Caderno e.i - 1 (espaço impresso)

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edições traplev orçamentos

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Permissividades e Vulnerabilidades Práticas (espaço impresso, parte 1) ¹


1 O projeto Permissividades e Vulnerabilidades Práticas - espaços impressos, físicos

e discursivos 2010-2013, é idealizado pelo artista Traplev e compreende uma plataforma de investigação no campo da crítica, da curadoria e das práticas artísticas em geral, para o desenvolvimento de distintas ações com a participação e colaboração de diversos artistas, críticos e outros pesquisadores (agentes).

O projeto surgiu da leitura e dos estudos dos textos Análise do Circuito , de Ronaldo Brito, e Geopolíticas da Cafetinagem, de Suely Rolnik, reunidos nesse primeiro caderno que fala da permissividade do circuito (Brito) e da vulnerabilidade deste contexto da prática artística (Rolnik), conceitos que nomeiam o projeto. Com a fusão dos conteúdos pensados pelos dois autores, tem início a plataforma de investigações prática e crítica apresentada no presente “espaço impresso”. As ações previstas nos campos citados são tais como: a realização de debates e encontros, a produção de publicações e outros impressos e a viabilização de exposições como laboratórios práticos em que se pretende desenvolver algumas idéias em jogo durante os processos de colaboração. A idéia é reunir diversos agentes em torno desta plataforma para evidenciar e disponibilizar estudos e práticas a respeito da produção crítica no Brasil e nos países vizinhos. Os significados do termo “produção crítica”, serão aqui explorados numa tentativa de operacionalizar a história gerando argumentos possíveis para contribuir um entendimento possível das práticas artísticas hoje. O Caderno: análises e desdobramentos - e.i, é o primeiro volume da série de “espaços impressos”, que tem por objetivo aprofundar as discussões sobre os temas pertinentes aos contextos históricos contemporâneos, abordados pelos agentes convidados. O projeto Permissividades e Vulnerabilidades Práticas terá, justamente, o sentido de não apenas abordar a história recente, mas de colocar em “jogo-vivo” suas referências, propondo outras leituras e desdobramentos infinitos em espaços impressos, físicos e discursivos.


A Revista MALASARTES e o Circuito de Arte Brasileira dos anos 1970 ²

Organizador: Roberto Moreira Junior

caderno: análises e desdobramentos (espaço impresso 1)


2 Foi através do Programa de Bolsa e Estímulo a Produção Crítica em Artes Visuais FUNARTE em 2010, que tive a oportunidade de concluir a pesquisa intitulada Revista Malasartes e o circuito de arte brasileira dos anos 1970 - análises e desdobramentos, primeira ação do projeto Permissividades e Vulnerabilidades Práticas - espaços impressos, físicos e discursivos. A investigação que realizo sobre a Revista Malasartes e o interesse sobre as manifestações que resultam em meio impresso no circuito artístico brasileiro da segunda metade do século XX pra cá, visam disponibilizar uma leitura referencial sobre o contexto extremamente fértil da produção artística dos anos de 1960-90, e oferecer ferramentas para se pensar as práticas artísticas das décadas seguintes. A publicação Caderno: análise e desdobramentos - e.i -1, apresenta uma síntese crítica da Malasartes e propõe uma releitura deste período histórico evidenciando a Área Experimental no MAM-RIO, em especial, o texto de Ronaldo Brito Análise do Circuito – publicado pela primeira vez na Malasartes n.1 de 1975. O texto de Suely Rolnik Geopolíticas da Cafetinagem, de 2002, em conjunto com o primeiro, propõe uma reflexão contemporânea sobre a história. Ambos os textos estão reunidos no Caderno e.i, para inaugurar esta plataforma disponibilizando referências históricas para o desenvolvimento do pensamento sobre a prática artística hoje. O discurso crítico aqui descrito se forma de maneira simples mas exige uma “insistência dupla” para ultrapassar a camada permissível do circuito. Dentro desse conjunto, algumas questões são interessantes de se ter em mente: Em qual contexto artístico nos inserimos hoje???? Quais são os agentes dessas esferas que nos fazem pensar e questionar, criticar ou resistir a alguns princípios da prática artística no contexto geral de nossas vulnerabilidades???


“forçar os limites da permissividade do circuito é uma das tarefas da produção contemporânea”. Ronaldo Brito Análise do Circuito, 1970

“por meio de que processos, nossa vulnerabilidade ao outro se anestesia?” Suely Rolnik Geopolítica da Cafetinagem, 2002

caderno: análises e desdobramentos (espaço impresso 1)

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Fotografia da capa e Ă­ndice da Malasartes n. 1, de 1975


A Revista MALASARTES e o Circuito de Arte Brasileira dos anos 1970

3 Bernardo de Vilhena, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Cildo Meirelles, José Resende, Luis Paulo Baravelli, Rubens Gerchman, Waltércio Caldas e Ronaldo Brito (este último crítico de arte).

4 A colocação foi feita por com Ronaldo Brito e Carlos Zilio, em conversas realizadas com o editor, em setembro e outubro de 2010, respectivamente. A “retomada do discurso crítico” ocorre, coincidentemente, durante o período de exílio de Mário Pedrosa (que volta ao Rio de Janeiro vindo do Chile em 1977).

5 Ambas as obras de Barrio e Cildo foram produzidas em 1970 para a Exposição Do Corpo a Terra, curada por Frederico Morais em Belo Horizonte.

A

revista Malasartes foi uma revista de artes plásticas editada por um grupo de artistas e um crítico de arte³ durante a curta e intensa temporada de produção de três números, do final de 1975 até 1976, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse curto período, Malasartes evidenciou a retomada do discurso crítico da história e do próprio circuito artístico da época4, disponibilizando textos inéditos escritos por seus editores e convidados, bem como apresentando traduções de textos seminais para se questionar e refletir sobre a produção artística em geral. Logo no primeiro número da Malasartes em 1975, Ronaldo Brito publica seu texto Análise do Circuito, colocando em jogo as práticas de mercado e as práticas artísticas experimentais que estão em evidência no momento. O “posicionamento político” que resiste à situação ditatorial em que o Brasil se encontra, ainda nessa época, é posto em questão, e é apresentado na Malasartes de uma maneira muito distinta. Nas páginas da revista, não há qualquer explicitação dos acontecimentos que marcaram os tempos de opressão; a Malasartes faz questão de retomar, justamente, a importância da produção de artes plásticas como um campo discursivo de construção da própria história.

Politizar (no sentido amplo do termo, claro) o relacionamento trabalho-mercado, politizar o relacionamento trabalho-circuito, politizar o relacionamento circuitoambiente cultural significa apenas reconhecer a verdade do jogo e escapar ao mascaramento proposto pela ideologia de arte vigente. E é sobretudo em relação a essa ideologia que a meu ver se define um trabalho contemporâneo: uma proposta é tanto mais interessante quanto apresente maior grau de liberdade dentro do sistema estabelecido de arte. Ronaldo Brito Análise do Circuito Muitos trabalhos dessa época já comentavam fortemente o período ditatorial no Brasil, como as Trouxas ensangüentadas de Artur Barrio, ou Totem – monumento aos presos políticos5, de Cildo Meireles; a nota de um Cruzeiro carimbada Quem Matou Herzog? (1975), também de Cildo; Repressão outra vez: eis o saldo (1968), de Antônio Manuel, são apenas algumas das obras emblemáticas que contextualizam politicamente o período. A Malasartes, como meio impresso, marca uma posição histórica ao afirmar o papel reflexivo da produção artística em si, impondo respeito ao incipiente mercado de arte, então, em formação. Entre os textos publicados na Malasartes, eu destacaria – além do Análise do Circuito de Ronaldo Brito – A Formação do Artista no Brasil de José Resende, a tradução do texto de Joseph Kosuth Arte depois da Filosofia, a republicação do manifesto neoconcreto A Teoria do não-objeto de Ferreira Gullar (ambos na Malasartes n.1), A Querela do Brasil de Carlos Zilio, Planejamento Ambiental de Lina Bo Bardi, a sequência da discussão do texto de Kosuth A Arte dos Mestres de Suzana Geyerhahn, o texto do curador italiano Achille Bonito Oliva, A Arte e o Sistema da


Múltiplo de Waltércio Caldas (edição de 20 exemplares), publicado como intervenção na primeira Malasartes, 1975 - fotografia de Miguel Rio Branco.


Arte (Malasartes n.2), que desenvolve uma reflexão sobre alguns pontos colocados pelo próprio Ronaldo Brito em Análise do Circuito. Já na Malasartes n.3 os textos A Educação do A-artista de Allan Kaprow, Ausência da Escultura de José Resende, o Manifesto contra o Salão Arte Agora I assinado por vários artistas, o depoimento de alguns dos artistas que expuseram na Sala Experimental do MAM-RIO deflagrando seu descontentamento em relação ao administrativo, e a primeira versão do texto seminal de Ronaldo Brito, Neoconcretismo (Malasartes n.3), além de reflexões diversas sobre cinema, literatura e música são essenciais para elucidar a importância conceitual e crítica da revista Malasartes.

6 Trecho do texto de apresentação do livro Escritos de Artistas, anos 60-70, de Glória Ferreira, editado pela Jorge Zahar, em 2006, com participação de Cecília Cotrim.

7 As exposições foram organizadas pela jornalista e marchand Ceres Franco e o galerista Jean Boghici. A idéia central dos organizadores é estabelecer um contraponto entre as produções nacional e estrangeira, de modo a avaliar o grau de atualização da arte brasileira a partir das pesquisas então recentes em torno das “novas figurações”. 8 Exposição organizada por artistas e críticos tais como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Rubens Gerchman, Lygia Pape, Glauco Rodrigues, Carlos Vergara, Flávio Império, Nelson Leirner, Mário Pedrosa, Sérgio Ferro, Waldemar Cordeiro, entre outros. A mostra reúne diferentes vertentes das vanguardas nacionais: arte concreta, arte neoconcreta, novas figurações - em torno da idéia de “nova objetividade”. Esta noção origina-se nos escritos teóricos de Hélio Oiticica sobre a situação das artes e da vanguarda no Brasil.

Vários dos textos acima citados foram re-publicados em revistas acadêmicas e livros organizados sobre o tema da produção artística e torna-se evidente nesse processo de re-edição de textos, a combinação de histórias (não) semelhantes que propõe a criação de outros referenciais de compreensão, talvez por outras esferas de potencialização dos textos históricos através do pensamento atual.

contextos e períodos Citando Glória Ferreira para sintetizar esse período histórico6 :

Uma das características das décadas de 1960-70 é a politização da arte nos próprios termos da arte, e não como subordinação da práxis artística a prática política ou adesão a um partido – mesmo que haja, por vezes, engajamentos em ações políticas, como em 1968, ou aproximações com tendências políticas, como o maoísmo na França, ou com a resistência à ditadura, no Brasil, na Argentina, no Chile e em outros países. A resistência ao circuito estabelecido e a afirmação do poder de invenção se revelam na escolha de suas próprias normas e na criação de seus objetos. A responsabilidade pela obra, seu uso e os efeitos que produz se expressam de diversas maneiras, seja pelos textos, locais, meios e materiais de atuação, seja por formas jurídicas – contratos, vendas de projetos. A situação da arte na sociedade, sua inserção na história e o destino das obras no circuito comercial ou museológico tornam-se elementos internos à prática artística, em franca descrença em uma hipotética neutralidade da arte.

