Três três #3 - Movimentos

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Movimentos Arte e crítica Património Literatura Edição limitada e numerada

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janeiro 2014



Neste número da TrêsTrês MOVIMENTOS Cinco movimentos sobre a fixação Nélio Conceição A leitura como movimento Isabel Xavier Duas confidências Ricardo Norte Movimentos revolucionários: breve leitura sobre dois cânones da violência política Felipe Pathé Duarte Utopia e deslocação Pedro Xavier Mendonça Movimento, movimento lento, crise: ou contratempo Carlos Gonçalves ARTE E CRÍTIC A Enquadramento e rápida fuga Nuno Fragata Transformação do tempo em espaço no contexto do escultórico Samuel Rama Artist run culture II: na aventura da arte contemporânea Patrícia Faustino Studie über elastizität - deslocar para encontrar feliz Teresa Luzio Henrique Maunel Bento Fialho – Suicidas José Ricardo Nunes PATRIMÓNIO Do burlesco e da sua contribuição para a libertação do corpo feminino Lúcia Vicente Casével e os Templários Ricardo Silva LITER ATUR A O gato não quer movimento João Luís Barreto Guimarães Por vezes não sabemos o que fazer Carlos Alberto Machado Movimento perpétuo Joel Henriques AMTRAK Margarida Vale de Gato Poemas traduzidos de Ana Pérez Cañamares, trad. Albino M. Paisagem com turf Manuel Fernando Gonçalves A Visita Gonçalo Fonseca

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Edição: Nuno Fragata Pedro Xavier Mendonça Ricardo Norte Rita Baptista Design gráfico: Bruno Afonso Fausto Vicente Nuno Fragata Ilustração de capa: Alexandra Baptista Revisão: Isabel Xavier Pedro Xavier Mendonça Impressão: Várzea da Rainha - Impressores Dep. Legal: 355130/13 ISSN 2182-7869 Colaboradores: Bruno Afonso, Felipe Pathé Duarte, Isabel Xavier, Joel Henriques, Nuno Fragata, Patrícia Faustino, Pad Ell Rey, Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte e Rita Baptista. Convidados: Albino M., Alexandra Baptista, Carlos Alberto Machado, Gonçalo Fonseca, Lúcia Vicente, Luís Guedes, João Luís Barreto Guimarães, José Ricardo Nunes, Margarida Vale de Gato, Manuel Fernando Gonçalves, Nélio Conceição, Ricardo Silva, Samuel Rama e Teresa Luzio. Contactos: revistatrestres@gmail.com É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico ratificado em 2008. Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos.

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E pur si move, dizia Galileu, contra as instituições religiosas, afirmando em surdina aquilo que o obrigavam a negar em tribunal inquisitorial. O planeta era indiferente a dogmas humanos, movendo-se, com ou sem eles. E assim permanece, na não permanência, talvez, ou na simples reprodução do mesmo a grande velocidade, simulando a transformação, o tempo, os novos espaços. É que o movimento não diz respeito apenas à física. É também social. Foi a falta deste que obrigou Galileu a desdizer-se. E as mesmas ilusões que acertaram os homens na certeza de um planeta imóvel podem agir sobre o conformismo, alimentando-o. Contudo, pode também ser uma ilusão a ideia de que alguma coisa se move na história. Depois há a estética, a economia, o tempo. Em todos eles declinamos a palavra “movimentos”. No plural, claro, para ser mais, mais sentidos e movimento. A imagem estática faz-se na dinâmica que a cerca, para não falar daquela que se move sobre alguma coisa. A riqueza e a pobreza das nações, por sua vez, alimentam as mais variadas ideias sobre a economia como aceleração contra a estagnação. Quer-se instabilidade. É possivelmente contra isso que o presente é de movimentos sociais, a favor de outra orientação. O tempo vem então. Sim, este movimento é temporalidade, como diria Aristóteles. Fixemo-nos numa relação quase ingénua entre tempo e movimento. Permite-nos a captação do acontecimento. Nele nos debruçamos como revelação, como não-movimento na descrição, ironicamente, rodeados da movimentação que interessa, para lá daquilo que vemos.

Pedro Xavier Mendonça

MOVIMENTOS

Neste número da três três interessam-nos textos sobre fotografia, leitura, linguagem, revolução, utopia, população, cinema de animação, escultura, grupos de artistas, performance, feminismo e burlesco, templários. Mas também poesia, mais poesia. E todos eles nos movem, ou comovem, se outros se moverem connosco. Queremos encher o tempo de diferenças, de marcos, de pontes. Movemo-nos para deixar rastos e lançar no futuro uma memória. Em todos estes termos, os entrelaçados são marés a rebolar na areia. Pois bem, vamos até à praia conversar, onde se apanha vento.

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MOVIMENTOS NÉLIO CONCEIÇÃO

1. Há qualquer coisa de irreparável no gesto de fotografar: trata-se de um gesto que culmina num instante fatal que, por via da sua imobilização espácio-temporal, eterniza uma espécie de morte. Trata-se de um gesto de interrupção e afirmação de presença, uma figura do testemunho. Sabe-o de forma cruel quem já perdeu um momento que daria uma grande fotografia. Sabe-o quem se esqueceu de registar um rosto que nunca mais verá na vida. Sabe-o o repórter que chegou tarde de mais. Quem se esqueceu de fotografar um instante ou optou por não fazê-lo, terá, quanto muito, de confiar na percepção e na memória. Mas o aparecimento da fotografia marca também uma alteração da experiência humana e uma oportunidade de repensar a percepção e a memória. Não que estas faculdades humanas sejam comparáveis com a fotografia, como se se tratassem de instâncias da mesma ordem, mas porque por vezes, face a certos instrumentos técnicos, elas parecem demasiado humanas, demasiado falíveis. É neste sentido que se pode dizer que a fotografia preenche um desejo realista e de luta contra a passagem do tempo, como o defendia André Bazin. Num outro sentido, podemos talvez localizar aqui, neste “homem falível”, as raízes da síndrome da perfectibilidade humana que alimenta o ramo tecnológico da ideia de progresso.

O aparecimento da fotografia corresponde a uma alteração das condições da nossa experiência sob a forma de uma interferência. Naturalmente existe experiência humana sem fotografia – tal como existe experiência humana sem cinema ou sem telemóveis –, mas a força da sua interferência parece localizar-se fundamentalmente numa espécie de espectralidade, de carácter fantasmagórico. Somos habitados não apenas pelas imagens que vimos ou que tiramos, mas somos também habitados virtualmente pela “máquina da memória” (desde que, a partir de inícios do século XIX, nos foi permitido preencher a metáfora da impressão das imagens da percepção, que vinha desde os gregos, com um mecanismo que efectivamente realiza essa impressão), somos também habitados pelas potencialidades, pelo como se da experiência espácio-temporal do mecanismo técnico da fotografia. E esta impregnação entra-nos pelos olhos e pelas palavras. Isto não constitui nenhuma fatalidade tecnológica, constitui simplesmente uma criação de potencialidades de experiência, que destroem sempre algo do passado e – para utilizar uma imagem muito cara a Walter Benjamin – reconstroem sempre algo a partir das cinzas desse passado. Há qualquer coisa de irreparável numa fotografia. Tal como no parágrafo de um texto que se quebra de repente, anunciando o seu fora de campo, o rumor do movimento exterior de tudo o que não foi escrito, fixado – mas podia ter sido.


2. A fixação do movimento faz parte de qualquer fotografia, faz parte da própria definição de fotografia. Esta é uma constatação que tanto pertence aos aspectos técnicos do aparelho fotográfico, explicável segundo princípios ópticos, químicos ou electrónicos, quanto à compreensão de senso comum. Por outro lado, esta constatação básica contém uma série de problemas teóricos muitíssimo complexos, que apontam para o estatuto paradoxal da fotografia enquanto objecto de pensamento. As fotografias são imagens tocadas pelo real; pensar esse real, bem como o modo como ele trabalha em nós, foi sempre o mais difícil. As lógicas dualistas (real / irreal, arte / conhecimento, etc.) apodrecem no pensamento fotográfico como uma fruta que não foi consumida e digerida a tempo. Fotografar é registar um momento, congelá-lo, por vezes fixá-lo como uma promessa de futuro. Mesmo que o tempo de exposição seja de vários segundos ou minutos, como acontece amiúde na fotografia nocturna, mesmo que uma imagem fotográfica crie uma impressão de movimento (pelo arrastamento de alguns ou de todos os seres presentes numa fotografia), a sua matriz depende sempre de uma imobilização. Decorrente do corte, esta imobilização é um instante de intensificação e isolamento contextual. Isto tornou-se mais claro e visível a partir do momento em que a sensibilidade das superfícies fotossensíveis e a qualidade dos dispositivos ópticos permitiram reduzir substancialmente os tempos de exposição. A fixação aproximou-se da ideia de instante, ou melhor, ajudou a forjar a ideia de instantes visíveis. Por sua vez, e de modo quase paradoxal, estas alterações também fizeram ver novos aspectos da realidade e do próprio movimento, como o mostram as experiências com a cronografia de Muybridge e de Marey.

3. A noção de inconsciente óptico, forjada por Walter Benjamin, remete também para esta capacidade de apreciação do detalhe, do instante que se revela pela primeira vez à nossa consciência, numa conjugação entre técnica e magia, dando corpo e visibilidade aos nossos sonhos diurnos. Além do mais, a fotografia pode muito bem ser um acesso privilegiado ao mundo das metamorfoses. Paul Klee utilizava o termo alemão Gestaltung, que pode ser traduzido por “configuração dinâmica”, com o intuito de se furtar ao carácter excessivamente estático da noção de Gestalt, “forma”. Interessava-lhe, como compreensão da pintura e do acto de pintar, encontrar as chaves da formação, da configuração dinâmica daquilo que existe e que o artista, mergulhando no caos e no cosmos, é capaz de trazer para o reino das formas. As fotografias publicadas por Karl Bloßfeldt em Formas Originárias da Arte. Imagens Fotográficas de Plantas, de 1928, respondem às possibilidades técnicas de ampliação abertas pela fotografia. Neste sentido, elas mostram a relação entre um micro e um macrocosmos, um território habitado por questões de escala, de correspondência entre diversas ordens perceptivas. Embora mortas, essas plantas são fotografadas de tal forma que temos acesso à matriz de formação que lhes inere como se de uma força se tratasse. Elas estão duplamente imobilizadas, mas ainda assim, por vezes, encontram-se num ponto de intensidade que nos revela, num ápice, o seu movimento de metamorfose.

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MOVIMENTOS 4. Isto acontece na fotografia, em alg umas fotografias, mas também acontece de diferente modo na pintura, em algumas pinturas. Também aqui, na pintura, onde tudo está fixo, onde a tinta há muito secou, existe um movimento interno das coisas, embora mais desprendido dos movimentos de uma realidade reproduzida segundo impressão. É um movimento de coisas que têm a sua autonomia, que vieram ao mundo pela mão do pintor e não pelo olho / dedo do fotógrafo. De qualquer forma – e isto é assinalável – também as fotografias de Bloßfeldt nos fazem abeirar da configuração dinâmica que inere às formas e que funciona como seu princípio vital. Identificar e revelar esse princípio é também a arte dos bons fotógrafos, daqueles que captam num detalhe qualquer coisa que nos liga ao Todo e às suas forças. Movimento, fixação, intensidade. Pensemos não apenas nas fotografias de plantas, mas também nas da dança e dos gestos, das expressões humanas e das expressões híbridas, da imitação que, segundo Sartre, é uma forma de possessão. Quantos desses pontos de intensidade não estarão inscritos na nossa percepção e na nossa memória? Quem os revela, é como se revelasse uma fotografia há muito tempo tirada (sobre isto, haveria que ler uma passagem muito enigmática de Bergson no primeiro capítulo de Matéria e Memória, que diz que, a existir fotografia, ela já está tirada no próprio interior das coisas e para todos os pontos do espaço). O que nem sempre é obra de uma vontade (quase nunca é obra de uma vontade), mas de quem, com muito labor, aprendeu a trabalhar com o acaso.

Nos seus livros dedicados ao cinema, Deleuze refere algumas vezes a distinção entre o cinema e a fotografia. Essa distinção encontra o seu ápice no segundo volume, A Imagem-tempo, a propósito dos planos fixos de Ozu e do opsigno. Onde o cinema mais parece aproximar-se da fotografia, é onde se dá a separação mais radical. Se a fotografia se encontra do lado do molde – Deleuze recupera terminologia de Gilbert Simondon – o cinema encontra-se do lado da modulação. É o próprio movimento incessante da imagem cinematográfica, por mais estático que seja o plano, que está na base da sua especificidade enquanto imagem-movimento e, sobretudo, enquanto imagem-tempo. É a própria modulação inerente ao cinema que engendra quer a sua forma de trabalhar de um ponto de vista sensório-motor, quer a possibilidade de mostrar o tempo, neste caso, a duração e o desdobramento da imagem na sua virtualidade. Ora tudo isto, embora com um necessário desvio relativamente aos princípios deleuzianos, permite pensar outras formas de movimento; não existe apenas aquele que um corpo percorre entre dois pontos, mas também o próprio movimento da nossa consciência, da vida que somos. A fotografia, por mais imóvel que seja, não deixa de activar esta vida interior, num movimento temporal que nos puxa para fora de nós, para o evidente real de uma imagem, ao mesmo tempo que nos faz descobrir a intimidade e aquilo de que somos feitos. Também devido a estes aspectos podemos compreender a pertinência antropológica, estética e artística da fotografia. Ela não tem apenas a ver com a fixação do movimento, ou melhor, a fixação do movimento é um pequeno mundo apontado à nossa vivência do tempo. Como é óbvio, nem todas as setas nos atingem, a maior parte passa-nos ao lado.


