desfecho de toda esta mobilização foi a proposta de renúncia de toda diretoria a favor de um grupo de componentes da agremiação que demonstrasse capacidade de assumir a agremiação, gerenciar a sua ampla quadra de ensaios e traçar um plano para: colocar o carnaval de 2001 — no Grupo A — na Marquês da Sapucaí, tentar o título e retomar o espaço do “Tigre” entre as maiores escolas de samba do Rio de Janeiro. Eduardo Carneiro Alves — um empresário proprietário de uma pequena rede de lojas de material de construção, frequentador e desfilante assíduo da Unidos do Porto da Pedra — foi o cara que botou o seu na reta e se dispôs a organizar um grupo para assumir a agremiação. Proposta aceita, ele juntou outros componentes dispostos a participar do desafio. Escolheu um time de profissionais liberais, funcionários públicos, empresários da cidade, artistas e lideranças comunitárias. Todos eram pessoas que se conheciam e estabeleciam vínculos de amizade na escola de samba, tendo por ela um profundo afeto. Embora eu conhecesse o Eduardo, Marbella, como ele era apelidado, não éramos pessoas muito próximas; mesmo assim, fui um dos escalados para o time de novos diretores. Ele, como a maioria das pessoas da agremiação, sabia que durante o período em que trabalhei na Prefeitura de São Gonçalo eu tinha sido uma das pessoas que estiveram à frente do tratamento das demandas da Unidos do Porto da Pedra que chegavam ao governo, entre as quais os processos de subvenção que o município anualmente concedia à escola de samba para apoiar a preparação dos seus desfiles anualmente. 75


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Meu cargo na diretoria? diretor social. Não fazia a menor ideia de quais seriam minhas funções. Cheguei à primeira reunião com todos os demais diretores e recebi as primeiras explicações sobre as atribuições do cargo, que eram basicamente responder por produzir e organizar os eventos da escola de samba. de cara disse que não tinha habilidade nem conhecimento para tal; além disso, eu acabara de receber um convite para assumir a Superintendência de Atendimento ao Servidor da Secretaria de Estado de Administração do governo do estado do Rio de Janeiro. Eu deixaria o cargo na assessoria do gabinete do prefeito de São Gonçalo para viver uma nova experiência na administração pública estadual que por certo me tomaria muito tempo. Antes mesmo de eu poder voltar atrás, Eduardo Marbella já foi dizendo que em breve seria iniciado um processo de reforma dos estatutos da agremiação, visando tornar a gestão mais moderna, com funções mais adequadas ao nível do comprometimento, das capacidades e das possibilidades de colaboração de cada um dos seus membros. Ele disse também que naquele primeiro momento era para todo mundo fazer tudo, já que a maioria dos integrantes da nova diretoria não acumulava experiência na gestão de uma escola de samba. Assim, a estratégia inicial era no melhor estilo Os Três Mosqueteiros: “Um por todos e todos por um.” Marbella era um cara intuitivo e percebera que mesmo depois daquela explicação eu não estava convencido de que deveria aceitar o cargo. E, de novo, antes que eu pudesse agradecer o convite, mas negá-lo, ele sugeriu que eu assumisse um cargo ainda vago, o de assessor da presidência. Perguntei quais seriam minhas atribuições e funções, e ele me disse que nem ele sabia, mas que nós dois juntos poderíamos trocar ideias e defini-las de maneira confortável para ele e para mim. Gaiato, todos riram quando ele disse que ter a mim, que havia sido durante anos assessor do prefeito da cidade, iria ampliar o status da sua posição como presidente da agremiação. E finalizou dizendo que 76


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

não aceitava um “não” da minha parte, porque “no fundo eu sei que você vai encontrar um meio de nos ajudar na missão de ganhar o carnaval de 2001 e recolocar a Unidos do Porto da Pedra no Grupo Especial”. Senti um desafio na fala do Eduardo e, como eu gosto de desafios, aceitei o cargo. Entrei para o mundo do samba. A função era voluntária, não tinha remuneração. Nem por isso Marbella deixou de me solicitar para inúmeras tarefas, associadas à gestão da escola de samba. Fui designado como representante da Unidos do Porto da Pedra na Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que na época congregava as agremiações do Grupo A ao Grupo d do carnaval. Ali conheci dirigentes do carnaval carioca ligados a mais de 60 agremiações carnavalescas e, para estreitar o meus laços com aquele universo, frequentei inúmeros eventos nas quadras de samba por todo o Rio de Janeiro. Participei e articulei com Marbella reuniões com empresas, órgãos públicos e dirigentes do carnaval, sempre em busca de apoios e parcerias voltados à produção do desfile da Unidos do Porto da Pedra no carnaval de 2001. O que mais me deixava aflito é que ainda não tínhamos definido um tema de enredo, o que dificultava a prospecção de parcerias. Embora a escola tivesse recebido várias propostas, o presidente — responsável pela escolha do enredo, como estabeleciam os estatutos da agremiação na época — não via em nenhuma delas potencial para alavancar patrocínios. isso me deixava aflito; ali eu já acreditava que um projeto não devia começar com a disponibilidade de recurso, mas com a qualidade do seu conteúdo e do seu propósito. discuti muito sobre isso com Eduardo Marbella, tentando influenciar a opção dele por um enredo cujo tema pudesse demonstrar que a Unidos do Porto da Pedra iniciara, com a nova diretoria, novos percursos, fazendo dos seus desfiles um ato de expressão contra as desigualdades e a favor da democracia, da justiça e do desenvolvimento social e humano. 77


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influenciado (acho) pelas defesas que eu fazia de um enredo que pudesse transformar o desfile da Unidos do Porto da Pedra em uma plataforma de difusão e fruição de uma mensagem de impacto social, o Marbella me ligou e disse que tinha para mim uma notícia em primeira mão. Escolhera, entre as propostas de enredo que recebera de vários carnavalescos, "Um sonho possível. Crescer e viver agora é lei.” — uma homenagem aos dez anos de edição da Lei Federal nº 8.069, o ECA — e estaria contando comigo para ajudá-lo a pensar estratégias e possibilidades de obtermos parcerias e apoios de empresas que potencialmente se interessariam pelo tema. Mesmo sem ter qualquer experiência na captação de recursos, eu disse que tudo bem e que eu iria pensar em como colaborar; assim que desliguei o telefone, fiz uma imersão na internet. Pesquisei o que estava sendo feito em razão dos dez anos de edição da Lei. Encontrei de artigos a congressos, escritos e organizados por intelectuais e instituições públicas e privadas de todo tipo, mas nada que pudesse me fazer aventar um possível e significativo apoio para a produção do carnaval da escola de samba, exceto inseri-lo em uma agenda de eventos que constava do site do Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef). A agenda do Unicef relacionava um conjunto de eventos e projetos sobre os dez anos do ECA empreendidos por diferentes organizações, uma delas a Fundação Abrinq, que descobri ter estreita relação com a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos. Tive o insight de apresentar a proposta de colocar o enredo na agenda do Unicef; “isso funcionaria como uma espécie de reconhecimento que agregaria valor à proposta da Unidos do Porto da Pedra, dando a ela crédito para alavancar parcerias com os fabricantes de brinquedo no Brasil”, pensei. Eu fiquei tão empolgado com a minha ideia que escrevi imediatamente ao Unicef solicitando uma reunião. Como não conhecia ninguém naquela instituição, meu primeiro contato foi pelo 78


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

fale conosco do site. Em seguida, liguei para o Marbella e falei sobre isso, e ele ficou tão empolgado quanto eu. dias depois, em uma reunião da diretoria, mesmo sem ainda ter obtido resposta ao e-mail enviado ao Unicef, falei da estratégia de obter da própria Unicef o reconhecimento do enredo e que isso, “com certeza” — sublinhei para os demais diretores —, nos aproximaria dos fabricantes de brinquedos, não faltando assim patrocínios para empreendermos o nosso carnaval. Eu tinha tanta segurança na ideia que, ao falar dela, os meus interlocutores da escola de samba a receberam com empolgação, elevando as expectativas de a agremiação conseguir os recursos para realizar um grande desfile de carnaval no Grupo de Acesso A, conquistar o título e regressar ao Grupo Especial das Escolas de Samba. O plano estava traçado, e todos nós da escola de samba acreditávamos nele. Eu, particularmente, estava tão confiante no plano que nem me dava conta de que sequer havia recebido uma resposta positiva sobre a minha solicitação de agenda ao Unicef. Além disso, quem poderia garantir que o fundo apostaria na minha ideia?

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O fracasso de uma ideia é o campo para a invenção de um novo movimento Com recursos próprios, comprei a passagem aérea e me hospedei em Brasília. Passei a noite no hotel ensaiando o discurso que iria fazer para abordar o Unicef sobre o projeto de carnaval da Unidos do Porto da Pedra homenageando os dez anos do ECA. No melhor estilo carnaval, fantasiei sobre como seria a reunião e quais seriam as perguntas e respostas sobre o enredo e o seu processo de produção. Era um discurso falando do potencial do carnaval para difundir a importância da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Eu estava tão empolgado com a estratégia retórica que formulei que nem sequer me dei conta de que estaria falando com pessoas muitas mais preparadas quanto ao universo temático do enredo do que eu. isso eu só percebi depois do meu fracas80


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so na reunião, que, entre outros aprendizados, me ensinou a não mais me preparar nem elaborar um discurso prévio para ocasiões em que eu pretenda estabelecer uma relação de parceria, seja ela no campo público ou privado. Hoje em dia valorizo o preparo cumulativo, a maturidade da minha intenção, e a única coisa que carrego na manga é minha intuição. dificilmente me equivoco; no geral, já sei quando uma parceria vai fluir ou não na primeira troca de olhar com o meu interlocutor ou na intensidade do aperto de mão. Cheguei à sede do Unicef quase meia hora antes do horário da reunião. Na verdade, eu já estava nas imediações do edifício com pelo menos uma hora de antecedência, dada a minha ansiedade. Já não lembro o nome do representante do fundo que me receberia, mas fui comunicado pela recepcionista de que não seria ele quem me atenderia de fato. Havia sido designada uma outra pessoa da equipe que estava encarregada da agenda de eventos comemorativos dos dez anos do ECA, que naquele momento estava em reunião; portanto, eu deveria aguardar um pouco. O tempo de espera, quase uma hora, foi o bastante para eu compreender que o Unicef não dera qualquer importância ao propósito de uma escola de samba render homenagens aos dez anos do ECA. Não parei de pensar que o encontro seria um fracasso, desejei que a espera fosse ainda maior. Minha confiança e minha autoestima começaram a baixar. Chegado o momento de eu ser recebido, todo o argumento ensaiado no hotel na noite anterior foi se desestruturando. Logo que entrei na sala, a mulher que me recebeu, depois de um leve e frio aperto de mãos, não me deixou falar nada e já iniciou toda uma explicação sobre o que era o Unicef, sua missão, seus objetivos e suas formas de atuação, sublinhando as prioridades do Fundo no Brasil. Confesso que aquele primeiro contato, sem qualquer afeto e calor, de súbito fez surgir em mim uma enorme antipatia pelo Fundo. Sei que não podemos condenar uma instituição inteira pelo gesto de uma pessoa, mas como CNPJs não falam, e sim 81


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os CPFs, eu tenho o (suposto) defeito de julgar as organizações e corporações pelos seus interlocutores. Ouvi atento toda a apresentação sobre o Fundo. vi que o discurso que eu havia ensaiado, mesmo coerente e bem-estruturado, não dialogava em nada com a atuação do Unicef no Brasil. A coisa ficou pior pra mim, pois eu não tinha o que dizer àquela mulher. desejei que ela não parasse de falar nunca, pois eu sabia que naquele momento eu é que deveria dizer qualquer coisa, e eu já havia deletado todo o argumento que tinha ensaiado na noite anterior. depois da longa explicação sobre o Unicef e antes mesmo que eu pudesse esboçar qualquer sinal de que iria me manifestar, a minha interlocutora iniciou outra nova explicação, agora sobre o que significava a agenda comemorativa dos dez anos do ECA. de cara informou que não se tratava de uma compilação de eventos realizados por qualquer instituição, e foi enfática ao pronunciar a palavra “qualquer”. Senti nisso a força da sua arrogância e da sua intenção cortante de desqualificar a minha proposta para o Fundo. Fiquei pensando em como mandá-la à merda sem precisar pronunciar um xingamento. Ela deixou claro que a agenda tinha a intenção de listar, reconhecer e difundir, apenas os eventos realizados por instituições que mantinham relações de parceria direta com o Fundo. E, no seu único gesto simpático na conversa, elogiou a iniciativa do G.R.E.S. Unidos do Porto da Pedra de escolher como enredo uma homenagem a uma década da edição do ECA, mas já dizendo que o nosso carnaval não se encaixava no escopo da agenda de eventos, fechada com alguns meses de antecedência e apenas com parceiros deles, como já havia destacado. Ou seja, a mulher, com toda a sua explicação sobre o Unicef e o seu elogio seco ao enredo, deixou claro que dali não haveria qualquer possibilidade de parceria antes mesmo que eu dissesse uma só palavra além de bom-dia e o meu nome. 82


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

quando ela me deu a chance de falar, entreguei a ela um material impresso com um breve histórico da Unidos do Porto da Pedra e uma descrição (sinopse) do enredo “Um sonho possível. Crescer e viver agora é lei.”, falando um pouco sobre o que ali descrevíamos e sobre o momento e o novo ciclo pelos quais passava a escola de samba. Consegui de maneira rápida reestruturar um discurso, quer dizer, inventar novos argumentos que ensejaram a minha visita ao Unicef. Primeiro disse que a nossa intenção de integrar a agenda comemorativa dos dez anos da edição do ECA foi a forma que vimos de nos somar a um movimento tão importante, mas que eu entendia perfeitamente as condições e com que organizações ela fora formatada. Em seguida, disse que, em paralelo à produção do carnaval, dado o tema do enredo, a Unidos do Porto de Pedra tinha a intenção de iniciar a implantação de um projeto social dedicado a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no município de São Gonçalo e que seria muito importante ter o Unicef como o nosso aliado. Nas primeiras palavras da minha interlocutora do Unicef eu havia percebido que a minha visita e a minha intenção seriam um fracasso. Ao mesmo passo que ouvi atento todas as explicações dela sobre o Fundo e suas prioridades no Brasil, me surgiu a ideia de criar um projeto social na Unidos do Porto da Pedra, tomando o embalo do enredo como mote, me apropriando da força da mobilização sociocultural da escola de samba. Agora, quem sabe, estando diante de alguém do Unicef, eu faria isso com o apoio deles. A mulher, impaciente, olhando o relógio e — revelando — que não estava nem um pouco interessada, disse que o processo de estabelecimento de uma parceria com o Unicef envolvia uma série de questões; assim, me sugeriu a leitura do site e dos programas desenvolvidos pelo Fundo no Brasil e já foi taxativa dizendo que eles não tinham recursos, não patrocinavam ações e mais toda aquela ladainha que quem está iniciando uma intervenção social se acostuma a ouvir 83


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no começo dos seus percursos. Aliás, são discursos que geram uma sensação de fracasso. Eu me despedi agradecendo o tempo dedicado com um sorriso e um aperto de mão; desta vez, para ela não escapar, segurei uma das mãos da minha interlocutora imprimindo uma leve força, como uma forma de dizer: “vá à merda se você pensou em me fazer desistir e investiu no meu fracasso. Saiba que eu saio daqui com uma excelente ideia que vou executar em favor de crianças e jovens em lugares onde o Unicef, com toda essa sua arrogância intelectual, jamais faria quaisquer coisas.” Embora hoje em dia eu tenha respeito pelo trabalho do Unicef, nunca procurei o Fundo pra nada. Pelo contrário, generosamente, tempos depois, em 2009, emprestei um espaço para o escritório do Fundo no Rio de Janeiro realizar um encontro com crianças de rua; era um espaço construído pelo projeto social que inventei quando aquela interlocutora do Fundo tinha derrotado minha ideia.

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cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Nasce o crescer e viver

Eu sabia que era grande a expectativa da Unidos do Porto da Pedra quanto ao resultado da minha reunião com o Unicef. Na verdade, eu era o culpado disso, pois quando tracei as estratégias de contato com o Unicef e as apresentei à diretoria da agremiação eu acreditava tanto nelas que por certo minha confiança contaminou os meus companheiros da escola de samba. Não parei de pensar nisso no meu retorno para o Rio de Janeiro, e, lógico, além de não querer frustrar o pessoal da escola, eu precisava convencê-los, depois de uma derrota sofrida pela minha nova ideia, a criar um projeto social na escola de samba, que mal tinha recursos para produzir o desfile de carnaval. Afinal, a escola de samba estava no Grupo A, que, mesmo reunindo escolas grandes e tradicionais, com um desfile que eu particularmente acho bem mais competitivo que o do Grupo Especial, não conta com muito volume de subvenções públicas. Seus desfiles não têm a visibilidade e o apelo midiático do Grupo Especial, o que é essencial aos olhos dos diretores e gerentes de marketing de empresas privadas interessadas no carnaval como uma plataforma de divulgação das suas marcas, dos seus produtos e dos seus serviços. 85


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É verdade que eu tive medo de perder a credibilidade com os meus pares na diretoria da agremiação quando informasse o fracasso do contato com o Unicef. O medo nada tinha a ver com perder o espaço ou o cargo na diretoria, o qual eu já havia tentado recusar no momento do convite. A importância de manter a credibilidade e o espaço estava associada à intenção de iniciar um programa social capaz de apropriar a referência e a força da mobilização comunitária e sociocultural da escola de samba com foco na realização de projetos e atividades que pudessem contribuir com o desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens em uma perspectiva integral. Eu não parava de pensar nas contingências, humilhações e infelicidades pelas quais eu tinha passado na infância, realidade que gerações posteriores à minha foram submetidas e que, ainda hoje, mesmo diante da melhoria de alguns indicadores sociais, afeta a infância e a juventude brasileira. Como a minha experiência acumulada na militância política me ensinou a pensar estratégias a partir do discurso com o qual vou defendê-las, formulei previamente toda a retórica que utilizaria para contar à diretoria da Unidos do Porto da Pedra o fracasso da reunião com o Unicef. Na exposição sobre o resultado que obtive na reunião, eu disse toda a verdade com frases bem-organizadas, de forma a preparar o terreno para lançar a seguinte provocação: “Como vamos falar de direitos da criança e do adolescente em nosso enredo sem que a agremiação exerça uma cota de responsabilidade na promoção destes?” A expressão de autocrítica no rosto de cada diretor foi instantânea. Estava então aberto o caminho para a minha tacada final: “Somos uma das únicas escolas de samba que estiveram no Grupo Especial e que não desenvolve nenhuma ação social. Talvez seja esta a razão pela qual o Unicef não tenha demonstrado qualquer interesse de se tornar parceiro e/ou reconhecer a homenagem que pretendemos fazer ao ECA no carnaval.” 86