Um dos traços comuns do período é o não-confinamento da proposta artística em um meio estabelecido, mas sua disseminação em todo o campo social. O signo artístico, dirigido não apenas ao olhar, não seria, porém, considerado como instrumento transformador da sociedade (caso de algumas tendências modernas), mas explicaria as instâncias públicas da arte, com mensagens e temas própriamente políticos, históricos, sociais, antropológicos, ecológicos, etc., como por exemplo, na chamada Arte Pública, desenvolvida a partir de então. Na tentativa de compreensão do contexto social das décadas de 1960-70, além de trazer à tona toda a resistência à ditadura militar no Brasil, é importante esclarecer a posição do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RIO)


como um dos epicentros da produção contemporânea de arte no país. E dentre as principais exposições e encontros célebres nele realizados estiveram: Opinião 65 e Opinião 66 7, Nova Objetividade Brasileira8, em 1967, Apocalipopótese9, em 1968, Salão da Bússola10, em 1969, exposição da representação de artistas brasileiros na Bienal Jovem de Paris11, também em 196; os Domingos da Criação12, em 1971, os Salões de Verão (1969-1974), a Área Experimental (1975-76), entre outras. Segundo Paulo Herkenhoff, nas artes plásticas a década de 70 “começa” com o Salão da Bússola (MAM-RJ, 1969), Do Corpo à Terra (Belo Horizonte, 1970) e Agnus Dei (Rio de Janeiro, Petite Galerie, 1970).

Deve-se destacar o papel de Frederico Morais, revelando uma geração de artistas que transforma a linguagem e o campo da arte e elabora um novo projeto político: Cildo Meirelles, Barrio, Antonio Manuel, Luiz Alphonsus, Alfredo Fontes, Cláudio Paiva, Raymundo Colares, Guilherme Vaz, entre outros. Seguramente, o evento em Belo Horizonte foi o momento mais radical da arte brasileira sob a ditadura. Acrescente-se – com curadoria de Frederico Morais – a exposição “Indagação sobre a Natureza e a Função da Obra de Arte”, Rio de Janeiro, IBEU, 1973, “8º JAC “(Jovem Arte Contemporânea), “Prospectiva 74” e “Poéticas Visuais” (1975): uma série de exposições organizadas por Walter Zanini, reunindo artistas voltados para os novos meios, a semiótica e novas formas de atuação, frequentemente beirando a estética Fluxus. “Área Experimental”, a série de exposições individuais de artistas criada por Roberto Pontual no MAM-RIO foi o mais importante programa de exposições de uma instituição brasileira desde a década de 1960. Seu modelo produz ecos no Espaço ABC, na programação do Centro Cultural São Paulo, entre outros13. O primeiro número da Malasartes é lançado justamente no mesmo ano em que o MAM-RIO, programa, em suas atividades, a série de exposições experimentais no terceiro andar do museu, local que alguns artigos da época passam a denominar de Sala Experimental, ou, simplesmente, Área Experimental; ela permanece em atividade até 1976. O espaço destinado a projetos experimentais dentro do MAM-RIO, além de possibilitar o desenvolvimento da produção artística da época, provoca uma demanda de posicionamentos (análise crítica, manifestos dos artistas), frente à institucionalização e a conseqüente perda do espaço no incêndio de 1978, como veremos no artigo de Roberto Pontual no Jornal do Brasil nesse mesmo ano, no qual se lia na manchete da folha: “onde experimentar?” O espaço destinado a projetos experimentais dentro do MAM-RIO, além de possibilitar o desenvolvimento da produção artística daquela época, provocou uma demanda de posicionamentos (análise crítica, manifestos dos artistas), frente à institucionalização e a conseqüente perda do espaço pelo incêndio de 1978, como vamos ver no artigo de Roberto Pontual no Jornal do Brasil de 1978, onde lia-se na manchete da folha: onde experimentar ?

A área experimental – vital para o MAM desde que aberta, em meados de 1975 – está ameaçada de estrangulamento até de parada. Através dela, nos últimos três anos, os artistas, sobretudo os das gerações emergentes entre nós, dispuseram de um canal alternativo para apresentação e debate de suas

9 O evento integra a programação da exposição Arte no Aterro-um mês de arte pública, e é organizado por Frederico Morais, ocorrendo nas tardes de domingo do mês de julho (entre os dias 06/07 e 28/07). A coordenação da Apocalipopótese cabe a Hélio Oiticica.

10 O Salão da Bússola, no MAM do Rio de Janeiro, chegou a ser alvo de uma bomba durante um debate em que estavam presentes artistas e críticos de arte. O Salão ocorreu entre 5 de novembro e 5 de dezembro de 1969, promovido por Aroldo Araújo Propaganda Ltda., como comemoração ao aniversário de cinco anos da empresa. Como a bússola era seu símbolo, este se tornou o nome do salão. (...)” A importância deste salão decorreu essencialmente da presença de alguns trabalhos polêmicos, de repercussão na imprensa e no meio artístico e também dos eventos paralelos promovidos, como o ciclo de debates. Naquele momento político de tensão, os trabalhos experimentais significaram uma espécie de transgressão e liberdade. Foi também a partir desta exposição que artistas ganharam projeção. Dos quatro artistas brasileiros participantes de Information, realizada em 1970, além de Hélio Oiticica, três integraram o Salão da Bússola: Barrio, Cildo Meireles e Guilherme Vaz. O curador da mostra novaiorquina, Kynaston Mcshine, em viagem pelo Brasil, provavelmente visitou o salão”. Dária Jaremtchuk.

11 A repressão fechou a mostra de artistas que representariam o Brasil na VI Bienal dos Jovens de Paris, em 1969. O MAM foi invadido pelas tropas do exército e a exposição foi censurada e desmontada. Como relatou o diretor-executivo do MAM naquela época, Maurício Roberto, o museu passou a ser um lugar “suspeito” desde então. Sobre esse evento Mário Pedrosa, que era presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, e havia participado do grupo que selecionava os trabalhos a serem enviados a Paris, escreveu – sob o pseudônimo de Luis Rondolpho – um texto-manifesto, publicado no jornal Correio da Manhã, em 10 de julho de 1969, no qual declarou sua perplexidade ao constatar que a censura havia sido determinada pelo ministro das Relações Exte-


riores, Sr. Magalhães Pinto, que declarava nos jornais que “… houve um abuso de confiança, pois ao receber a incumbência de escolher as obras de arte, o MAM foi instruído para afastar aspectos ideológicos e políticos das obras concorrentes”. O fechamento da exposição desencadeou um boicote dos artistas nacionais e internacionais à Bienal de São Paulo, acirrando ainda mais os ânimos. A repressão foi muito forte, mas os artistas e críticos continuaram ativos.

12 Os Domingos de Criação, organizados por Frederico Morais, ocorreram entre janeiro e julho de 1971, na parte externa do MAM-RJ. Em cada domingo, colocou-se à disposição do público um tipo de material diferente. Ocorreram O domingo por um fio, O domingo de papel, O tecido do domingo, Domingo terra a terra, O som do domingo e O corpo a corpo do domingo. 13 Trecho do texto de Paulo Herkenhoff para o catálogo Caminhos do Contemporâneo 1952\2002, Paço Imperial RJ. 14 Abordar a Área Experimental no MAMRIO, é extremamente relevante para compreendermos os paradigmas que às vezes absorvem e transformam iniciativas como essas, que aglutinam e potencializam o circuito artístico. O cenário que se firma com a publicação dos três números da Malasartes é, substancialmente, de uma retomada do pensamento crítico que se reconfigura para evidenciar a própria produção de arte da época. E as exposições individuais realizadas na Área Experimental foram essenciais não só para os artistas, mas para a própria instituição que ao permitir, por mais contraditória que tenha sido sua manutenção, a experimentação longe dos preceitos do mercado, reunia e potencializava essa produção.

propostas, à margem do circuito estritamente comercial. Ainda que o próprio sentido do termo experimental não se tivesse esclarecido por inteiro no período, e que momentos de retração (como em 1977) hajam tomado conta da Área, ela foi sem dúvida uma conquista oxigenadora do ambiente. Roberto Pontual, Jornal do Brasil 1978. No mesmo artigo do Jornal do Brasil, além do texto de Roberto Pontual que questiona o futuro não só do museu (sua reconstrução), mas a continuação do projeto da Área Experimental13 , outros artistas registram também suas críticas a respeito. Paulo Herkenhoff escreve:

A área experimental se vista como uma conquista política, tem como alternativa o próprio MAM, mesmo se o fogo encolheu o seu espaço. Enquanto instituição, só o MAM tem condições de manter um espaço do contemporâneo. A busca de outros espaços resultou em achados fortuitos: a Central de Arte Contemporânea faliu, o jornal GAM acabou, o Parque Lage é tímido e confuso, as galerias Luiz Buarque e Petite são esporádicas. A realidade é que não se resolveu uma capacidade de autofinanciamento. Marginal na economia da arte (executando dois ou três artistas e mecenas), a área experimental sofre bloqueios, recuperações, achaques de toda espécie. A área, enquanto ocupação política, foi para os artistas um exercício de aglutinamentos, mobilizações, discussões, traçado de estratégias. Manteve-se uma certa unidade, apesar das diferenças e oposições entre os artistas. Reconhecendose ter algum poder de pressão, a posição alternativa atual é a de não abrir mão do espaço, discutir o Museu, fazer crítica e autocrítica. Há muitas questões a serem postas ao MAM: o quase confinamento da Área Experimental no 3º andar não era manter um gueto no seu espaço? A falta de um projeto cultural criterioso não é também uma forma paternalista que dilui a Área Experimental e lhe impede o ritmo? Fechando-se para a Área Experimental, parece-me que o Museu está se afastando do seu modelo. Nas três últimas décadas, o MAM foi palco dos movimentos do Rio. Não sei se agora o sonho é reconstruir um MAM de múmias.

A Área Experimental no MAM-RIO, torna-se, então, válvula de escape da “produção experimental” e, ao mesmo tempo, motivo para que seja feita uma análise de como os trabalhos devem ser produzidos e valorizados no contexto institucional. Assim como a Malasartes irá desempenhar um importante papel na produção crítica, a Área Experimental desenvolverá um espaço prático de atuação artística ao reunir diversos agentes: público em geral, artistas, curadores e críticos. Apesar de, na década de 70, ambos Área Experimental e Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, não suportarem a pressão decorrente dos acontecimentos, a validação de sua “crise” reforça a importância que têm para o circuito: os espaços que não geram, por suas propostas, uma “certa fricção” – quer seja institucional ou administrativa para a instauração de novos paradigmas – não sobrevivem para além da superficialidade de suas vernissages.