O hábito, a indiferença e a saturação de imagens têm as suas consequências. Portanto, para lá das questões de intensidade (mais próximas da relação entre fixação e metamorfose), a fotografia também pode despertar no espectador um tipo particular de movimentos internos, relacionados com os vários modos de experienciar o tempo, o qual se dá de modo específico nas montagens e nas séries. Também pode espoletar vivências afectivas da duração ou da relação entre o passado e o presente, com todas as consequências históricas que despontam deste modo interrompido de “imaginar” as articulações temporais. É o espectador que aqui se torna, em diversos sentidos, a alma da fotografia, pois é ele que anima essa inexorável imobilidade espácio-temporal do real. Mas existirá fotografia que não seja sempre animada por um olhar e por um corpo?

5. Walter Benjamin foi provavelmente um dos pensadores que mais valorizou a cesura, a interrupção. Daí provavelmente a atenção precoce que deu às questões da montagem, não apenas em relação à fotografia, mas também em relação ao cinema, à rádio, à literatura, à história, à filosofia. A montagem é alimentada pelo corte, pela separação, pelo intervalo. A montagem recria sentidos. As imagens dialécticas, revelando constelações históricas, subvertem o curso linear do tempo, dissolvem a ideia de progresso, estabelecem uma relação entre um Agora e um Outrora que não se rege segundo a cronologia. Desenvolver a capacidade de perceber uma imagem dialéctica no seu relampejar implica treinar o corpo para a fugacidade das coisas e para a necessidade de estar presente no momento certo. Também o pensamento deve ter a capacidade de parar. O pensamento que não pára, que se excita num fluxo insaciável de deduções, é talvez um pensamento frenético que desliza pela superfície dos dias, mas que não aprendeu as virtudes da respiração e os segredos de uma noite bem dormida.

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MOVIMENTOS ISABEL XAVIER

Equiparar a leitura à viagem é inevitável. Ambas as situações implicam movimento. Só que na leitura não há partida nem chegada: apenas lugares, territórios, companheiros de viagem que nos indicam o caminho e nos acompanham no percurso a realizar. Maria Gabriela Llansol diz: “O texto é a mais curta distância entre dois pontos” e considera “o texto lugar que viaja.” (Llansol, 1985, 144). Assim sendo, a leitura de um texto consiste em vencer uma distância, experienciar um lugar, realizar um movimento, viajar. A mesma autora descreve situações/experiências de texto/ viagem em que há movimento e interferência do corpo, bem como de objetos que com ele interagem, com uma veemência contida, de que é exemplo o seguinte excerto: “Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio. A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina metade do livro, cortando a página em luz e sombra. Com a trepidação, a minha mão transportada no comboio treme, e a pequena garrafa com água para beber, tomba. (…) Não verteu a água, mas mudou a posição dentro da garrafa. Oscilou, estendeu-se à superfície, tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse fenómeno simples foi visto por um outro que o escreveu”. E conclui com a frase mais enigmática e suspensiva deste texto: “O universo multiplicase com a descrição minuciosa e atenta da viagem” (Llansol, 2003, 13). A escrita e a leitura, nesta asserção, interferem no universo, acrescentando-o, multiplicando-o. O texto constitui-se como duplo de viver, redimensionando a vida, alargando o âmbito dos possíveis. Há um pluralismo criado pela escrita que se assume como busca do inaudito, como recriação, como mediatismo que proporciona mais do que um diálogo de consciências, a construção de um território próprio, comum a quem escreve e a quem lê.

Em muitos casos a viagem serviu de incentivo à escrita e, por isso, à leitura. Quem nunca sentiu vontade de escrever uma espécie de diário quando viaja? Muitos viajantes registaram impressões da viagem vivida, do movimento realizado, da mudança experienciada, da estranheza sentida perante a diferença: Marco Pólo, Fernão Mendes Pinto, para referir apenas dois. Real ou ficcionada, a viagem serviu inúmeras vezes de cenário ou de fio condutor à narrativa literária. É o caso de obras tão fundamentais à construção da nossa humanidade/ identidade como a Ilíada e a Odisseia de Homero, o Dom Quixote de Cervantes, a Divina Comédia de Dante ou Os Lusíadas de Camões. Nas Mil e Uma Noites, Sherazade vai protelando a própria morte através das histórias que conta, uma por dia. “O que é o amor, senão o encontro do que vem mais tarde?” Pergunta Maria Gabriela Llansol, em estilo diarístico, como quem se lê escrevendo, logo após ter afirmado: “Às vezes não encontro os livros a que devo ligar-me; outras, sim. No primeiro caso, digo que já não gosto de ler; no segundo, digo que encontrei uma pessoa, que a vou escutar longamente, viver e perecer com ela” (Llansol, 2010, 139). Portanto, é de amor que se trata. E de encontro. A decisão de ler é individual, mas a experiência da leitura é a dois que se realiza. Na leitura, para além de quem lê, é imprescindível a presença do outro, do autor. Na escrita, pressupõe-se a existência do leitor. Escrita e leitura, mais do que próximas, são práticas complementares. Ocorrem em tempos diferentes, mas são razão de ser uma da outra, conferem-se significado recíproco. É como se fosse o pulsar de dois corações que se encontram em uníssono: “(…) pousa as mãos que abandonas sempre na mesma página. No amor de ler há uma física que serve as direções da mudança” (Llansol, 1991, 58).


Deleuze refere-se à solidão da escrita, considerando-a simultaneamente “absoluta” e “extremamente povoada”: “Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer encontro. Encontram-se pessoas (…), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades. Todas essas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Ele designa um efeito, um ziguezague, algo que passa ou que se passa entre dois como sob uma diferença de potencial” (Deleuze, 1998, 6). O conceito de devir, tão caro a Deleuze, mais do que referir-se àquilo em que nos vamos tornando, refere-se àquilo que vamos deixando de ser. E isso pressupõe movimento. Mesmo no sentido literal, físico, do corpo. Voltemos a Maria Gabriela Llansol e ao testemunho que dá do processo/movimento vivido pelo corpo/ texto, quando afirma: “Estou certa de que o Texto modificou o corpo dos homens. (…) Fui à procura do nosso contexto. E escrevendo sobre lugares alienos, estrangeiros, dei a impressão de não estar a falar daqui. Mas eu nunca saí daqui, no sentido de que nunca abandonei o meu corpo. A minha forma de rebeldia foi tão-só a recusa de o viver mutilado. E em tantos séculos, ele lançou raízes ou deixou pegadas em lugares de que já nem guardávamos memória. (…) Ir buscar plenitude, é garantir a respiração harmónica e metódica do meu corpo nascido para perdurar” (Llansol, 1985, 144-145). Eis o convite a que o leitor ávido terá que responder penetrando nesse mundo ancestral que é texto, lugar e corpo em simultâneo. Roland Barthes considera O Prazer do Texto, título de um dos seus mais conhecidos livros. Nele, distingue “texto de prazer” e “texto de fruição”; os respetivos tempos e movimentos são diferentes, na medida em que o texto de prazer está ligado a uma prática confortável de leitura e

o texto de fruição é aquele que desconforta, que faz vacilar o leitor, que “faz entrar em crise a sua relação com a linguagem” (Barthes, s.d. , 49). Não há que julgar um texto segundo o prazer: “(…) só me pode arrancar este juízo, nada objetivo: é isso! E mais ainda: é isso para mim!” (Barthes, s.d., 48). Barthes fala de necessidade de “jogo” para que o escritor “engate” o leitor e de urgência de “que os dados não estejam lançados” (Barthes, s.d., 37) à partida. “O texto que escreve tem de me dar a prova de que me deseja. Essa prova existe: é a escrita” (Barthes, s.d., 39). Noutro texto de Barthes, A Morte do Autor, a linguagem é valorizada em detrimento do autor e a relação entre leitura e escrita é apresentada de modo novo. Aí, o verdadeiro lugar da escrita é a leitura: “Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há MOVIMENTOS

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MOVIMENTOS um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito”. E mais adiante conclui: “sabemos que para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” (Barthes, 2004, 5-6). A leitura não é sempre igual, varia de acordo com o género literário. O leitor do ensaio, segundo João Barrento, que classifica esse género como “intranquilo”, “não pode ser um qualquer: tem de partir para ele munido da vara do vedor que, na sua mão, vibrará ao pressentir o veio de água, a nascente, o grande lençol da significação oculta que, à medida que a leitura avança, começa a cantar, Sottovoce” (Barrento, 2010, 43). Para que a plenitude do ensaio se manifeste será, então, indispensável uma leitura plena, que desperte a escrita. E isso exige não apenas uma capacidade ou aptidão particular do leitor, mas também a posse de um instrumento específico, que só ele domina, para acontecer. Leitura e escrita são práticas complexas e sujeitas a diferentes níveis ou graus de prossecução. Em movimento e em escala: de modo musical. Ana Hatherly, por sua vez, considera fundamental a experiência da legibilidade ou da ilegibilidade para a própria escrita, já que o escritor “constantemente se defronta com o problema da escrita que cifra e da leitura que decifra”. E afirma a propósito: “Sabemos que seja qual for a linguagem – palavra, gesto, objeto – nem tudo é sempre legível, como nem tudo é sempre dizível, como nem tudo é sempre decifrável. E é justamente nessa zona de obscuridade

determinada pelas limitações da expressão e da interpretação que se inscreve a ilegibilidade essencial do objeto de arte – o que nele fica por dizer, em silêncio, indizível – que é o que vai precisamente permitir, talvez infinitas leituras criadoras” (Haterly, 1975, 23-24). Aqui a leitura é assumida como ato criativo, cada leitor torna-se um criador, pelo menos em potência. As “leituras criadoras” podem ser “infinitas”, o que pressupõe que cada uma delas se constitui como experiência singular, ainda que multiplicando-se até ao infinito. Como se a escrita se reproduzisse na leitura, em formas sempre novas. Ouçamos uma última vez Maria Gabriela Llansol: “Como escrever é agradável. Pelo gesto, pela concentração, pela força empregue nos dedos e no pulso. Pela manga preta que se termina na palidez da pele. Pelo ângulo do dedo indicador. Pelo roçar da parte inferior da mão no lugar ainda intacto da escrita.” (Llansol, 1987, 66) Um corpo que escreve. Um corpo que lê. Um movimento que se realiza.


Bibliografia:

Barrento, João (2010) O Género Intranquilo (anatomia do ensaio e do fragmento). Lisboa: Assírio & Alvim Editores Barthes, Roland (s. d.) O Prazer do Texto. Lisboa: Edições Setenta Barthes, Roland (2004) “A morte do Autor” in O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes Editores Deleuze, Gilles e Parnet, Claire (1998) Diálogos. São Paulo: Editora Esculta Hatherly, Ana (1975) A reinvenção da leitura. Lisboa: Editorial Futura Llansol, Maria Gabriela (1985) Um falcão no punho. Lisboa: Edições Rolim Llansol, Maria Gabriela (1987) Finita. Lisboa: Edições Rolim Llansol, Maria Gabriela (1991) Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Edições Rolim Llansol, Maria Gabriela (2003) O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa: Relógio d’Água Editores Llansol, Maria Gabriela (2010) Um Arco Singular. Lisboa: Assírio & Alvim Editores

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MOVIMENTOS É perfeitamente concebível que o esplendor da vida se tenha junto a cada ser e sempre na sua plenitude, mas que esteja velado, enterrado nas profundezas, invisível, distante. Ele está portanto aí, nem hostil, nem mal intencionado, nem surdo; invoquemo-lo pela palavra justa, pelo seu nome certo, e ele vem. Kaf ka

Segundo uma longa tradição, o impulso faz o movimento, o motor move o movimentado. Habitamos um mundo de movimentos entregues a si mesmos, de efeitos abandonados ao seu sentido lógico de deslocados. Se a lei da inércia deixa por princípio cada coisa entregue a si própria num movimento regular, a lei da descoberta passa por encontrar o pulso, que, por mais ténue que seja, se dá em cada lugar. Um encaminhar sobre uma corda que “parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que se passe por cima dela”1. Falar de movimento é falar de movimentos, deixar que a língua, ao contrário do que nos fomos habituando, nos aproxime do movimentado. A língua move-nos, mas somente no sentido em que movemos a língua. “ Essa ideia que há uma língua francesa, existindo no exterior dos escritores, e que a protegemos, é inaudita. Cada escritor é forçado a fazer-se a sua língua, como cada violinista é obrigado a fazer o seu “som”. […] a única maneira de defender a língua é atacando-a, é certo Senhora Straus! Porque a sua unidade não é feita senão de contrários neutralizados, de uma imobilidade aparente que esconde uma vida vertiginosa e perpétua.”2 .