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daí pra frente foi fácil convencer a escola de samba da minha ideia de criar um braço social na agremiação. Toda a diretoria concordou com a proposta, recaindo sobre mim — o que eu almejava — a tarefa de organizá-la, sendo o único compromisso da agremiação a cessão das suas dependências para a realização das atividades que eu, na verdade, nem mesmo tinha ideia de quais seriam. Além disso, meu tempo estava difícil de ser administrado. Eu havia recém-assumido um cargo no governo do estado do Rio de Janeiro. Logo após o resultado do segundo turno das eleições municipais de 1998, quando o então prefeito pelo PdT, Edson Ezequiel, com o qual eu trabalhava, perdera o pleito, o secretário de Estado de Administração Hugo Leal, com quem eu havia militado no mesmo partido, me convidou para assumir a Superintendência de Atendimento ao Servidor Cidadão naquele órgão. A agenda de trabalho na superintendência era abarrotada. Estavam sobre a minha gestão quase duas dezenas de postos de atendimento aos servidores públicos distribuídos por diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, a partir dos quais eles encaminhavam todo tipo de demanda, especialmente aquelas relacionadas a benefícios, provimentos e carreiras. Como superintendente, eu respondia também por todas as operações relacionadas às consignações em folha de pagamento, entre as quais os descontos obrigatórios, as contribuições sindicais e associativas, e os chamados empréstimos consignados. isso significava gerenciar a gestão de parte do sistema da folha de pagamento do estado do Rio de Janeiro, que na época contava com algo em torno de um milhão de servidores civis e militares, ativos e inativos, aposentados e pensionistas. Monitorar, acompanhar e manter atualizado um cadastro de entidades e empresas consignatárias — algumas tentando burlar o sistema da folha de pagamento, visando levar o 87


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Estado a implantar descontos irregulares na folha de pagamento,— era outra atividade que também requeria atenção absoluta da Superintendência e me submetia a uma agenda lotada de encontros e reuniões com representantes de sindicatos, associações civis, bancos, seguradoras e gestores das folhas de pagamento das secretarias, dos órgãos e das autarquias estaduais, ora para corrigir e melhorar procedimentos, ora para coibir abusos e manipulações. Para ser mais claro, minha função era evitar e desmantelar esquemas de agentes públicos que beneficiavam, em particular, bancos e seguradoras privadas, por meio da manipulação da margem consignável (limite possível de descontos nos provimentos e nos salários), em prejuízo dos interesses dos servidores públicos. Logo que assumi o cargo e fui estudar todas as competências, os processos e os procedimentos da Superintendência, identifiquei que o Estado colocava o seu principal instrumento de gestão de pessoal — a folha de pagamento — a serviço de interesses e negócios entre servidores e consignatárias que não faziam o menor sentido. Eram inúmeros os sindicatos e as associações consignatários do estado do Rio de Janeiro que tinham, além da rubrica de desconto da contribuição sindical e associativa, as rubricas de supostos benefícios aos seus associados que iam de compra de óculos com prestações amortizadas na folha de pagamento a consórcios de casa própria e eletrodomésticos, por certo em conluio com gestores de pessoal nos diversos órgãos públicos. Havia também aquelas associações consignatárias que prestavam o chamado “auxílio financeiro”, na verdade um amplo esquema de agiotagem que submetia servidores, aposentados e pensionistas, ou seja, os mais humildes, a taxas de juros que chegavam a 25% ao mês, e tudo isso de certa maneira viabilizado por meio do sistema da folha de pagamento do estado do Rio de Janeiro. Não era possível apontar quais gestores públicos eram os responsáveis por estas operações, algumas destas que, se não poderiam 88


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ser classificadas como ilegais, eram, no mínimo, imorais e foram sendo realizadas durante anos, transformando a folha de pagamento do Estado e o sistema de descontos em ferramentas de interesses privados e de negócios que não tinham o menor motivo para ter o Estado como mediador. A saída foi baixar o tacão e acabar com todas estas rubricas de descontos, mantendo para os sindicatos e as associações apenas aqueles concernentes à sua atividade, ou seja, as contribuições sindicais e associativas. Haviam consignatárias “cadastradas” no Estado há dezenas de anos e sem qualquer documentação nos arquivos. Por qualquer razão que fosse, não era possível identificar seus dirigentes, o endereço de sua sede e seus objetivos sociais. quando muito, o Estado tinha o número da conta bancária na qual deveria depositar mês a mês o valor descontado do salário dos servidores, sem nem mesmo saber se eles estavam de acordo e se haviam assinado no seu respectivo órgão um PCF (Pedido de Consignação em Folha) — instrumento pelo qual o funcionário público autorizava descontar um determinado valor do seu salário em favor de uma instituição consignatária. Todos os meses, inúmeros servidores públicos, a maioria da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do estado do Rio de Janeiro, recorriam aos postos de atendimento da Secretaria de Estado de Administração reclamando de descontos em seus contracheques que não haviam sido autorizados, mas que mesmo assim eram implantados pelos responsáveis pela gestão da folha de pagamento nas suas corporações. Além de sindicatos e associações de servidores, o elenco de consignatárias era formado até mesmo por instituições religiosas e clubes recreativos que demandavam procedimentos e comandos de elevados custos para a administração pública e que sobrecarregavam o obsoleto e cheio de “bacalhaus” sistema da folha de pagamento desenvolvido 89


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pelo Proderj — órgão responsável pelos sistemas de dados do estado do Rio de Janeiro. Para corrigir isso, iniciei um processo de recadastramento de todas as consignatárias, o que levou ao cancelamento do cadastro e, consequentemente, dos descontos em favor de várias organizações e associações, umas por não apresentarem a documentação requerida e outras por não comprovarem atividades regulares e/ou por não apresentarem a comprovação de que os descontos realizados na folha de pagamento em seu favor haviam sido autorizados pelos respectivos servidores públicos. Boa parte destas viviam de pequenos descontos implantados sem o consentimento dos servidores, no geral policiais e bombeiros militares, como disse antes, alguns nem reclamados por eles, mas que no montante geravam uma boa cifra mensal. desmontar estes esquemas gerou uma enorme pressão sobre a Superintendência. Pressões que vinham de todos os lados a favor de consignatárias que durante anos usaram a folha de pagamento do estado do Rio de Janeiro para negócios, no mínimo, imorais. Parte destas pressões vinha com requinte de ameaças à minha integridade física, afinal eu estava afetando interesses e, embora imaginasse as dimensões, eu não conseguia medir até que ponto fazer isso colocava a minha vida em risco. Estas experiências diminuíram ainda mais a minha crença no serviço público e amplificaram o meu desejo de (re)inventar novas formas de atuar socialmente, e a rota de certa maneira já estava traçada — o desenvolvimento do Programa Social Crescer e viver no G.R.E.S. Unidos do Porto da Pedra se tornou então uma obsessão pra mim. Sem saber exatamente por onde começar, meu primeiro passo foi correr atrás de publicações, pesquisar e visitar sites na internet, entre os quais o do Unicef. Encontrei uma vasta biografia sobre projetos sociais realizados com crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade e 90


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risco social. Mas nada disso me trouxe qualquer inspiração nem mesmo apontou caminhos a um cara como eu — sem nenhuma experiência na área, sem nenhum recurso financeiro para iniciar o trabalho e ainda tendo que encontrar tempo para conciliar o desenvolvimento dessa ideia com as tantas atribuições do cargo de superintendente de atendimento ao servidor cidadão na Secretaria de Administração e Reestruturação do estado do Rio de Janeiro. Como em uma escola de samba se encontra todo tipo de gente, de capoeiristas a médicos, o jeito que eu encontrei foi ir atrás do altruísmo dos componentes e convidar para uma reunião todos os segmentos da agremiação: ala de compositores; baianas; velha guarda; harmonia; departamento feminino; e algumas alas organizadas de desfilantes da comunidade. Em um dia de semana à noite, compareceram cerca de duzentos componentes aos quais falei sobre a importância de a Unidos do Porto da Pedra, a exemplo de outras escolas de samba, desenvolver ações sociais. Sublinhei o fato de que a agremiação estava passando por um importante processo de mudanças em sua gestão e que um dos desafios era, além de retomar o seu lugar no Grupo Especial do carnaval, ampliar a sua expressão e a sua importância na comunidade, por meio da apropriação do seu espaço, de suas instalações e da força dos seus componentes em atividade que contribuíssem para o desenvolvimento do município de São Gonçalo, especialmente em função do bem-estar de crianças, adolescentes e jovens, já que havíamos escolhido como enredo homenagear os dez anos da edição do Estatuto dos direitos da Criança e do Adolescente. Não tínhamos, na verdade, muito o que comemorar, pois ainda eram frágeis as políticas públicas para assegurar os direitos consignados na referida lei, e os indicadores sociais sobre a infância em nossa cidade e no país não eram animadores.

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Sublinhei para os presentes na reunião a falta de recursos e as dificuldades para a escola produzir e apresentar o carnaval no ano seguinte. E que, portanto, todos os esforços de captação e também a renda auferida com as atividades na quadra da agremiação eram destinados a isso. Logo, se quiséssemos implantar um projeto social, a única estratégia possível era contar com a mão de obra voluntária dos componentes da agremiação, identificando ali na reunião, portanto, quem poderia dispor de algum tempo durante a semana para transmitir um conhecimento ou uma habilidade, colaborar com a organização das atividades, enfim, ajudar de diferentes formas na construção efetiva do Programa Social Crescer e viver — nome que expliquei ter sido inspirado no título do nosso enredo. No grupo de componentes reunidos naquela noite, encontrei gente disposta a ministrar oficinas e aulas de percussão, judô, capoeira, violão, cavaquinho, dança, pintura etc. Havia até médicos que se ofereceram para realizar consultas ambulatoriais no caso de a escola de samba dispor de salas para este tipo de atendimento. Os que não se sentiram à vontade para ensinar ou transmitir algum conhecimento se disponibilizaram para atividades administrativas, operacionais e tudo o mais que fosse necessário para viabilizar a proposta de criação de um braço de ação social na escola de samba. E assim, a partir da mobilização altruísta de dezenas de componentes, criei, no ano de 2000, o Programa Social Crescer e viver, inspirado no título do enredo do carnaval da Unidos do Porto da Pedra para o ano de 2001, que se avizinhava — “Um sonho possível. Crescer e viver agora é lei.”

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ALUNO dO PROgRAMA dE cIRcO SOcIAL dO cREScER E vIvER. cRédITO: ISABEL EBERT

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cOM INTEgRANTES dA BANdA O RAPPA NOS PRIMEIROS ANOS dO cREScER E vIvER. cRédITO: ARQUIvO SAAP/FASE

cOM MARIA JUçÁ E vINIcIUS dAUMAS.

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cRédITO: IERê FERREIRA


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Altruísmo e voluntarismo não bastam Em poucas semanas, o Programa Social Crescer e viver ganhou contornos de uma das maiores ações sociais no município de São Gonçalo. A cada dia crescia o número de componentes e simpatizantes do G.R.E.S Unidos do Porto da Pedra dispostos a realizar algum tipo de atividade. Não era raro eu ser abordado na escola de samba, até mesmo durante os eventos relacionados ao carnaval — os ensaios semanais eram realizados às quartas e sextas-feiras — por pessoas que queriam ministrar aulas, realizar eventos para angariar doações, e mesmo por pequenos comerciantes locais que se dispunham a doar insumos para a oferta de lanches a centenas de crianças, adolescentes e jovens, e até idosos, que frequentavam aulas, oficinas e atividades que iam de rodas de capoeira a consultas oftalmológicas. Era bacana ver tanta gente querendo colaborar, fazer coisas voluntariamente, enfim, dar um pouco de si para aquele propósito. A diretoria da escola de samba se orgulhava daquela atmosfera colaborativa que eu havia produzido. A mobilização de componentes era cada vez maior, e o meu papel era mediar e tentar organizar em atividades aquela avalanche de altruísmo que, no fundo, eu sabia ser apenas uma onda de solidariedade sem quaisquer eficácia e impacto 95


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na vida das crianças, adolescentes e jovens que frequentavam as atividades e se beneficiavam delas. Àquela altura eu já havia estudado e pesquisado um conjunto de outras ações sociais e, ao confrontá-las com o Crescer e viver, tinha sido tomado por uma frustração em perceber que o programa social tomava uma forma assistencialista e sem qualquer direção estruturante. Muito embora eu fosse o responsável pela gestão das ações, o Crescer e viver se tornara um movimento completamente fora do meu controle. Não me incomodavam as múltiplas lideranças que foram surgindo e se agregando ao Crescer e viver; o que me entristecia era saber que os impactos e os resultados das suas ações não passavam da clássica ideia de “ocupar o tempo ocioso” de crianças, adolescentes e jovens que não estavam em seu horário escolar e do desejo dos colaboradores de “ajudar os carentes e necessitados: os pobres”. Claro que isso tem um valor humano. Mas, na verdade, só alimentava o espírito cristão e o altruísmo daqueles que se voluntariavam para as atividades sociais nesta perspectiva. No fundo eu sabia que nada daquilo contribuía para os participantes e beneficiários das atividades — especialmente as crianças, os adolescentes e os jovens — adquirirem saberes e conhecimentos que os preparassem para se tornarem sujeitos críticos e criativos, novos agentes de mobilização cultural e comunitária, e para as suas consolidações de identidade, com um repertório de habilidades que lhes permitissem interferir nas questões geradoras da situação de exclusão e vulnerabilidade a que estavam submetidos; enfim, que lhe permitissem ter autoestima e autonomia para empreender transformações em suas vidas e nos contextos em que estavam inseridos. Percebi que o meu discurso sobre a falta de políticas públicas para assegurar o direito da infância e da juventude funcionara para mobilizar a força voluntária dos componentes da agremiação. No entanto, não fora suficiente para eles 96


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entenderem que interferir e promover transformações sociais exige mais do que voluntarismo e altruísmo. Mesmo assim, naquela forma de “movimento”, o Crescer e viver a cada semana tinha uma nova ação que o distanciava cada vez mais do foco que eu pretendia dar à iniciativa. isso sem contar o fato de que trabalhar com altruísmo e voluntarismo naquelas proporções gerava um montão de problemas, entre os quais a descontinuidade e/ou a irregularidade com a qual algumas pessoas prestavam o serviço, frustrando a expectativa dos seus beneficiários. isso também me incomodava muito. Eu não parava de pensar em como dar novos rumos e foco ao trabalho. Além disso, depois de conhecer um pouco do que faziam as demais escolas de samba no campo da ação social, eu havia atentado para o fato de que todas elas, as que mantinham projetos sociais, no geral trabalhavam com atividades esportivas. Comecei então a pensar que o nosso diferencial seria o trabalho com linguagens artísticas e culturais, característica das organizações e ações sociais mais interessantes que eu havia pesquisado e estudado até então, como o Grupo Cultural AfroReggae — organização pela qual eu passei a nutrir profunda admiração. Mal sabia eu que tempos depois José Junior — fundador e coordenador do grupo —, viria a se tornar um dos grandes parceiros do Crescer e viver, e um amigo com o qual teria dívidas daquelas que dinheiro não paga. O Crescer e viver precisava ser reinventado, mas não existia clima para frear todo aquele movimento que eu mesmo, por descuido e também por falta de tempo para me dedicar com exclusividade ao seu desenvolvimento, havia criado. A decisão foi deixar o barco navegar e procurar em meio àquela tormenta uma oportunidade de mudar o rumo. Recorri à rede de relações que eu havia criado no governo do estado do Rio de Janeiro em função do exercício do cargo que eu ocupava na Secretaria de Estado de Adminis97


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tração. O primeiro órgão que procurei foi a SEC (Secretaria de Estado de Cultura), em busca de ideias e sugestões que tornassem o Crescer e viver uma organização focada no desenvolvimento de ações, projetos e atividades artísticas e culturais junto a crianças, adolescentes e jovens. A primeira pessoa que procurei para um papo na SEC foi Maria Juçá, que, na época, enquanto ainda lutava pela retomada do Circo voador, exercia um cargo de superintendente. Ao chegar à sua sala, me deparei com uma cena intrigante: seu gabinete estava cheio de jovens. Pela estética visual da molecada, se podia ver funkeiros, punks, roqueiros, grafiteiros, skatistas, artesãos. várias tribos abrigadas em uma minúscula sala do 13º andar do Banerjão — edifício que outrora foi a sede do Banerj (Banco do Estado do Rio de Janeiro), onde funcionam várias secretarias e vários órgãos públicos do governo do estado do Rio de Janeiro. Até hoje, no mesmo edifício e no mesmo andar, funciona a SEC. Na minúscula sala da Juçá não havia mobília suficiente para abrigar aquela pequena multidão. A galera se distribuía sentada no chão, e qualquer pessoa ao entrar naquele ambiente imaginaria estar em qualquer lugar, menos em uma repartição pública, conferindo ao espaço uma certa poesia e vida, frente à aridez da maior parte das repartições que todos nós conhecemos. Com a falta de espaço, nos sentamos na recepção da secretaria. Minha primeira pergunta foi: “que porrada de gente é essa na sua sala? São todos funcionários?” Se eu me lembro bem do diálogo que travamos, ela respondeu: “Porra nenhuma. Muitos são bolsistas do Programa Jovens pela Paz que estou botando para desenvolver atividades nas suas comunidades, e também tem um montão de desempregado e desocupado que vem aqui me pedir ajuda, dinheiro de passagem e o escambal a quatro.”