(alguns) documentos:

1 Jornal editado pelo Grupo REX entre os anos de 1966-67 em São Paulo, Nelson Lerner, Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, José Resende e Carlos Fajardo 2 A publicação editada em 1980 praticamente pelo mesmo grupo de editores da Malasartes tem a entrada de Paulo Sérgio Duarte, Paulo Venâncio Filho, Tunga, João Moura Jr, Rodrigo Naves mais Cildo Meirelles, José Resende, Ronaldo Brito e Waltércio Caldas. Para uma leitura analítica sobre A Parte do Fogo, sugiro a Dissertação acadêmica defendida em 2007 na ECA-USP de João Paulo Leite Guadanucci “Entre Texto e Obra - Ronaldo Brito e Waltércio Caldas (1973-1983)”.

O contexto de produção da arte brasileira nos anos de 1960-70 é essencial para a compreensão do cenário que se forma ao redor da Malasartes; para esclarecimento, elejo alguns documentos que registram os acontecimentos dessa época tais como: a imagen das três principais publicações no campo das artes visuais, que são a Malasartes, a REX TIME1 e A Parte do Fogo2 o trabalho ATENSÃO, de Carlos Zílio para a exposição realizada na Área Experimental do MAM-RIO em 1976, um fragmento do Jornal do Brasil com texto de Roberto Pontual sobre a sala experimental do MAMRIO, escrita um mês após o fatídico incêndio no Museu em 1978, e uma página da revista Arte Hoje, também de 1978, com a reportagem sobre as exposições de Dinah Guimarães e Lauro Cavalcanti, ambas realizadas na sala experimental do MAM no Rio de Janeiro. Dentre as exposições realizadas na Área Experimental (1975-76) no MAM-RIO, está ATENSÃO, de Carlos Zílio. Apesar do pouco e difícil acesso aos materiais e arquivos desse período3, o espaço de exposição da Área Experimental, revela-se também como um dos principais nichos para a compreensão do contexto da Malasartes, uma vez que a revista foi lançada no mesmo ano de inauguração da Área Experimental. O museu, ao abrigar este projeto específico (entre os outros já citados que o antecederam), afirma-se, mais uma vez, como um espaço catalisador e receptivo para a produção contemporânea da arte brasileira.

4 Tendo em, vista que o Centro de Pesquisa e Documentação do Museu de Arte do Rio de Janeiro esteve fechado por motivo de reforma durante o final da pesquisa, evidencia-se, portanto, a necessidade de um maior aprofundamento desse período numa próxima publicação.

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Exemplares dos Jornais REXTIME (re-editado), da Revista Malasartes, e a Publicação A Parte do Fogo, 3 referências do circuito de artes plásticas dos anos 1960-70-80 respectivamente.



Carlos Zílio - Atensão - MAM-RIO 1976. Jornal do Brasil, 1978 - artigo Onde Experimentar? de Roberto Pontual



Reportagem da Revista Arte Hoje (maio de 1978), sobre as exposições de Dinah Guimarães e Lauro Cavalcanti na Sala Experimental no MAM-RIO



análises e desdobramentos

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o encontro aqui proposto entre os textos de Ronaldo Brito e Suely Rolnik – Análise do Circuito e Geopolíticas da Cafetinagem, respectivamente – proponho uma releitura dos aspectos da produção crítica no circuito da arte, através das abordagens entre: mercado/experimentação, e crítica/resistência. A intenção ao realizar tal união, é reforçar/repensar/re apropriar/reler o tempo como referência histórica para pensarmos, com mais ferramentas, a prática artística nos dias de hoje. Os dois textos foram republicados diversas vezes, mas nunca na mesma publicação. A proposta feita para este caderno, é de uma leitura particular, reunindo “as duas peças”, como em um espaço expositivo (impresso) que estabelece uma relação entre as obras; prática curatorial. Uma das principais ações do projeto Permissividades e Vulnerabilidades Práticas é contribuir para a reflexão sobre a produção das artes visuais nos campos tanto do discurso crítico quanto da prática artística em geral. Assim, as publicações utilizadas durante a pesquisa – a revista Noigandres (1952-1962), o jornal REX TIME (1966-67), a revista Malasartes (1975-76), a publicação A Parte do Fogo (1980) e os Cadernos do Espaço ABC da Funarte (1980) – servirão como referências históricas para a produção do pensamento aqui evidenciado. Disponibilizamos, assim, os dois textos base acima referidos – um retirado da primeira Malasartes e o outro de uma página web. Ambos configuram pensamentos importantes para a produção crítica no campo das artes visuais e justamente unidos para refletir sobre a produção contemporânea.


Ronaldo Brito - Análise do Circuito Malasartes n.1 - 1975 Suely Rolnik - Geopolíticas da Cafetinagem http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt/base_edit#redir - 2002

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Ronaldo Brito

Análise do Circuito Qual a função da arte atualmente em nosso ambiente cultural ? Dominada pelas leis de mercado que valoriza o objeto-fetiche ao invés do produto cultural ela cumpre um papel quase que exclusivamente mundano junto às elites econômicas. O seu verdadeiro público em potencial, os estudantes, estão distantes dela. E não por escolha, mas por causa de uma situação que é necessário, mas que nunca, cempreender. I Circuito e Mercado de Arte Nos últimos anos, circuito e mercado de arte pareciam uma coisa só. Ainda parecem talvez, mas a frase acima não tem mais valor crítico: a esta altura é uma simples constatação que, permanecendo nesses estreitos termos, pode mesmo servir como obstáculo para uma investigação mais rigorosa acerca da situação da arte no Brasil. (Por situação da arte entenda-se não apenas o momento produtivo dos artistas mas o modo vigente de consumo de seus trabalhos e suas significações sociais.) Vamos colocar as questões pertinentes. A questão agora não é simplesmente analisar o comportamento do mercado nos últimos anos e sim compreender suas leis, sua decisiva participação no conjunto do circuito e seus modos de pressão sobre a produção e consumo do trabalho de arte. A questão não é diagnosticar um sintoma mas conhecer uma realidade para poder intervir nela. Esta não é somente uma distinção epistemológica. Talvez por aí passe a linha que separa duas posições sem dúvida antagônicas em relação ao circuito: a dos que pretendem transformá-lo e a dos que pretendem acompanhá-lo em suas mudanças. Não é suficiente, por exemplo, afirmar que a implantação e consolidação do mercado foi o fator dominante na arte brasileira dos anos 70, ampliando o público comprador dentro de um certo setor (afastando outros setores, certamente) e produzindo graves distorções tanto na área de produção – é o caso do famoso “estilo” acrílico – quanto na área crítica – sacralizando obras desimportantes, recalcando outras importantes, etc. É preciso analisar os vários aspectos dessa ideologia do mercado que foi e ainda é dominante no circuito. É ingênuo supor que ela se reduza a uma questão financeira e que todo o seu jogo seja descobrir oq eu é vendável e o que não é. Para impor seu domínio, o mercado usou estrategicamente todos os elementos do circuito – artistas, críticos, colecionadores, marchands e público - colocou-se a serviço de sua ideologia. Por razões sobretudo locais, essa ideologia era e continua sendo extremamente conservadora. Não por acaso, mas por absoluta necessidade. O problema do mercado é, em última análise, conquistar um público de formação estranha à história da arte e que procura nela um investimento seguro e/ou signos de distinção de classe. (Num certo nível, o discurso da arte funciona como um nítido processo de discriminação social1).

1 Ver artigo de Simón Marchán Fiz, “El objeto arttístico em la Sociedad Industrial Capitalista”, no livro El Arte em La Sociedad Contemporânea (Fernando Torres Editor).


O objetivo do mercado brasileiro é manter intacto o secular estatuto da arte no mundo ocidental: (a) a arte como manifestação suprema e eterna (leia-se apocalíptica) da civilização cristã-ocidental: (b) A arte como manifestação reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensíveis, e que o são por dom, não por educação e aprendizado social. (c) A arte como espaço mítico, fechado sobre si mesmo, uma espécie de moderno substituto da religião. A manutenção dessas “verdades é, paradoxalmente, necessária à ideologia de um mercado que, num outro plano, sabe muito bem o que representa a arte para a maioria de seus compradores: uma sofisticação de consumo, uma peça de decoração, no máximo mais um objeto-fetiche, como os automóveis. Mas é sem dúvida o substrato incoscinente desse estatuto que sustenta o consumo de arte nesse nível. É ele que o mercado luta para conservar, modernizando-o, recriando-o a cada nova investida. A tarefa de vender arte nesse sentido prende-se obrigatoriamente à tarefa de defender o estatuto vigente da arte na sociedade – afinal é este estatuto que assegura em última instância a possibilidade do comércio de arte. Daí a necessidade do mercado de elaborar uma estratégia que sobre cada aspecto específico do circuito, atue de modo pertinente. Trata-se de conservar os valores da arte, o seu mítico e decisivo apelo de consumo. A coisa artística, por excelência.

2 Ver La Societé de Consommation, de Jean Baudrillard (Collection IdéeGallimard).

Uma análise da performance de nosso mercado sem as considerações acima, conduz a conclusões equivocadas. A primeira delas, em curso, é a tribuir ao mercado uma rigidez que lhe é por definição estranha. A recusa da produção contemporânea, o privilégio dos suportes tradicionais, a volta nostálgica ao passado, suas notórias características, devem ser tomadas exatamente pelo que são: manobras táticas, nada mais. Nos últimos anos, o mercado oficial de arte no Brasil utilizou quase exclusivamente um dispositivo de reação cultural – o bloqueio – que não é sequer o mais eficiente. Na defesa do estatuto tradicional da arte, o bloqueio da produção crítica é uma forma até certo ponto arcaica, embora sempre presente numa ou noutra medida. O processo de recuperação é sem dúvida mais ágil e eficaz, até do estrito ponto de vista comercial. Isso porque inclui a apropriação do produto, distante já de seus pressupostos de produção e devidamente inscrito com as marcações da ideologia oficial. Bloqueio e recuperação são os elementos a serem conceituados, não basta analisar os chamados fenômenos de mercado como os leilões, etc. Através do bloqueio e da recuperação é que o mercado tenta assegurar o controle da produção, e da fruição do trabaho de arte. Controlar a produção significa não apenas privilegiar e recalcar linguagens mas divulgá-las de certa maneira, num espaço que porta significações, prévias, convencionais, neutralizadoreas do efeito crítico das propostas. Controlar a fruição também é possível, uma vez que ao vender trabalhos o mercado vende não apenas o objeto mas uma determinada leitura dele. (Prática extensiva a toda chamada sociedade de consumo, segundo Baudrillard2). A ação do mercado portanto está longe de se restringir às transações financeiras. Ele age de modo a criar um sistema fechado dentro do qual o trabalho vai obrigatoriamente circular, desde a sua própria concepção até a venda. A ideologia do mercado, por sua vez, opera para enquadrar em limites previamente fixados esse produto até certo ponto explosivo, o trabalho de arte. Operação meticulosa, incessante, que permite a apropriação de um objeto ao mesmo tempo em que se

caderno: análises e desdobramentos (ronaldo brito)