A palavra “Autor” tem a sua origem etimológica na palavra augmentare. É aquele que faz com que algo cresça. Se por um lado nos encontramos perante o excesso, a vida assustadora, comovente e violenta como um tigre, por outro lado começamos sempre por nos descobrirmos sufocados por significados fixos e movimentos repetidos, que se estabelecem em estruturas predefinidas às quais adaptamos os nossos passos. A vida como excesso está a maior parte do tempo sobre a nossa cabeça como a espada de Dâmocles, mas aprendemos todos os dias a não reparar nela. A linguagem é-nos transmitida como se fosse uma ferramenta, a qual vamos dominando de modo a permitir-nos expressar e ganhar conhecimento. Quanto melhor dominarmos o código, melhor e de forma mais complexa compreendemos o mundo por codificar. Que mundo? É porque há “mundo” que pode haver qualquer coisa como uma codificação do mesmo. É porque já estamos no “mundo codificado” que o podemos expressar numa linguagem instrumental. O que ficou por pensar, e ficará sempre enquanto a linguagem for vista como um utensílio, é o há enquanto doação de mundo. Na sequência de nos pensarmos


RICARDO NORTE

como sujeitos, o que nos aparece surge sempre sobre o modo de objecto, ficando o problema do conhecimento do mundo reduzido a um problema categorial, a uma questão de regência e ordem dos entes. Ficamos condenados a um espaço fechado, sem conseguirmos perceber como é possível que haja mundo, e o pior não é essa incompreensão, mas o facto de ela não se dar como um problema. É o “espanto” que Platão e Aristóteles colocam como desencadeador de pensamento que fica submerso e desaparecido na estruturação do nosso quotidiano. Enchemo-nos como um saco de batatas e depois esperamos que o nosso puré evidencie o primor das nossas idiossincrasias. Enquanto se espera que algo nasça dentro de nós, numa espécie de artes mágicas que guardamos como num poço, não percebemos que é fora de nós que temos de nascer.

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“A palavra fala”3 diz-nos Heidegger, e até mesmo este dito, que inaugura um texto que se move na descoberta de que a língua é essencialmente qualquer coisa de outro do que uma ferramenta, corre o risco de se fixar e se petrificar na grande imobilidade da crítica, que se repercute como um tambor, não nos deixando ouvir mais nada que o seu eterno comentário. A palavra fala, antes de mais, quer dizer uma coisa: se alguma coisa fala só saberemos o que diz se nos metermos à escuta. Mas este simples gesto, para que se realize, necessita de um movimento do pensamento em direcção a ela. Um movimento que não nasce da subjectividade, que imediatamente coloca o mundo como seu objecto. Um movimento que na verdade não sabemos onde nasce, pois de cada vez que

nos encontramos em movimento, já estamos a ser movimentados. No recentemente publicado “Livro de horas III”, Llansol diz “o que eu escrevo não é o mais importante: é a eterna espera do que tenho para dizer (ainda).” Nesta frase indica-nos como a escuta se faz já em movimento, é escrevendo que se pode realizar o impossível esperado, que é o que ainda tem para dizer. Mas o que tem para dizer? Se “tem”, porque não o diz? Porque é que é uma eterna espera? O dizer que Llansol espera não se estagna no meramente expressivo, na capacidade do homem que gere a produção de si mesmo. Numa expressividade de um interior que se exterioriza, que por isso mesmo permanece exterior ao falar da Língua. Quando falamos de intimidade, como um mero subterfúgio subjectivo à objectividade do mundo, escapa-nos a intimidade a realizar, que não se tece de conceitos fixos, com os quais seriamos universalmente compreendidos. Conceitos com os quais os sacerdotes da comunicação acalmam os espíritos inquietos da assembleia. “Os conceitos, precisam cada dia de ser pensados de novo”4 (o itálico é meu). “A eterna espera do que tenho para dizer”, fazse escrevendo, e por vezes escreve-se e lê-se sem papel e caneta, enquanto corpo escrevente. “Vou ensinar-te a ler e a escrever e a falar.

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Mas hoje não haverá nem pena nem papel nem livros. Olha para mim.”. 5 Na sequência desta citação em que dom arbusto ensina o pobre a ler, ele diz-lhe que lhe dará caneta e papel, mas somente depois de saber “em que parte, se no ricto da boca, se no apuramento do tacto, se no reconhecimento dos cheiros e das presenças, o teu pensamento constrangido já expressivamente se revela”. 6 O corpo não pode ser reduzido ao meramente somático nem ao meramente psíquico, estes dotados de medidas e de órgãos são o túmulo um do outro. O corpo não é um mero aqui, mas um entender que antes de qualquer compreensão já se encontra em tensão em direcção a algo, como nos mostra a palavra latina tendere de onde nasce o nosso entender. Há sempre uma tonalidade que nos afecta e coloca numa determinada disposição. O corpo é esse estreito “entre ti e o jardim por plantar”.7 Em alemão, Leib (corpo) tem a mesma raiz de Liebe (amor), e porque falamos de movimento lembremo-nos do mito do “Banquete” de Platão, onde se mostra Eros como aquele que mete em movimento. O corpo vivo tem de ser pensado com uma linguagem diferente quer da fisiológica quer da psicológica. O corpo vivo surge-nos sempre de um poderser, de um escutar, da possibilidade de cuidar e responder. “Há um torvelinho de intensidades a chamar-nos: são os anjos de Rilke, ou as legiões de querubins evanescentes, de Walter Benjamin”8 - esta é a seg unda confidência de Gabriela; a primeira, ainda não citada, já foi sugerida no princípio do texto quando falava do sujeito, “é que nada somos____(“Não se irrite”). O eu como nome é nada. Há um lugar de escravidão” 9, o eu que se enche de sabedoria, que a julga ancorada em si mesmo, ou que a olha como algo com uma utilidade possível, é um lugar de escravidão. O que é que nos mostra Sócrates na sua persistência sob o vento da questão, na sua insistência no declive do conhecimento, senão que nenhum verdadeiro saber se apoia em nós mesmos, que só aquele que se confronta com o outro de si mesmo pode vir a reconhecer-se? “Falando de mim, até essa fé-esperança tive de despir. Faz parte da roupa que levava, debaixo do braço, o escravo que se afastou_ _ _ _ _ _”10 . Sentir nunca é uma mera informação, porque nunca conseguimos separar o sentir do ressentir, pois o sentir contém já em si uma compreensão

do mundo, uma experiência que é doadora de sentidos, compreender é vibrar diz-nos Heidegger, é o ressoar de uma tonalidade (Stimmung) que nos envolve, é o ritmo que vai marcar a escuta e a doação da palavra, antes de sermos sujeitos estamos já lançados no mundo. Então, a própria escuta supõe a vibração e o ouvido que escuta. “E eu penso que a casa vibra na voz de crianças quando, afinal, o lugar onde ela vibra é a parte do meu afecto que se vai tornar pensamento”.11 A palavra fala, o falar nomeia, mas nomear não é meramente designar características e qualidades, não é o uso de um instrumento que atribui funções e diagnósticos. “Nomear é chamar. O chamamento deixa o que é chamado mais próximo”12 . O que se aproxima ou afasta, aproxima-se ou afastase no tempo, talvez o tempo não seja outra coisa senão esse movimento de presença e ausência, e de ausências presentes. O tempo do homem é por natureza diferente do tempo cronológico, do tempo continuo e sequencial, do tempo do momento qualquer, onde se movimenta o objecto de Newton de forma regular, entregue a si mesmo. Tempo que se reduz a uma passagem de um ponto a outro. No qual não existe realmente passagem, mas somente um ponto e o outro ponto, sem passagem possível, uma mera continuidade. “. . . Now the terror is beginning. . . . What is the answer? . . . I see only figures. The others are handing in their answers, one by one. Now it is my turn. But I have no answer. . . . I am left alone to find an answer. The figures mean nothing to me. Meaning has gone. . . . Look, the loop of the figure is beginning to fill with time; it holds the world in it. I begin to draw a figure and the world is looped


in it, and I myself am outside the loop; which I now join – so – and seal up, and make entire. The world is entire, and I am outside of it, crying, ‘Oh, save me, from being blown for ever outside the loop of time!’”13 Que tempo é este de que a personagem Rhoda, do romance “As ondas” de Virginia Woolf, teme o exílio? É por nos pensarmos a maior parte do tempo como “exilados do há” (para usar uma expressão de Gabriela) que podemos mergulhar por momentos na inteireza do mundo, e o que teme Rhoda senão o que Llansol chama a “impostura da Língua”? A língua das figuras destruídas, onde a potência se vê reduzida a uma passividade, onde a linguagem “tenta reunir-nos num redil a que não somos”.14 Dizíamos que no tempo dos exilados existe regularidade, mas nenhuma passagem, tudo se reduz a tagarelice medrosa. A palavra fala, e “palavra” na sua origem diz “parábola”. Em grego paraballein é formado pelo verbo Ballein significa “lançar- atirar” ( uma pedra por exemplo), mas também “colocar”. O prefixo para indica “junto a”, “aproximando-se de”, “perto”. A parábola fala pois do impossível, a parábola é a palavra do que salva, e salvar é libertar. A palavra fala, porque não é outra coisa senão passagem.

1- KAFKA, Franz. (2004). Parábolas e Fragmentos. Lisboa, Assírio & Alvim 2- PROUST, Lettre à Mme Strauss, 6-11-1908, (1936). Correspondance générale,Paris, Plon 3- HEIDEGGER, Martin. (2003). Acheminement vers la parole. Paris, Gallimard 4 - H EI DEG GER , Ma r tin. (2013). Dic tionnaire Mar tin Heidegger. Paris, Cerf

“pois maior do que nós era a língua que nos esperava; disse-lhe, a sorrir, que ela estava presa num ramo, e ele disse-me que eu tinha uma ling uagem feminina e descalça, mas que não era ainda a língua. Que hei-de fazer? — perguntei-lhe. E ele respondeu-me que era preciso dar tempo ao tempo, o fogo ao fogo, a cidade de Lisboa à cidade de Lisboa, o Tejo ao Tejo, e o mínimo movimento ao grande movimento da nova espécie.”15

5- LLANSOL, Maria Gabriela. (1996). Causa Amante. Lisboa, Relógio d’Água 6- Idem 7- Idem 8- LLANSOL, Maria Gabriela. (1996). Inquérito às Quatro Confidências – Diário III. Lisboa, Relógio d’Água 9- Idem 10- Idem 11- Idem 12- HEIDEGGER, Martin. (2003). Acheminement vers la parole. Paris, Gallimard 13- WOOLF, Virginia. (2000). The Waves.London, Wordsworth 14- LLANSOL, Maria Gabriela. (1996). Inquérito às Quatro Confidências – Diário III. Lisboa, Relógio d’Água 15- LLANSOL, Maria Gabriela. (1996). Causa Amante. Lisboa, Relógio d’Água

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MOVIMENTOS FELIPE PATHÉ DUARTE

A violência é a parteira de toda a sociedade velha grávida de uma nova. Karl Marx, O Capital, Vol. 1, Part VIII, Cap. XXXI (1867)

Este breve ensaio alude a dois teóricos da acção directa armada. Os seus escritos influenciaram movimentos subversivos. Foram decisivos na galvanização, adesão popular e na legitimação do uso da violência para tomada de poder. Deixaram assim um legado intelectual e político. Falamos de Sérgio Panunzio (1886-1944) e de Frantz Fanon (1925-1961). O primeiro, ideólogo do fascismo italiano e do sindicalismo revolucionário, está apegado a uma concepção mais normativa da violência como coerção. O seg undo, uma referência do período anticolonial francês, procura encontrar na violência uma forma de catarse face à subjugação colonial. a) Acção Directa do Sindicalismo Revolucionário: Tal como George Sorel,1 também Sérgio Panunzio teorizou sobre o sindicalismo revolucionário, tornando-se, na década de 1920, o pensador par excellence do fascismo italiano. Assume na política a existência de uma dinâmica de grupos que utilizam a violência como estratégia revolucionária. Assim, nas suas obras procura dar uma lógica racional para o uso dessa mesma violência.2 Dito de outra forma: Panunzio procurou uma componente simultaneamente moral e prag mática para violência política, tão necessária à acção subversiva e revolucionária dos fascistas italianos. Distingue assim uso da força e o emprego da violência. A força surge como um termo genérico

para referir aquilo que facilmente identificamos como poder, isto é, a possibilidade de alterar comportamentos colectivos ou individuais em prol de uma determinada causa ou objectivo. Tais alterações poderão ser fruto de acções normativas, materiais ou pela acção coerciva. Estas acções m a n i fes t a m-s e at r avés de i n s t r u mentos sancionadores legitimados social e politicamente como os media, escolas, códigos de conduta e sistema legal, forças armadas e de segurança, instituições prisionais... Tudo isto é suportado pela lei positiva, de onde emana a legitimação e institucionalização da força. 3 Para Panunzio, a violência também procura a alteração comportamental individual ou colectiva através da normatividade, da sanção material ou da coerção. Todavia, não tem a legitimidade políticosocial e não reside na lei positiva (ainda que possa vir a representar lei em potência). Assim, se o uso da força representa os interesses de um determinado sistema social e político, a violência é a afirmação de um sistema alternativo. A força, de acordo com o italiano, é empregue para assegurar a unanimidade de opinião no que diz respeito a um determinado tipo de valores (integridade nacional, continuidade do governo…). A violência refere-se a um conjunto de valores alternativos e uma potencial realidade que garante tudo aquilo que o presente sistema social e político não consegue. A força tem um cariz conservador, a violência revolucionário.