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Seguindo no papo expliquei a ela o motivo da minha visita, relatando a criação do Crescer e viver e a ideia de desenvolver e consolidar, através dele, um conjunto de atividades artísticas e culturais para crianças, adolescentes e jovens de classes populares que viviam no entorno da Unidos do Porto da Pedra. Perguntei de que maneira a Secretaria de Estado de Cultura poderia me ajudar nisso. Juçá, que não tem papas na língua, me respondeu, se eu me recordo bem do diálogo: “Em porra nenhuma. A Secretaria não tem dinheiro para nada. Até o papel e a tinta de impressora para as minhas atividades eu tenho que comprar com o meu salário.” Hoje em dia, ao olhar pelo retrovisor da minha memória e comparar o que era a Secretaria de Estado de Cultura naquela época com o que é agora, pouco mais de dez anos depois, sob a gestão da secretária Adriana Rattes, não há como deixar de ressaltar que ela (re)inventou a gestão de cultura no estado do Rio de Janeiro, pois antes dela a cultura na administração pública estadual dificilmente foi algo além de concessão de benefícios fiscais e pagamento de custos fixos dos seus equipamentos culturais. Juçá me disse que o máximo que eu poderia conseguir na Secretaria de Estado de Cultura era colocar um projeto na Lei de incentivo à Cultura do estado do Rio de Janeiro e depois correr atrás de uma empresa interessada em patrociná-lo. Fora isso, me explicou como funcionava o tal Programa Jovens pela Paz — uma iniciativa realizada em parceria com o governo do estado do Rio de Janeiro e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) —, no qual jovens de classes populares eram recrutados para realizar ações socioculturais em suas comunidades em troca de uma bolsa que, se eu não me engano, era de um salário mínimo. O Programa Jovens pela Paz tinha uma excelente base conceitual e visava enfrentar, entre outros problemas, os índices de violência que afetavam a juventude do Rio de Janeiro no início da década de 2000. Naquela época, o Estado 99


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liderava no Brasil os índices de mortalidade juvenil por causas externas — classificação de óbitos do Sistema de Saúde que envolvem mortes decorrentes de acidentes de trânsito, homicídios, suicídios etc. A maioria dos casos no Rio de Janeiro eram por armas de fogo, seguido pelos estados de Pernambuco e São Paulo. Estavam previstas milhares de bolsas; imagino que, no escopo do programa, elas seriam distribuídas criteriosamente entre jovens de territórios populares, mas, como quase tudo no universo da administração pública sofre a velha lógica do aparelhamento para servir a projetos eleitorais, não é preciso dizer que parte destas bolsas foi distribuída levando-se em consideração indicação de deputados, vereadores, prefeitos e liderança políticas. Mesmo não sendo gerido pela Secretaria de Estado de Cultura, Maria Juçá foi atrás do programa e indicou uma galera bacana de comunidades. Além disso, saiu catando aqueles bolsistas que estavam soltos, zanzando sem fazer jus à bolsa que recebiam, e botou uma galera para atuar. Como acontecia em tudo que era canto do estado do Rio do Janeiro, em São Gonçalo sobravam bolsistas e faltavam ações. Juçá me ofereceu ir atrás de parte deles se eu topasse colocá-los para desenvolver atividades no Crescer e viver. Aceitei a parada, e em menos de uma semana lá estavam uns dez jovens ministrando oficinas artísticas. Eram todos muito amadores, nada diferente dos componentes da escola de samba que atuavam voluntariamente no programa social. Mesmo tendo habilidades, os jovens bolsistas não tinham experiência didática; além disso, eu tive de correr atrás de doações de material pedagógico para as oficinas que eles tinham passado a ministrar. de toda maneira, juntar aquela molecada ali me dava prazer. Se por um lado eles não tinham uma postura voluntariosa (no geral estavam ali pela bolsa que recebiam do Programa Jovens pela Paz), por outro não tinham os vícios e a visão careta e estigmatizante da maior parte dos componentes da escola 100


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de samba que atuavam no Crescer e viver voluntariamente porque queriam “ajudar as crianças pobres”. E, mesmo não tendo experiência na gestão de ações sociais e culturais, eu reunia competências para liderar, mobilizar e dar formação a jovens, desenvolvidas no período em que militei e presidi a Juventude Socialista do PdT. Nesses jovens vi a oportunidade de formar um grupo, mesmo pequeno, capaz de compreender e operar o sentido e o rumo que eu esperava para o Crescer e viver. E assim o Crescer e viver foi se desenvolvendo, frágil, certamente, pois ainda não tinha um projeto sistematizado com objetivos e metas claros. Além do trabalho voluntário e irregular de componentes da escola de samba, dependíamos daquela dezena de jovens bolsistas de um programa sobre o qual eu não tinha o menor controle e que, como qualquer outro programa ou projeto desenvolvido pelo poder público, sofria o risco de ser extinto caso o Jovens Pela Paz fosse descontinuado pelo governo do estado do Rio de Janeiro. Persistia a necessidade de reinventar o Crescer e viver, e eu não parava de pensar sobre os meios pelos quais iria fazê-lo. Seguia lendo e pesquisando ações sociais empreendidas por outras organizações de maneira cada vez mais obsessiva. A internet se tornou minha maior fonte de pesquisas. Não havia site de organizações que desenvolvessem e/ou financiassem projetos com crianças, adolescentes e jovens — particularmente aquelas que tivessem as atividades artísticas e culturais como ferramenta pedagógica —, que eu não conhecesse. quanto às principais e mais visíveis, estudei profundamente os conteúdos disponíveis em sua páginas na internet, mas nenhum destes conteúdos me apontava uma direção, ou seja, todas elas apenas me faziam entender que eu precisa formular algo singular e inovador. E, intuitivamente, eu sabia que isso só seria possível por meio de uma ação artística.

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cENA dO ESPETテ…ULO PASSOS, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: ISABEL EBERT



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Era preciso dar um novo salto, mas as minhas “acrobacias mentais”, expressão que eu iria ouvir anos depois da boca de Alice viveiros de Castro — uma amiga que surgiria tempos depois na trajetória do Crescer e viver, gerando um baita impacto para a atuação da organização sobre a qual falo nas páginas seguintes —, não me davam nenhum insight. Eu sabia o que queria construir, mais ou menos onde queria chegar, mas não fazia a menor ideia sobre com que “veículo” de curso eu poderia alcançar o destino sonhado. Um outro problema era a minha complexa e atribulada agenda de trabalho na Secretaria de Estado de Administração, que me impedia de me dedicar com exclusividade a pensar novas estratégias de desenvolvimento do Crescer e viver. quanto a isso, porém, eu não tinha o que fazer, era com o dinheiro do trabalho no serviço público que eu pagava a minha existência, ou seja, eu tinha pela frente um obstáculo que subjetivamente tornava imperioso o tal novo salto. de certa maneira, era inconsciente o meu desejo de me dedicar com exclusividade ao desenvolvimento do Crescer e viver.

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circo – melhor lugar impossível para dar o salto Pelo menos uma vez por semana, em geral às quartas-feiras, era comum eu me encontrar com amigos para tomar uma cerveja e jogar conversa fora no bar do seu Antônio — um pequeno botequim em frente à quadra da Unidos do Porto da Pedra. Na verdade eram muitas cervejas, porque seu Antônio, um semianalfabeto que só sabia fazer conta, era um empreendedor nato. Cozinhava dois panelões de bucho no feijão preto. O prato fundo da iguaria saía por apenas 1 real, e a galera voltando do trabalho rafada de fome caía dentro e nem se dava conta de que não só estava enchendo a pança, mas também ampliando a sede e, consequentemente, o consumo de cerveja, pois seu Antônio carregava no tempero e no sal. O melhor destas quartas-feiras era o encontro com uma galera bacana do bairro. Por ali paravam vários tipos de pessoas, gente de toda parte do município de São Gonçalo e de diferentes áreas de atuação: pequenos empresários, funcionários públicos e profissionais liberais. quase todo mundo acabava se tornando amigo um do outro e trazia 105


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outros amigos para conhecer o já famoso “bucho no feijão preto” do seu Antônio. Assim como a galera que joga pelada uma vez por semana, pra mim “bater aquela bola” no Bar do Seu Antônio era quase religioso. E foi numa destas quartas-feiras tomando cerveja e comendo bucho no feijão-preto que reencontrei vinicius daumas. Ele que passava de carro pela rua do bar me reconheceu e parou para um abraço e um papo que acabou durando toda aquela noite. Conheci vinicius nos anos 1990 em minha breve passagem pelo movimento estudantil no Colégio São Gonçalo. Logo depois, viemos a militar juntos na campanha eleitoral de 1992, quando a Juventude Socialista teve atuação decisiva na vitória do PdT, com a candidatura de João Bravo à Prefeitura do município de São Gonçalo. depois da vitória, eu fui parar no governo, e vinicius, mesmo continuando a sua militância no partido, traçou um caminho em direção às artes depois de trabalhar por um longo tempo como animador cultural em um CiEP (Centro integrado de Educação Pública) — o popular Brizolão. vinicius seguiu desenvolvendo suas habilidades musicais e cênicas, que o levaram a criar o seu melhor personagem — o Palhaço Gargalhada —, e por quase uma década integrou um projeto chamado Caravana Petrobras de Cultura, que consistia em levar uma trupe formada por jovens artistas de circo a cidades dos interiores do Brasil, apresentando espetáculos em ruas, praças e escolas públicas. Tempos depois, vinicius me relatou ter itinerado com a Caravana Petrobras de Cultura por 636 municípios distribuídos por todos os estados do Brasil. Nesse encontro fortuito no Bar do Seu Antônio, vinicius me contou que a empresa responsável pelo projeto dele havia perdido o patrocínio da Petrobras e que a caravana, portanto, chegara ao fim. Perguntei como ele estava, o que pretendia fazer da vida agora. Ele me respondeu que de certa maneira estava desempregado, mas que tinha uma peque106


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na poupança, e que pretendia retomar a faculdade que havia trancado em função das viagens com a caravana. Além disso, ele também havia montado uma empresa focada em promover animações em festas e prestar alguns serviços na área de produção cultural. O papo fluiu, e ele revelou um outro desejo: criar uma escola de circo em São Gonçalo para crianças, adolescentes e jovens. “Caralhooooo!!!!” Essa foi a reação que tive quando ouvi a ideia do vinicius de criar uma escola de circo. Em seguida, contei pra ele toda a história da criação do Crescer e viver, o que eu havia realizado até então, como a ação estava se desenvolvendo naquele momento, e falei do meu desejo de centrar as ações em atividades artísticas e culturais com crianças, adolescentes e jovens — já deixando claro que um projeto de escola de circo seria perfeito para o salto que eu pretendia dar à ação. E propus a ele associar a sua ideia ao programa social que eu estava desenvolvendo na Unidos do Porto da Pedra. Ele topou no ato, e, como o projeto de circo era uma intenção do vinicius, ainda sem formatação, marcamos um novo papo para dias depois em minha casa com o objetivo de colocar tudo no papel. Em encontro de trabalho, diante de um velho PC que eu tinha em minha casa, passamos horas discutindo a pertinência e a importância de se criar uma escola de circo em São Gonçalo, problematizando a partir de questões como: Por que criá-la?; quais seriam os objetivos da escola?; quais seriam os potenciais benefícios para os participantes?; que recursos materiais, humanos e financeiros seriam necessários?. Enfim, toda uma gama de perguntas e respostas que ao final deu origem a um conteúdo bastante razoável para se formatar um projeto. Recheamos tudo com indicadores sociais do município de São Gonçalo: índices de desempenho e evasão escolar; acesso e disponibilidade de bens e equipamentos culturais; violência e criminalidade; entre outros que fizeram parte das nossas reflexões sobre a importância, pelo menos ao nosso ver, de a cidade contar 107


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com uma escola de circo capaz de interferir na melhoria e na transformação de tais indicadores. Agora, com uma ideia de projeto melhor estruturada e com conteúdo suficiente, eu poderia lançar mão das minhas atribuições na administração pública. quando tomei esta decisão fui à procura de João Carlos, então assessor da Secretaria de Estado de Cultura que conheci na militância no PdT, e do qual me tornei amigo quando passamos juntos a colaborar com a Casa Cuba Brasil — uma organização que reunia intelectuais, escritores, artistas e militantes da esquerda do Rio de Janeiro com o propósito de realizar ações humanitárias e de apoio ao povo cubano durante o período mais crítico do bloqueio econômico dos EUA nos anos 1990. depois disso, o nosso reencontro se deu no mundo do samba. Eu, vice-presidente de projetos sociais da Unidos do Porto da Pedra, e ele, diretor de projetos especiais da Mangueira, uma das agremiações, além da minha, é claro, que eu mais frequentava aos sábados, sempre me instalando na mesa cativa que o João Carlos tinha. O motivo de procurá-lo com o projeto do circo era pedir a sua colaboração a fim de me prestar uma consultoria para enquadrá-lo no mecanismo do benefício fiscal que o estado do Rio de Janeiro — a Lei Estadual de incentivo à Cultura, sobre a qual a Maria Juçá havia me falado anteriormente, e eu ficara de olho, aguardando o tempo certo de recorrer a ele. Como sempre, João Carlos, prestativo e parceiro, colocou sua equipe à disposição para me dar todos os toques, prestando a consultoria necessária para que eu mesmo elaborasse o projeto atendendo aos pré-requisitos da Lei. incentivado o projeto a que demos o nome de Escola de Circo Pequeno Tigre, pela sua associação à Unidos do Porto de Pedra, que tem como símbolo um tigre, iniciei um périplo para conseguir uma empresa interessada em patrociná-lo. Contatos que eu tinha na Secretaria de Estado de Fazenda do governo do estado do Rio de Janeiro me permitiram o 108


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acesso a uma lista com todos os contribuintes do iCMS com potencial de investimento via Lei de incentivo à Cultura. Escrevi e-mails, enviei cartas e até consegui fazer algumas reuniões. Aos poucos, a lista de empresas foi se esgotando. de algumas poucas recebi a clássica resposta dizendo que o projeto era interessante, mas que os recursos que tinham já estavam previamente comprometidos com outras ações, sugerindo o contato no ano seguinte. Como eu, instintivamente, sempre acreditei que empreender é uma mescla de persistência e de uma rede de generosos amigos e parceiros, de novo recorri aos meus contatos na administração pública estadual e perguntei ao meu chefe Hugo Leal, secretário de Estado de Administração, se ele conhecia alguém na Telemar, empresa que investia uma significativa soma de recursos em patrocínios culturais via Lei de incentivo. A única da qual, mesmo depois de enviar inúmeros e-mails, eu não tinha recebido qualquer retorno. Por sorte, Hugo Leal me disse ser amigo do então diretor financeiro da empresa e se dispôs a conversar com ele sobre a possibilidade de me receber para eu apresentar o projeto. Nunca vi a cara do tal diretor, lembro-me apenas do Hugo Leal, semanas depois, me entregando um cartão do figurão da Telemar; no verso deste, um bilhete onde estava inscrito: “Sr. Carlos Pollhuber, favor atender o portador deste, que te levará um projeto de interesse da empresa.” Além do cartão, Hugo me passou a orientação do figurão para ir até a sede da empresa no Leblon e entregar o cartão na recepção do instituto Telemar. No outro dia, lá estava eu sentado diante do sr. Carlos Pollhuber, entregando o projeto e discutindo os termos do patrocínio. Recebi dele todas as orientações sobre o processo de contratação, que envolvia a remessa de um conjunto de documentos da Unidos do Porto de Pedra para o processo de contratação que culminaria em um patrocínio no valor total de 250 mil reais. Como a Unidos do Porto da Pedra 109


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nunca havia assinado um contrato de patrocínio naqueles termos, envolvendo lei de incentivo, e eu muito menos tinha qualquer intimidade com aquele tipo de operação, foi penoso juntar os papéis necessários e cumprir todas as exigências. Passei meses providenciando a documentação da Unidos do Porto da Pedra, e o contrato só foi assinado quase no final de 2000. Faltava agora aguardar a liberação dos recursos para iniciar o projeto que mudaria completamente os destinos do Crescer e viver, da minha vida e do vinicius daumas — o que tempos depois, em 2007, ele eternizaria no seguinte poema:

O PALHAÇO E O MAGAREFE

Para aqueles que agora chegam, para outros que ainda virão Para uns que não chegaram e outros que aqui estão Esta história que vos conto não é nada inventada É uma história de verdade, por isso preste atenção

Uma história que retrata uma bela construção A história de duas vidas que caminham há um tempão Duas vidas de conquistas, de batalhas sem canhão, que numa guerra de justiça se lutou por transformação

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cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

De um lado um palhaço de chapéu com uma flor Uma ideia na cabeça e à vista muita dor Se inquieta sem sua cena diante da situação em que passam as crianças só com água e algum pão

Como pode essa criança sem comida e sem morada dar risada do palhaço que conta a sua piada? Se isso é possível tenho muito a fazer, pensou o palhaço inquieto em seu lazer

De um lado um magarefe que defende o seu sustento Dia a dia no abate, mas abatido pelo tempo que levava de sua casa até o seu trabalho pedalando quilômetros todo dia, sem trégua e ao relento

“Até quando”, pensou ele, “um menino tem de ter responsabilidades de um adulto, que nem chegou a crescer?” Isso não é correto e, portanto, não vou esmorecer Quero uma vida digna, com respeito e sem à injustiça me submeter

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Eis que um dia há o encontro desta dupla inusitada dentro de uma escola com amigos sentados na calçada Jovens que lutavam sem granadas, sem bombas, sem pavio, mas tocavam fogo no movimento estudantil

Este foi o início da temporada que jamais se acabará A vida é uma só, mas o espetáculo não para e não pode parar Nas mãos de outros jovens que por aqui passarão o show continua diante de qualquer situação

Essa é uma história de vontade, de quando se abre mão Ao dedicar a sua própria vida nesta instituição Na verdade elas se fundem, não sei bem a explicação O que é a minha vida e o que é a Organização

Por isso meus senhores, olhem para trás ao passar pelo portão Lembre-se dessa história, registre em sua ilha de edição A memória é ao que me refiro, que alimenta a alma e a imaginação 112


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Vou ficando por aqui antes que comece a escurecer Tenho ainda uma estrada pela frente nessa vida de artista que se chama Crescer e Viver. Vinicius Daumas

EdUcANdO PRATIcA OFIcINA dE AcROBAcIA NO cIRcO SOcIAL dO cREScER E vIvER QUANdO A INSTITUIçãO AINdA MANTINhA UM NúcLEO dE ATIvIdAdES EM UM cIEP, EM SãO gONçALO/RJ. cRédITO: J.R. RIPPER


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Nas perdas encontramos o caminho Em 17 de janeiro de 2001, com uma vasta quantidade de equipamentos necessários à prática de atividades circenses e dez artistas de circo com amplo repertório de habilidades contratados para atuar como instrutores, o projeto Escola de Circo Pequeno Tigre foi implantado, oferecendo aulas de 16 diferentes técnicas circenses para 136 crianças e adolescentes, estudantes da rede pública de ensino — 36 inscritos a mais que a quantidade inicialmente prevista e uma fila de espera que crescia a cada dia, uma vez que a maior parte das crianças e dos adolescentes que frequentavam as demais atividades oferecidas pelo Crescer e viver havia se encantado pela transformação que sofrera a quadra da Unidos do Porto de Pedra, convertida em um imenso picadeiro com mais de três mil metros quadrados. Enquanto o vinicius daumas se encarregava da gestão da escola de circo e das demais atividades do programa social, sendo remunerado para tal atividade por meio do patrocínio oferecido pela Telemar, eu, que ainda ganhava a vida na burocracia estatal, dedicava minha atenção a pensar estratégias para o desenvolvimento e o fortalecimento institucional da iniciativa. Minha atuação estava centrada na 114


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busca de apoios e parcerias que permitissem qualificar as ações do Crescer e viver, visando ampliar os seus impactos e os seus resultados, bem como as suas relações e as suas interações com outros atores sociais com ações em campos similares ao da sua atuação — arte, cultura, educação, infância, juventude e direitos humanos. Cada vez mais eu entendia que a maturidade institucional do Crescer e viver, mais do que de apoios e patrocínios, dependia da sua capacidade de interpretar e se inserir em diferentes processos sociais, tanto para formular uma missão consequente como para dar consecução a ela. Nos limites do que se construíra e do que se havia planejado a partir do patrocínio da Telemar para a implantação e a realização do projeto da escola de circo, o Crescer e viver começou a engrenar. de maneira bastante rápida, o programa social ganhou uma boa reputação no município de São Gonçalo. A expressão pública viria logo em seguida ao carnaval de 2001, quando a Unidos do Porto da Pedra sagrou-se campeã no Grupo de Acesso — com o enredo em homenagem aos dez anos de edição do ECA — e retomou o seu lugar no Grupo Especial das Escolas de Samba. Em paralelo à visibilidade conseguida com a vitória, veio o interesse dos veículos de comunicação pelo Crescer e viver como um legado do processo de produção de um carnaval que falava dos direitos da infância e, claro, da vitória no carnaval e da reconquista do espaço da escola de samba no Grupo Especial do carnaval carioca. Passada a pequena onda midiática que rendeu, entre outras matérias em vários veículos de comunicação, uma megarreportagem no programa Almanaque, da Globo News, dando visibilidade ao Crescer e viver — especialmente ao projeto Escola de Circo Pequeno Tigre —, entramos na entressafra do carnaval — o período entre o término de um carnaval e o início do processo de escolha de um novo enredo para o carnaval subsequente. 115