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lhe esvazia os siginificados. Para tanto é necessário atuar em todo espaço ao redor do trabalho. Examinemos o percurso: A) O lugar da exposição. Deve ser obviamente institucionalizado como tal (Duchamp já demonstrou como mictório exposto em galeria vira obra de arte). Mas ainda, a propria escritura da exposição deve obedecer a critérios tradicionais, estreitamente solidários de uma certa maneira de “contemplar” arte. É fácil perceber que um trabalho contemporâneo, lido de maneira tradiconal, teme feitos tradicionais. Para o mercado brasileiro, esses aspectos aparentemente acessórios são taticamente importantes: reforçam, para consumidores ávidos de segurança social, o caráter de solidez e imutabilidade da arte. B) Os textos críticos. Funcionam como esotéricos apoios publicitários às obras. No caso o esoterismo é imprescindível: trata-se de manter a arte no terreno do initeligível, do sblime , do não discursivo. O “mundo à parte”, enfim. Quando não são vagas divagações metafísicas, esses textos se posicionam de um modo mítico em relação à arte – o que o torna traço distintivo de superioridade no grupo social, o que o torna feixe de medíocres projeções psicológicas – deve ser preservado a todo custo. A função objetiva desses textos não é produzir conhecimento, nem sequer situar os tabalhos no ambiente cultural. Estão ali para superpor mais um nível ao discurso que vai envolver o produto e torná-lo, um primeiro momento, objeto cultural e em seguida objeto de prazer e consumo. O objeto de arte (o nome do autor), a galeria (o nome da galeria), o texto (o nome do crítico) são elementos dessa equação comercial destinada a vender algo que não é apenas objeto mas também e prioritariamente signo social, distribuidor de status. (A rigor são os investimentos sociais que recortam o objeto do mundo das coisas em geral e o transformam em obra de arte.) C) A mundanidade. É praticamente a única base externa do nosso circuito de arte. Uma espécie de prolongamento das galerias em dias de inauguração. Para ela sobretudo fluem no momento os efeitos dos trabalhos e nela sobretudo são consumidas as suas significações. A mundanidade está tradicionalmente ligada às artes – e às chamadas artes plásticas em particular – mas num circuito sob o domínio da ideologia do mercado ela se torna assustadora e ridiculamente presente. À sua maneira vaga e desinteligente, exerce uma pressão considerável sobre a produção e a fruição, determinando indiretamente linguagens, privilegiando escolhas e impondo nomes específicos. Como toda audiência , aliás. Talvez não seja exagerado incluir a mundanidade como setor específico do circuito de arte como se apresenta hoje no Brasil. II Circuito e Produção A década de 70 inaugurou um novo período na arte brasileira ao estabelecer vínculos concretos entre produção e mercado. Até então o circuito de modo geral comportava-se de forma mais ou menosamadora, ou melhor, artesanal. Como é notório, a consolidação do mercado de arte brasileiro – o chamado boom – se fez por intermédio de artistas cujas linguagens eram, digamos, redundantes e que por isso mesmo tinham penetração mais fácil junto ao público. A produção contemporânea, submetida também a pressões mais amplas, foi violentamente recalcada. É claro entretanto que não há contradição insuperável entre arte contemporânea e mercado, desde que respeitadas determinadas condições. Pode-se vender tudo, inclusive os xeroxes dos conceituais. Como espero ter demonstrado acima,


a ênfase na “descoberta” de artisas do passado foi sobretudo uma questão de “timing” comercial. Era necessário criar, na cabeça do consumidor ignaro, uma “história” da arte brasileira, eleger os heróis, os mitos de nossa tradição cultural. Talvez estejamos ainda vivendo parcialmente essa fase. Mas aproxima-se o momento (se já não está em curso) em que a produção contemporânea será maciçamente confrontada com o mercado: algumas poucas obras serão bloqueadas, a maioria recuperada e entre essas uma ou outra sacralizada. O jogo recomeça, com as mesmas regras. A apropriação pelo mercado da produção contemporânea não transforma significativamente o circuito. No máximo, introduz modernizações urgentes: o incentivo a suportes menos gastos, a reforma da escritura tradicional das exposições, um maior apoio teórico, etc. Uma atitude criticamente inteligente dos artistas (não só deles, mas de todos os que se interessam por arte contemporânea), em defesa de um campo de ação mais livre para os seus trabalhos, envolve a formulação de uma estratégia de ação dentro do mercado e do circuito que reconheça esse fato. Convém não esquecer que, para certa faixa de consumidor, o termo mítico da vanguarda oferece um apelo inescedível. O primeiro movimento dessa estratégia seria a meu ver uma luta no sentido de uma maior independência do circuito em relação ao mercado e, mais especificamente em relação ao mercado e, mais especificamente em relação à ideologia do mercado. Não se trata, de aboli-la (algo impossível no regime captalista) mas de restringir a sua penetração, multiplicando discursos críticos paralelos ao seu. Permitir uma fruição menos classista e mais inteligente de seus trabalhos é um interesse unânime dos artistas contemporâneos. Todos desejam que seus produtos sejam consumidos no devido nível: como fatos culturais, polarizadores de debates e leituras críticas. É óbvio que o simples ingresso de seus trabalhos no mercado – fato afinal desejável – não implica a obtenção desse nível de fruição. Pelo contrário. O mercado significa apenas e precisamente, em termos de produção, a garantia econômica da continuidade do trabalho. O que não anula a seguinte verdade: produção e mercado encontram-se em posições antagônicas. Os representantes do mercado quase sempre têm consciência disso; os artistas não. Mas pelo menos desde a arte conceitual a produção contemporânea é cada vez mais uma crítica explícita e cerrada ao sistema da arte como está constituído. E essa crítica atinge desde o mascaramento da base conceitual sobre a qual progride o trabalho de arte – mascaramento que é uma das constantes da ideologia do mercado – até a organização das mostras e o próprio estatuto do artista na sociedade. Independente de suas linguagens, passou a ser necessária aos artistas contemporâneos a manipulação de uma inteligência estratégica que permita combater o incessante processo de recuperação e bloqueio de seus trabalhos. Talvez mais do que isso, passou a ser necessário agir criticamente acerca da própria posição da arte na sociedade. A dupla questão é a seguinte: como impedir a neutralização de suas prpostas e como tornar a arte um instrumento que tenha um mínimo de eficácia social ? Há provavelmente urgência de uma maior mobilidade na prática dos artistas, ao nível da produção e veiculação de seus trabalhos. Uma mobilidade essencialmente tática, voltada para fora – sem prejuízo, é claro, do rigor de articulação interna di trabalho, quesito que me parece indispensável – e que permita, por


exemplo, encontrar o suporte circunstancialmente mais eficaz. Ou multiplicar suas intervenções, buscando canais fora do circuito. Ou mesmo criar formas alternativas de venda e divulgação, sem a ingenuidade de considerá-las a solução para o problema da a propriação da arte pelas classes ricas. Politizar (no sentido ampo do termo, claro) o relacionamento trabalho-mercado, politixar o relacionamento trabalho-circuito, politizar o relacionamento circuito-ambiente cultural significa apenas reconhecer a verdade do jogo e escapar ao mascaramento proposto pela ideologia de arte vigente. E é sobretudo em relação a essa ideologia que a meu ver se define um trabalho contemporâneo: uma proposta é tanto mais interessante quanto apresente maior grau de liberdade dentro do sistema estabelecido de arte. Forçar os limites de permissividade do circuito é uma das tarefas da produção contemporânea. Entenda-se bem que não estou propondo uma norma de atuação para os artistas. Faço apenas a defesa de uma inteligência programática frente ao circuito de arte e ao mercado em particular. A partir do raciocínio que entende o circuito como um sistema com suas regras próprias – e que se pretende isolado, quase mítico – considero que si uma ação contínua tem alguma chance de transformá-lo. Não há dúvida porém de que esse tipo de ação exige entre outras coisas que o artista, digamos, deixe de ser artista: livre-se do mito “ser criador” – posição que lhe assegura uma situação confortável, mas inútil – e pense em si mesmo com alguém que está amplamente comprometido com os sistemas e processos de significação em curso na sociedade. III Circuito e Ambiente Cultural Transformar o circuito de arte, como imagino, significa em primeiro lugar romper com o seu estatuto específico dentro de nosso ambiente cultural. A sua pouca eficácia como manifestação decorrre evidentemente da posição vagamente elitista que sempre se lhe atribui no conunto das chamadas artes. Em parte, é claro, por causa de seu aspecto imediata e diretamente comerciável. Mas, ao contrário do que se costuma pensar, mais do que palco de compra e venda de objetos, o circuito de arte é lugar de um incessante tráfico de signos de ascensão e estabilidade social e recíprocas trocas de sinais de cumplicidade ideológica por parte de um pequeno círculo de pessoas. Esse círculo, presente em cada localidade, desempenha um papel muito secundário mas talvez indispensável para o sistema de um modo geral. O circuito de arte hoje no Brasil, por exemplo, se reduz praticamente a uma vaga e inútil movimentaçãozinha sem maiores conseqüências. A simples presença da produção contemporânea no interior do circuito, repito, não basta para transformá-lo. Aqui, outra vez, é preciso desfazer certos equívocos persistentes. Não é verdade que o circuito reaja sectariamente quando defrontado com novas linguagens, nem é verdade que tenha algo assim como preferências estilísticas irreversíveis. Os seus representatnes estão sempre e por definição muito menos presos a opções e linguagens pessoais doque a uma determinada maneira de olhar e tratar arte. A dita vanguarda é incomoda apenas na medida em que circunstancialmente coloca em xeque o modo vigente desse olhar e desse tratamento. Isto é, quando se percebe que ela está colocando em xeque esse sistema.