sociopolítica. Nestas referências, nascidas no/pelo movimento dos trabalhadores, a violência assume um papel positivo por ser um elemento decisivo da acção da classe em causa - seria a única forma do proletário sair da opressão da minoria governativa, uma perspectiva em tudo semelhante ao cânone seguinte, como veremos. b) Acção Directa do Anticolonialismo Violento: Frantz Fanon, voz incontornável do movimento anticolonial e do terceiro-mundismo, no seu prolífico trabalho Les Damnés de la Terre, ou “Os Condenados da Terra”, colocava a violência no seio da dignidade humana 4 . Ele fez uma divisão maniqueísta entre o colonizador e colonizado, sendo que, pela condição de explorado, o segundo perde dignidade ontológica. A transição para a dignidade humana envolverá sempre, da parte do colonizado, violência, porquanto criará sempre um actor, um sujeito consciente e detentor da sua própria existência. Na morte do colonizador suprime-se não só o opressor, mas liberta-se também o oprimido, que começa a ganhar uma dignidade existencial. É a vitória da “humanidade” do nativo. É o “homem-novo” que surge. A violência, aqui, acaba por assumir um papel ontológico. Tal facto é explorado e potenciado pelo filósofo francês Jean-Paul Sar tre, que assina o prefácio da obra. Para Frantz Fanon, a violência é um acto libertador e existencial – o não-existente colonizado torna-se humano através de um processo de libertação, que só acontece mediante o uso da violência. Esta não-existência é conferida pela subjugação do colonizador que anula a ling uagem, cultura e história, alienando o povo colonizado. Neste

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Tal como para os seguidores de Karl Marx, tanto o uso da violência, como o emprego da força, são aqui encarados como forma de antecipação de um futuro de mudança, liberdade, bem-estar político e social. Em ambas há, portanto, uma antecipação da história, que se entende como linear. Contudo, para Panunzio, nenhum meio imoral pode ser justificado por um fim moral, havendo por isso acções coercivas mais lícitas que outras. Assumindo que há guerras (tendencialmente ex ter na s – força coerciv a) e revoluções (tendencialmente subversivas e internas - violência coerciva), ele também aponta a possibilidade de crimes: sobretudo quando há um uso da coerção para fins pessoais, ameaçando a integridade moral da acção e a viabilidade do projecto políticosocial. Esta situação pode verificar-se quando a coerção, neste caso acção armada, se aplica a não-combatentes. Porém, para Panunzio, durante a revolução fascista da Itália da década de 1920 a acção armada (revolução, guerra interna) contra civis justificava-se por estes estarem, supostamente, armados e comprometidos por vontade própria com associações socialistas e comunistas - inimigos à mudança revolucionária fascista. Neste caso eram considerados beligerantes. Sobre eles era lícito empregar a violência sob forma de acção armada. Em Panunzio há uma tentativa de justificação lógica do uso da violência. Mas era uma lógica que assentava em princípios que os próprios fascistas desenvolveram. A violência, tal como em George Sorel ou nos Marxistas, é vista como base segura (e selectiva) de uma sociedade que não se quer iludida pela perversão da não-violência conseguida pela negociação - uma condição para a estagnação

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MOVIMENTOS seguimento, a violência, para além de libertadora, purificadora e redentora, contrai outro papel, o de unificadora do povo, porque combate a violência institucional, representada pelo governo colonial, que é causadora de todos os males. Urge então educar e galvanizar as massas (na sua maioria mão-de-obra rural, governada por uma minoria colonial) neste sentido. Para Fanon, os verdadeiros revolucionários seriam não só esta mão-de-obra rural, mas também o chamado lumpen-proletariat, ou seja o pária social urbano. Nenhuma das duas formas sociais dialoga com o colono: apenas querem tomar o seu lugar. Assim sendo, mais que alfabetizar, o importante será o consciencializar da situação, isto é, interiorizar que tanto a libertação como a manutenção do status quo dependeriam somente da sua força e acção. Tudo isto para evitar uma maior desorganização e um subsequente vácuo “político” que leve o colonizado a sucumbir ao poder e à força do opressor. Frantz Fanon desenvolve o seu argumento em cinco partes. Na primeira, refere-se ao uso da violência como forma de libertação. Tal como sublinhámos há pouco, a violência revela-se como sendo essencial para uma verdadeira revolução contra o colonialismo e, posteriormente, contra as tentações imper ialistas. Desde sempre o colonizado viveu num ambiente de violência c r iado, d i r e c t a ou i nd i r e c t a mente, p elo colonizador. A v iolência do pr imeiro não é um contrabalanço à do segundo, o instituído, mas sim um acto que, para além de libertador e unificador, reabilita a força do colonizado. 5

Na segunda parte do seu argumento, o autor continua a referir-se ao papel da violência, aludindo à melhor forma de a aplicar, apontando-a como uma forma de não manipulação dos revoltados pelos colonizadores ou pelos novos governos. Na terceira refere-se a tendências relativas a situações de descolonização e à forma como a burguesia nacional, ainda dependente dos países desenvolvidos, pode enriquecer, pondo de parte uma estratégia de desenvolvimento a longo prazo em favor de um lucro imediato. Na quarta trata de questões de dinamização da cultura nativa, em detrimento de uma apologia à cultura dita europeia, como forma de consciência nacional. E por fim, na quinta parte, Fanon descreve os transtornos mentais de alguns dos seus pacientes que passaram pela guerra da Argélia (1954-1962), mostrando, simultaneamente, a necessidade e as graves consequências do uso da violência. Com este autor também podemos dizer que há uma consideração moral (e de certa forma ética) e uma consideração “prática” para o uso da violência. Na justificação moral podemos verificar que, com a violência, se procura uma libertação da consciência do nativo (visando a restauração da sua dimensão humana e logo existencial), bem como uma resposta natural e legítima à violência infligida pelo colonizador. Este último, da perspectiva de Fanon, governa sempre por uma violência que se viu instituída, agindo opressivamente, de uma forma directa (escolas com segregação racial, quartéis das forças armadas ou postos de polícia, controladores de uma diferença “racial”, típica de sociedades coloniais, e não de uma


“subtil, ” diferença económica, característica de sociedades capitalistas), ou de uma forma indirecta (o colonizador como que representa um conjunto de valores considerados essenciais e positivos – o valor do “homem branco” - o colonizado é a negação desses mesmos valores). A justificação “prática” prende-se com a necessidade de fazer ruir toda a estrutura (social, política e económica) na qual assenta o sistema colonial. Para além disso, há uma dimensão representativa da/na violência que leva a que se construa e/ou solidifique a solidariedade na luta pela liberdade, pois tal como diz Sartre no prefácio de Les Damnés de la Terre, a arma do combatente é a sua humanidade.6

c) Notas Finais: É fácil concluir que para estes dois autores (Panunzio e Fanon) a violência é uma pura praxis –é sempre um meio para obter um fim. Contudo, há que estabelecer as devidas diferenças: se para Panunzio a violência tem uma dimensão mais estrutural, para Fanon ela é mais fundacional. Secundados por pensadores como Engels, Marx e Sorel, estes autores encaram a violência como o eixo de toda a realidade política e, como tal, razão e consequência de todos os processos de mudança e de assunção existencial. É um instrumento de transformação. Além disso, toma o papel de motor fundamental das sociedades e é tida como sendo um processo natural que faz parte do humano. Assente neste determinismo antropológico, a violência aparecenos aqui como forma de conquista de poder, que se legitima na dimensão moral e política que tem por trás. Desta forma procura-se a justificação de formas de resistência ou até de eliminação de classes sociais e políticas consideradas “indesejáveis”. Estes autores, ao teorizarem sobre a violência e o seu carácter instrumental, transparecem e procuram dar forma a uma dimensão que está bem perceptível no pensamento marxista (e, anteriormente, em Hegel) - trata-se do Homem que se revolta contra a sua própria condição de precariedade sociopolítica, impondo-se, dialecticamente, como existente. Na base da instrumentalização da violência está latente o carácter essencialista da rebelião contra a própria realidade da condição humana.

1. George Sorel (1847-1922), francês, foi uma figura maior do sindicalismo revolucionário, na sua obra há associação entre mito e violência. Este facto verifica-se quando o actor de violência política não concilia os meios de acção com os fins e entra em contradição com a realidade de onde parte. A violência torna-se então expressão de um mito – uma construção que permite a conciliação do contraditório no imaginário. O mito surge aqui não como concepção utópica (teleológica), mas como um excesso de realidade que num momento suspende e noutro torna possível a acção histórica. Para Sorel, o exemplo máximo dessa associação seria o mito de uma greve geral. (Cf. Sorel, George; Ref lections on Violence; trad. ing.; Londres: Collier-Macmillan, 1961). 2. Cf. Panunzio, Sergio; Diritto, Forza e Violenza; Bologna: Capelli, 1921. Sobre Panunzio consultar Gregor, A. James; Sergio

3. Gregor, James A.; “Fascism’s Philosophy of Violence and the Concept of Terror”; in Rapoport David C. e Alexander Yonah (coord.); The Morality of Terrorism – Religious and Secular Justifications; Nova Iorque: Pergamon Press, 1982; pág. 154. 4. Cf. Fanon, Frantz; Les Damnés de la Terre; Paris: Editions la Découvert, 1987. 5.”A violência do colonizado, tal como dissemos, unifica as pessoas (...) A nível individual, a violência desintoxica. Ela livra o colonizado do seu complexo de inferioridade, das suas atitudes contemplativas ou desesperadas.” - Fanon, 1987; pág. 66. 6.Cf. Sartre, in Fanon, 1987; pág. 16.

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Panunzio – Il Sindicalismo ed il Fondamento Razionale del Fascismo; Roma: Volpe, 1978.

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MOVIMENTOS PEDRO XAVIER MENDONÇA

O termo “utopia” é conhecido através de Thomas More, que no século XVI o designa para dar título a uma obra onde descreve um não-lugar imaginário, ideal ou satírico, dependendo da interpretação, assim concebendo uma outra sociedade. Neste tipo de postura abre-se ao indivíduo que imagina a possibilidade de idealizar uma organização social à semelhança das suas vontades ou de um princípio de justiça que, a partir de uma mente assim liberta, mais facilmente se expande na estrutura da sociedade, ainda que na forma de projeto, do que se estivéssemos a falar de uma aplicação material direta. Claro que esta, ou a sua tentativa, pode surgir depois. Bem sabemos que a humanidade não deixou de beber deste mecanismo de pensamento, sobretudo na sua dimensão política. Apesar de já Platão e outros imaginarem uma outra sociedade, é o século XIX que vê medrar uma multiplicidade de construções deste teor, não sem herdar as projeções historicamente anteriores. O século XX, por sua vez, é uma época de concretizações para vários movimentos totalizadores de utopias. Mostra como muitas das realizações utópicas instrumentalizam o presente em função de um futuro que há-de vir não se sabe quando e, mesmo quando se afirma que finalmente chegou, parece beneficiar apenas uma elite. E a verdade é que não deixámos de ser utópicos. As utopias do século XX, na forma ideológica, são realidades no século XXI, ainda que algumas tenham ficado para trás ou se realizem por fragmentos. Podemos até questionar se é possível não ser utópico, sobretudo no

interior da tradição judaico-cristã, em particular devido à componente cronológica, dirigida a um futuro, e a um certo princípio de esperança que a acompanham (sem esquecer que os movimentos socialistas utópicos têm eles mesmos algo de religioso, como afirmam vários autores). Esta questão remete-nos para o próprio ter mo “utopia”. Nem sempre uma palav ra enquanto sig nif icante nos diz tudo aquilo que a sua pragmática implica. Esta desligase progressivamente do seu étimo em muitos aspetos, ganhando vida própria. Mas a palavra “utopia”, na sua designação de não-lugar, com origem grega, diz-nos algo heurístico sobre o que é a projeção que identifica. Primeiro, remete para um lugar diferente daquele em que se está no presente, que não está aí. Segundo, imagina esse lugar em várias componentes, dependendo daquilo que se quer destacar (esta imaginação pode não descrever uma sociedade de forma naturalista, em todos os seus pormenores, mas apenas os princípios e procedimentos que a devem reger). Por fim, e isto nem sempre acontece, é possível mobilizar o presente, o lugar, no sentido de se construir um futuro, o novo lugar. Nesta terceira etapa pode ocorrer o que podemos identificar como “deslocação”. E isto é dos registos filosófico, político, cultural ou social, mas também material e físico. A transformação do presente para a construção de um futuro implica um movimento modificador que não é só do âmbito temporal comum, mas de


uma mobilização permanente, noção que em alguns elementos se aproxima da ideia de “mobilização total” que, segundo o pensador alemão Ernst Jünger, marca uma sociedade que liberta as forças da guerra e da indústria a partir do início do século XX. Não indo tão longe na “totalização” da esfera da mobilização enquanto energia militar, podemos contudo encontrar na força utópica que marca o século XX uma disposição semelhante na medida em que se gera um processo de renovação dinamizador de vastas esferas da sociedade. A utopia não é um exclusivo do discurso político formal, considerado mais ou menos radical pelos media. É uma condição que atravessa a estrutura existencial do nosso presente. Hoje, uma certa mobilização não deixou de existir, bem como as configurações utópicas que lhe dão força. Não só o quadro mental e cultural é marcado por este movimento, como também a própria esfera económica. Talvez nem sempre o segundo momento, em que se imagina o não-lugar, seja muito detalhado. Mas a verdade é que a recusa do presente, o primeiro momento, existe, e em convívio com o terceiro, o da diligência para a construção de um futuro. A ironia é o facto de o não-lugar surgir como inominável na sua completude. Só é claro no comezinho, isto é, no consumo. A política, em geral, não tem tido a capacidade de elaborar lugares. Só assim se percebe, por exemplo, o discurso da inovação. O economista do princípio do século XX Joseph Schumpeter defendia que a inovação era o cerne do desenvolvimento económico de tipo capitalista. Seria o motor endógeno da criação