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Neste período não são apenas os componentes que “tiram férias” da escola de samba. Parte da diretoria também se afasta, e as reuniões e os encontros não acontecem com muita frequência. Como resultado disso, aquelas atividades que estavam sendo realizadas por componentes voluntários foram afetadas drasticamente, pois quase todos eles se afastaram já na primeira semana pós-carnaval e não levou muito tempo para os que ainda tinham restado se desligassem. Praticamente o Crescer e viver se reduzira ao projeto Escola de Circo Pequeno Tigre e às oficinas que eram ministradas pelos bolsistas do Programa Jovens pela Paz. Como eu já estava certo de que o melhor caminho a perseguir para o desenvolvimento do programa social seria o foco no trabalho com arte e cultura, a rota do nosso caminho rumo ao picadeiro estava traçada. A partir disso, o Crescer e viver se restringiu ao trabalho com circo, e daí começamos a focar na qualificação desta atividade, durante o ano de 2001, que finalizamos com uma grande festa no mês de dezembro, com um espetáculo de culminância das atividades apresentado por todos os alunos para uma plateia de aproximadamente duas mil pessoas, formada por pais e familiares, componentes dos diversos segmentos da agremiação e de outras agremiações carnavalescas, autoridades públicas da cidade e representantes da Telemar, na quadra da Unidos do Porto da Pedra. Eu estava certo de que a porta que tinha conseguido abrir no ano anterior com a Telemar permaneceria aberta, mas já na festa a representante da empresa me disse que um novo apoio dependia de submetermos o projeto a um sistema de seleção pública gerenciado pelo instituto Telemar, que seria divulgado nos próximos dias. Passamos os primeiros meses de 2002 aguardando o resultado do processo seletivo da Telemar. Consegui construir com os educadores e os profissionais envolvidos com o Crescer e viver o compromisso de manter as atividades 116


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da escola de circo em funcionamento até a “assinatura do novo contrato”. Para garantir a atuação deles, consegui que a diretoria da escola de samba aprovasse uma pequena verba para a despesa com passagens dos profissionais, que eu complementava doando parte do meu salário como superintendente no governo do estado do Rio de Janeiro, e o vinicius passou a dividir o seu dia entre a administração do Crescer e viver e um estágio de jornalista em O Fluminense. A coisa estava fluindo, todos estávamos confiantes de que o Crescer e viver estaria entre os projetos selecionados pelo instituto Telemar, até que o resultado saiu e descobrimos que não estávamos entre aqueles que receberiam patrocínio. Foi um soco na boca do estômago! Eu tinha focado toda a minha energia e a minha expectativa em um resultado positivo. Pior do que isso, levei todo mundo a acreditar que a seleção era praticamente certa e não pensei em estratégias e saídas diferentes de desistir dos meus percursos na administração pública para me dedicar exclusivamente ao Crescer e viver. Calculei meus gastos com aluguel de um pequeno apartamento em um condomínio popular no centro de São Gonçalo, somei com as despesas de água, luz e despensa, e vi que a minha pequena poupança daria para bancar estes custos por pelo menos dez meses — tempo que eu pensei ser suficiente para encontrar parcerias, apoios e patrocínios para a manutenção do Crescer e viver. Em menos de cinco meses a poupança acabou; investi parte dela em atividades de prospecção com despesas de deslocamentos para reuniões, despesas com a elaboração de projetos, e segui doando parte da grana para as despesas com passagens dos profissionais que, mesmo frente ao fato de não termos conseguido alcançar o patrocínio que esperávamos, se sentiram motivados com o meu gesto de resolver me dedicar exclusivamente ao Crescer e viver.

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OLhAR O MUNdO dE cABEçA PARA BAIxO é O MEIO PARA vER O QUE POdEMOS FAZER PARA REINvENTÁ-LO. cRédITO: RATãO dINIZ



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O ano de 2002 foi difícil. quando a grana acabou, minha saída foi ir atrás de pequenas consultorias a fim de levantar fundos para o sustento do mês seguinte e pagar as dívidas com cartões de créditos e cheque especial de meses anteriores. Um ano inteiro na corda bamba por decidir dedicar a vida ao desenvolvimento de um programa social que adotou o circo como ferramenta de intervenção. Hoje em dia, o Crescer e viver está muito longe de onde ele tem potencial para chegar, mas a reputação que a organização ostenta atualmente, o nível de maturidade institucional de saber onde e como chegar, assim como a rede de relações de parcerias com pessoas e instituições que me fazem crer no potencial do caminho que estamos perseguindo para aproximar cada vez mais a nossa atuação da consecução da nossa missão, me deixam feliz com a decisão tomada de reagir à perda assumindo, inclusive, que teria outras, mas aceitando o desafio de lidar com elas. Não fosse isso, o Crescer e viver, penso, talvez não existisse.

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circo Social – o campo para a construção de uma metodologia O apoio que recebemos do professor Carlos Cavalcante, então diretor da Escola Nacional de Circo, que apresentou uma série de referências bibliográficas e discutiu conosco os princípios pedagógicos e didáticos que utilizávamos no Crescer e viver, não dava conta de uma necessidade cada vez mais imperiosa: formular e desenvolver uma metodologia própria. A essa altura eu já havia enviado projetos a diferentes instituições do Brasil e do exterior que mantinham programas de apoio e patrocínio a iniciativas como o Crescer e viver. O primeiro passo já tinha sido dado, ou seja, o projeto de a escola de circo se tornar um ambiente lúdico e criativo, integrador e de expressão. Faltava agora encontrar o discurso e os meios para que a metodologia valorizasse as crianças, os adolescentes e os jovens como sujeitos consolidadores de identidades, de mobilização sociocultural da comunidade, de enfrentamento às suas vulnerabilidades sociais e, acima de tudo, de invenção de estratégias de ser, estar e existir no mundo. 121


cENA dO ESPETテ…ULO VIDA DE ARTISTA, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: MILA POTRILLO



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É aí que surge uma das mais importantes aliadas do meu trabalho, uma das pessoas mais caras do meu ciclo de amizades e afetos: Cleia Silveira, do SAAP (Serviço de Análise e Assessoria a Projetos) da FASE (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional). Ao lado de Lorenzo Zanetti — um padre italiano que se dedicou à formação de lideranças sociais como forma de qualificar a atuação de grupos populares e sindicais no Brasil, falecido em 2004 —, Cleia Silveira, sempre pautada pelo objetivo do SAAP/FASE de apostar na auto-organização de novos sujeitos sociais e coletivos, é responsável por forjar lideranças expressivas e contribuir para a maturidade institucional de diversas organizações não governamentais que hoje em dia possuem uma atuação qualificada e reconhecida. Só para citar algumas no elenco de organizações e lideranças que atuam com arte, cultura e juventude no Brasil, que passaram por diálogos, trocas e experiências formativas com Lorenzo e Cleia, destaco aquelas com as quais mantenho estreita relação de amizade, afeto e parceria: José Junior, do Grupo Cultural AfroReggae; dyonne Boy, do Grupo Cultural Jongo da Serrinha; Marcus Faustini, da Agência de Redes para Juventude; João Artigos, do Teatro de Anônimo; e Luis Nascimento, do Cinema Nosso. Tenho orgulho de estar entre aqueles que também usufruíram da convivência com Lorenzo e Cleia, e hoje, com a falta do primeiro, tenho a segunda como a minha principal guru, dividindo com ela cada momento difícil da minha trajetória pessoal e institucional, pedindo, sem nenhuma cerimônia, conselhos. quando me aparecem aquelas bifurcações do cotidiano, é para o colo sociopolítico dela que eu corro. Ela, que parece uma terapeuta de percursos, nunca me dá o mapa, apenas ouve tudo o que tenho a dizer e inicia todo um processo de significação de cada evento, fato, questão. quase sempre saio do papo sem noção de que caminho tomar, mas seguro de que vou saber lidar bem e com segurança com quaisquer dos caminhos que eu escolher. Cleia 124


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é assim uma espécie de gênio da educação popular, cuja possibilidade de diálogo e relação experiencial deveria ser dada a todos os jovens oriundos de classes populares; se isso fosse possível, eles desenvolveriam a habilidade de desenhar os melhores mapas para as suas trajetórias. quando a conheci, Cleia estava em pleno desenvolvimento da RCMBr (Rede Circo do Mundo Brasil), cumprindo o mandato do SAAP/FASE de articular redes e movimentos, relacionando educação e cultura. Para fazer parte de tal projeto, ela convidou o Crescer e viver, depois de nos explicar o propósito da RCMBr, que é trabalhar pela expansão do conceito de Circo Social, que em síntese era o aporte sociopolítico e o referencial de conteúdo que faltavam ao Crescer e viver para desenvolver e consolidar a sua metodologia, tendo transformado o circo em uma ferramenta pedagógica alternativa, capaz de oferecer a crianças, adolescentes e jovens de classes e comunidades populares os meios para se desenvolverem sob uma perspectiva integral. A identificação com a posição ideológica da Cleia e sua forma de perceber e narrar a potência da cultura, especialmente das artes circenses, para um trabalho social eficaz, foi imediata, e, como um peixe, caí na rede. Construí uma relação visceral com a Rede Circo do Mundo Brasil. O Crescer e viver viveu com intensidade as oportunidades de cooperação, troca e intercâmbio com organizações que utilizam o circo como ferramenta pedagógica e de intervenção social junto a jovens e contextos de vulnerabilidade de diferentes regiões, cidades e estados brasileiros. Estas organizações foram fundamentais para a formação dos pressupostos que embalaram o desenvolvimento de uma metodologia própria e singular de Circo Social para o Crescer e viver. Logo me tornei membro do colegiado de articuladores da Rede Circo do Mundo Brasil, respondendo pela articulação internacional, o que, entre outras atividades, significava representá-la junto à Rede internacional de Formação em Circo Social, uma articulação iniciada pelo 125


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programa Cirque du Monde — o programa de apoio e desenvolvimento do Circo Social do Cirque du Soleil —, do qual faziam parte organizações do Chile, da Colômbia, do Canadá, da África do Sul, de Burkina Faso e da Austrália, dedicado ao desenvolvimento de conteúdos e estratégias para a criação de formadores de Circo Social. Foi da convivência com a Cleia, a FASE e a Rede Circo do Mundo Brasil que descobri os meios para vencer o que pra mim era a principal fragilidade do Crescer e viver: a incapacidade de articular os processos de ensino e aprendizagem das habilidades circenses com conceitos pedagógicos. Assim pude dar forma a uma metodologia de educação não formal capaz de utilizar os fatores de risco e sedução do circo como elementos para propiciar às crianças, aos adolescentes e aos jovens, com os quais trabalhávamos, meios para o desenvolvimento de suas múltiplas potencialidades, a elevação da sua autoestima e a construção e o fortalecimento da sua autonomia, tudo isso funcionando como um repertório de habilidades sociais necessárias ao exercício pleno da cidadania. desta convivência surgiu o encorajamento para dar um salto ainda mais ousado, sair de baixo das asas da escola de samba e construir a institucionalidade do Crescer e viver, transformando-o em uma organização não governamental. Àquela altura, isso se tornara urgente: depois de um ano sofrendo sem nenhum apoio, ainda sob o chapéu jurídico da Unidos do Porto da Pedra, concorremos e fomos selecionados em um novo edital de patrocínios culturais da Telemar, que permitiu o restabelecimento do pagamento dos salários da equipe, e eu pude me incluir na folha. O problema é que o novo presidente da agremiação e parte da diretoria me pressionavam todo o tempo para que parte dos recursos fosse apropriada em ações relacionadas ao carnaval, e, como a gestão da grana não estava sob o meu controle, a relação entre o Crescer e viver e a escola de samba foi se tornando cada vez mais tensa. Segurei o que deu no debate, 126


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mas eu não aguentava mais investir tanta energia naquele conflito. E, em novembro de 2003, dei o grito de independência com o registro dos estatutos e os atos constitutivos que fizeram do Crescer e viver uma pessoa jurídica, de direito privado, sem fins econômicos ou lucrativos, e de caráter sociocultural. Lançamo-nos em uma nova “FASE” do desenvolvimento institucional do Crescer e viver, assumindo o Circo Social como estratégia de atuação para a consecução da ousada missão de “contribuir para o desenvolvimento social e humano, utilizando a cultura e as artes circenses e performáticas como elementos centrais de uma atuação focada na geração de múltiplas oportunidades de ascensão pessoal e coletiva para crianças, adolescentes e jovens”.

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ARTE cIRcENSE E INTERvENçãO SOcIAL NãO dÁ PRA FAZER SEM cOOPERAçãO. cRédITO: ARQUIvO cREScER E vIvER



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O primeiro patrocínio a gente nunca esquece O Crescer e viver se tornara uma pessoa jurídica independente, mas consegui preservar a relação com a Unidos do Porto da Pedra, a fim de seguir utilizando a sua quadra para a realização das atividades circenses. Além disso, eu seguia fazendo parte da diretoria da agremiação exercendo o cargo de vice-presidente de Projetos Sociais e Especiais. Mesmo sem ter o menor saco para lidar com as mudanças internas que a agremiação estava sofrendo, especialmente pela excessiva interferência de familiares do novo presidente, que foram sendo escalados por ele em diferentes lugares de poder da agremiação, era estratégico manter a relação até encontrarmos um novo lugar para o desenvolvimento das atividades. E eu também tinha que me concentrar em encontrar novas parcerias e novos apoios para o Crescer e viver, tarefa difícil para uma organização que acabara de ser registrada, num contexto em que empresas, tanto públicas como privadas, no geral exigem pelo menos três anos de funcionamento. Por isso não dava para abrir mão totalmente da relação com a Unidos do Porto da Pedra, embora esta fosse a minha intenção. 130


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Cleia Silveira, que se sentia responsável pela escolha que fiz de transformar o Crescer e viver em uma organização não governamental, não parava de me alertar sobre oportunidades de financiamento, entre elas o Programa Ser Capaz — dedicado a financiar organizações sociais no estado do Rio de Janeiro, visando ampliar a oferta de oportunidades para a garantia do direito de crianças e jovens ao desenvolvimento pleno —, que havia sido lançado pelo instituto desiderata. O edital do programa, além da oferta de apoio financeiro, previa a realização de ações em rede, capacitações e oferta de ferramentas para a melhoria da gestão das instituições selecionadas. Era tudo de que o Crescer e viver precisava, mas lá estava a tal da exigência de três anos de funcionamento, para a qual eu caguei e andei. Escrevi o projeto citando a experiência de trabalho ainda como um projeto vinculado à escola de samba e ofereci o Crescer e viver como um laboratório onde o instituto desiderata poderia testar a eficácia do Programa Ser Capaz, afinal tínhamos acabado de nos constituir e o apoio oferecido poderia selar o futuro do Crescer e viver — continuar existindo sem precisar de outra organização para mantê-lo. Acho que tanto pelo apelo que eu apliquei ao projeto, como pela sensibilidade da sua diretora executiva à época, fui surpreendido com um telefonema do instituto desiderata. do outro lado da linha, Liesel Mack Filgueiras, então coordenadora do Programa Ser Capaz, informava a intenção do instituto desiderata de visitar o Crescer e viver para conhecer as atividades e entender um pouco melhor o nosso funcionamento e a nossa estrutura. disse-me que a visita seria realizada por uma consultora do programa, Angela Nogueira, e pela diretora executiva do instituto desiderata, Beatriz Azeredo. depois de agendar a visita, desliguei o telefone e pensei: “Fudeu!” Afinal, Beatriz Azeredo, hoje em dia diretora de Responsabilidade Social e Relações Públicas da Central Globo de Comunicação, era pra mim um mito. Ouvia sempre 131


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falar dela e de seus feitos quando foi diretora do BNdES, onde criou ações e programas envolvendo juventude, arte e cultura. E de fato Bia Azeredo, como carinhosamente ela é chamada por pessoas do seu ciclo de relações, é uma das pessoas que melhor compreende, inventa lugares e produz conceitos sobre juventude, arte e transformação social no Brasil, o que é expresso tanto no seu trabalho de diretora do instituto desiderata como no CEPP (Centro de Estudos em Políticas Públicas), onde criou o Programa Juventude Transformando com Arte — que desenvolve um conjunto de “ações integradas que visam contribuir para a identificação, o fortalecimento e a divulgação de grupos e instituições que trabalham com arte e cultura, envolvendo jovens brasileiros, com foco na transformação social” —, com o qual o Crescer e viver colabora em diferentes ações, ao lado de organizações de referência de diferentes partes do Brasil, e tenho o maior orgulho disso. Esperar Bia Azeredo no Crescer e viver se transformou em um misto de orgulho e medo. Eu não tinha certeza de estarmos, eu e outras pessoas da equipe, preparados para responder suas indagações. E de fato não estávamos mesmo, pois a expectativa era de uma conversa cheia de questões difíceis e solicitações de esclarecimentos de que o percurso institucional do Crescer e viver por certo não dava conta. Mas Bia já sabia disso; claro que ela foi até lá já sabendo a condição da organização de estar num estágio inicial do seu desenvolvimento. Percebi no seu olhar que ela identificava a cada fala minha ou do vinicius, que participou também da reunião, a verdade dos nossos propósitos. Mesmo tendo nos dito que a visita não era decisiva sobre a escolha do Crescer e viver, seu olhar ao se despedir registrava generosidade e sensibilidade; eu, que sempre fui muito intuitivo, ao apertar a mão dela senti uma força e uma energia de quem queria me dizer, mas não poderia fazê-lo naquele momento, que nós seríamos escolhidos.