É fácil compreender que, a priori, o circuito não tem nada contra nenhum


trabalho – na medida em que pode inclusive recuperá-lo. Recuperar um trabalho é precisamente vender e estabilizar uma leitura “recuperada” dele. Em principio, o circuito está pronto a abrigar toda e qualquer obra que julgue não afetar a sua condição de sistema autônomo e inatacável. Nos chamados centros adiantados, ele vive em busca de novas experiências – o nosso, como vimos, está preso ainda ao velho esquema – que servem para mantê-lo como espetáculo atraente, mas basicamente luta pela mesma coisa: a indevassabilidade, o caráter quase iniciático de que se reveste o aprendizado da leitura de arte, a distinção e segurança social advindas de sua freqüência. Mas se é impossível modificar a ideologia do mercado é sempre possível intervir criticamente na ideologia do circuito em seu conjunto. É possível pelo menos crias situações alternativas a ele. A tentativa de atrair para a audiência da arte contemporânea um público de estudantes que é deliberadamente (será preciso explicar como?) mantido à margem pode ser no momento um lance interessante. Talvez seja o inicio de um vínculo mais forte entre arte e ambiente cultural que é urgente estabeleces: a partir desse vínculo é que se poderá combater com maior eficácia o consumismo da ideologia do mercado. A criação de formas paralelas de divulgação e aproximação (em universidade e espaços públicos) com pessoas de fora do circuito me parece importante atualmente. Como importante talvez seja ter uma tática de contato com as instituições – menos comprometidas com a ideologia do mercado – que permite uma intervenção em seus espaços e permita obter delas uma projeção mais ampla para discursos críticos paralelos ao do mercado. Para a elaboração de uma ampla estratégia de intervenção no circuito brasileiro de modo a torná-lo atuante culturalmente vejo dois pontos prioritários, um no campo da prática outro no campo da teoria:

3 Ver L’amor de l’art, de Pierre Bordieu (Editions Minuit)

1) A reorganização dos artistas contemporâneos em torno de um programa comum de ação dentro do circuito. Contra essa reorganização, o circuito reage de várias formas – seja tentando configurar como grupismo sectário toda e qualquer movimentação nesse sentido, seja recuperando trabahos individuais contemporâneos, recortando os de seu contexto crítico. O fator mais importante que age contra essa reorganização entretanto, é a própria introjeção por parte dos artsitas da ideologia do mercado e do estatuto da arte em nossa sociedade de um modo geral. Levado a acreditar na mítica personalização da figura do artista – passando a viver o seu papel social sob forma de privilégio – os artistas costumam encarar-se uns aos outros como rivais. Dessa maneira, super legitimam o modo de ação do mercado. É além disso evidente que o estatuto do artista na sociedade não cobre apenas o aspecto econômico – o artista sendo levado a penas em si mesmo como uma pequena indústria. Há mitos amplamente difundidos que de uma maneira ou de outra sustentam esse estatuto e compelem a comportamentos específicos. A reação ao pensamento discursivo e à própria inteligência é um desses comportamentos típicos que inibe ou limita a sua prática. Assim como o “olho” – metonímia de uma qualidade intangível que alguns que alguns apenas teriam – substitui a inteligência3 na fruição oficial de arte, talvez se possa dizer que o “talento” (o gênio, etc) substitui na ideologia de muitos artistas o trabalho intelectual. De posse de uma cultura apenas literária, quando não de uma orgulhosa ignorância, torna-se impossível para eles compreenderem com rigor a situação de seus trabalhos no ambiente cultural. Muitos ainda estão enlevados com a velha noção de artsita e semtem uma certa nostalgia dela. Mas a reconquista de um espaço cultural para a arte contemporânea exige uma ação coletiva dentro da qual a superação desse estatuto é absolutamente necessária.


2) A formulação de uma História Crítica da Arte Brasileira. Feita de modo anedótico, quando não desonesto, através sobretudo de colunas jornalísticas e catálogos (obrigados a uma conceituação circunstancial e pouco rigorosa), a história da arte brasileira funciona de um modo geral como caucionamento, no plano discursivo, da realidade mercantilista do circuito. Mais do que isso, funciona como caucionamento para a leitura oficial de arte, resultante dem última análise de uma idéia acerca da função da arte na sociedade. A razão disso é simples: quase sempre é o próprio mercado o responsável pelas poucas iniciativas teóricas que ocorrem na arte brasileira. Praticamente desligada das outras áreas culturais, a arte gira em torno do mercado e a sua produção textual está em geral comprometida com funções mercadológicas imediatas. A questão que se coloca, no plano teórico, é a tentativa de transformar a leitura vigente de arte em nosso ambiente cultural. Para isso, é claro, tornar-se urgente a abertura de espaços que possam abrigar uma produção teórica destinada a recolocar a arte contemporânea brasileira e internacional como objeto de discussão em nosso ambiente cultural.


Suely Rolnik

Geopolítica da Cafetinagem

Fortes ventos críticos voltaram a agitar o território da arte, desde meados da década de 1990. Com diferentes estratégias, das mais panfletárias e distantes da arte às mais contundentemente estéticas, tal movimentação dos ares do tempo tem como uma de suas principais origens o mal estar da política que rege os processos de subjetivação – especialmente o lugar do outro e o destino da força de criação – própria do capitalismo financeiro que se instalou no planeta a partir do final dos anos 1970. No Brasil, curiosamente este movimento só se esboça na virada do século, introduzido por uma parcela da nova geração de artistas que começa a ter expressão pública naquele momento, organizando-se freqüentemente nos assim chamados “coletivos”. Mais recente ainda é o diálogo do movimento local com a discussão levada há bem mais tempo fora do país. Hoje, este tipo de temática já começa inclusive a ser incorporado ao cenário institucional brasileiro, na esteira do que também vem ocorrendo fora do país, onde práticas artísticas envolvendo estas questões têm se transformado em “tendência” no circuito oficial – fenômeno próprio da lógica midiática e seu princípio mercadológico que rege boa parte da produção artística na atualidade. Nesta migração, tais questões costumam esvaziar-se de sua densidade crítica para constituir-se num novo fetiche que alimenta o sistema institucional da arte e a voracidade do mercado que dele depende (este necessita de uma incessante produção de signos e imagens que ele instrumentaliza para seus desígnios). Algumas perguntas se colocam diante da emergência deste tipo de temática no território da arte. O que questões como essas vem fazer aí? Porque elas têm sido cada vez mais recorrentes nas práticas artísticas? E no Brasil, porque elas só aparecem agora? E qual o interesse das instituições em incorporá-las? Vou esboçar, aqui, algumas vias de prospecção para o enfrentamento destas perguntas. Pelo menos dois pressupostos norteiam a opção por estas vias. O primeiro é a idéia de que o surgimento de uma questão se dá sempre a partir de problemas que se apresentam num contexto singular, tal como atravessam nossos corpos, provocando mudanças no tecido de nossa sensibilidade e uma conseqüente crise de sentido de nossas referências. É o desassossego da crise que desencadeia o trabalho do pensamento – processo de criação que pode ser expresso sob forma verbal, seja ela teórica ou literária, mas também sob forma plástica, musical, cinematográfica, etc. ou simplesmente existencial. Seja qual for o meio de expressão, pensamos/ criamos porque algo de nossa vida cotidiana nos força a inventar novos possíveis que integrem ao mapa de sentido vigente, a mutação sensível que pede passagem – nada a ver com a demanda narcísica de alinhar-se à “tendência” do momento para ganhar reconhecimento institucional e/ou prestígio mídiatico. A especificidade da arte enquanto modo de produção de pensamento é que na ação artística, as transformações de textura sensível encarnam-se, apresentando-se ao vivo. Daí o poder de contágio e de transformação de que é potencialmente portadora tal ação: é o mundo o que ela põe em obra, reconfigurando sua paisagem. Não há então porque estranhar que a arte se indague sobre o presente e participe das mudanças que se operam na atualidade. Se entendermos desta perspectiva para que serve pensar e a arte como uma forma de pensamento, a insistência nestas temáticas no território artístico nos indica que a política de subjetivação, caderno: análises e desdobramentos (suely rolnik)

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de relação com o outro e de criação cultural está em crise e que, com certeza, uma mutação vem se operando nestes campos. Assim sendo, se quisermos responder às perguntas acima colocadas não podemos evitar o trabalho de problematização desta crise e do processo de mudança que ela que ela supõe e acarreta. O segundo pressuposto é que pensar este campo problemático impõe a convocação de um olhar transdisciplinar, já que estão aí imbricadas inúmeras camadas da realidade tanto no plano macropolítico (fatos e modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica), quanto no micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo e a subjetividade). O que se propõe a seguir são elementos para uma certa cartografia deste processo traçada a partir um ponto de vista fundamentalmente micropolítico. Em busca da vulnerabilidade Um dos problemas visados pelas práticas artísticas na política de subjetivação em curso tem sido a anestesia da vulnerabilidade ao outro – anestesia tanto mais nefasta quando este outro é representado como hierarquicamente inferior no mapa estabelecido, por sua condição econômica, social, racial ou outra qualquer. É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade. Ora, ser vulnerável depende da ativação de uma capacidade específica do sensível, a qual esteve recalcada por muitos séculos, mantendo-se ativa apenas em certas tradições filosóficas e poéticas. Estas culminaram nas vanguardas artísticas do final do século XIX e início do século XX, cuja ação teve efeitos que marcaram a arte ao longo do século e que, mais amplamente, foram se propagando pelo tecido social deixando de ser apanágio das elites culturais, principalmente a partir dos anos 1960. A própria neurociência, em suas pesquisas recentes, comprova que cada um de nossos órgãos dos sentidos é portador de uma dupla capacidade: cortical e subcortical1 . A primeira corresponde à percepção, a qual nos permite apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido. Esta capacidade, que nos é mais familiar, é pois associada ao tempo, à história do sujeito e à linguagem. Com ela, erguem-se as figuras de sujeito e objeto, claramente delimitadas e mantendo entre si uma relação de exterioridade. Esta capacidade cortical do sensível é a que permite conservar o mapa de representações vigentes, de modo que possamos nos mover num cenário conhecido em que as coisas permaneçam em seus devidos lugares, minimamente estáveis. Já a segunda, a capacidade subcortical, que por conta de sua repressão histórica nos é menos conhecida, nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornandose assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. Desde os anos 1980, num livro que acaba de ser reeditado2 , chamei de “corpo vibrátil” esta segunda capacidade de nossos órgãos dos sentidos em seu conjunto. É, portanto, todo nosso corpo que

1. V. Hubert Godard, “Regard aveugle”. In: Lygia Clark, de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le moule. A vous de donner le souffle, catálogo da exposição de mesmo nome de curadoria de Suely Rolnik & Corinne Diserens. Nantes: Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005 ; pp. 73-78. Tradução brasileira: “Olhar cego”. In: Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006; pp. 73-78. O texto é a transcrição de uma entrevista que filmei com Godard para um projeto que venho desenvolvendo desde 2002, visando a construção de uma memória viva sobre as práticas experimentais propostas por Lygia Clark e o contexto cultural brasileiro e francês onde tiveram sua origem. Os 68 filmes realizados até o momento tiveram um papel central na exposição acima mencionada, realizada na França (2005) e no Brasil (2006). 2. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. (Esgotado). Reedição com novo prefácio: Porto Alegre: Sulina, 2006.