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de riqueza. Podemos considerar que a inovação é inerentemente utópica, na medida em que, a um nível micro na ação individual e macro enquanto projeto político-económico, traz consigo os três momentos referidos. Recusa o estado material e organizacional do presente, imagina transformações e constrói um sistema de deslocação para o que se projeta. Se a visão de Schumpeter estiver correta e a inovação for o cerne do capitalismo, enquanto desestabilizador para o crescimento, podemos dizer que o capitalismo tem algo de inerentemente utópico, contrariamente ao que muitas vezes se diz, contrapondo-o a utopias mais consensuais, como o comunismo. Neste sentido, estamos pejados de utopia, mesmo que não socialista ou fascista, certamente utopia. Um dos problemas é que o estar-aí não é neutro nem indiferente. Quando se modifica o presente, em si mesmo fugidio porque infixável, não se deixam para trás as formulações “criticadas”. Elas permanecem na matéria social sob configurações que grande parte das vezes são imprevisíveis e demasiado complexas para que se possam considerar instrumentais ao nível de um objeto manual, aquele que tende a desaparecer na sua função. Acresce que, ao mesmo tempo que há a projeção de um não-lugar desejado, há a recusa do lugar em que estamos. Esta rejeição é uma característica muito clara das sociedades atuais. Gera-se então uma espécie de nojo em relação ao que se presentifica e que fica como tal. Mesmo o discurso conservador não perde este caráter quando se refere a tudo o que não pretende conservar, e que é muito. A inovação em particular propõe-se como futuro já, mas num campo de contaminações

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MOVIMENTOS também apela a uma deslocação, a um movimento. Funciona como um balanço que vem mobilizar no sentido do não-fazer ou do fazer-para-o-não-fazer ou então para um fazer-de-outro-modo. O mito da queda parece acompanhar estas disposições. A falta original do humano, a sua permanente condição de incompletude enquanto autoconsciência cultural, mas também limitação física, lança-o no mundo como ser que busca, que recusa o seu presente. A imaginação de um futuro e a dinâmica sistémica de transformação geral é já uma declinação histórico-política desse mito. Encontrar o sossego não é uma possibilidade. Algo nos diz que tudo poderia ser diferente. O crepúsculo do ocidente ainda vem longe.

Ilustração Pad Ell Rey

múltiplas com o que resiste à transformação ou mesmo com o que já se transformou. Além disso, é um projeto demasiado abstrato para ter efeitos coerentes. É o expoente de um certo liberalismo utópico, visto resultar em termos práticos em múltiplos projetos de transformação nem sempre articuláveis sistemicamente, mas espoletados em termos concorrenciais. Processos estes que têm um efeito temporal na aceleração social, e espacial na deslocação física, no campo da produção, do consumo e, claro, da própria existência. A noção de “destruição criadora” de Schumpeter remete para um estado de diluição e criação contínuas. Uma força que é inerentemente um sair do lugar que se apresenta. Enquanto estado constante, faz do presente uma ausência, como os lugares de passagem, tais como estações de comboio ou paragens de autocarro. Existem para serem recusados. Ninguém se aninha neles ou faz deles a sua casa. Claro que as nossas narrativas nem sempre são otimistas. Frequentemente, a par da utopia, surge a distopia, muito mais do que sátira, um medo, um aviso. O discurso ecológico vive dessa ansiedade. Também se coloca em três momentos, mas do avesso. Recusa-se o presente porque ele representa já algo indesejável ou indicia-o. Imagina-se a realidade inconveniente no futuro. E mobiliza-se, ou não, a atualidade para que se evite a concretização desse imaginário. Ainda que como inversão, a distopia não deixa, contudo, de ter semelhanças importantes com a utopia. A par de conviver com ela numa espécie de dialética,


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MOVIMENTOS CARLOS GONÇALVES

Neste texto propomos que se olhe para o fulgor do movimento de urbanização, vendo nele o campo onde se cerzem as relações económicas, sociais, culturais que, no passado, fizeram borbulhar futuro. Deter-nos-emos um pouco mais na observação da engrenagem que bloqueia a “bicicleta do progresso”, que (contra todas as leis da física) nem anda, nem cai: a crise. O “contramovimento”. Perguntamos: andará a crise contra o tempo ou é um mero interregno no movimento? Se vier comigo, prepare-se para curvas e contracurvas, porque é por aqui que iremos. [Movimento] Pelas proporções que assume e pela expectativa que gera nas populações que o alimentam, o processo de urbanização, assume importância crescente nos espaços de investigação que se dedicam a entender as suas múltiplas dimensões. Na paleta de facetas por onde o fenómeno se abre, releva a comunicação cruzada entre as escalas em que ocorre (global, regional, local) e dicotomia entre gula (que gera gordura localizada) e dieta, que faz emagrecer outras partes do corpo (o corpo global e os organismos regionais e locais). Na esfera global é notória a concentração crescente das populações, das suas actividades e da ancoragem das suas máquinas de progresso, nos sistemas urbanos1. Para medir a força deste processo basta atentar aos últimos 500 anos e tomar nota de alguns indicadores que caracterizam, primeiramente, a demografia, e depois, a urbanização que reproduz os seus movimentos na escala global.

Há 500 anos o planeta era habitado por cerca de 438 milhões de almas. Este número foi escalando degraus de 0,16% por ano entre 1500 e 1700, totalizando, na última data apontada, 603 milhões de pessoas. No século passado (mais exactamente no início da década de 70), assistiu-se à passagem da barreira dos 3 biliões. Transpostas 3 décadas, ou seja, no final do século, esse número, tinha duplicado. As estimativas das Nações Unidas apontam para que se atinja uma população de 9.3 biliões em 2050 e 10.1 biliões em 2100 (Storper et al. 2012). Importa dizer que, em 1950, apenas 28,8% da população mundial vivia em cidades. Entre 1950 e 2010, a atracção da população pelas cidades manifestou-se no crescimento dos que nelas residiam à média de 0,36% ao ano, redundando (no final da primeira década do século X XI) na superação da população r ural. Ou seja, ultrapassou-se o limiar que marca a prevalência da população urbana no planeta (United Nations, 20 09). O processo de urbanização fará com que, em 2050, os citadinos representem 69% da população mundial. Que lastro se desenhou com estes caudalosos movimentos (de crescimento e de concentração)… [ Mov i mento, lento] Os mov i mentos de crescimento e de concentração da população geram (e são gerados), por desequilíbrios. Para compreender a sua extensão, é preciso notar que a desigualdade global tem vindo a crescer.


Seguindo o autor, damos conta de exemplos como a crise económica verificada no Japão no final dos anos 80, originada pela especulação em torno da propriedade imobiliária, ou a crise de 1987 nos EUA, onde centenas de bancos faliram fruto da especulação no mercado de habitação. Nos anos 70 ocorreu uma crise global, mais uma vez com fortes ligações ao mercado imobiliário. Os exemplos em que o processo de urbanização redunda em motor que conduz à crise podem representar até metade deste tipo de ocorrência referente ao período em causa (Harvey, 2013). O processo de crise em curso, caldeado nos EUA, decorre mais uma vez da urbanização e das engenharias de mercado que sobre ela se geraram (nome de baptismo: subprime). O momento de erupção fixa-se no ano de 2007, prolongando os seus efeitos há já 6 anos, sem de vislumbrar fim à vista. [Crise, ou contratempo?] “Hoje que tanto se fala em crise, quem não vê que, por toda a Europa, uma crise financeira está minando as nacionalidades? É disso que há-de vir a dissolução. Quando os meios faltarem e um dia se perderem as fortunas nacionais, o regime estabelecido cairá para deixar o campo livre ao novo mundo económico” Eça de Queiroz, in “O Distrito de Évora” (1867). Explicar a presença recor rente de crises nas sociedades capitalistas desenvolvidas e urbanizadas contrapondo, por uma via, os efeitos

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Primeiro, mais rapidamente e depois de modo mais lento, mas quase ininterruptamente, desde a Revolução Industrial. Como? Da seguinte forma: a distribuição global de rendimentos garante aos 10% mais ricos 56% do rendimento, dispensando para os 10% mais pobres 0,7% do bolo. O rácio entre o rendimento médio dos 10% do topo e o rendimento dos 10% da base é de 80 para 12 . Dito de outro modo, a parcela correspondente a 5% dos mais ricos do planeta obtém 37% dos rendimentos. No extremo oposto, os 5% mais pobres têm à sua disposição 0,2% dos rendimentos gerados na economia global. Quer isto dizer que o rácio entre o topo e a base da pirâmide assume uma proporção de cerca de 200 para 1 (Milanovic, 2012). Nu m doc u mento, publicado pelo Fu ndo Monetário Internacional 3 , desenvolvido pelo seu departamento de investigação, intitulado “Inequality and Unsustainable Growth : Two Sides of the Same Coin?” (Berg & Ostry, 2011), os seus autores colocam em questão a durabilidade dos movimentos de crescimento, obser vando as ligações que mantêm com a iniquidade na distribuição do rendimento. Defende-se que “income distribution may also - and independently - belong in this “pantheon” of critical growth determinants”(Berg & Ostry, 2011). De modo resumido, é este o contexto em que a crise é tão só um encontro recorrente. Ora vejamos: Clair Mitchell identifica 110 crises entre 1910 e 1920 e Paul Samuelson sinaliza sete recessões nos 30 anos que medeiam 1945 e 1975. Exactamente no plano de corte que separa os dois períodos teve lugar a Grande Depressão, com uma duração de quase 10 anos. Nos últimos 30 anos terão ocorrido, no mundo, 378 rupturas desta natureza e é notório um substancial aumento da frequência deste tipo de crise na medida em que nos 25 anos anteriores a 1970, o número destas ocorrências foi sete vezes inferior ao sucedido nos 30 anos posteriores. Apesar de catalogadas como crises financeiras e s t a s i nt e r r up ç õ e s n a s t r aje c t ó r i a s d e desenvolvimento têm, frequentemente, raízes que as fincam no processo de urbanização (Harvey, 2013).

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MOVIMENTOS do sub-consumo e, por outra, a queda dos lucros decorrentes da sobre-produção desenha-se, claro está, em duas frentes distintas . Uma linha advoga que as crises se previnem aumentando a procura. Isto é: se os consumidores gastam mais, mais será vendido logo, mais será produzido e mais será transferido para as famílias, quer por via dos salários, quer por via redistributiva, viabilizada pelos impostos gerados nos vários pontos da cadeia. Por esta via, veremos a redução do consumo como causa da crise. A segunda linha argumentativa contrapõe-se à primeira, porquanto é o aumento do poder de compra (alimentado na descalibração da relação trabalho-capital), que provoca falhas no sistema e, por conseguinte, é daqui que emerge a crise. É o sobre-aquecimento da economia, provocado por uma vaga de consumismo custeado por salários elevados, por crédito barato e acessivel (ou acessivel porque barato) ou pela conjugação de ambos, que está no cerne da explicação para a crise 4 . Na primeira, vislumbra-se a lógica de que a procura pode ser delineada (não é, por isso, uma causalidade natural) mediante investimentos devidamente planeados, sendo este o determinante da própria produção e do emprego que, por ela, e a partir dela, é gerado. Na segunda, a crise é vista sob um filtro de “lei da natureza”, decalcando os contornos da tradição laissez-faire que muito bebe na ideia de que a natureza humana entronca nas leis que gerem a natureza física, biológica, “darwiniana”. O mecanismo de ajustamento automático entre oferta e procura nas relações económicas é considerado o pilar desta segunda aproximação. Por trás desta noção, está a proposta de Adam Smith que nos remete para a presença (alguns diriam crença, fé) de uma “mão invisível”, com uma força equiparada à que faz girar a terra, ou à que determina a sucessão das es t ações do a no. G a n â nc ia , comp et ição, i n d i v id u a l i s m o, s ão co n d içõ e s n at u r a i s próprias do homem e, por tal, incontornáveis e eternas, nada as poderá alterar. São forças da natureza, diriam. Na base desta formulação, a crise não é mais do que uma inevitabilidade, um colateral da evolução das sociedades.