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cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Assinamos em dezembro de 2003 o contrato de parceria com o instituto desiderata e tivemos acesso a primeira parcela do financiamento em janeiro de 2004. Com os recursos recebemos a consultoria de gestão que, coincidência ou não, era prestada por Mário Silveira — marido da Cleia Silveira, que fora contratado pelo instituto desiderata para desenvolver e implantar um sistema de gerenciamento financeiro para as organizações apoiadas. Mário fez inúmeras visitas ao Crescer e viver para nos ensinar como operar o sistema incluindo informações contábeis que eram emuladas mensalmente ao seu escritório e, em seguida, dele para o instituto desiderata. Como eu sempre odiei matemática e planilhas, botei a responsabilidade sob o vinicius que, mais preocupado com as ações na ponta, nunca conseguira operar o sistema direito. Com dois meses sem realizar a tarefa do sistema como tinha que ser, o Mário nos procurou para dizer: “Seus putos, eu tinha que ferrar vocês no desiderata. Mas como eu sei que a Cleia ama vocês e eu não quero arrumar um problema em casa, deixem que faço esta merda pra vocês.” Eu aproveitei a disponibilidade do Mário e o convidei para assumir a direção financeira, cargo que ele ocupa até hoje assegurando a saúde contábil da organização. A parceria com o instituto desiderata durou exatos três anos consecutivos. Com os recursos aportados, já no primeiro ano da parceria, em 2005, transferimos as atividades da quadra da escola de samba para o CiEP Pastor Waldemar Zarro — uma unidade da rede estadual de ensino que, no ano anterior, tinha recebido a pior classificação no sistema de avaliação da Secretaria de Estado de Educação, do estado do Rio de Janeiro, sobretudo pelos elevados índices de evasão escolar. Não era nossa pretensão resolver todos os problemas que colocaram a escola naquela situação, mas a simples realização das atividades no espaço do CiEP reverteu de imediato a evasão e fez crescer o número de matrículas. As culminâncias — apresentações e exibições 133


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públicas — das crianças e dos jovens que integravam as atividades circenses do Crescer e viver motivou também uma apropriação do espaço escolar como um lugar de encontro de pais, familiares e outras pessoas da comunidade. A decisão de transferir o local de atividades da escola de samba para uma escola pública em parte fora provocada pela relação com o instituto desiderata, que ademais dos recursos investia pesado em capacitações destinadas ao fortalecimento institucional das organizações apoiadas no âmbito do Programa Ser Capaz. Os ambientes de troca de experiências com as demais organizações apoiadas e a relação com consultores em diferentes áreas constituíram um momento rico para o crescimento da nossa equipe e para a maturidade institucional do Crescer e viver. durante os três anos de parceria com o instituto desiderata geramos competência que, entre outras coisas, permitiram a ampliação do nosso leque de parceiros, fazendo crescer o impacto e os resultados das nossas atividades; nesse ciclo de desenvolvimento, o orçamento do Crescer e viver cresceu mais de 500% em relação ao que cresceu mediante o primeiro recurso aportado pelo instituto. O alcance que o Crescer e viver tomou depois de três anos de trocas com o instituto desiderata me levou a convidar Bia Azeredo para escrever um texto para o programa da primeira grande produção circense realizada pelo Crescer e viver — o espetáculo Vida de Artista — a arte de construir um espetáculo —, no qual ela traduziu a corajosa aposta feita em uma organização que havia acabado de ser constituída e relatou o crescimento da institução, que não seria, por certo, alcançado sem a generosidade e a sensibilidade desta mulher que influenciou decisivamente as minhas escolhas e os meus caminhos nos campos da arte, da cultura e da intervenção social, o que merece ser, pelo menos em parte, sabido pelos leitores deste livro:

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cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

BRILHO NO PICADEIRO E NOS BASTIDORES

Não é de hoje que os projetos sociais de arte e cultura despontam no cenário nacional, mostrando novos caminhos para diversas frentes de trabalho, mas que têm uma aposta em comum: a transformação social. Além do olhar extasiado da plateia, esses grupos e organizações têm atraído, cada vez mais, a atenção dos profissionais do campo social e dos gestores públicos. Afinal, avaliar estas experiências significa compreender que a arte e a cultura oferecem um espaço privilegiado para o jovem se expressar e se organizar, além de exercer um enorme poder de atração, trazendo-os para processos educativos, de construção de identidade, fortalecimento da autoestima e exercício da cidadania, além de abrir caminhos para uma inserção diferenciada no mercado de trabalho. O Crescer e Viver é um belo exemplo dessa geração de projetos sociais. Acompanho esse grupo desde 2004, quando se iniciou a parceria com o Instituto Desiderata, no âmbito do Programa Ser Capaz. Naquele momento, já saltava aos olhos o compromisso em gerar oportunidades educativas para crianças e jovens de São Gonçalo através das artes circenses, e a disposição de ampliar o alcance dos seus resultados, trazendo novos atores para o cenário de trabalho, como as famílias e a escola.

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Desde então o grupo só fez crescer, em todos os sentidos. A energia dos seus fundadores contaminou outros, formando uma equipe que assume compromissos, compartilha a vocação e segue em frente. Em seguida, a disposição e a coragem de aceitar desafios estenderam sua atuação para um espaço emblemático da cidade do Rio de Janeiro, a Praça Onze. E como traços característicos, a prática de estabelecer parcerias, aproveitar oportunidades e abrir portas para as múltiplas possibilidades de trabalho (...). O espetáculo Vida de Artista é mais um elemento deste cenário em que brilha o Crescer e Viver. Tem sido um prazer acompanhar a trajetória deste grupo. É um privilégio ser testemunha de mais essa aventura que traz a marca da instituição: a arte de aprender, trazer novos parceiros e olhares, construir coletivamente um espetáculo, enveredar por esse terreno novo e promissor que é o da economia da cultura. Vida de Artista vai encantar a plateia, tenho certeza. Mas, sobretudo, vai lançar luz sobre os bastidores do trabalho do Crescer e Viver. Vai mostrar a força de um grupo de pessoas que acredita na importância de criar oportunidades para processos educativos, tendo em vista recriar o presente e construir um futuro menos desigual e mais digno para todos.

Beatriz Azeredo

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PRIMEIROS ALUNOS dO cIRcO SOcIAL dO cREScER E vIvER NO RIO dE JANEIRO. cRédITO: ELZA ALBUQUERQUE


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Atravessando a Ponte Rio-Niterói Nasci e vivi em São Gonçalo a maior parte da minha vida. Cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, considerada uma das maiores “cidades-dormitórios” do Brasil, reúne um dos maiores contingentes populacionais que se deslocam diariamente para exercer a sua atividade produtiva em outra cidade, mais especificamente Rio de Janeiro ou Niterói. desde a época de adolescente, eu desenvolvi uma estreita relação com o Rio de Janeiro, passando a integrar o fluxo de imigração diária que atravessa a poça — como popularmente é chamada a Baía de Guanabara. isso fortalecia minha intuitiva crença de que a ampliação do reconhecimento do trabalho do Crescer e viver exigia a replicação da experiência em outros contextos, e implantar um núcleo da organização no Rio de Janeiro era o caminho que eu vislumbrava, pois, no fundo, eu sabia que o trabalho em São Gonçalo não cresceria para além do lugar que ele já havia alcançado. Entretanto, eu jamais planejei ou formulei qualquer projeto nesta direção; minha energia seguia dedicada a encontrar os meios de tornar a ação sustentável em São Gonçalo, uma tarefa árdua com resultados ainda frágeis e que me desencorajavam a ampliar o trabalho para outros espaços. 138


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

de toda maneira, o Crescer e viver, por meio da participação em redes e articulações com outros atores sociais do campo da cultura, das artes, dos direitos humanos, da assistência social, da infância e da juventude, ia de certa forma colocando os pés em outros territórios, outras comunidades e outros espaços. Além disso, recebíamos convites para realizar apresentações do trabalho artístico, com as crianças e os jovens da escola de circo, em eventos e atividades de caráter sociocultural e comunitário em diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro. Como exemplo, houve um projeto de registro civil que a 1ª vara da infância e da Juventude do Rio de Janeiro, na gestão do dr. Siro darlan, realizava em comunidades populares do subúrbio do Rio de Janeiro. Mesmo sediado em São Gonçalo, não foram poucas as vezes em que crianças e jovens participantes das atividades do Crescer e viver se apresentaram em toda sorte de eventos e atividades empreendidos pela 1ª vara da infância e da Juventude do Rio de Janeiro. Logo um incentivo para a criação de um núcleo da organização no Rio de Janeiro partiu do dr. Siro darlan; ele é que, a cada encontro e papo comigo, levantava a hipótese de expansão das nossas atividades. Atual desembargador da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, eu conheci o dr. Siro darlan no ano de 2000, dias depois de lhe enviar um e-mail comunicando que a Unidos do Porto da Pedra, em vez de distribuir leques e bandeiras no seu desfile de 2001 em homenagem aos dez anos de edição do ECA, distribuiria 60 mil exemplares da Lei aos espectadores na Marquês de Sapucaí durante o desfile. Assim, solicitei que ele escrevesse um texto de apresentação da publicação, falando sobre os dez anos da edição da Lei, as conquistas alcançadas com uma década de aplicação das suas disposições e as dificuldades que ainda perduravam para o seu cumprimento em uma perspectiva ampla, bem como sobre a percepção dele acerca da decisão de uma agremiação carnavalesca 139


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escolher o ECA como tema do seu enredo. A resposta ao e-mail chegou na forma de um convite para uma reunião em seu gabinete dias depois, quando eu fui recebido por ele já com o texto pronto e duas exigências: a primeira, que eu agendasse para ele uma visita à agremiação em um dia de ensaio; e a segunda, uma cota dos exemplares da Lei que produziríamos para distribuição pelo juizado. A partir daí desenvolvi uma relação de amizade com o dr. Siro. Ele acompanhou os primeiros passos da criação e do desenvolvimento do Crescer e viver, e desenvolveu especial interesse pela nossa atuação em Circo Social. Lembro-me perfeitamente de quando ele ligou me convidando para uma reunião no Rio de Janeiro, com a seguinte convocação: “Parte pro Juizado agora. você vai participar de uma reunião comigo na qual vamos tratar da criação de um núcleo do Crescer e viver no Rio de Janeiro.” Algumas horas depois, eu estava no carro dele me dirigindo para o Palácio Guanabara para uma reunião. Participariam dela todo o staff das Secretarias de Estado de Assistência Social e da infância e da Juventude, mais alguns representantes da FiA — Fundação para a infância e Adolescência. Alguns deles eu já conhecia dos meus percursos na militância política e na administração pública, era gente que eu no fundo sabia que jamais prosperaria qualquer relação de parceria, mas, como estava ali um padrinho de peso como o dr. Siro, talvez algo pudesse efetivamente rolar daquele contato. Ao adentrar a sala onde fora marcada a reunião no anexo do Palácio Guanabara, o dr. Siro, que nem sequer se preocupou em me preparar para o que seria discutido na reunião, me apresentou dizendo: “O Junior é uma pessoa do Circo Social Crescer e viver, um dos projetos sociais mais sérios que eu conheço no estado. Eu gostaria de contar com o apoio dos senhores a fim de criar um núcleo do projeto no Rio de Janeiro, em parceria com o Juizado da infância e da Juventude. Ele vai explicar o que é preciso, além da cessão de um imóvel para sediar o núcleo, como já falei para os 140


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senhores.” Senti ali que, a despeito do meu interesse expresso em outras conversas, o dr. Siro seguia criando oportunidades para me enquadrar e me fazer criar um núcleo do Crescer e viver na cidade. Como sempre fui um cara de chutar pra gol tudo que é bola que colocam nos meus pés, chutei... vendi o projeto como se ele tivesse sido formatado. Ao final da exposição, na qual falei de metodologia, público-alvo, objetivos, custos de implantação e manutenção, até eu mesmo acreditava ter uma proposta escrita; por sorte ela não foi solicitada por nenhum dos presentes na reunião. O acordo final foi a busca de um imóvel de propriedade do governo do estado do Rio para ser cedido em comodato ao Crescer e viver. O núcleo seria aí instalado, e um convênio entre o Crescer e viver e a FiA seria feito para a manutenção das atividades; deveríamos buscar outros parceiros dispostos a financiar a aquisição de materiais e equipamentos. Antes mesmo que eu pudesse dizer que não seria fácil encontrar apoio para adquirir aparelhos e equipamentos circenses, o dr. Siro já foi dizendo que conseguiria os recursos com alguns empresários que habitualmente apoiavam ações do Juizado da infância. dali pra frente, as negociações se seguiram. visitei diferentes áreas e imóveis de propriedade do governo do estado do Rio de Janeiro, e o ideal seria um galpão, mas não encontramos nenhum disponível que pudesse ser cedido. Em paralelo a isso, iniciei o processo de convênio com a FiA. Os interlocutores no governo do estado cogitaram a possibilidade de instalação do núcleo na Gare da Estação Leopoldina, sugestão que foi rechaçada pelo então presidente da Central — empresa pública responsável pela administração do imóvel — com o argumento de que em breve seria construído ali o Museu do Trem, projeto de que jamais tinha ouvido falar, a não ser pela boca do dirigente da empresa. 141


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Concluindo, o governo do estado do Rio de Janeiro cedeu um terreno na Avenida Presidente vargas, em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, o que exigiria um novo esforço: arrumar, além de um parceiro para os equipamentos de circo, alguém que financiasse a aquisição de uma lona de circo. de um lado, o dr. Siro darlan foi me indicando um conjunto de contatos com empresas de diferentes áreas, mas não tive sucesso em nenhuma delas. Senti que o lance com a FiA não ia dar em nada. A fundação era gerida por uma diretoria conservadora que achava que os projetos de Circo Social eram responsáveis por toda essa geração de crianças que fazem malabarismo nos sinais do Rio de Janeiro. Ouvi isso da vice-presidente da fundação em um dos contatos que travei com ela e desisti de seguir com o processo de convênio, pois nunca acreditei em parcerias que não compreendam e acreditem nos projetos que eu desenvolvo. Ao desistir da parceria com a FiA e, já convencido da importância de implantar um núcleo do Crescer e viver no Rio de Janeiro, tendo já recebido a cessão de uso de um terreno do governo do estado do Rio de Janeiro, fui atrás da minha rede de contatos para levantar condições de subir uma lona na Avenida Presidente vargas — uma das vias mais importantes do centro da cidade.

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EdUcANdOS dO PROgRAMA dE FORMAçãO dO ARTISTA dE cIRcO dO cREScER E vIvER EM TREINAMENTO. cRédITO: ARQUIvO cREScER E vIvER


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Eu ganhei um circo de presente Como eu havia previsto, quase nada do que foi tratado com o governo do estado do Rio de Janeiro, com vista à implantação de um núcleo do Crescer e viver na cidade, deu certo. A única coisa cumprida (até certo ponto) foi a cessão de um imóvel na Avenida Presidente vargas, em frente à Prefeitura da cidade, com fins de instalarmos uma lona de circo e construirmos dependências para a implantação e o funcionamento das atividades. O dr. Siro darlan, supercomprometido com a proposta, afinal ele tinha colocado toda pilha para a expansão do nosso trabalho, foi a inúmeras reuniões que marquei e marcou tantas outras nas quais me levou para apresentar o projeto. A primeira parceria que fechei foi com os Correios, depois de submeter o projeto ao sistema de patrocínios da empresa. Faltava agora a grana para a aquisição dos equipamentos e da lona de circo; eu sempre pensei que não conseguiria esta última. depois de muitas promessas e nenhuma parceria efetivamente construída, além da com os Correios, comecei a ficar preocupado. Minha rede de contatos estava se esgotando, e as oportunidades de financiamento e patrocínios que apareciam por via de editais não davam conta da compra de bens permanentes. Aumentava o risco de termos de 144


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devolver os recursos alcançados com o contrato assinado com os Correios, que tinham um cronograma de execução cujo prazo de início já estava mais do que estourado. A tensão era enorme, e eu repassava todos os dias minha agenda de contatos, visitava sites de empresas e organizações com potencial de apoiar a compra dos equipamentos e aparelhos circenses e da lona de circo. Então me lembrei da Capemi — uma empresa de seguros privados, que hoje se chama Capemisa —, a mesma que havia apoiado a impressão dos 60 mil exemplares do Estatuto da Criança e do Adolescente que a Unidos do Porto da Pedra distribuiu para o público da Marquês de Sapucaí no seu desfile de 2001. Liguei para o Laerte Tavares Lacerda, um grande amigo e o meu principal contato na empresa e um entusiasta do trabalho do Crescer e viver desde quando nos conhecemos, na época em que fui superintendente da Secretaria de Estado de Administração do governo do estado do Rio de Janeiro. Expliquei ao Laerte todo o processo e como surgiu a ideia de implantação de um núcleo do Crescer e viver no Rio de Janeiro. Falei dos problemas que potencialmente teríamos com os Correios caso não conseguíssemos adquirir os equipamentos e a lona de circo para viabilizarmos o projeto. Ele, sempre muito solícito e direto, depois de ouvir a quantia de que necessitávamos, disse que marcaria uma reunião com a diretoria da empresa para eu apresentar uma proposta de parceria, mas já me alertando de que achava difícil conseguirmos patrocínio para a lona de circo; segundo ele, seria mais provável o apoio para a aquisição dos equipamentos, pois os valores eram mais próximos da capacidade de investimento da empresa. Marcada a reunião, na qual contei com a companhia do dr. Siro darlan, providenciei para levar toda a documentação: termo de cessão da área para a instalação do circo, contrato de manutenção das atividades assinado com o Correios e várias cópias da proposta impressa que distribuí a cada um dos diretores da CAPEMi. depois da minha exposição, 145


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o dr. Siro darlan entrou de sola e rasgou a maior seda, no bom sentido, para o trabalho do Crescer e viver, exaltando a importância da replicação das suas atividades no Rio de Janeiro. Ao final do meu discurso, sem muitas cerimônias e tendo em mente o que o Laerte havia me dito dias antes, eu disse que minha intenção era contar com a parceira da CAPEMi para a aquisição dos aparelhos e materiais de circo. quando terminei de pedir, o então presidente da empresa, dr. Wagner Nannetti dias, se virou pra mim e disse: “você está nos pedindo apoio para comprar os equipamentos. Mas você já tem alguém para lhe dar o circo? Se apoiarmos com os equipamentos e você não conseguir alguém para apoiar a compra da lona, este maravilhoso projeto não poderá se realizar na cidade do Rio de Janeiro. A CAPEMi vai comprar o circo; ele é uma das melhores lembranças que eu tenho da minha infância. Laerte, veja como operar isso com o financeiro da empresa, e vamos fazer isso rápido para que o Crescer e viver não encontre problemas tendo que devolver os recursos conseguidos com os Correios.” O carinho com o qual o dr. Wagner me tratou naquela reunião em que me deu um circo de presente parece ter sido o transbordamento de uma espécie de vírus de afeto da CAPEMi por mim e pelo trabalho do Crescer e viver. desenvolvi com os seus gestores uma relação de confiança, apreço e amizade que permitem um nível de intimidade suficiente para buscar o apoio da empresa em todos os projetos que eu realizo. É importante dizer que nunca recebi sequer uma resposta negativa para minhas requisições. Na verdade, ao pedir pressa na compra do circo, o dr. Wagner parecia prever outra coisa: três dias depois de assinar o cheque para quitar a primeira parcela da aquisição da lona de circo, infelizmente, ele veio a falecer. Mas não sem antes me dar um circo de presente.

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cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Onde colocar o circo?