3. As noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, propostas a partir dos anos 1990, principalmente por pesquisadores atualmente associados à revista francesa Multitude, é um desdobramento das idéias de Deleuze e Guattari relativas ao estatuto da cultura e da subjetividade no regime capitalista contemporâneo.

tem este poder de vibração às forças do mundo. Este poder faz com que, diferentemente da relativa estabilidade da cartografia de representações, a textura de nossa sensibilidade encontra-se em constante mudança. Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que obedecem a lógicas totalmente distintas, especialmente em seu ritmo e sua temporalidade, irredutíveis uma à outra. A tensão deste paradoxo é o que mobiliza e impulsiona a potência do pensamento/criação, na medida em que as sensações que vão se incorporando à nossa textura sensível operam mutações que desestabilizam nossas referências provocando colapsos de sentido e, consequentemente, crises em nossa subjetividade. Neste processo, integramos em nosso corpo os signos que o mundo nos acena e, através de sua expressão, os incorporamos a nossos territórios existenciais. Nesta operação se restabelece um mapa de referências compartilhado, já com novos contornos. Movidos por este paradoxo e o malestar que ele provoca, somos continuamente forçados a pensar/criar. O exercício do pensamento/criação tem, portanto, um poder de interferência na realidade e de participação na orientação de seu destino, constituindo assim um instrumento essencial de transformação da paisagem subjetiva e objetiva. O peso de cada um destes dois modos de conhecimento sensível do mundo, bem como a relação entre eles é variável. Ou seja, varia o lugar do outro junto com a política de relação que com ele se estabelece. Esta define, por sua vez, um modo de subjetivação. Sabe-se que políticas de subjetivação mudam com as transformações históricas, pois cada regime depende de uma forma específica de subjetividade para sua viabilização no cotidiano de todos e de cada um. É neste terreno que um regime ganha consistência existencial e se concretiza; daí a idéia de “políticas” de subjetivação. No entanto, no caso específico do neoliberalismo, a estratégia de subjetivação, de relação com o outro e de criação cultural adquire uma importância essencial, pois ganha um papel central no próprio princípio que rege o capitalismo em sua versão contemporânea. É que é, fundamentalmente, das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e criação, que este regime se alimenta, a ponto de ter sido qualificado mais recentemente como “capitalismo cognitivo” ou “cultural”3. De posse destas balizas, posso agora propor uma cartografia das mudanças que tem levado a arte a colocar esse tipo de questão. Tomarei como ponto de partida os anos 1960/70. Nasce uma subjetividade flexível Até o início dos anos 1960 estávamos sob regime fordista e disciplinar que atingira seu ápice no american way of life triunfante no pós-guerra, no qual reinava na subjetividade a política identitária e sua recusa do corpo vibrátil. Estes dois aspectos são na verdade inseparáveis porque só na medida em que anestesiamos nossa vulnerabilidade é que podemos manter uma imagem estável de nós mesmos e do outro, ou seja nossas supostas identidades. Sem esta anestesia, somos constantemente desterritorializados e levados a redesenhar os contornos de nós mesmos e de nossos territórios de existência. Até aquele período, a imaginação criadora operava principalmente esgueirando-se pelas margens. Este tempo encerrou-se nos anos 1960/70 como resultado dos movimentos culturais que problematizaram o regime em curso e reivindicaram “a imaginação no poder”. Tais movimentos colocaram em crise o modo de subjetivação então dominante, arrastando junto


com seu desmoronamento toda a estrutura da família vitoriana em seu apogeu Hollywoodiano, esteio do regime que naquele momento começa então a perder hegemonia. Cria-se uma “subjetividade flexível”4 , acompanhada de uma radical experimentação de modos de existência e de criação cultural, para implodir o modo de vida “burguês” em sua política do desejo, com sua lógica identitária, sua relação com a alteridade e sua cultura. Na assim chamada “contracultura” que daí resulta, criam-se formas de expressão para aquilo que indica o corpo vibrátil afetado pela alteridade do mundo, dando conta das problemáticas de seu tempo. As formas assim criadas tendem a veicular a incorporação pela subjetividade das forças que agitam o meio e a desterritorializam. O advento de tais formas é indissociável de um devir-outro tanto de si mesmo, quanto do próprio meio. Pode-se dizer que a criação destes novos territórios diz respeito à vida pública, no sentido forte: a construção coletiva da realidade movida pelas tensões que desestabilizam as cartografias em uso, tal como estas tensões afetam singularmente o corpo de cada um e a partir desses afetos se expressam. Em outras palavras, o que cada um expressa é o atual estado do mundo – seu sentido mas também, e sobretudo, seus colapsos de sentido – tal como este se apresenta ao vivo no corpo. A expressão singular de cada um participa, assim, do traçado infinito de uma cartografia necessariamente coletiva. Hoje estas mudanças se consolidaram. O cenário de nossos tempos é outro: não estamos mais sob regime identitário, a política de subjetivação já não é a mesma. Dispomos todos de uma subjetividade flexível e processual tal como foi instaurada por aqueles movimentos – e nossa força de criação em sua liberdade experimental não só é bem percebida e acolhida, mas é inclusive insuflada, celebrada e freqüentemente glamourizada. Mas há nisso tudo um “porém”, nem um pouco negligenciável: hoje, o destino mais comum desta flexibilidade subjetiva e da liberdade de criação que a acompanha não é a invenção de formas de expressividade movida por uma escuta das sensações que assinalam os efeitos da existência do outro em nosso corpo vibrátil. O que nos guia na criação de territórios em nossa flexibilidade pós-fordista é uma identificação quase hipnótica com as imagens de mundo veiculadas pela publicidade e pela cultura de massa. Ora, ao oferecerem territórios já prontos para as subjetividades fragilizadas por desterritorialização, tais imagens tendem a sedar seu desassossego, contribuindo assim para a surdez de seu corpo vibrátil e, portanto, a uma invulnerabilidade aos afetos de seu tempo que nele se manifestam. Mas talvez não seja esse o aspecto mais nefasto desta política de subjetivação, e sim a mensagem de que tais imagens são invariavelmente portadoras, independentemente de seu estilo ou público-alvo. Trata-se da idéia de que existiriam paraísos, que agora eles estariam neste mundo e não num além dele e, acima de tudo, que alguns teriam o privilégio de habitá-los. Mais do que isso, tais imagens veiculam a ilusão de que podemos ser um destes VIPs, bastando para isso investirmos toda nossa energia vital – de desejo, de afeto, de conhecimento, de intelecto, de erotismo, de imaginação, de ação, etc. – para atualizar em nossas existências estes mundos virtuais de signos, através do consumo de objetos e serviços que os mesmos nos propõem. Estamos diante de um novo élan para a idéia de paraíso das religiões judaico-cristãs: miragem de uma vida lisa e estável, sob perfeito controle. Esta espécie de alucinação tem sua origem na recusa da vulnerabilidade ao outro e das turbulências desterritorializadoras que provoca; e também no menosprezo pela fragilidade que decorre necessariamente desta experiência. No entanto, esta fragilidade nos é essencial pois indica a crise de um certo diagrama sensível, de seus modos de expressão e suas cartografias de sentido. Ao menosprezar a fragilidade,

4. A noção de “subjetividade flexível” origina-se de “personalidade flexível” sugerida por Brian Holmes (V. “The Flexible Personality”. In: Hieroglyphs of the Future. Zagreb: WHW/Arkzin, 2002; online at: www.u-tangente. org.). Desdobrei esta noção da perspectiva dos processos de subjetivação em alguns de meus ensaios recentes. V. “Politics of Flexible Subjectivity. The EventWork of Lygia Clark”. In: Terry Smith, Nancy Condee & Okwui Enwezor (Edit.). Antinomies of Art and Culture: Modernity, Postmodernity and Contemporaneity, Durham: Duke University Press, 2006; “Life for Sale”. In: Adriano Pedrosa (Edit.), Farsites: urban crisis and domestic symptoms. San Diego/Tijuana: InSite, 2005.


esta deixa de convocar o desejo de criação; ao contrário, ela passa a provocar um sentimento de humilhação e vergonha, cuja conseqüência é o bloqueio do processo vital. Em outras palavras, a idéia ocidental de paraíso prometido corresponde a uma recusa da vida em sua natureza imanente de impulso de criação e diferenciação contínuas. Em sua versão terrestre, o capital substituiu Deus na função de fiador da promessa, e a virtude que nos faz merecê-lo passou a ser o consumo: este constitui o mito fundamental do capitalismo avançado. Diante disso tudo, é no mínimo equivocado considerar que carecemos de mitos na contemporaneidade: é exatamente através de nossa crença neste mito religioso do neoliberalismo, que os mundos-imagem que tal regime produz tornam-se realidade concreta em nossas próprias existências. A subjetividade flexível entrega-se ao cafetão

5. Ver nota 3.

Em outras palavras, o “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, concebido justamente como saída para a crise provocada pelos movimentos dos anos 1960/70, incorporou os modos de existência que estes inventaram e apropriou-se das forças subjetivas, em especial da potência de criação que então se emancipava na vida social, a colocando de fato no poder, tal como haviam reivindicado aqueles movimentos. Entretanto, hoje sabemos que esta ascensão da imaginação ao poder é uma operação micropolítica que consiste em fazer de sua potência, o principal combustível de uma insaciável hipermáquina de produção e acumulação de capital – a tal ponto que se pode falar de uma nova classe trabalhadora que alguns autores chamam de “cognitariado”5 . É esta força, assim cafetinada, que com uma velocidade exponencial vem transformando o planeta num gigantesco mercado e, seus habitantes, em zumbis hiperativos incluídos ou trapos humanos excluídos. Na verdade, estes dois pólos opostos são frutos interdependentes de uma mesma lógica e todos os destinos tendem a perfilar-se entre eles. Esse é o mundo que a imaginação cria em nossa contemporaneidade. É de se esperar que a política de subjetivação e de relação com o outro que predomina neste cenário seja das mais empobrecidas. Atualmente, passado quase três décadas, já nos é possível perceber esta lógica do capitalismo cognitivo operando na subjetividade. No entanto, no final dos anos 1970, quando teve início sua implantação, a experimentação que vinha se fazendo coletivamente nas décadas anteriores, a fim de emancipar-se do padrão de subjetividade fordista e disciplinar, dificilmente podia ser distinguida de sua incorporação pelo novo regime. A conseqüência desta dificuldade é que a clonagem das mudanças propostas por aqueles movimentos foi vivida por grande parte de seus protagonistas como sinal de reconhecimento e inclusão: o novo regime os estaria supostamente libertando da marginalidade a que estavam confinados no mundo “provinciano” que então desmoronava. Deslumbrados com o entronamento de sua força de criação transgressiva e experimental que os colocava agora sob os holofotes glamurizadores da mídia, os lançando no mundo e enchendo seus bolsos de dólares, os inventores das mudanças das décadas anteriores caíram freqüentemente nesta armadilha. Muitos deles se entregaram voluntariamente à sua cafetinagem, tornando-se assim os próprios criadores, empreendedores e concretizadores do mundo fabricado para e pelo capitalismo em sua nova roupagem. Esta confusão decorre sem dúvida da política de desejo própria da