O sistema capitalista, deixado entregue a si mesmo, auto-reproduz-se eficiente e continuamente, quiçá, eternamente (Shaikh, 1978). Assim seria organizado o curso natural da história. Nesta visão não cabe a possibilidade de se estabelecer qualquer tipo de regulação na medida em que o sistema gera, constante e automaticamente, capacidade de ajustamento (palavra mágica nos tempos que correm). A infalibilidade desta prerrogativa desmoronase, quando se constata que as crises não são meros contratempos, são frequentes e regulares. Isto é, o sistema capitalista não anula a ocorrência de episódios de crise, antes pelo contrário, parece certo que, com determinada regularidade (como se viu acima), as provoca. Inviabilizada a possibilidade de se advogar no sentido de que as crises não existem, resta a opção de considerar estes fenómenos como externos ao funcionamento “perfeito” do sistema. Este é afectado por crises, é um facto, todavia, dizem-nos, estas em nada têm que ver com o seu funcionamento. Tais anormalidades são justificadas com disrupções próprias da natureza física (por exemplo, a seca que inviabiliza um ano de colheita, ou da chuva que, em demasia, afecta o investimento no sector da construção civil!) 5, ou da natureza humana. Neste último caso os exemplos tanto podem dar conta de ciclos psicológicos oscilantes entre optimismo e pessimismo, dos “nervosismos” dos “mercados”, das guerras (bélicas e não bélicas), das revoluções, convulsões ou inquietações ou ainda, por exemplo, das idiotices introduzidas por decisões políticas.6 Esta lógica domina as leituras que são propostas à crise actual: é um fenómeno natural que se autocorrigirá, para tal apenas se deve proceder no sentido de agilizar os mecanismos que emperram o mercado (liberalizar as relações de trabalho, desregular a entrada do mercado livre em sectores de produção de bens de interesse geral, logo controlados); é um problema de incapacidade de liderança e de estabilidade política (daqui se decreta a abertura da época da caça ao consenso), resolvida esta debilidade, será possível retomar a


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trajectória anterior (resgatar a “normalidade”, na soberania, nos padrões de consumo, nos níveis de emprego, no rendimento, no acesso ao social, do Estado). Os assim designados Chicago economists acompanham o coro de líderes políticos entoando em conjunto um discurso onde se reclamam actuações mais efectivas e inteligentes por parte dos Governos “to keep our model of a capitalist economy from running off the rails” (Silvey, 2010, p. 832). Aqui reside o paradoxo: a auto-organização no mercado livre, quando abalada pela crise que ela própria gera, tem de ser reposta (pelo Estado!). Como? Suprimindo o social do Estado. Perguntese então: o que é um Estado que não é social? O que governará um Governo de um Estado que não é social? Quem se admira que boa parte do que um Estado (social) despende seja com prestações sociais? É neste contexto que se insere o facto de, em Julho de 2011 (Guajardo, Leigh, & Pescatori, 2011) reeditem este raciocínio de Friedman7, publicando um relatório de trabalho no âmbito do Departamento de Investigação do Fundo Monetário Internacional (cá está ele de novo), onde se defende o que viria a ser apelidado de “austeridade expansionista” (mais um palavrão do economês). Ou seja, é uma espécie de “contrafogo”. Através de uma contracção induzida (!) se atalhava a crise e se provocaria, mais à frente, uma expansão sólida. 8 Entre os dois estremos existem mais pontos de contacto do que à primeira vista se podem identificar. Quer num quer noutro, as expectativas do animal spirits of capitalists (Shaikh, 1978, p. 3) assumem uma posição central para o sucesso, ou para o falhanço. Em ambas as leituras a tendência para um hipotético equilíbrio é nuclear. Para os defensores do laissez-faire o mercado encarrega-se de equilibrar as relações entre quem investe, quem produz e quem consome. Para os que perfilham a matriz Keynesiana, o equilíbrio resulta da aproximação entre consumidores e produtores (destronando o conflito entre classes).

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Pelo que se discutiu, tomamos como ponto assente que as crises são recorrentes e que a magnitude dos seus efeitos parece aumentar exponencialmente à medida que o processo de crescimento e concentração demográfica se vai intensificando. O ponto crítico surge se se levar em conta o vaticínio de Harvey (2013), para quem nada mudará enquanto não se abandonar a meta geral dos 3% de acumulação (crescimento). Para garantir este rendimento ao investimento, terão de se fazer concessões insuportáveis quer no plano ambiental quer no plano social. Dessa pressão só pode resultar uma sucessão ininterrupta de crises financeiras que serão económicas, sociais, urbanas. “it´s come to the point when it´s no longer a matter of accepting what Margaret Thatcher said, that “there is no alternative”, and we say that there has to be an alternative”(Harvey, 2013).

1. Os movimentos de regresso á terra (ou á “terrinha”), na escala da Terra, não chegam a ser, grão de terra.   2. Num país desenvolvido “normal” a média raramente ultrapassa os 10 para 1.   3. O tal Fundo Monetário que corresponde 1/3 da sobejamente conhecida, troika e que nos vai aparecer, por aqui, de novo, mais adiante.   4. Este processo foi catalogado como estagflação. O termo foi pela primeira vez usado para emoldurar a queda na produção de riqueza conjugada com o aumento do desemprego e dos preços, que marcou o periodo de crise entre 1973 e 1975. A estagflacção é um processo de eclosão de crises contrária a abordagem Keinesiana, que assenta a explicação na retração do consumo (Clarke, 1993).   5 .C o m o

sabemos

não

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anedota,

é

e x pl i c a ç ã o

académico-parlamentar-governamental.   6. (as deste tipo, podem-se colher diariamente, basta aceder à fértil árvore mediática).   7. Friedman concliu (em 1964, reafirmando a validade do seu modelo em 1993 (Friedman, 1993), que uma contracção de grande magnitude no Produto Interno Bruto seria seguida por uma expan-

BIBLIOGRAFIA:

são da actividade económica, igualmente de elevada amplitude e

Berg, A. G., & Ostry, J. D. (2011). Inequality and Unsustainable

que uma contracção de impacto médio resultaria numa expansão

Growth : Two Sides of the Same Coin ? Clarke, S. (1993). Marx ’ s Theory of Crisis. (P. Macmillan, Ed.) (p. 304). Palgrave Macmillan. Friedman, M. (1993). The ’ plucking model ‘ of business fluctuations revisited. Economic Inquiry, 31(2), 171 –177. Guajardo, J., Leigh, D., & Pescatori, A. (2011). Expansionary Austerity : New International Evidence. Harvey, D. (2013). Opening speech at the urban reform tent. Now fin out wy you lost your job (pp. 1–4). Belem. Shaikh, A. (1978). An Introduction to the History of Crisis Theories. U.S. Capitalism in Crisis (pp. 219–241). New York: URPE Monthly Review Press. Silvey, R. (2010). Progress in Human Geography Development geography : under crisis. Progress in Human Geography, 34(6), 828–834. doi:10.1177/0309132510363450 Storper, M., van Marrewijk, C., & van Oort, F. G. (2012). Introduction: Processes of Change in Urban Systems. Journal of Regional Science, 52(1), 1–9. doi:10.1111/j.1467-9787.2011.00750.x Unated Nations. (2009). World Urbanization Prospects The 2009 Revision (pp. 1–56). New York. Milanovic, B. (2012). Ter ou não ter, uma breve história da desigualdade. Lisboa, Bertrand Editora Storper, M., Marrewijk, C., & Oort, F.(2012). “Introduction: processes of change in urban systems”. Journal of Regional Science, 52(1): 1–9.

de amplitude média. Ou seja, o elástico responde na proporção da força que sobre ele se exerce.   8. A formulação é a seguinte: “for example, a small increase in taxes today may reduce the need for a larger, more disruptive, fiscal adjustment later. It may also signal that there will be substantial tax cuts in the future. By raising households’ expected future disposable income and by increasing the confidence of investors, fiscal consolidation can thus stimulate private consumption and investment even in the short term, a phenomenon known as “expansionary fiscal contraction” or “expansionary austerity.”(Guajardo et al., 2011, p. p.4)


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Ilustração Pad Ell Rey

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ARTE E CRÍTICA


Luís Guedes


ARTE E CRÍTICA NUNO FRAGATA

1923: Numa curta-metragem de cinema de animação, Félix - o gato - procura emprego e fortuna num estúdio em Hollywood. Imita Charlie Chaplin. Põe os pés de lado. Destaca a própria cauda, e segura-a como se fosse a bengala de Charlot: imitalhe os caraterísticos trejeitos. - Stealing my stuff. Eh?, afirma um desenho caricaturado de Chaplin. - That ruins my chance in the movies!, julga Félix, após apressadamente deixar o estúdio de Hollywood.   Félix é personagem de uma forma de arte que na década de 1920 procura a coesão e definição próprias, o cinema de animação, cuja origem é anterior à do cinema de imagem real. Em 1892, três anos antes da primeira projeção pública de cinema de imagem real dos irmãos Lumière, Émile Reynaud apresenta o seu teatro ótico, uma forma de projeção de imagens que cria a ilusão de movimento, e que tem como antecessores o teatro de sombras chinesas, a lanterna mágica e os brinquedos óticos1. Em animação criam-se sequências com ilusão de movimento a partir da manipulação de imagens paradas, enquanto em cinema de imagem real captase a ação real, o movimento real, seja de atores, de objetos ou da própria câmara. Em animação o artifício de animar imagens estáticas é dado pela produção e registo em sequência de desenhos ou de deslocações e alterações de formas num espaço. Cada fotograma de um filme é produzido individualmente. Os fotogramas são ligados entre si, articulados, e a sucessão de imagens permite a ilusão de movimento, criada pelas diferenças existentes entre cada imagem numa sequência, uma relação de espaço e de tempo reveladora de noções de rapidez ou lentidão, de movimento de aceleração, movimento de desaceleração ou constante2. Percursor na procura da representação

de movimento a partir de imagens estáticas, o teatro de sombras chinesas (de que existem registos que remontam ao ano 100 a.c.) utiliza música, canto e a projeção das sombras das figuras articuladas, criadas em papel e couro. As figuras são manipuladas atrás de um ecrã, uma tela iluminada, na qual as sombras são projetadas. A camera obscura, forma percursora da imagem projetada numa superfície e dispositivo ótico percursor do cinema (e da fotografia), consiste numa caixa ou um quarto com um pequeno orifício numa das paredes que permita à luz exterior ser projetada numa superfície do interior, surgindo na superfície do interior a imagem do exterior, invertida. Já conhecido na antiga China, o dispositivo foi aperfeiçoado por Giambattista della Porta através do uso de lentes convexas, tendo ele comparado a forma da lente da camera obscura à forma do olho humano, dispositivo preparado para a perceção de cor e luz. O olho humano é composto por uma lente e uma superfície fotossensível. No olho, a imagem começa por atravessar a córnea, uma película transparente que protege o olho, chegando de seguida à íris, que regula a quantidade de luz através de uma abertura chamada pupila. Depois de chegar à pupila, a imagem alcança o cristalino, que funciona como uma lente, e é focada sobre a retina. A imagem captada no olho é uma imagem invertida, que de seguida é convertida para a posição correta pelo cérebro. As células da retina transformam as ondas luminosas em impulsos eletroquímicos, que o cérebro descodifica. Mesmo após o cérebro ter recebido os impulsos, a retina continua a enviar informação durante aproximadamente 1/10 de segundo após o último estímulo luminoso. O cérebro é o dispositivo que processa a informação recebida, articulando-a. Imagens que sejam trocadas a uma velocidade maior provocam a noção de movimento


Winsor McCay e Émile Cohl em desenho animado, os pintores Viking Eggelling, Hans Richter, Walter Ruttmann e Oskar Fishinger tornam-se pioneiros em cinema de animação não-objetivo e experimental, fazendo a ligação entre o cinema e a pintura.   A representação do movimento foi uma procura constante ao longo da história da arte, em particular da pintura. Com o surgir da fotografia, a representação em arte deixa de estar imperativamente ligada à noção de representação da realidade, focandose em questões próprias da representação. As vanguardas do início do séc. XX produziram os filmes dadaístas de Man Ray, Fernand Léger e Clair-Picabia, Vita futurista de Arnaldo Ginna, Un chien andalou e L`age d`or de Luís Buñuel e Salvador Dalí. Walter Ruttmann, em 1921, concretiza aquele que é considerado o primeiro filme abstrato, Opus I, pretendendo que a sua pintura seja colocada em movimento. Em 1912, Giacommo Balla, pintor Futurista, procura a representação do movimento de um cão bassethound. Os Futuristas procuram representar a ação mais do que a representação da figura. A criação de novas abordagens, como o surrealismo e o futurismo, levará ao surgir da arte cinética. Édouard Manet, Edgar Degas e Claude Monet, no séc. XIX, procuram uma arte com maior vida, que pode até partir da referência fotográfica, mas que não procura uma representação em instantâneo da realidade. O movimento impressionista procurou representar, a partir da impressão na retina deixada pela imagem real, os efeitos de luz e cor. Em pintura, a procura da representação do dinâmico surgiu com as pinturas de Paul Cézanne, mais tarde permeando o cubismo, o futurismo e o construtivismo e influenciando a obra de artistas como Wassily Kandinsky. Entre filmes artísticos e publicitários, o cinema de animação