Fechada a parceria com a CAPEMi para a aquisição da lona de circo, agora só faltava a grana para comprar os equipamentos e então iniciar o processo de implantação do núcleo do Crescer e viver no Rio de Janeiro. Como a compra da lona de circo era o que eu mais achava difícil, fiquei confiante de que a etapa final do processo seria bem fácil, o que de fato foi. Antes mesmo que eu refletisse sobre onde e como buscaria os recursos para os equipamentos, recebi uma ligação de Lisa Urgo, a presidente da Dreams Can Be Foundation — uma fundação americana que vendia ingressos de espetáculos beneficentes do Cirque du Soleil nos Estados Unidos e distribuía os recursos da venda para as organizações da Rede Circo do Mundo Brasil, da qual o Crescer e viver fazia parte. Lisa me ligou marcando um almoço no Leblon, bairro onde ela residia no Rio de Janeiro, com o objetivo de me pedir para colocá-la em contato com o dr. Siro darlan. Seu objetivo era ter uma audiência pessoal com ele, na qual pretendia lhe agradecer a decisão favorável em um processo no qual ela conseguira, depois de anos tentando, realizar a adoção de um casal de meninos. Na mesma hora, pelo celular, sem 147


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falar do que se tratava, pedi ao dr. Siro para receber uma amiga presidente de uma fundação americana dedicada a apoiar projetos sociais de circo com crianças e jovens de comunidades populares no Brasil. Audiência concedida, Lisa me pediu para acompanhá-la. quando entramos no gabinete do dr. Siro darlan, ela explicou o motivo da visita agradecendo a ele o gesto de conceder-lhe os meninos em adoção e perguntou em que ela poderia ajudar o Juizado da infância e Juventude. imediatamente, o dr. Siro darlan disse que a decisão favorável à adoção fora tomada nos termos da Lei e que ele não havia feito nada além da sua obrigação de juiz, que é ter uma resolução sempre pautado no princípio do melhor interesse da criança. E que se ela desejava apoiar algum projeto deveria pensar em ajudar o Crescer e viver a implantar um núcleo na cidade do Rio de Janeiro. Como eu sabia que a Dreams Can Be Foundation só concedia pequenos apoios com a venda dos ingressos do Cirque du Soleil nos Estados Unidos, nem havia pensado em pedir nada à Lisa, que depois do pedido do dr. Siro me perguntou de que estávamos precisando para realizar o projeto e quanto isso custaria. Respondi, e, em seguida, ela diante dele se comprometeu em nos repassar os recursos que tentaria arrecadar junto a amigos. E fez isso apenas algumas semanas depois. quando pensei estar tudo em cima (lona de circo, equipamentos e recursos para a manutenção das atividades) para a implantação do núcleo do Crescer e viver no Rio de Janeiro, veio a porrada. O governo do estado do Rio de Janeiro voltou atrás e cancelou a cessão do terreno. Como eu havia previsto lá atrás, nenhum daqueles interlocutores era confiável. Eu os conhecia de outros carnavais e não confiava em nenhum deles. Eu poderia brigar, afinal o cancelamento da cessão foi feito pela então governadora Rosinha Garotinho, que nem sequer observou as cláusulas do instrumento que tínhamos 148


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assinado com o governo do estado do Rio. Mas resolvi não fazê-lo, pois a causa era, na minha avaliação, mais do que justa: o terreno fora designado para a construção do Memorial Leonel Brizola, com projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. Como brigar contra isso? Brizola influenciou toda a minha trajetória, e o Niemeyer... nem preciso dizer. quem pode brigar para impedir um projeto criado por ele? quem é capaz de evitar que algo proveniente de suas pranchetas não seja realizado? Só mesmo o próprio governo, que terminou por não construir o Memorial no local, onde recentemente foi construída a estação Cidade Nova da linha 2 do metrô do Rio. E agora, onde colocar o circo?

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LONA dE cIRcO dOAdA AO cREScER E vIvER PELA cAPEMI SENdO PREPARAdA PARA A TEMPORAdA dE VIDA DE ARTISTA, O PRIMEIRO gRANdE ESPETÁcULO PROdUZIdO PELA ORgANIZAçãO. cRédITO: IERê FERREIRA



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“Isso vai dar merda!” "isso vai dar merda!" Era a única coisa que eu pensava depois de articular as estratégias para invadir, no dia seguinte ao de uma audiência com o dr. Siro darlan, parte de uma área controlada pela Coderte — empresa pública do estado do Rio de Janeiro ligada ao negócio de estacionamentos. A área localizada na rua Benedito Hipólito, em frente à estação Praça Onze do metrô, fica bem ao lado do Sambódromo do Rio de Janeiro e dista mais ou menos 100 metros dos fundos do prédio da 1ª vara da infância e Juventude. A ideia de invadi-la e ocupar uma parte dela partiu do dr. Siro darlan, que recebeu a notícia do cancelamento da cessão de uso do terreno em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro com a mesma indignação que eu tive, mas, como um bom brizolista que ele me parece ser, embora nunca tivesse assumido isso pra mim, disse que não valeria a pena entrar em conflito com o estado do Rio diante da destinação que ele havia dado para o terreno. Para criar um caô institucional, o dr. Siro escreveu um ofício através do qual “determinou” que eu providenciasse a montagem do circo em parte do referido terreno. Para viabilizar a ousadia, combinei com o fabricante da lona para ele chegar com os caminhões e os operários à noite, quando já não houvesse mais carros estacionados. Passamos a 152


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madrugada trabalhando, demarcando áreas para fincar as estacas e descarregando toda a estrutura — toneladas de ferro e plástico que ficaram estrategicamente distribuídas para levantar o circo, tarefa que começamos a empreender às seis da manhã do dia seguinte. quando o circo estava quase de pé, chegou um diretor da Coderte, acompanhado de uma patrulha da Polícia Militar, comunicando que deveríamos paralisar o trabalho imediatamente e retirar o circo do terreno, sob pena de sermos todos presos. Respondi que também seríamos presos se paralisássemos o trabalho e mostrei a ele a “determinação” judicial que tínhamos do dr. Siro darlan, juiz titular da 1ª vara de infância e Juventude, para concluir a montagem do circo naquele mesmo dia. instaurei o conflito... O diretor da Coderte, depois de ler o expediente assinado pelo dr. Siro, respondeu cheio de arrogância e autoridade: “O juiz manda no juizado, aqui quem manda sou eu. Portanto, baixem o circo e retirem este material daqui.” Pedi um minuto e, na frente dele, chamei o dr. Siro pelo meu rádio Nextel, no viva voz, comunicando a interrupção do trabalho por determinação de um diretor da Coderte que estava na minha frente e reproduzindo o conteúdo da sua afirmação de que “o juiz manda no juizado, aqui quem manda sou eu”. quando o cara percebeu que eu falava com o juiz, tentou dizer que não fora bem aquilo que ele dissera. Enfim, eu queria mesmo era saber até onde ele era capaz de sustentar a arrogância com a qual tratara a mim e aos operários que estavam trabalhando na montagem do circo, que ficaram se cagando de medo com a presença da polícia e a ameaça de serem presos. O dr. Siro, com toda tranquilidade, pediu para falar com o diretor da Coderte através do meu rádio e o convidou para ir até o seu gabinete junto comigo. O cara sisudo virou uma dama e desandou a falar no trajeto comigo até o juizado. Ele estava preocupado com o que eu havia dito ao juiz, afirmou que não tinha a intenção de criar um conflito, que respeita153


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va o trabalho do dr. Siro em favor das crianças, e mais um monte de blá-blá-blá... Sua preocupação parecia aumentar a cada passo que dávamos em direção ao juizado e com o silêncio que eu fazia em resposta aos seus comentários. Ao adentramos no gabinete do dr. Siro darlan, lembro-me perfeitamente da cena, o diretor da Coderte se sentou em uma das cadeiras, ao passo que o juiz se levantou e perguntou qual era o cargo que o cara exercia. – Diretor operacional, excelência. – Então, o senhor por gentileza ligue para o seu presidente que eu quero falar com ele. – Prontamente, excelência. Siro darlan, depois de um bom-dia ao presidente da Coderte, informou que estava instalando uma lona de circo de propriedade do Juizado da infância e Juventude em parte do estacionamento na Praça Onze. disse que havia acordado isso com a governadora Rosinha Garotinho e que em breve ele receberia a documentação oficial e um convite para a inauguração da escola de circo, que aconteceria no dia 12 de outubro, em menos de uma semana. Após desligar, informou ao diretor durão da Coderte que ele estava dispensado e que o trabalho de montagem do circo prosseguiria conforme acordado com o presidente. O diretor respondeu com um “tudo bem, excelência” e se retirou do gabinete do dr. Siro como um soldado: dando meia-volta. Eu permaneci ali para dizer a ele que não haveria tempo de inaugurarmos o circo em menos de uma semana, e ele me disse: “Agora dá o seu jeito, porque eu não falei nada com a governadora, e iniciando as atividades vai ficar mais difícil para o estado retirar o circo do terreno.” Num sol a pino, trabalhei com a equipe de operários da empresa fabricante do circo para colocá-lo de pé. Gastei com almoço, água e lanches para a galera todo o dinheiro que 154


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eu tinha no bolso. Por volta das 19 h, quando a montagem foi finalizada, os operários entraram em uma caminhonete e meteram o pé. Então me dei conta de que eu não tinha nem sequer dinheiro da passagem para voltar para casa, em São Gonçalo. Sem um tostão no bolso, me sentei na Barraca do Breck — uma birosca ao lado da área onde instalamos o circo — e pedi uma cerveja para beber enquanto eu pensava em algum amigo de carro que trabalhasse no Rio de Janeiro para me dar uma carona até São Gonçalo e ainda pagar a cerveja que eu pedi. Então me lembrei de Francisco Marins, o Chico, gerente de educação do Sebrae-RJ, que hoje em dia é o presidente da Unidos do Porto de Pedra e naquela época era o diretor de Cultura e desenvolvimento da agremiação, indicado por mim. Expliquei para o Chico a minha situação, e ele me disse: “Estou indo aí, e levando uns amigos para ver o circo.” Minutos depois ele chegou com Cláudio Bastos, na época diretor das Páginas Amarelas e que viria a se tornar diretor do Crescer e viver tempos depois, e com Heliana Marinho, então gerente de desenvolvimento Territorial do Sebrae-RJ e atualmente gerente de Economia Criativa na mesma instituição; ela viria a ser uma das mais importantes parceiras e amigas que tenho. Todos se encantaram com a beleza do circo. O pedido de carona virou um longo papo. Tomamos quase uma caixa de cerveja na Barraca do Breck, discutindo projetos e formas de o Sebrae também se tornar um parceiro da minha iniciativa. Eu estava tão empolgado com o circo que nem me dei conta de que nem mesmo uma cerca ele tinha. quem chamou a minha atenção para isso foi a Heliana Marinho, que imediatamente ligou para a empresa de um conhecido e viabilizou a instalação, que foi iniciada no dia seguinte e concluída dois dias depois, nos permitindo levar os equipamentos para guardar no circo. Como o terreno não dispu155


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nha de salas nem de banheiros, alugamos dois containers: um para servir de depósito e outro de escritório. Em menos de uma semana, no dia 12 de outubro de 2004, inauguramos o núcleo de atividades do Crescer e viver no Rio de Janeiro, em uma festa animada pela presença da bateria da Unidos do Porto da Pedra e por um espetáculo circense apresentado por crianças, adolescentes e jovens que participavam das atividades no Crescer e viver de São Gonçalo. Compareceram várias autoridades públicas do estado do Rio de Janeiro, o dr. Siro darlan e centenas de crianças da Boca Lixo — como é popularmente conhecida a comunidade que circunda o Sambódromo — curiosas com o que aconteceria naquele circo instalado próximo as suas casas. Uma semana depois, mais de 100 crianças, adolescentes e jovens já estavam frequentando as oficinas circenses.

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Lei Rouanet? Que porra é essa? instalar uma lona na Praça Onze — berço do circo brasileiro e das tradições de culturas populares do Rio de Janeiro — ampliou a responsabilidade do Crescer e viver como organização circense. Mesmo tendo uma metodologia consolidada e tendo alcançado um bom nível de maturidade institucional, criar um espaço cultural no centro do Rio de Janeiro impôs que eu refletisse os meios pelos quais poderíamos consolidar o papel do Crescer e viver no cenário sociocultural carioca, sem perder de vista a qualificação da intervenção e a ampliação dos seus impactos no território onde nos estabelecemos — local em que grandes empresas, sedes de órgãos públicos, como a Prefeitura do Rio, e o glamour do Sambódromo convivem lado a lado com uma comunidade formada por centenas de cortiços circundados por um complexo de dezenas de favelas e por suas vulnerabilidades sociais. Eu sabia que dar ao Crescer e viver uma “roupa” à altura da sua nova estatura como ator social e de cultura da cidade do Rio de Janeiro implicava iniciarmos um percurso de projetos e ações que promovessem o nosso deslocamento da ação educativa à produção estética. A questão era: com que recursos? Mesmo tendo conseguido outros parceiros, o custo fixo da organização se elevou bastante com a necessidade de contratação de profissionais para dois espaços de atividades. Além disso, a manutenção do espaço do circo no 157


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Rio de Janeiro crescia de forma imprevisível. Entre 2004 e 2006, nossas contas estavam equilibradas e supriam as necessidades dos projetos em execução, mas não permitiam investimento em novas estratégias. Assim, em meados de 2006, a coisa ficou feia. Não conseguimos estabelecer nenhuma parceria nova, e as que tínhamos já havíamos concluído o ciclo contratual de apoio e financiamento. Com a falta de grana, entreguei o apartamento alugado em que eu morava em São Gonçalo e me mudei para um quarto na casa da minha sogra, em Jacarepaguá. Mesmo sendo bem-recebido por ela, aquela condição gerara pequenos conflitos no meu casamento. Neste mesmo período, minha irmã se suicidou sem deixar nenhuma pista da razão que a levou a fazer isso. Em paralelo, um pequeno empreendimento iniciado pelo meu pai faliu, e ele estava desesperado me pedindo ajuda para sanar dívidas com agiotas que o estavam ameaçando, enfim... um turbilhão de questões que eu não sabia e nem tinha como resolver. Eu me sentia cada vez mais sufocado vivendo sob toda aquela condição traumática, morando de favor e sem grana para ajudar nas despesas da casa da minha sogra. Faltava dinheiro até para me deslocar diariamente do trabalho. Eu sentia tanta ansiedade que parecia que eu acordava e vivia o dia inteiro com o coração na boca. Eram noites e mais noites em claro aplicando projetos e tentando prospectar parcerias com todo tipo de empresas e organizações, sempre sem nenhum sucesso. A cada dia eu via o trabalho do Crescer e viver minguar rumo à completa falência. Meu estado de depressão quase aguda e minha baixa autoestima parecia contaminar o que restava da equipe, gerando uma atmosfera que acabava por afetar também as crianças e os jovens participantes das atividades, levando alguns deles à evasão. quando percebi isso, passei a ir ao Crescer e viver apenas dois dias na semana, me dedicando a trabalhar em casa e cada vez 158


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

menos, pois a depressão me fazia passar horas a fio deitado na cama. E, justo em um destes dois dias de presença física no Crescer e viver, enquanto eu rodeava o circo com o pensamento praticamente tomado pela ideia fixa de fechar as portas da organização e tentar inventar outra coisa para fazer na vida, fui surpreendido com a chegada de um carro do jornal O Globo que parou diante do portão de entrada da lona. dele saltaram um fotógrafo e um repórter com o propósito de fazer uma matéria sobre o trabalho da organização, que seria publicada no domingo seguinte. Confesso que reagi sem nenhuma felicidade ao gesto do jornalista, não dei muita bola, não esperava que aquela matéria pudesse mudar o rumo e o frágil momento pelos quais a organização passava. Liguei o piloto automático e fui respondendo as perguntas que me foram sendo feitas sobre a história da organização, onde ela surgiu, como chegou naquele espaço e de que forma pretendia consolidar o circo como um equipamento democrático de cultura da cidade do Rio de Janeiro. Falar sobre o Crescer e viver me fez bem, aquela entrevista funcionou pra mim como uma sessão de análise, e aos poucos fui me empolgando a ponto de esquecer completamente que horas antes eu estava pensando em fechar as portas da organização. No domingo seguinte, com a força que me restava, resolvi dedicar a manhã a buscar oportunidades de apoios e parcerias na internet, quando José Junior, coordenador do Grupo Cultural AfroReggae, me enviou uma mensagem pelo MSN: “Parabéns pela matéria no Globo de hoje.” Eu havia esquecido da entrevista que tinha dado dias antes e nem me preocupei em comprar o jornal. Apenas agradeci a ele e disse que ia comprar o jornal para ler. No fundo, no fundo, eu acho que aquela matéria não foi produzida aleatoriamente. José Junior sabia do momento pelo qual eu estava passando e, como é um cara super bem-relacionado com a mídia, ninguém me tira da cabeça que a ida “espontânea” da equipe de O Globo ao circo tinha o seu dedo no meio. 159


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Comprei o jornal, e lá estava uma supermatéria que ocupava meia página ímpar no caderno principal do jornal, com belíssimas fotos e excelentes recortes das minhas falas na entrevista. Aquela reportagem começou a mudar a minha sorte. Fazia um sol de rachar, e minutos depois de eu ler a matéria tocou o meu telefone: era o professor Carlos Cavalcanti, que havia deixado o cargo de diretor da Escola Nacional de Circo e estava atuando como coordenador de projetos do Grupo Cultural AfroReggae, me dizendo que estava na praia e acabara de se encontrar com Eliane Costa, gerente de patrocínio da Petrobras, que estava ao seu lado e tinha acabado de lhe mostrar a matéria no O Globo sobre o Crescer e viver. Ela perguntou se ele me conhecia e se tinha os meus contatos; em seguida, ele passou a ela o telefone: — Olá, Junior, como vai, tudo bem? Tenho ouvido falar muito do seu trabalho pelo José Junior, do AfroReggae. Acabei de ler a matéria que saiu hoje no O Globo. Você teria um tempo esta semana para a gente conversar? Que tal amanhã às 10 h na Petrobras? O diálogo rápido e objetivo com a Eliane levantou a minha autoestima. Mesmo ela não tendo sinalizado ou feito qualquer promessa, me convidou para um papo. Eu pensei que não poderia desperdiçar a oportunidade e caí dentro organizando um conjunto de informações sobre o Crescer e viver para entregar a ela no dia seguinte. Preparei todo o material e coloquei tudo em um pen drive. Saí de Jacarepaguá às sete horas da manhã, eu queria estar cedo na porta de uma dessas lojas de impressão. Eu não queria me atrasar por imprevisto algum, mas na verdade tudo não passava de uma ansiedade enorme. Concluí a impressão da documentação antes das 8h30 da manhã e fiquei vagando pelas ruas do entorno da Petrobras até umas 9h30, quando me dirigi à recepção da empresa para me identificar e seguir para a reunião. 160