cafetinagem das forças subjetivas e de criação – um tipo de relação de poder que se dá basicamente por meio do feitiço da sedução. O sedutor convoca no seduzido uma idealização que o sidera e que o leva a identificar-se com ele e a ele submeterse: ou seja, identificar-se com e submeter-se a seu agressor, impulsionado por seu próprio desejo, na esperança de que este o reconheça e o admita em seu mundo. Só recentemente esta situação vem se tornando consciente, o que tende a levar à quebra do feitiço. Isto transparece nas diferentes estratégias de resistência individual e coletiva que se avolumam nos últimos anos, particularmente por iniciativa de uma nova geração que não se identifica em absoluto com o modelo de existência proposto e se dá conta de sua manobra. É claro que as práticas artísticas – por sua própria natureza de expressão das problemáticas do presente tal como atravessam o corpo do artista – dificilmente poderiam permanecer indiferentes a este movimento. Pelo contrário, é exatamente por esta razão que estas questões emergem na arte desde o início dos anos 1990, como mencionado no início. Com diferentes procedimentos, tais estratégias vêm realizando um êxodo do campo minado que se situa entre as figuras opostas e complementares de subjetividade-luxo e subjetividadelixo, campo onde se confinam os destinos humanos no mundo do capitalismo globalizado. Neste êxodo vão se criando outras espécies de mundo. . Ferida rentável Mas a dificuldade de resistir à sedução da serpente do paraíso em sua versão neoliberal agrava-se mais ainda em países da América Latina e da Europa do Leste que, como o Brasil, encontravam-se sob regimes totalitários no momento da instalação do capitalismo financeiro. Não esqueçamos que a abertura democrática destes países, que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em parte à chegada do regime pós-fordista para cuja flexibilidade, a rigidez dos sistemas totalitários constituía um estorvo. É que se abordarmos os regimes totalitários não em sua face macropolítica visível, mas sim em sua invisível face micropolítica, constataremos que o que os caracteriza é o enrijecimento patológico do princípio identitário. Isto vale tanto para totalitarismos de direita, quanto de esquerda, pois do ponto de vista das políticas de subjetivação tais regimes não diferem tanto assim. A fim de se manterem no poder, não se contentam em simplesmente ignorar as expressões do corpo vibrátil, ou seja as formas culturais e existenciais engendradas numa relação viva com o outro, que desestabilizam continuamente as cartografias vigentes e nos desterritorializam. Mesmo porque o próprio advento de tais regimes constitui justamente uma reação violenta à desestabilização, quando esta ultrapassa um limiar de tolerabilidade para as subjetividades mais servilmente adaptadas ao status quo; para estas, tal limiar não convoca a urgência de criar, mas ao contrário a de preservar a ordem estabelecida a qualquer preço. Destrutivamente conservadores, os estados totalitários vão mais longe do que a simples desconsideração ou censura das expressões do corpo vibrátil: empenham-se obstinadamente em desqualificá-las e humilhá-las até que a força de criação, da qual tais expressões são o produto, esteja a tal ponto marcada pelo trauma deste terrorismo vital que ela acabe por bloquear-se, assim reduzida ao silêncio. Um século de psicanálise nos terá mostrado que o tempo de enfrentamento e elaboração de um trauma deste porte pode estender-se por trinta anos 6 . Não é difícil imaginar que o encontro destes dois regimes torna o cenário

6. No início da vigência da ditadura militar no Brasil, o movimento cultural persiste com toda a garra. Com a promulgação do AI5 em dezembro de 1968, o regime recrudesce e o movimento perde fôlego, tendendo a paralisar-se. Como todo regime totalitário, seus efeitos mais nefastos talvez não tenham sido aqueles, palpáveis e visíveis, de prisão, tortura, repressão e censura, mas outros, mais sutis e invisíveis: a paralisia da força de criação e a frustração subseqüente da inteligência coletiva, por ficarem estas associadas à ameaça aterrorizadora de um castigo que pode levar à morte. Um dos efeitos mais tangíveis de tal bloqueio, foi o número significativo de jovens que viveram episódios psicóticos na época, muitos dos quais foram internados em hospitais psiquiátricos e não foram poucos os que sucumbiram à “psiquiatrização” de seu sofrimento, não tendo jamais voltado da loucura. Tais manifestações psicóticas, em parte decorrentes do terror da ditadura, ocorreram igualmente no âmbito das experiências-limite, caracterís-


ticas do movimento contracultural, que consistiam em toda espécie de experimentação sensorial, incluindo geralmente o uso de alucinógenos, numa postura de resistência ativa à política de subjetivação burguesa. A presença difusa do terror e a paranóia que este engendra terá sem dúvida contribuído para os destinos patológicos destas experiências de abertura do sensível à sua capacidade vibrátil.

ainda mais vulnerável aos abusos da cafetinagem: em sua penetração em contextos totalitários, o capitalismo cultural tirou vantagem do passado experimental, especialmente ousado e singular em muitos daqueles países, mas também e sobretudo das feridas das forças de criação resultantes dos golpes que haviam sofrido. O novo regime apresenta-se aí não só como o sistema que acolhe e institucionaliza o princípio de produção de subjetividade e de cultura dos movimentos dos anos 1960 e 70, como foi o caso nos EUA e nos países da Europa Ocidental. Nos países sob ditadura, ele ganha um plus de poder de sedução: sua aparente condição de salvador que vem libertar a energia de criação de seu jugo, curá-la de seu estado debilitado, permitindo-lhe reativar-se e voltar a se manifestar. Se bem o poder via sedução, próprio do governo mundial do capital financeiro, é mais light e sutil do que a mão pesada dos governos locais comandados por Estados militares que os antecederam, nem por isso são menos destrutivos seus efeitos, embora com estratégias e finalidades inteiramente distintas. É de se esperar, portanto, que a combinatória destes dois fatores históricos, ocorrida nestes países, tenha agravado consideravelmente o estado de alienação patológica da subjetividade, especialmente no que diz respeito à política que rege a relação com o outro e ao destino de sua força de criação. Zumbis antropofágicos

7. Oswald de Andrade, “A marcha das utopias” [1953]. In: A Utopia Antropofágica, Obras Completas de Oswald de Andrade. Globo, São Paulo, 1990.

Se focarmos agora nosso olhar micropolítico no Brasil, descobriremos um traço ainda mais específico no processo de instalação do neoliberalismo e da clonagem que operou dos movimentos dos anos 1960/70. É que estes mesmos movimentos já traziam aí uma especificidade, pela reativação de uma certa tradição cultural do país que se convencionou chamar de “antropofagia”. São algumas das características desta tradição: a ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência cega a quaisquer regras estabelecidas, gerando uma plasticidade de contornos da subjetividade (no lugar de identidades); uma abertura para incorporar novos universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir valor de verdade a um repertório em particular); uma agilidade de experimentação e de improvisação para criar territórios e suas respectivas cartografias (no lugar de territórios fixos marcados por linguagens estáveis e pré-determinadas) – e tudo isso levado com alegria, ginga e descontração. Tal tradição havia sido originalmente circunscrita e nomeada nos anos 1920 pelos modernistas brasileiros reunidos em torno do Movimento Antropofágico. Como todas as vanguardas culturais do início do século XX, o espírito visionário dos modernistas locais apontara criticamente, já naqueles anos, os limites das políticas de subjetivação, de relação com o outro e de produção de cultura própria do regime disciplinar, tomando como um dos principais alvos sua lógica identitária. Mas enquanto as vanguardas européias tentavam criar alternativas a este modelo, no Brasil já dispúnhamos de uma outro modo de subjetivação e de criação inscrito em nossa memória desde os primórdios da fundação do país. Talvez seja esta a razão pela qual Oswald de Andrade, referência maior do Movimento Antropofágico, tenha vislumbrado nesta tradição um “programa de reeducação da sensibilidade” que poderia funcionar como uma “terapêutica social para o mundo moderno”7. O serviço que o movimento modernista brasileiro prestou à cultura do país ao iluminar e nomear esta política, foi o de valorizá-la; isso possibilitou a tomada de consciência desta singularidade cultural que pode assim ser afirmada, a contra-


pelo da idealização da cultura européia, herança colonial que marcava a inteligentzia do país. Cabe notar que esta identificação submissa ainda hoje marca boa parte da produção intelectual brasileira, a qual em alguns de seus setores apenas substituiu seu objeto de idealização pela cultura norte-americana, como é especialmente o caso no campo da arte. Nos anos 1960/70, como vimos, as invenções do início do século deixaram de se restringir às vanguardas culturais; passadas algumas décadas, elas haviam contaminado a política de subjetivação, gerando mudanças que viriam a expressarse mais contundentemente na geração nascida após a segunda guerra mundial. Para esta geração, a sociedade disciplinar que atingia seu apogeu naquele momento tornou-se absolutamente intolerável, o que a fez lançar-se num processo de ruptura com este padrão em sua própria existência cotidiana. A subjetividade flexível tornou-se assim o novo modelo, próprio de uma contracultura. É neste processo que, no Brasil, o ideário antropofágico foi reativado, o que aparece mais explicitamente em movimentos culturais como o Tropicalismo, tomado em seu sentido mais amplo8 . A convocação das marcas desta tradição inscritas em nosso corpo dava à contracultura no país uma liberdade de experimentação especialmente radical, tendo gerado propostas artísticas de grande força e originalidade. Ora, esta mesma singularidade que tanto fortalecera os movimentos contraculturais no Brasil, agravou por outro lado os efeitos da clonagem dos mesmos, operada pelo neoliberalismo. É que o know how antropofágico dá aos brasileiros um jogo de cintura especial para adaptar-se aos novos tempos. Neste país, ficamos embevecidos por sermos tão contemporâneos, tão à vontade na cena internacional das novas subjetividades pós-identitárias, de tão bem aparelhados que somos para viver esta flexibilidade pós-fordista (o que nos torna por exemplo campeões internacionais de publicidade e nos posiciona entre os grandes no ranking mundial das estratégias midiáticas9). No entanto, esta é apenas a forma que tomou a voluptuosa e alienada entrega a este regime em sua aclimatação em terras brasileiras, fazendo de seus habitantes, principalmente os urbanos, verdadeiros zumbis antropofágicos. Características previsíveis num país de passado colonial? Seja qual for a resposta, um sinal evidente desta identificação pateticamente a-crítica com o capitalismo financeiro de uma parcela da própria elite cultural brasileira, é o fato de que a liderança do grupo que reestruturou o Estado brasileiro engessado pelo regime militar, fazendo do processo de redemocratização o seu alinhamento ao neoliberalismo, compõe-se, em grande parte, de intelectuais de esquerda, tendo muitos deles vivido no exílio no período da ditadura. É que a Antropofagia em si mesma é apenas uma forma de subjetivação, de fato distinta da política identitária. No entanto, isto por si só não garante nada pois qualquer forma pode ser investida segundo diferentes éticas, das mais críticas às mais execravelmente reacionárias, o que Oswald de Andrade apontava já nos anos 1920, designando estas últimas de “baixa antropofagia”10. O que distingue tais éticas é o mesmo “porém” que assinalei anteriormente ao referir-me à diferença entre a subjetividade flexível inventada nos anos 1960/70 e seu clone fabricado pelo capitalismo pós-fordista. Esta diferença está na estratégia de criação de territórios e, implicitamente, na política de relação com o outro: para que este processo se oriente por uma ética de afirmação da vida é necessário construir territórios com base nas urgências indicadas pelas sensações – ou seja, os sinais da presença do outro em nosso corpo vibrátil. É em torno da expressão destes sinais e de sua reverberação nas subjetividades que respiram o mesmo ar do tempo que vão se abrindo possíveis na existência individual e coletiva.