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contínuo (a ilusão de movimento, base do cinema, da animação).   Conhecido desde o Antigo Egito, o conceito de persistência retiniana foi definido por Peter Mark Roget, em 1824, como sendo a capacidade que a retina possui para reter a imagem de um objeto após o seu desaparecimento do campo de visão. Acreditou-se que este fenómeno fisiológico fosse o responsável pela apreensão da síntese do movimento, tendo-se mais tarde chegado à conclusão de que não será a tendência para misturar as imagens por sobreposição que ajuda a criar a ilusão de movimento, mas sim a existência de um intervalo negro entre a projeção de cada fotograma. A não perceção do intervalo negro entre imagens cria a ilusão do movimento. O primeiro registo de imagens animadas, fotograma a fotograma, é creditado a Georges Mèliés, assim como as primeiras experimentações com imagem acelerada. Mèliés, após Reynaud, foi o primeiro cineasta a projetar desenhos num ecrã. Dois elementos essenciais do cinema de animação: a fotografia animada imagem a imagem e os desenhos fotografados. Em 1911, a partir da personagem desenvolvida nas aventuras de Banda Desenhada Little Nemo in Slumberland, inicialmente publicadas no jornal New York Herald, Winsor McCay realiza o seu primeiro filme de animação, Little Nemo. No início dos anos 20, época em que os estúdios de cinema de animação começam a capitalizar este tipo de cinema, McCay decide não querer fazer parte da indústria, por considerar o cinema de animação uma arte e não uma forma de comércio. Little Nemo marcou um passo na direção de uma animação mais amadurecida enquanto forma de arte, com sequências de animação que procuram expressividade e fluidez de movimentos. Na década de 1920, em paralelo ao trabalho dos ilustradores

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ganhou particular importância na Alemanha após 1910, tendo sido realizados centenas de filmes de animação durante os anos 20. A Bauhaus, escola fundada em 1919 em Weimar, procurando integrar a arte no quotidiano e dando passos na criação e definição do design, foi um dos locais privilegiados, com as experimentações em cinema e audiovisual dos professores e artistas Paul Klee, Wassily Kandinsky, Lyonel Feininger e Lazlo Moholy-Nagy. Em dezembro de 1917, em Berlim, é criada a U.F.A., Universum Film Aktiengesellschaft, produtora cinematográfica que incluiu um estúdio de animação, que formou técnicos especializados e promoveu o desenvolvimento de produções, incentivando autores como Richter e Eggeling e Oskar Fishinger, cujos trabalhos de exploração de movimento e animação irão mais tarde influenciar toda uma nova geração de animadores, nos EUA. Em 1930, Lazló Moholy-Nagy ( - ) realiza o filme Light Play: Black-White-Gray, em que utiliza a sua “máquina luminosa” cinética. De 1920 até à década de 60, diversas explorações individuais na senda da arte cinética, resultarão nos inovadores trabalhos de artistas como Jackson Pollock, Aleksander Rodchenko e Alexander Calder.   Criar cinema de animação, criar cinema, é relacionar imagens. Segundo Gilles Deleuze, uma imagem por se relacionar com outras imagens intensifica-se, destaca-se, torna-se uma imagem de perceção. Uma imagem do mundo em transição, em devir imagem-de-movimento. Imagem de tempo, ela será uma fatia do universo que dá imagem ao tempo. A um tempo, pois o mundo é fatiado, sempre, com base numa perspetiva sobre o mundo. Uma imagem será uma fatia, um enquadramento, uma perspetiva. O olho será um dispositivo que permite criar perspetiva, a língua será um dispositivo que permite a

perspetiva, fazendo que certas fatias do mundo, sensações, surjam em primeiro plano sobre outras. Em cinema, o tempo é indireto, ao contrário do que acontece no dia a dia. O espetador tem a perceção de tempo pela criação de uma relação sensorial com a personagem e com as imagens projetadas. Por meio dos sentidos (e indiretamente), o espetador experiencia tempo representado em cinema através da montagem. Em cinema existe apenas o presente. A montagem leva à apresentação de uma série de presentes, sem passado ou futuro, mesmo que as imagens utilizadas sejam representações de um ou de outro. É a memória que permite experienciar o tempo em cinema. Como a experiência de tempo é uma experiência dos sentidos, a memória de cada espetador cria a ligação entre o que lhe é dado a ver, filtrada pelas suas vivências individuais.   Cinema é vida, e vida é cinema, como afirmou Deleuze. A vida e o cinema são duas partes do mesmo. Cada dia na vida será um filme, uma conexão de aspetos de um universo em mudança, composto por cortes e por enquadramentos realizados por mediação de dispositivos como o são as câmaras e os olhos. Dispositivos criadores de realidade, de sentido, de imagens. Imagens de devir captadas no tempo, imagens de perceção, organizadas sequencialmente, criadoras de novo sentido, realidade. O cinema re-articula o mundo.


Ilustração Nuno Fragata

1923: Félix - o gato - deixa o estúdio, julgando ter arruinadas as hipóteses de singrar em Hollywood. Após socorrer e bravamente salvar um humano, cativo de mosquitos a que chamou the three muskeeters, Félix é recompensado com um contrato de longa duração. Félix - o gato - não tinha percebido ter inadvertidamente entrado na rodagem da cena de um filme e que as câmaras estavam a filmar. Na década de 1920, o cinema de animação, indústria e arte em processo de definição, procura definir um rumo próprio, tal como Félix.

2. Rapidez ou lentidão, movimento de aceleração, desaceleração e constante, são princípios básicos do movimento definidos por Norman McLaren em Animated Motion, série de cinco episódios em que McLaren (com Grant Munro) explica os princípios do cinema de animação.

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1. O taumatrópio, o fenaquistiscópio, o zootrópio, o praxinoscópio, o filoscópio (ou flip-book).

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ARTE E CRÍTICA

SAMUEL RAMA

É frequente encontrarmos em escritos de criadores em geral, e nos artistas plásticos que praticam a escultura em particular, considerações sobre a relação do tempo com o espaço, mais precisamente sobre a transformação do tempo em espaço. Vale a pena determo-nos um pouco mais neste processo de transformação do tempo em espaço no contexto do escultórico porque ele apresenta algumas nuances que agora propomos percorrer neste breve percurso meditativo. Escultura e tempo, realidade espacial e evanescência, objecto e não objecto respectivamente, parecem transformar a ideia do tempo como matéria da escultura num conflito. O cinema de Andrei Tarkovsky, os escritos de Marguerite Yourcenar, as esculturas de Alberto Giacometti ou os ambientes de Alberto Carneiro dão-nos indicações sobre como o tempo e o espaço interagem. Evidentemente, o que estamos a propor não é um percurso meditativo em torno da questão da escultura em sentido estrito, mas em sentido alargado; isto é, propor um entendimento da escultura fora dos seus constrangimentos académicos ou restritos à prática dos escultores ou artistas-plásticos em geral. Este entendimento permitir-nos-á de forma ainda precária construir um entendimento do tempo e do espaço capaz de ampliar o termo escultura até ao ponto de ele se imiscuir com a vida. Neste trajecto, são frequentes as referências implícitas e explícitas às noções de “natureza” e “paisagem”. Andrei Tarkovsky propõe para o seu métier Esculpir o Tempo1. A sua preocupação de esculpir situase fora de qualquer constrangimento académico da noção de escultura, procurando antes os movimentos fundamentais pelos quais o cinema é agente modelador poético dos dados da própria vida. O realizador “é livre de seleccionar e combinar eventos extraídos de um «bloco de tempo» de qualquer largura ou comprimento”2, portanto, Tarkovsky assume-se como escultor que opera o acto de esculpir sobre um bloco de tempo, em analogia ao trabalho do escultor clássico que desbasta o bloco de mármore. Marguerite Yourcenar, no seu livro O Tempo esse grande escultor,3 reconhece que a passagem do tempo fica marcada no espaço, nos objectos e nas pessoas que nele habitam. Neste caso, o alargamento da noção

de escultura aparece associado à literatura que vê na passagem do tempo um agente modelador da vida e, por consequência, indutor e rasurador de narrativas. O tempo, desde que foi iniciado o processo da modernidade – isto é, a partir do momento em que os seres humanos tiveram consciência da sua finitude – é sempre visto como sucessão. Não é por acaso que a invenção da perspectiva renascentista é coincidente com a invenção do relógio. A partir do momento em que a eternidade medieval foi posta em causa, tornou-se necessário criar formas de entender tanto o espaço, como o tempo. Para o escritor e filósofo Hermann Broch o tempo constitui-se pela série de todas as subdivisões possíveis desde o primeiro elemento da série, o momento em que se nasce, até ao último momento da série, o momento em que se morre. Para este autor, o tempo é pensado a partir da medida da série de todos os números possíveis que digam respeito à vida. O conflito entre tempo e espaço dissolve-se, se entendermos o termo escultura “como o modo através do qual o tempo se traduz em espaço”4, isto é, o modo como o tempo é transformado e materializado em espaço. “Então a escultura surge não enquanto objecto inerte mas enquanto acção que vai realizando o tempo, e que é o próprio tempo que vai realizando”5. Trata-se de uma transformação que exige tempo para se realizar num determinado tipo de espaço. Para Hermann Broch, todo o combate contra a angústia da morte é um combate contra o tempo enquanto série; “a angústia do nada, a angústia do tempo que conduz à morte (…) porque, faça o homem o que fizer, tudo o que faz tem por fim anular o tempo, suprimi-lo e esta supressão chamase espaço”6. Esse combate passa pela valorização do espaço e é sempre a transformação do tempo em espaço. O tempo “enche o espaço, transforma o tempo em espaço”.7 Para H. Broch, “a transformação do tempo em espaço significa sempre o alargamento da comunidade humana. Isto é, o modelo do espaço é entendido enquanto simultaneidade que se opõe à série ou à sucessividade, e todo o desejo do ser humano é poder determinar, acentuar, aprofundar melhor a simultaneidade, isto é, a possibilidade de todos nos reunirmos um dia à volta das nossas próprias expressões de compreensão”8.


Toda a arte é o resultado da transformação do tempo em espaço. Por exemplo, o tempo de uma experiência tida na paisagem pode ser transformado em espaço pictórico por um pintor. Mas esta transformação é reversível, ou seja, este espaço é depois novamente traduzido para uma experiência de duração temporal por parte daquele que olha a pintura. Também o tempo da memória9 impele à criação de obras. Tomemos como exemplo duas florestas no campo do escultórico: La forêt 1950, de Alberto Giacometti e Uma floresta para os teus sonhos 1970, de Alberto Carneiro. Ambas tiveram a sua origem, respectivamente, numa memória de um recanto de floresta Suíça e numa anamnese de um pinhal onde Alberto Carneiro brincou enquanto menino. Cada uma destas experiências germinou na memória destes criadores até encontrar, respectivamente, num acidente de ateliê e numa anamnese a sua configuração material na corrente produtiva autoral de cada um dos artistas. La forêt de A. Giacometti é composta por um busto e sete figuras femininas/árvores fortemente determinadas pela qualidade hierática da estatuária egípcia; são afirmativas mas de frágil verticalidade, representando, como o próprio título indica, uma floresta. As sete figuras, assentes numa pequena placa plana ou palco, apresentam um trabalho lento e laborioso de configuração rasurante que se realiza ao longo do tempo. Giacometti tem uma clara consciência desta ideia da transformação do tempo em espaço. Ele escreve : “de très loin, de très loin le temps se décompose dans l’espace avec un ralenti effroyable, tout bouge à peine, continuellement, se transforme dans une lenteur toute debout, même les cataclysmes, même l’éruption d’un volcan à peine perceptible”.10 Decompor o tempo no espaço é uma consciência que Alberto Giacometti já tinha nos anos de 1933/34, data do texto anteriormente citado (anos charneira na sua carreira) pois passa de uma prática surrealista para um regresso ao trabalho a partir do modelo. A escala miniaturizada de La Forêt parece remeter para uma tradução em três dimensões da perspectiva

fferson Luiz Camargo, São Paulo, Martins Fontes, 2002 Idem, pág 74

MOVIMENTOS

Tarkovsky, Andrei, Esculpir o Tempo, (Die Versiegelte Zeit) tradução portuguesa de Je-

renascentista italiana. Mas, como nos lembra Max Reithman, “parece não haver perspectiva comum entre os personagens da primeira linha e os do fundo (…) todos os critérios sincrónicos, que garantem um contínuo espacial comum, coordenador e perspéctico ficam abolidos”.11 Assim, nesta peça como em outras do mesmo escultor, não estamos perante uma escultura que exibe um espaço paisagem sereno, mas altamente dinâmico. Perante esta escultura, estamos sem dúvida mais intensamente implicados do que perante uma pintura de paisagem realizada no período renascentista Italiano. Não se trata de valorar uma em detrimento de outra criação, ou sequer de as seriar de acordo com uma linha historicista de entendimento das obras de arte, trata-se sim de reconhecer que, perante uma pintura renascentista italiana, temos acesso à paisagem como janela, estamos do lado de fora a aderir ao campo virtual da imagem. Já perante uma escultura de Alberto Giacometti como La Forêt não estamos a aderir ao campo virtual da imagem através da ideia de janela, mas através de algo que nos implica dentro desse próprio campo; isto é, não estamos fora do mundo, estamos dentro do mundo, do seu mundo agora tornado nosso. Algo deverá ter ocorrido para que a arte do final do século XIX inícios do século XX tenha deslocado o seu foco do tema para o espectador. Em 1970, o escultor português Alberto Carneiro apresentava na galeria Buchholz, em Lisboa, um penetrável ou um ambiente de carácter escultórico constituído por duzentos toros de madeira, intitulado Uma floresta para os teus sonhos, primeiro materializado em desenho e depois exposto na galeria. Esta floresta, tornada escultura através da auscultação de uma anamnese, não é mais do que a criação, do que a produção para o espectador de uma máquina de viajar no tempo e no espaço12, mais precisamente um meio de levar o espectador participante a caminhar e a conceber este acto banal dentro do território do estético. Só quando o utilizador do ambiente caminha por entre os toros de madeira é que a peça adquire todo o sentido, pois, ao caminhar, está também a editar para si próprio