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Eliane me recebeu com um sorriso enorme e um tom de voz afetivo que fez eu me sentir acolhido, mas mesmo assim não relaxei e desandei a falar e a mostrar fotos, matérias de jornal, explicar a metodologia do nosso trabalho; enfim, tentei resumir naquele papo toda a trajetória da organização e os desafios que assumimos ao invadir uma área pública improdutiva no centro do Rio de Janeiro e instalar nela uma lona de circo com a ideia de ficar permanentemente montada e se consolidar como um equipamento cultural da cidade. Ela parecia entender a importância de me deixar falar, pois não me interrompeu nem fez quaisquer perguntas durante a minha explanação. quando terminei de falar, percebendo a minha boca seca, ela me ofereceu um copo de água que tomei em dois goles embalado pela sede e também pela adrenalina gerada pelo desejo de sair dali com uma parceria firmada com a Petrobras. — Você sabe que a Petrobras só patrocina projetos aprovados na Lei Rouanet. O Crescer e Viver está de acordo com a Lei Rouanet? —, perguntou Eliane. A pergunta soou como uma porrada, eu jamais ouvira falar em Lei Rouanet, senti que a chance de estabelecer uma parceria com a Petrobras se esgotara naquela pergunta, e este misto de sentimentos negativos sobre o resultado da reunião me fez soltar a seguinte pérola diante de uma alta executiva da empresa: “Lei Rouanet? que porra é essa?” quando dei por mim, eu já havia pronunciado alto o que estava pensando. desandei a suar por causa da merda que eu havia dito. Em frações de segundos eu senti uma raiva tão grande da minha ignorância e da minha língua solta que a vontade que eu tive foi de pular pela janela da sala da Eliane. Fui tomado pela sensação de que aquele encontro colocara ainda mais distante a possibilidade de estabelecer uma parceria com a Petrobras. Eliane, que não mudou a sua expressão diante da besteira que eu havia dito, me devolveu todo o material impresso que eu pretendia deixar com ela 161


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e disse: “Não precisa deixar isso aqui, pode levar. Faça o seguinte, procure alguém que possa ajudá-lo a aprovar um projeto de acordo com a Lei Rouanet. Faça uma proposta para manutenção das atividades do Crescer e viver que tenha como um dos objetivos a produção de um espetáculo de circo. depois que você aprovar o projeto na Lei Rouanet, entre em contato comigo, e nós voltamos a conversar.” Ela me entregou o cartão dela, e o nosso encontro se encerrou ali. Seu sorriso largo e afetuoso me deixou confiante, saí da sala dela com a certeza de que aquela parceria se consolidaria e a Petrobras seria um trampolim para o nosso salto da ação educativa à produção estética. Foram nove meses de espera pela aprovação do projeto na Lei Rouanet. Na verdade, esse período nos fora imposto sem contar com o prazo legal de aprovação do projeto junto ao Ministério da Cultura, com a desculpa de que o Ministério estava sem um parecerista e por isso o nosso projeto estava em suspenso na Funarte — Fundação Nacional de Artes. Todos os dias eu ligava para saber se algo havia mudado na tramitação. Além disso, procurei amigos e conhecidos em busca de ajuda para acelerar o processo, mas nada disso adiantou. vivíamos no Brasil a gestão de Gilberto Gil como ministro da Cultura. O Programa Cultura viva — com os Pontos de Cultura, a produção de novas institucionalidades e de um discurso que vinha (re)significando a compreensão de cultura no Brasil, alargando as suas dimensões e dando poder aos fazedores de arte e cultura — era um desenho de política cultural que por certo não cabia a forma como o Crescer e viver procedia em sua luta por aprovar um projeto na Lei Rouanet. Eu me dei conta disso e escrevi uma carta ao ministro Gilberto Gil mostrando que a ausência de pareceristas, utilizada como desculpa para a demora em aprovar um simples projeto de incentivo, colocava em xeque os pressupostos da gestão ousada e arrojada que ele pretendia para o Ministério da Cultura. Preparei uma carta de umas quatro 162


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laudas e enviei por e-mail ao ministro e a todos os quadros do Ministério da Cultura e da Funarte. Nela eu disse, inclusive, estar disposto a mover uma ação judicial, algo como um mandato de segurança, que desse ao Crescer e viver o direito ao benefício da Lei, independentemente da sua análise pela Comissão Nacional de incentivo à Cultura, afinal o Ministério não havia se manifestado oficialmente sobre o nosso pleito no prazo fixado pela Lei para a aprovação, que era de 90 dias. Menos de 15 minutos depois de clicar send, recebi uma ligação de Juca Ferreira, então secretário executivo do Ministério que viria a suceder Gil como titular da pasta. Ele se desculpou pela demora e disse que por ordem do ministro o projeto seguiria naquele mesmo dia da Funarte para Brasília, a fim de visar a aprovação e a publicação do incentivo e nos autorizar a realizar a captação de recursos. Em menos de uma semana, todo o trâmite foi cumprido, e o incentivo, publicado no diário Oficial da União. Agora com o projeto aprovado, o enviei ao e-mail da Eliane Costa solicitando uma nova reunião, o que aconteceu na semana seguinte. Mesmo tendo aprovado pouco mais de 500 mil reais, ela se comprometeu a investir 300 mil em uma ação que previa seis meses de atividades de aprimoramento e ampliação do repertório e do vocabulário artístico de um grupo de jovens participantes das nossas atividades de Circo Social em São Gonçalo e no Rio de Janeiro, seguida da montagem de um espetáculo.

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cENA FINAL dO ESPETテ…ULO VIDA DE ARTISTA, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: IERテェ FERREIRA



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Nosso espetáculo é para crescer e viver!!! Em 2007, o reconhecimento do Crescer e viver e da sua metodologia de Circo Social já era amplo no Brasil e fora dele, mas não era suficiente para dar conta da sustentabilidade da organização. Eu estava cada vez mais certo de que a instalação da lona de circo no Rio de Janeiro requeria o desenvolvimento de ações nos campos de formação, produção, difusão e fruição, e a chance de fazer isso estava no patrocínio que recebemos da Petrobras. Logo, a montagem de um espetáculo, pra nós, não poderia ser apenas a culminância de um trabalho de educação complementar voltado ao desenvolvimento integral e à promoção da cidadania de crianças e jovens que possuem nas artes circenses, a ferramenta pedagógica para alcançar este fim. Eu estava decidido a montar um espetáculo com cara de grande produção, capaz de lançar o Crescer e viver em um novo ciclo de desenvolvimento institucional. Cada passo do processo de produção foi pra mim a busca de um modelo próprio e inovador de gestão da cadeia produtiva do espetáculo circense. A tensão era grande com a equipe de direção, eu problematizava cada centavo investido, a fim de garantir que tudo o que fosse gasto no espetáculo se revertesse em estrutura para a lona, para poder transformá-la em um espaço de produção criativa e atender às nossas produções futuras. 166


cap.02 OS FAZIMENTOS QUE EU FIZ

Com direção de Alice viveiros de Castro, trilha sonora original de daniel Gonzaga, direção associada de Lígia veiga, Ana Luísa Cardoso e Marília Felipe, iluminação de Aurélio de Simoni, direção de arte de Rui Cortez, entre outros nomes que compuseram uma ficha técnica de peso, Vida de Artista — a arte de construir um espetáculo teve um processo rico de criação. durante cinco meses, estes generosos criadores trocaram e mesclaram saberes e competências diversas aos conhecimentos que o Crescer e viver havia produzido e acumulado desde os seus primeiros passos. O processo criativo permitiu que um grupo de 17 jovens desfrutasse de um espaço privilegiado de aprimoramento artístico, onde foram valorizados como coconstrutores e cocriadores, e o resultado alcançado foi mais do que um espetáculo circense: estabelecemos um marco na trajetória do Crescer e viver. Em setembro de 2007, a lona ficou lotada de convidados, entre eles os familiares dos jovens artistas, dirigentes, conselheiros, coordenadores, educadores, formadores, instrutores, colaboradores, parceiros, aliados, apoiadores, patrocinadores e beneficiários do Crescer e viver. Todos queriam ver o resultado, ou seja, o primeiro “grande espetáculo” da organização, como eu fazia questão de acentuar durante todo o processo. Será? A expectativa era grande, e eu a nutria ainda mais por meio dos veículos de comunicação, pois durante todo o processo conseguimos boas pautas na mídia espontânea. A classe artística e a comunidade circense foram chamadas a partilhar a estreia conosco. Ao final do show, quando todo o elenco, depois de se despedir do público, voltou ao picadeiro dando saltos e cantando a música Vida de Artista — de Zé Tarepa e Zé Fortuna, na qual Alice viveiros de Castro baseou a concepção do espetáculo —, tentei olhar para a cara de cada espectador e em quase todas elas, quando não vi lágrimas, percebi olhos marejados. O público estava positivamente afetado. A estreia de Vida de Artista foi o momento mais lindo que eu vivi em toda a minha trajetória no Crescer e viver. 167


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do lado de fora da lona, os abraços e as felicitações foram calorosos. Não foram de poucas pessoas que eu ouvi: “Este é um dos melhores espetáculos a que assisti na vida.” Mas eu queria ouvir a opinião da Eliane Costa e de uma galera da Petrobras que fora à estreia. Antes mesmo que eu a encontrasse em meio a tanta gente, fui surpreendido por ela me dizendo a seguinte frase: “vocês não gastaram 300 mil reais neste espetáculo.” Passou um filme na minha cabeça, achei que ela pudesse estar insinuando que a grana fora desviada para outras finalidades, e, antes que eu pudesse ter um surto, ela completou: “vocês gastaram muito mais.” que bom, ela conseguira identificar o meu esforço durante todo o processo de buscar inúmeras parcerias que, por meio da doação de serviços e materiais, elevaram o orçamento da produção do espetáculo para aproximadamente 700 mil reais. Em seguida, ela me perguntou por quantos dias o espetáculo ficaria em cartaz, e eu disse que por apenas mais dez exibições, já que não tínhamos mais grana para pagar as despesas com locação, especialmente de luz e som. A reação dela foi dizer que uma obra daquela beleza tinha de ser vista por mais gente e pediu para fazermos um orçamento para estender a temporada por pelo menos mais um mês, até o final de outubro, pois a Petrobras se encarregaria de fazer um aditamento ao nosso contrato. depois disso, ela voltou nove vezes com amigos e parentes para assistir ao espetáculo. Na nona, última apresentação da temporada, ela me ligou para solicitar os ingressos e marcou de chegar mais cedo. queria falar com os jovens antes do show. Uma hora antes do espetáculo a levei até o picadeiro, onde os jovens se preparavam para apresentar o show de encerramento. Ela pediu a todos um minuto de atenção, comunicando o que ainda não havia revelado nem mesmo pra mim: a Petrobras renovaria a parceria com o Crescer e viver transformando-a em patrocínio de continuidade — o único relativo a circo que o programa de patrocínios culturais da empresa apoia nesta modalidade no Brasil.

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PERSONAgENS dO ESPETテ…ULO VIDA DE ARTISTA, dO cREScER E vIvER, NA PRIMEIRA PROvA dE FIgURINOS. cRテゥdITO: IERテェ FERREIRA


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conquistando espaço na cena artística Com a produção e o sucesso de Vida de Artista — a arte de construir um espetáculo, me lancei à tarefa de iniciar na organização um movimento focado na construção de uma nova proposta formativa para as artes circenses, embalando a expansão do conceito de Circo Social com o qual trabalhávamos. Entendi que era preciso mais do que colocar uma molecada de classe popular para experimentar o circo e se integrar por meio dele. Era preciso agora colocar o Crescer e viver para assumir-se também como cena artística e como produtor de referências estéticas para o circo brasileiro. Reforcei o valor da produção artística conferindo maior importância à criação do espetáculo com uma proposta pedagógica que vá além de um momento de congraçamento ou culminância de um ciclo de aprendizagem, no qual os jovens demonstram os resultados dos seus esforços e de suas habilidades adquiridas no processo formativo das técnicas circenses e das demais linguagens que integram a metodologia do Crescer e viver. Passei a pensar a construção do espetáculo como: um espaço de mobilização da força produtiva, criativa e subjetiva dos jovens; um processo revelador de talentos artísticos; e de desenvolvimento de me170


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canismos de gestão da sua modelagem e de toda a complexidade que envolve a sua montagem e a sua apresentação, sem medo de assumir como foco a busca de um espaço para o Crescer e viver na cena da produção cênica brasileira. Conferir maior valor ao espetáculo foi o meio que encontrei para formular respostas mais eficazes à emergência e ao desejo dos jovens de usarem suas competências artísticas em uma atuação com o intuito de geração de renda, aceitando a importância do trabalho para jovens de classes e territórios populares como dimensão da tarefa do Crescer e viver de realizar inclusão social. Mesmo com a maior parte do Circo Social no Brasil negando a profissionalização dos jovens de classes populares com os quais trabalha, incuti no Crescer e viver o entendimento de que são eles, pela condição e pelo contexto socioeconômico a que estão submetidos, os primeiros a sofrerem a pressão social e familiar pelo exercício de alguma atividade produtiva; em muitos casos, eles são levados a abandonar os espaços de formação para (tentar) atender a esta emergência, deixando o percurso artístico, fortalecendo o que culturalmente temos visto: uma cena artística ocupada no geral por jovens de classes mais abastadas. Por isso, passei a compreender e utilizar o espetáculo como estratégia para gerar oportunidades para os jovens aplicarem seus conhecimentos e habilidades em favor da elevação da sua maturidade artística e criativa aplicada à resolução das suas necessidades econômicas em diálogo com o mercado de cultura, lazer e entretenimento. Uma outra razão para a maior valorização do espetáculo tinha a ver com a minha ideia de compromisso entre o Crescer e viver e a linguagem circense com o circo brasileiro, que, a julgar pelos espetáculos que vem produzindo, de qualidade questionável, demonstra viver um estado de paralisia estética, motivo pelo qual fica fácil entender a tendência do grande público e do próprio investimento cultural privado de supervalorizarem a produção externa. Eu me cansei de ver gente do Circo Social e de outras instituições — que tra171


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balham na perspectiva da formação para as artes circenses — exaltar e ter como única referência de qualidade o Cirque du Soleil, que, sem dúvida, tem excelência e merece ser colocado à disposição do grande público e de jovens que estão se tornando artistas de circo no Brasil. Mas percebi o perigo dos contornos míticos nesta supervalorização, uma vez que, entre outros impactos, isso vem gerando a cooptação paulatina de jovens artistas brasileiros de circo por parte de grandes companhias, entre elas o próprio Cirque du Soleil, apontando para acontecer com as artes circenses o mesmo que acontece com o futebol no Brasil. Estas minhas reflexões terminaram por levar o Crescer e viver a tentar, com a sua produção artística, construir com os jovens a consciência de que eles terão mais chances de contemplar as paisagens do mundo divulgando a criação artística brasileira, que, cada vez mais, ganha o interesse do mundo em todos os campos e todas as expressões. Tentei de todas as formas inserir este debate focado no alargamento do conceito de Circo Social junto à Rede Circo do Mundo Brasil, da qual eu fazia parte como articulador internacional, e à Rede internacional de Formação em Circo Social — um conjunto de organizações que atuam com Circo Social em diferentes partes do mundo, criada pelo programa Cirque du Monde, a vertente de Circo Social do Cirque du Soleil. Minhas ideias foram rechaçadas, sobretudo porque criavam zonas de conflito com o Cirque du Soleil, que todos os anos investe na rede brasileira uma quantia que nem de longe se aproxima da renda de uma única sessão de um dos seus espetáculos apresentados no Brasil. Saí destas redes em busca de fazer do Circo Social no Crescer e viver não apenas uma ação de inclusão social, mas um espaço de qualificação da cena artística circense capaz de, com os seus espetáculos, produzir referências estéticas que contribuam para resgatar a qualidade e o valor do espetáculo circense brasileiro. 172


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E foi embalado por esta busca que, após Vida de Artista, iniciamos a produção de pelo menos um grande espetáculo por ano. Em seguida a ele, em 2008, montamos e apresentamos Univvverrsso Gentileza — o mundo é redondo e o circo arredondado. Com concepção de Leonardo Guelman e direção de Gamba Jr., assumimos o desafio estético de (re) visitarmos a obra do Profeta Gentileza com um olhar crítico, revelando o que ele antevia com a força do seu verbo: o dilema dos novos tempos — a construção de um modelo de desenvolvimento que tenha como foco a preservação da vida. Encenamos a gentileza no picadeiro do Crescer e viver como paradigma ético, como forma de render homenagens a um dos mais importantes personagens do imaginário popular carioca, que com os seus cata-ventos dizia “arejar a mente da humanidade distraída” pelas mazelas das desigualdades, traduzidas por ele na expressão-denúncia “capeta-capital”. Além da temporada em nossa lona de circo, realizamos uma turnê por diversos municípios do interior do estado do Rio de Janeiro. Univvverrsso Gentileza foi longe, atravessou o Oceano Atlântico, e alguns de seus números e de suas cenas foram apresentados na cidade de Bari, na itália, como parte da programação artística e cultural de um festival internacional de direitos humanos. Com Baião — a homenagem do circo a Luiz Gonzaga, espetáculo de 2009, concebemos, sob a direção de Ernesto Piccolo e trilha sonora de ninguém menos que daniel Gonzaga — neto do homenageado e filho do não menos saudoso Gonzaguinha —, uma obra que juntou a expressão simbólica do circo à musicalidade e à cultura popular nordestina, mesclando, no picadeiro do Crescer e viver, o árido sertão nordestino com o solo de territórios urbanos do Rio de Janeiro, onde brotam arte e beleza, ainda que a indiferença insista em plantar desigualdades e violência. Mais uma criação que ganhou o interior do Rio de Janeiro, sendo apresentada em uma turnê conjunta com daniel Gonzaga. Para fechar a sua circulação entre diferentes públicos e plateias, Baião 173


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foi uma das principais atrações do Buenos Aires Polo Circo de 2010, na Argentina, um dos maiores festivais de circo da América Latina, e logo depois fez apresentações de alguns de seus números e de suas cenas no RoundHouse CircusFest, em Londres, no simpósio internacional de Circo Social da rede Circuscentrum, na Antuérpia, e na abertura do festival de verão em Bruges, ambas as cidades na Bélgica. A possibilidade de alcançar tantos resultados com este espetáculo veio com o reforço que ganhamos, tanto para as ações formativas como para as ações de produção, quando recebemos o patrocínio do ONS — Operador Nacional do Sistema Elétrico, que, ao lado da Petrobras, passou a ser um dos principais mantenedores dos projetos e das atividades do Crescer e viver. Em 2010, a ameaça de perder a área que invadimos para instalar a lona de circo do Crescer e viver deu origem a uma sucessão de fatos que nos impediram de apresentar um novo espetáculo. Retardamos a estreia e demos novos rumos a uma criação que estávamos iniciando. Trouxemos da itália o dramaturgo, diretor e ator circense Roberto Magro, um dos mais experientes diretores de circo da Europa. O desafio não era garantir um, mas todos os outros espetáculos que viriam, e para isso era preciso resistir e garantir a permanência do circo. Fomos à luta...

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cENA dO ESPETテ…ULO BAIテグ, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: BETO PテェgO


cENA dO ESPETテ…ULO PASSOS, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: ISABEL EBERT



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Perdemos a área, mas ainda não perdemos o território

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vez ou outra o terreno onde o Crescer e viver instalara o circo em 2004 recebia a visita de arquitetos, engenheiros, topógrafos etc. Sempre sem quaisquer notificações ou comunicados das autoridades públicas, estas visitas foram ficando cada vez mais frequentes a partir de 2009. Lembro-me de uma comitiva de engenheiros e pessoas ligados à Secretaria de Estado de Segurança Pública que chegou ao circo para realizar um teste no solo do terreno, no qual teriam de fazer vários furos, um deles previsto para ser no centro do picadeiro do circo que acabara de ser pintado para a estreia do nosso espetáculo Baião — a homenagem do circo a Luiz Gonzaga. Ali se deu a primeira tensão quando eu disse que não me importava de eles realizarem o trabalho desde que tampassem os furos em seguida e abrissem mão de furar a parte do nosso picadeiro. Um dos caras, meio ríspido, me deu uma carteirada e disse que a área não era nossa e que o governo do estado estava prevendo ali a construção de uma Central de inteligência Comando e Controle — um megaequipamento de segurança pública para reunir todas as forças de segurança do município, do estado e do governo federal.