8. O movimento contracultural no Brasil foi especialmente radical e amplo, tendo sido o Tropicalismo uma das principais expressões de sua singularidade. A juventude ativa da época se dividia entre a contracultura e a militância, as quais sofreram igual violência por parte da ditadura: prisão, tortura, assassinato, exílio, além dos muitos que sucumbiram à loucura, como já assinalado. A contracultura, no entanto, jamais foi reconhecida em sua potência política, a não ser pelo regime militar que castigou ferozmente aqueles que dela participaram, os colocando nos mesmos pavilhões destinados aos presos oficialmente políticos. A sociedade brasileira projetava sobre a contracultura uma imagem pejorativa, oriunda de uma visão conservadora, compartilhada neste aspecto específico pela direita e pela esquerda (inclusive pelos militantes da mesma geração). Tal negação, ainda hoje, persiste na memória do período que, diferentemente, preserva e enaltece o passado militante. 9. A televisão brasileira ocupa um lugar privilegiado no cenário internacional. Um sinal evidente disto é o fato de que as novelas da rede Globo são hoje veiculadas em mais de 200 países.

10. Oswald de Andrade , “Manifesto Antropófago” [1928]. In: op.cit.


11. Comecei a elaborar a questão da antropofagia, no sentido em que a estou problematizando aqui, no início dos anos 1990. Este trabalho foi objeto de três textos. O primeiro, escrito em 1993, é Schizoanalyse et Anthropophagie. In: Eric Alliez (ed.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique. Paris: Les empêcheurs de penser en rond, 1998 ; p.463476. Edição brasileira: Esquizoanálise e Antropofagia. In: Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000; pp. 451-462. O segundo é “Subjetividade Antropofágica” / “Anthropophagic Subjectivity”. In: Paulo Herkenhoff & Adriano Pedrosa (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998; pp. 128-147. Edição bilíngüe (português/inglês). Reeditado In: Daniel Lins (Org.), Razão Nômade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. O terceiro é “Zombie Anthropophagy”. In: Ivet Curlin e Natasa Ilic (eds.), Collective Creativity dedicated to anonymous worker. Kunsthalle Fridericianum: Kassel, 2005. Edição bilíngüe (alemão/inglês). Publicado em francês, em versão reduzida, como “Anthropophagie Zombie”. In: Mouvement : L’indiscipline des Arts Visuels, no. 36-37, pp. 56-68. Paris: Artishoc, Sept-Décembre 2005.

Ora, não é absolutamente esta a política de criação de territórios que tem predominado no Brasil: o neoliberalismo mobilizou o que esta tradição tem de pior, a mais baixa antropofagia. A “plasticidade” da fronteira entre público e privado e a “liberdade” de apropriação privada dos bens púbicos – levada na brincadeira e exibida com orgulho – é uma de suas piores facetas, certamente impregnada da herança colonial. É exatamente para esta faceta da antropofagia que Oswald de Andrade chamara a atenção para designar seu lado reativo. Esta linhagem intoxica a tal ponto a sociedade brasileira, especialmente suas elites econômicas e políticas, que seria ingênuo imaginar que ela possa desaparecer num passe de mágica. São cinco séculos de experiência antropofágica e quase um de reflexão sobre a mesma, a partir do momento em que, ao circunscrevê-la criticamente, os modernistas a tornaram consciente. Com esse pano de fundo, de fato nosso know how antropofágico – especialmente em sua atualização nos anos 1960-70 – pode ainda ser útil nos dias de hoje mas não para garantir nosso ingresso nos paraísos imaginários do capital, e sim, ao contrário, para nos ajudar a problematizar esta infeliz confusão entre as duas políticas da subjetividade flexível, separando o joio do trigo, que se distinguem basicamente pelo lugar ou não lugar que ocupa o outro. Esse conhecimento nos daria condições de participar de modo fecundo do debate que se trava internacionalmente em torno da problematização do regime que hoje se tornou hegemônico, assim como da invenção de estratégias de êxodo do campo imaginário que tem origem em seu mito nefasto11. A arte tem uma vocação privilegiada para realizar semelhante tarefa na medida em que ao trazer para o visível e o dizível as mutações da sensibilidade, ela esgarça a cartografia do presente, liberando a vida em seus pontos de interrupção, devolvendo-lhe a força de germinação – uma tarefa em tudo distinta à do ativismo macropolítico e irredutível a ela. Esta última se relaciona com a realidade do ponto de vista da representação, denunciando os conflitos próprios à distribuição de lugares estabelecidos no mapa vigente (conflitos de classe, de raça, de gênero, etc) e lutando por uma configuração mais justa. Dois olhares distintos e complementares sobre a realidade, aos quais correspondem duas potências de interferência na mesma e que participam ambos na definição de seu destino. No entanto, problematizar a confusão entre as duas políticas da subjetividade flexível de modo a intervir efetivamente neste campo, contribuindo assim para romper o feitiço da sedução que sustenta o poder neoliberal no coração do desejo, passa incontornàvelmente por tratar a doença que resultou da infeliz confluência no Brasil de três fatores históricos que incidiram negativamente em nossa imaginação criadora: a traumática violência pela ditadura, a cafetinagem pelo neoliberalismo e a ativação de uma baixa antropofagia. Esta confluência tornou sem dúvida mais exacerbados, o rebaixamento da capacidade crítica e a identificação servil com o novo regime. Aqui podemos voltar à nossa indagação inicial acerca da situação peculiar do Brasil no campo geopolítico do debate internacional que vem se travando, há mais de uma década, no território da arte, em torno do destino da subjetividade, sua relação com o outro e sua potência de invenção sob o regime do capitalismo cultural. A triste confluência dos três fatores históricos pode ser uma das razões pelas quais este debate seja tão recente no país. É claro que há exceções entre nós, como é o caso de Lygia Clark que já um ano depois de maio de 1968 prenuncia esta situação. Eis como ela a descreve na época: “No próprio momento em que digere o objeto, o artista é digerido pela sociedade que já encontrou para ele um título e uma ocupação burocrática: ele será o engenheiro dos lazeres do futuro,


atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais. A única maneira, para o artista de escapar da recuperação é procurar desencadear a criatividade geral, sem qualquer limite psicológico ou social. Sua criatividade se expressará no vivido12.” O que pode a arte? É de dentro deste novo cenário que emergem as perguntas que se colocam para todos aqueles que pensam/criam – especialmente, os artistas – no afã de traçar uma cartografia do presente, de modo a identificar os pontos de asfixia do processo vital e fazer irromper aí a força de criação de outros mundos. Um primeiro bloco de perguntas seria relativo à cartografia da cafetinagem. Como se opera em nossa vitalidade o torniquete que nos leva a tolerar o intolerável, e até a desejá-lo? Por meio de que processos, nossa vulnerabilidade ao outro se anestesia? Que mecanismos de nossa subjetividade nos levam a oferecer nossa força de criação para a realização do mercado? E nosso desejo, nossos afetos, nosso erotismo, nosso tempo? Como todas estas nossas potências são capturadas pela fé na promessa de paraíso da religião capitalista? Que práticas artísticas têm caído nesta cilada? O que nos permite identificá-las? O que faz com que elas sejam tão numerosas? Um outro bloco de perguntas, na verdade inseparável do primeiro, seria relativo à cartografia dos movimentos de êxodo. Como liberar a vida destes seus novos impasses? O que pode nossa força de criação para enfrentar este desafio? Que dispositivos artísticos estariam conseguindo fazê-lo? Quais deles estariam tratando o próprio território da arte, cada vez mais cobiçado (e, ao mesmo tempo, minado) pela cafetinagem que encontra aí uma fonte inesgotável para extorquir mais-valia de criação de modo a incrementar seu poder de sedução? Em suma, como reativar nos dias de hoje, em suas distintas situações, a potência política inerente à ação artística? Este poder de encarnar as mutações do sensível participando assim da reconfiguração dos contornos do mundo. Respostas a estas e outras tantas perguntas estão sendo certamente construídas por diferentes práticas artísticas junto com os territórios de toda espécie que se reinventam a cada dia. Impossível prever os efeitos destas perfurações sutis na massa compacta da brutalidade que compõe a textura dominante do planeta na atualidade. O único que dá para dizer é que, ao que tudo indica, a paisagem da cafetinagem globalizada já não é exatamente a mesma; correntes moleculares estariam movimentando as terras. Ou será isso uma mera alucinação?

12. “L’homme structure vivante d’une architecture biologique et celulaire”. In: Robho, n. 5-6, Paris, 1971 (facsimile da revista disponível In: Lygia Clark, de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le mole, à vous de donner le souffle, catálogo de exposição, op.cit.). Reproduzido com o título “(1969) O corpo é a casa” in: Lygia Clark: Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mario Pedrosa. Rio de Janeiro: Funarte, coleção Arte Brasileira Contemporânea, editada por Afonso Henriques Neto, Eudoro Augusto Macieira e Vera Bernardes; pp. 35-37. (Esgotado). Texto disponível em sua reedição com o titulo: “O corpo é a casa: sexualidade, invasão do ‘território’ individual”, in: Manuel J.Borja Villel e Nuria Enguita Mayo (Edit.), Lygia Clark (catálogo de exposição), Fondació Antoni Tàpies, Barcelona, 1997; edições bilingües: espanhol/ inglês e francês/português; pp. 247-248.


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Traplev (Roberto Moreira Junior), Caçador - SC - 1977, vive no Rio de Janeiro, é artista e tem Mestrado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação do Centro de Artes - UDESC de Florianópolis -SC, coordena as ações de Traplev Orçamentos na qual organiza projetos curatoriais, seminários entre outros projetos colaborativos desde 2005, expõe regularmente desde 1999, e é editor geral da publicação recibo de artes visuais.

Impresso no Brasil - Rio de Janeiro em maio de 2011. Gráfica Valmar - contato@valmar.com.br - 21 2263-7069 Edições Traplev Orçamentos:1000 exemplares de distribuição gratuita Formato (Revista Malasartes) 23.0 x 31.0 cm - 2/2 cores - 42 páginas contato: recibo0@gmail.com


(reprodução) Coleção de Waltércio Caldas, gentilmente cedido.

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Walter Benjamim – Sobre o conceito de história.


Esta publicação compreende-se em uma proposição artística como desdobramento da produção crítica.


realização:

“Distribuição gratuita. Venda proibida”.



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