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Como eu não sou de me intimidar, respondi que, antes de construírem, eles deveriam no mínimo nos notificar e solicitar a desocupação da área. Eu esperava por isso para dar início a uma ação judicial com o intuito de, se não garantir a posse da área, gerar o meio de iniciar a negociação com o governo do estado do Rio de Janeiro a fim de conseguir a cessão de uma outra área para a qual pudéssemos transferir o circo. Por fim, eu disse que se eles quisessem furar o entorno poderiam ficar à vontade, contanto que tivessem uma notificação oficial com respaldo judicial. do contrário, eu não permitiria a realização do serviço e ameaçaria tomar medidas visando coibir qualquer constrangimento e abuso de autoridade. Sendo assim, os técnicos responsáveis pelo estudo do solo disseram que furar o entorno do circo seria suficiente, e o mal-estar que se instalara logo se desfez. Mas aumentou a minha preocupação em tomar medidas urgentes que garantissem a permanência do Crescer e viver no terreno. Logo depois do show de estreia de Baião comentei com Eliane Costa a ameaça de perda do terreno, e ela imediatamente enviou do seu telefone, me copiando, um e-mail solicitando a Adriana Rattes — secretária de Estado de Cultura — que me recebesse para eu explicar o que estava acontecendo. Até ali eu não tinha tido nenhuma oportunidade de um contato mais direto e pessoal com a Adriana, pessoa que também veio, em curto espaço de tempo, a se tornar uma das parceiras mais importantes do Crescer e viver. A resposta de Adriana chegou no dia subsequente, com o número do seu telefone celular, me orientando a ligar para marcar um papo. Liguei imediatamente, expliquei a questão de maneira breve e sugeri que o nosso encontro acontecesse no circo, marcando com ela para assistir a Baião, que mantínhamos em cartaz. Ela na mesma hora confirmou e foi com Eva doris — superintendente de Artes da Secretaria de Estado de Cultura, outra grande parceira do Crescer e viver — assistir ao espetáculo com o objetivo de ao final da 179


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apresentação trocar ideias comigo sobre o destino do circo. depois do show, expliquei a elas toda a trajetória do Crescer e viver e como tínhamos chegado até aquele terreno. Falei como uma metralhadora, disparando centenas de palavras por minuto e revelando toda a minha intranquilidade e todo o meu medo, pois sair dali sem o apoio e a cessão de um novo lugar destruiria o Crescer e viver. Adriana, que ouviu atentamente toda a minha pregação, foi objetiva e transparente, dizendo que achava muito difícil continuarmos naquela área frente ao investimento que o governo do estado pretendia fazer ali. A colocação dela aumentou meu medo e minha insegurança, mas ao final da conversa eu disse que ela, como secretária de Estado de Cultura, não poderia permitir que o trabalho desenvolvido pelo Crescer e viver fosse prejudicado a ponto de não poder mais ser realizado. Com um sorriso enorme, que quem a conhece sabe como é, ela se levantou, me deu um abraço e selou comigo a seguinte aliança: “Eu vou encontrar um jeito.” Senti a maior firmeza nela, minha insegurança e meu medo se transformaram rapidamente em alegria e confiança. dali pra uma semana estava marcada uma reunião entre nós e Wilson Carlos — secretário de Estado de Governo — no circo. Ele já havia sido alertado sobre a importância de encontrar uma solução para o Crescer e viver também pelo governador Sérgio Cabral, que ficou sabendo da nossa existência por meio de um e-mail enviado a ele por José Junior, que mais uma vez em nossa trajetória se comprometeu em nos ajudar. A reunião foi marcada para uma manhã de segunda-feira. No lugar de realizar a reunião apenas com Adriana Rattes e Wilson Carlos, resolvi enviar um e-mail a toda a minha rede de contatos, explicando o risco de o Crescer e viver perder a área e pedindo a presença de todo mundo neste encontro com autoridades públicas que trataria do caso com a gente. Além de crianças, adolescentes e jovens participantes das atividades, compareceram alguns dos seus pais e responsáveis, e mais centenas de artistas, produtores, amigos e toda sorte de atores sociais ligados à comunidade circense 180


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e à cena cultural carioca. quando os nossos interlocutores chegaram, eu fui até o portão recebê-los e, quando adentramos a lona, lembro-me do secretário Wilson Carlos me perguntando: “Não era só uma reunião entre nós? vejo aqui uma manifestação.” Respondi a ele dizendo que ali estavam pessoas que direta e indiretamente se beneficiavam do circo, gente que apostava em nosso trabalho, enfim, pessoas que de uma maneira ou de outra seriam afetadas com a descontinuidade dos nossos projetos, nossas atividades e nossa existência. Logo, o que transformaria aquela mobilização em uma manifestação ou não era o que ele teria para nos dizer. Assim que chegamos ao centro do picadeiro, iniciamos a exibição de um filme, na verdade uma parte de um episódio do programa Conexões Urbanas, que meses antes José Junior havia gravado com o Crescer e viver. Em seguida, entreguei o microfone à Adriana Rattes, e ela se encarregou de apresentar Wilson Carlos, dando a ele a palavra. O cara foi objetivo, disse que o governador Sergio Cabral havia determinado que ele e Adriana Rattes resolvessem o problema do Crescer e viver, já que este só sairia do terreno depois de encontrar, em comum acordo com o governo do estado do Rio de Janeiro, uma área adequada e do seu interesse; todas as despesas com a transferência do circo seriam assumidas por eles. quando ele, ao terminar de falar, me entregou o microfone, eu disse que a melhor área seria aquela que preservasse a nossa presença no território, tanto do ponto de vista simbólico, pois a região era considerada o berço das tradições do circo no Brasil, como do ponto de vista social, pois garantiria a continuidade do trabalho com centenas de crianças, adolescentes e jovens do entorno. Em seguida, apontei para uma parte de um terreno em frente, onde o governo do estado do Rio de Janeiro estava terminando a construção de uma farmácia, mas que requereria mudanças no projeto para abrigar o circo. Wilson, que parecia mesmo disposto a dar uma solução imediata, convidou nós todos para visitarmos a obra da farmácia. Lá solicitou 181


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esclarecimentos sobre o projeto da obra e, depois de ligar para o presidente da EMOP, a Empresa de Obras Públicas do estado do Rio de Janeiro, determinou a derrubada de um muro e todas as mudanças necessárias para o terreno abrigar a lona de circo do Crescer e viver. O resto do acordo entre nós e o governo do estado do Rio de Janeiro foi operado pela Secretaria de Estado de Cultura. Adriana Rattes, que além de entender a pressa que o Estado tinha para construir no terreno que ocupávamos, queria garantir uma transferência que nos colocasse em melhores condições estruturais do que as que tínhamos, colocou toda a sua equipe à nossa disposição. Olga Campista, subsecretária de Relações institucionais da Secretaria de Estado de Cultura, foi a fiel escudeira do acordo que efetuamos com o governo do estado. Lembro-me de reuniões que participei com ela e com dirigentes da EMOP nas quais ela parecia uma dirigente do Crescer e viver defendendo, bem melhor do que eu, os interesses da organização. A operação transferência defendida por ela veio premiada com a construção de várias salas e dependências de apoio, como cozinha, refeitório, camarins e banheiros, e com amplas instalações elétricas que diminuíram, substancialmente, os nossos custos com a locação de geradores de energia para eventos e temporadas dos nossos espetáculos. Perdemos o terreno, ganhando outro com condições estruturais bem melhores do que as que tínhamos. Continuamos ali fincados, e ainda tendo que resistir às pressões de uma ampla reforma urbana que está sendo feita no entorno com a instalação de vários empreendimentos públicos e privados. Espero contar com a sensibilidade de governantes que ainda virão, pois eles precisam entender que o circo Crescer e viver é a única chance de preservação da memória de um território cuja história se confunde com a história do desenvolvimento da cultura popular e circense do Brasil.

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cENA dO ESPETテ…ULO UNIVVVERRSSO GENTILEZA, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: FERNANdA LAURIA


Os fazimentos que est達o por ser feitos

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REALIZAR é SEgUIR EM FRENTE E cORRER RIScO – O PRINcIPAL ELEMENTO ESTéTIcO dO cIRcO. cRédITO: MONISE NIcOdEMOS


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São os passos que fazem os caminhos Passos foi o espetáculo cuja estreia não pudemos realizar, como inicialmente previsto, em 2010, sob a direção de Roberto Magro. Um atraso no início das obras de realocação da nossa lona de circo impediu a sua conclusão no tempo previsto, e, consequentemente, fomos levados a adiar a estreia. Roberto, que já tinha um conjunto de agendas para cumprir na Europa, retornou à itália, e eu resolvi convidar Cláudio Baltar para assumir a tarefa. Passos é um espetáculo cuja concepção “conduz à ideia da busca de novos caminhos, gerando deslocamentos e criando a coragem para correr risco e partir para próximos passos”. (...) “É a representação estética das diversas etapas, oportunidades, escolhas, diversos encontros e desencontros, relacionamentos, ciclos que começam e terminam para recomeçar em seguida, que dão forma à vida como um lugar de passagem...” quem leu todos os capítulos anteriores deve ter observado que os meus percursos, tal como o processo de desenvolvimento do Crescer e viver, estão completamente identificados com esta concepção. 186


cap.03 OS FAZIMENTOS QUE ESTÃO POR SER FEITOS

Realizamos a estreia de Passos em maio de 2011 com um elenco majoritariamente formado por jovens iniciados no Programa de Formação do Artista de Circo, que criamos com a intenção de ser o primeiro curso técnico de circo do Brasil. Além disso, ele também foi criado para enfrentar a distinção entre os métodos e os resultados formativos alcançados pelo Circo Social, tal como aqueles alcançados no mesmo campo por aquelas organizações que se autodenominam “escolas” ou “centros de profissionalização de artistas de circo”, mas que à luz da educação e do trabalho avançaram pouco na formulação de parâmetros curriculares que lhes permitam o alcance da condição de instituição de ensino profissionalizante. Mesmo a Escola Nacional de Circo, com quase três décadas de existência e operando sob a chancela do Estado brasileiro, não se realizou como projeto formal de educação profissional para as artes circenses, segundo o que estabelece o ordenamento jurídico desta modalidade de ensino no Brasil. Este é o novo passo que estamos dando para contribuir com a renovação da cena circense. O Programa de Formação de Artista de Circo junta jovens de diferentes estratos, mas que ainda assim segue enfrentando uma questão social premente para o circo no Brasil: qualificar a docência das artes circenses e dar à ela o mesmo lugar de reconhecimento que as outras linguagens cênicas já alcançaram. Seguimos mantendo o nosso Programa de Circo Social, que beneficia crianças, adolescentes e jovens de classes e comunidades populares. Mas com o Programa de Formação do Artista de Circo queremos dar um passo além, buscando aprender, construir e estruturar competências e novos conhecimentos, visando a qualificação e a excelência do Crescer e viver como um espaço com foco em resultados, junto a jovens que querem ter no circo possíveis campos de profissionalização, tais como: a ampliação de repertório e vocabulário artístico; a elevação de percepção estética e da subjetividade; e disposição e abertura para a pesquisa e a experimentação, como um movimento ativo e crítico. 187


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Foi a partir de Passos que, a convite da Secretaria de Estado de Cultura, com o patrocínio da Petrobras, formatamos o projeto Circo volante — uma iniciativa de “resgate da tradição de itinerância das lonas de circo como espaço de difusão da produção criativa das artes circenses com linguagem e forma de organização de espetáculo acessíveis a diferentes públicos e classes sociais”—, o qual o governo do estado do Rio de Janeiro pretende transformar em uma política pública. Um projeto que coloca o Crescer e viver no único lugar que faltava para ele ser a única instituição que atua e desenvolve ações em todos os elos da cadeia produtiva das artes circenses. Tudo o que faz parte deste capítulo ainda se encontra em fase de consolidação; logo, são fazimentos em construção, então ainda há muito o que ser feito... Estou dando os passos, um de cada vez, e às vezes muitos ao mesmo tempo. Acredito ser esta a forma de produzir e experimentar novos caminhos. Portanto, desejo que este livro, no qual mostro a minha trajetória formada por muitos percursos, possa servir de inspiração a todos aqueles que estão dispostos a gastar a sola dos sapatos, pois ser feito na vida exige caminhar. Fui... e você, vai ficar parado aí?!

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MOvIMENTO cOREOgRテ:IcO dO ESPETテ…ULO PASSOS, dO cREScER E vIvER. cRテゥdITO: ISABEL EBERT


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Posfácio

Noite de setembro no Rio de Janeiro. Na lona do circo Crescer e viver, na Praça Onze, dez acrobatas ensaiam o espetáculo Passos, que, no próximo mês, será apresentado em oito cidades do estado. Os artistas dão cambalhotas, saltos mortais e sobem em trapézios. Observando de um canto da plateia, Junior Perim fuma um cigarro e, de vez em quando, comenta o ensaio com o diretor. Também tira fotos dos artistas em cena e posta no Facebook, via celular, reflexões como: “Circo é isso: a possibilidade de ver o mundo de cabeça para baixo. Talvez esta seja a forma de reinventá-lo.” Reinventar faz parte do vocabulário de Junior Perim, um dos criadores e diretor executivo do Crescer e viver, que, desde 2003, é um dos protagonistas do chamado Circo Social no Brasil. “Minha aprendizagem é da vida. Eu inventei uma forma de estar nela e quero dividir isso com as pessoas.” Perim é irrequieto. Fala alto, gesticula muito, atropelando uma palavra na outra, cheio de ideias que não param de surgir e parecem ter pressa para serem executadas. quem não o conhece pode se enganar por alguns segundos com seu jeito marrento e cheio de gírias: “Coé, seu João, me traz uma cerveja aí, tá demorando, pô”, reclama ele com o porteiro do circo. O engano, porém, é desfeito em questão de segundos. Preocupado, ele logo se dirige ao porteiro e faz uma série de perguntas: “E o seu exame, seu João? Buscou o resultado? Tem que ver isso logo, seu João... Não dá mole, não!” E nessa alternância entre o jeito rude e a nítida preocupação com os outros, Perim conquista todo mundo. A coordenadora de Artes Cênicas da Petrobras, Regina Guimarães, o conheceu ao patroci-

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nar um espetáculo do grupo. Em pouco tempo, tornaram-se grandes amigos. “O Junior parece totalmente doido, mas tem consciência de tudo o que diz. Fala muito, mas nunca por falar, está sempre com novas ideias. Com aquele jeito largadão, ninguém dá nada por ele, mas basta abrir a boca que ganha qualquer um”, conta Regina. Nascido em São Gonçalo há 39 anos, Perim abandonou a escola ainda criança para ajudar a mãe com as despesas de casa. Trabalhou como abatedor de frango dos 11 aos 14, quando virou contínuo em uma empresa na Zona Sul do Rio. No fim da adolescência, entrou para a política. “igual às meninas que se lembram do primeiro sutiã, eu me lembro do meu primeiro panfleto.” Perim se envolveu com movimentos comunitários e filiou-se à Juventude Socialista do PdT. A militância o levou diversas vezes a Cuba, onde conheceu Fidel Castro em uma cerimônia oficial. “quando ele apertou a minha mão, não me segurei e comecei a chorar”, conta Perim, que ainda se emociona ao se lembrar do episódio. A atividade partidária não foi longe, mas Perim manteve a vontade de investir em trabalhos comunitários. Tornou-se vice-presidente de projetos sociais da escola de samba Porto da Pedra. Organizou oficinas e serviços para a comunidade, de exames de vista a aulas de cavaquinho, ocupando o tempo ocioso das crianças da região. decidido a criar um trabalho focado em uma única área, convidou o amigo vinicius daumas, que já era palhaço, para criar uma escola de circo. “O Junior me chamou para montar um projeto de ação social voltado para a atividade circense, e eu de cara aceitei. Foi uma união inusitada entre um palhaço e um cortador de frango. E não é que deu certo?”, declarou vinicius daumas, que, além de sócio, é considerado um irmão para Perim.

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E assim, em 2003, nasceu o Crescer e viver. A arte circense serve como caminho para a educação de crianças e jovens de classes e comunidades populares. Como diz Perim: “O circo exige confiança, trabalho em equipe, persistência, capacidade de resistir à dor. do ponto de vista simbólico, também existem outras formas de sentir dor, de se ferir. E o circo dá essa capacidade de superação, a capacidade de saltar por obstáculos, se equilibrar, de ter concentração. Por isso o escolhemos como ferramenta. O circo é para a vida.” ironicamente, Perim não pratica nenhuma atividade circense: não faz acrobacias, não é palhaço e não sobe em trapézios ou em cordas bambas. No entanto, aprendeu como ninguém as melhores lições que o circo pode oferecer: a capacidade de persistência e de superação.

Ana Studart

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EdUcANdOS dO cIRcO SOcIAL cREScER E vIvER. cRédITO: RATãO dINIZ


PASSEI POR MUITOS PERcURSOS E ESTOU FELIZ dE TER EScOLhIdO SEgUIR vIAgEM cOLOcANdO A ARTE E A cULTURA dO cIRcO A SERvIçO dA JUvENTUdE E dA TRANSFORMAçãO SOcIAL. cRédITO: ROdRIgO cIRNE



Este livro foi composto em diN. O papel utilizado para a capa foi o Cart達o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o Lux Cream 90 g/m2. impresso pela Walprint para a Aeroplano Editora em outubro de 2012.



Junior Perim, guerreiro maior da nossa galera Este é o livro de estreia do Perim, e você, caro leitor, não pode deixar de lê-lo. Aqui, ele narra sua história como trabalhador e militante social, suas crenças, suas descobertas, suas redes de afetos e a criação de um dos projetos mais inventivos do Rio de Janeiro: o Crescer e Viver. Aqui, você receberá inteligência, saberes, criatividade, compromisso e gana de agir diretamente no cérebro e na veia. Você conhecerá a beleza da dura história de um sujeito da periferia do Rio obstinado em construir sua utopia pessoal e coletiva. Caso você ainda não o conheça, saiba que Perim é um das mais atuantes e brilhantes figuras de uma galera que, desde os anos 1990, vem colocando a periferia carioca no mapa da metrópole, afirmando discursos e práticas que reinventam a forma de ser morador das favelas e periferias: Eliana Sousa, Celso Athayde, José Junior, Guti Fraga, Marcus Faustini, Jorge Barbosa são algumas dessas pessoas dedicadas a pensar, intervir e mostrar que a ação coletiva, criativa, transformadora é necessária e possível. Assim, sinta-se parte deste projeto de uma cidade mais humana e justa. E este pertencimento começa por essa leitura obrigatória. Jailson de Souza e Silva Observatório de Favelas

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