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ARTE E CRÍTICA uma experiência temporal em função do espaço, isto é, está a editar uma experiência pré-cinematográfica na medida em que o caminhar induz o pensamento por imagens, a imaginação. Todos reconhecemos que desde a revolução industrial, passando pelo motor a combustão até à era digital, se assistiu à aceleração do tempo exterior13; tal facto criou uma ocultação à percepção das escalas de tempo mais alargadas. A civilização urbana – a única de que dispomos já algum tempo – vive imersa nas escalas temporais do instante, da aceleração brusca do tempo exterior. Neste contexto, é difícil ao homem contemporâneo reconhecer que a natureza e a terra existem. Em consequência desta e outras transformações, progressivamente, o espaço expressivo das obras de arte mais esclarecidas deixou de ser concebido enquanto janela e a virtualidade serena inaugurada na modernidade renascentista italiana dava lugar, nos finais do século XIX, à relativização dessa convenção e à descoberta pelo corpo de que o mundo é constituído por múltiplos contornos e entrelaçamentos tal como nos esclarece a fenomenologia ou a obra de Cézanne. Esta breve incursão pela questão da relação do tempo com o espaço não estaria completa se não reforçássemos a ideia de que, no contexto da arte em geral e da escultura em particular, não faz sentido conceber somente a temporalidade, mas a relação do tempo com o espaço. Gaston Bachelard, principal referência teórica de Alberto Carneiro, lembra na sua Poética do Espaço que o sedimento do tempo se deposita continuamente no espaço. Também no modelo de Bachelard o tempo não pode ser concebido sem o espaço. “Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de filiações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer «suspender» o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço”.14 No contexto da obra de arte temos sempre de apresentar o tempo em função do espaço. O espaço é um dado inquestionável da realidade, enquanto o tempo é uma invenção do homem. Os artistas lidam com a produção de espaço que, por ser da

ordem do sensível, inteligível e perceptível, se transforma em experiência de duração, de tempo para o espectador. Esta conclusão é testemunhada pela arte em geral mas por ventura encontramo-la expressa de forma mais intensa em todos os

1. TARKOVSKY, Andrei, Esculpir o Tempo, (Die Versiegelte Zeit) tradução portuguesa de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo, Martins Fontes, 2002. 2.Idem, pág. 74. 3. YOURCENAR, Marguerite. O Tempo, esse grande escultor, Lisboa, Editorial Difel, 1983. 4. Santos, Laymert Garcia dos, A escultura do tempo, Intervenção apresentada no colóquio “Actualidades do tempo”, promovido pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos transdisciplinares e pela Universidade estadual do Rio de Janeiro (EURJ) em 8 de Abril de 1988, E reunida no livro de Laymert Garcia dos Santos intitulado Tempo De Ensaio, São Paulo, Editora Companhia Das Letras, 1989, pág. 111. 5. Idem. 6. Broch, Hermann, Sonâmbulos, volume III, Lisboa, Edições 70, 1989, pág. 64. 7. Ibidem. 8. Pensamento exposto por Maria Filomena Molder num seminário de estética. MOLDER, Maria Filomena, Seminario de «questões de estética» inserida no curso de mestrado em estética, março-junho 2006, FCSH-Universidade Nova de Lisboa. Notas de aula. Mimeografado.


autores que têm especial af inidade com a escultura, a natureza e a paisagem que é já ela mesma temporalidade.

9. Como nos lembra Ernst Cassirer, a

poder de contracção que tende a reduzir

memória já é ela própria uma das modali-

cada vez mais a expansão espacial à qual

dades do pensamento mais criativas. “No

se opõe; mas nesta acção contra o princípio

homem não podemos descrever a lembran-

antagonista, o próprio tempo se desenrola

ça como um simples retorno de um evento,

com uma velocidade sempre crescente, por-

como uma vaga imagem ou cópia de impres-

que, longe de ser homogéneo, como supõem

sões anteriores. Não é simplesmente uma

aqueles que encaram só sob o ponto de vista

repetição, mas antes um renascimento do

quantitativo, é, pelo contrário, «qualifica-

passado; implica um processo criativo e

do» de maneira diferente a cada momento

construtivo. Não basta recolher dados iso-

pelas condições cíclicas da manifestação

lados da nossa experiência passada; deve-

à qual pertence. Esta aceleração torna-se

mos realmente re-colhê-las, organizá-las e

mais aparente que nunca na nossa época,

sintetizá-las e reuni-las num foco de pen-

porque é nos finais do ciclo que ela é mais

samento. É este tipo de lembrança que nos

exagerada, embora exista constantemente

proporciona a forma humana característica

do princípio ao fim deste; poder-se-ia, pois,

da memória. CASSIRER, Ernst, Ensaio so-

dizer que o tempo não contrai só o espaço,

bre o Homem. Introdução a uma filosofia

mas que se contrai a si próprio progressi-

da cultura humana”, Tradução portuguesa

vamente; esta contracção exprime-se pela

de Tomás Rosa Bueno, São Paulo, Martins

proporção decrescente dos quatro yugas,

Fontes, 2005, p. 88.

com tudo o que ela implica, incluindo a di-

10. GIACOMETTI, Alberto, Ecrits, Paris:

minuição correspondente da duração da

par Hermann Editeurs des Sciences et des

vida humana. Diz-se por vezes, certamente

Arts, 1988, p. 161.

sem compreender a verdadeira razão disso,

11. REITHMAN, Max, Regards sur Giaco-

que hoje os homens vivem mais depressa do

metti, in catálogo da exposição Giacometti,

que antigamente, e isso é literalmente ver-

La Collection du Centre Georges Pompidou,

dadeiro; a pressa característica que os mo-

Musée National d’Art Moderne, programa-

dernos põem em todas as coisas não é, aliás,

ção do Musée d’Art Moderne de Saint –

mais do que a consequência da impressão

Etienne 1999. p. 21.

confusa que eles têm disso”. GUÉNON,

12. SARDO, Delfim, Obras-primas da Arte

René, O Reino da Quantidade e os Sinais dos

Portuguesa, século XX, Artes Visuais, Lis-

Tempos, Lisboa, Dom Quixote, 1989.p. 151.

boa, 2011. pág. 66.

o espaço, de certa maneira, por efeito do

Espaço, Tradução de António Danesi, São Paulo, Martins Fontes, 2000, pág. 28

MOVIMENTOS

13. RENÉ Guénon nota esta aceleração do tempo exterior e afirma: “o tempo gasta

14. BACHELARD, Gaston, A Poética do

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ARTE E CRÍTICA   Na continuação do artigo anterior, Artist Run Culture I - Origens (Making Art Happen), proponho agora um aprofundar sobre algumas iniciativas geridas por astistas que, ao longo dos anos, se tornaram importantes marcos no contexto histórico-artístico. Dos inúmeros exemplos, destaco a exposição Freeze, os espaços City Racing e The Wrong Gallery e o chamado Milagre de Glasgow. ...   Em Julho de 1988 num armazém abandonado nas docas de Londres inaugurou a exposição Freeze. Maioritariamente organizada pelo artista Damien Hirst com o apoio de Carl Freedman (actual curador e galerista) e dos artistas Abigail Lane e Angus Fairhurst, a exposição albergava trabalhos de 16 jovens artistas, estudantes no Goldsmiths College of Art.1 Em termos artísticos, Londres no final dos anos 1980 estava muito aquém de cidades como Colónia ou Nova Iorque e tanto Hirst como Freedman partilhavam a mesma ideia: tornar Londres um lugar onde a arte contemporânea pudesse prosperar e onde houvesse a mesma vitalidade que nos movimentados centros artísticos. Foi Hirst quem se mobilizou para conseguir apoios para a concretização e promoção da exposição e para a produção de um bom catálogo assim como contactar os principais nomes do mundo da arte britânicos.   A Freeze teve um impacto estrondoso na art scene britânica ao captar a atenção de Charles Saatchi (coleccionador de arte), Nicholas Serota (director da Tate) e Normam Rosenthal (curador e historiador de arte, membro da Royal Academy of Arts). Pela primeira vez jovens artistas eram levados a sério.   Young British Artists2 foi o termo usado para designar esta nova geração de artistas, sendo a Freeze crucial para o seu desenvolvimento. Outras exposições do género foram acontecendo por velhos armazéns e fábricas iniciando-se um inexorável processo de mudança. Os YBA revitalizaram assim o circuito artístico britânico, alimentando uma nova geração de espaços independentes, galerias comerciais, revistas de arte… ...

1. Steven Adamson, Angela Bulloch, Mat Collishaw, Ian Davenport, Angus Fairhurst, Anya Gallaccio, Damien Hirst, Gary Hume, Michael Landy, Abigail Lane, Sarah Lucas, Lala Meredith-Vula, Richard Patterson, Simon Patterson, Stephen Park e Fiona Rae. 2. O termo foi pela primeira vez usado pelo crítico Michael Corris em 1992. Os YBA são um grupo aberto de artistas britânicos que começaram a expor em 1988, na sua maioria nascidos na década de 60 e formados pelo Goldsmiths College nos finais dos anos 80. Além dos artistas participantes na Freeze, nomes como Tacita Dean, Douglas Gordon, Jake e Dino Chapman, Rachel Whiteread, Tracey Emin,

Ainda por Londres e também no ano de 1988 abre numa antiga loja de apostas, a City Racing. Uma galeria alternativa fundada por 5 artistas, Matt Hale, Paul Noble, John Burgess, Keith Coventry e Peter Owen, com o objectivo de criar oportunidade para jovens artistas, como eles, de mostrarem o seu trabalho.   O interior da antiga loja foi pintada de branco para se aproximar ao máximo ao white cube tradicional, embora o espaço fosse muito pequeno, o que não permitia grandes instalações ou projecções vídeo como acontece em museus e galerias. O bairro onde se situava era numa zona velha e degradada da cidade, havia um pub na esquina e pouco mais. As exposições estavam patentes durante muito pouco tempo, geralmente só aos fins de semana.

Steven Pippin entre outros são também associados ao grupo.


Até aqui parece uma história igual a tantas outras da altura, depois da Freeze inúmeras iniciativas do género começaram a surgir um pouco por toda a cidade. O que tornou o nome City Racing memorável foi a persistência dos seus fundadores. Praticamente sem fundos, os 5 artistas organizaram exposições ininterruptamente durante 10 anos expondo trabalhos de jovens artistas não só britânicos (alguns YBA’s tiveram a sua primeira exposição individual na City Racing) mas também internacionais. Ao longo dos anos alguns desses artistas foram tornando-se mais conceituados e outros não.

Nos seus últimos anos a City Racing constava já nos circuitos artísticos londrinos como parte da art scene alternativa. Em actividade de 1988 a 1998, tornou-se num importante espaço expositivo, uma rampa de lançamento para o circuito artístico oficial. Posteriormente foi publicado um livro retrospectivo intitulado City Racing, The Life and Times of an artist Run Gallery e em 2001 o ICA - Institut of Contemporary Art de Londres apresentou também uma retrospectiva dos trabalhos expostos na City Racing com o nome City Racing 1988-98: a Partial Account. …

MOVIMENTOS

Em 2002 surgiu The Wrong Gallery, a galeria mais pequena de Nova Iorque que nunca chegou verdadeiramente a abrir portas, era apenas a entrada de uma porta de vidro sempre fechada situada mesmo ao lado de uma galeria oficial. Os seus fundadores Maurizio Cattelan, Massimiliano Gioni e Ali Subotnick apelidaram-na ironicamente de “a porta das traseiras para a arte contemporânea” que está “sempre fechada”. Nos 3 anos que esteve activa contou com mais de 30 artistas de renome internacional, com intervenções quase sempre com um carcarácter polémico. Adam McEwen com um cartaz onde se lê ‘Fuck Off We’re Closed’, Pawel Althamer que contratou 2 emigrantes ilegais polacos para partir a porta com tacos de basebol todos os sábados ou Andreas Slominski que raptou a porta para a levar a uma festa em Hamburgo, mantendo-a como refém durante 2 semanas, são algumas das acções que The Wrong Gallery acolheu.   Em 2005 teve que deixar o espaço que tinha e foi acolhida, como um modelo à escala real, pelo Tate Modern continuando o seu programa artístico como galeria, com exposições regulares e até uma publicação anual, The Wrong Times. A primeira intervenção apresentada no Tate foi Orgasm Box, uma instalação vídeo da artista Dorothy Iannone, na altura com 72 anos. O vídeo mostrava a artista quando era jovem a masturbar-se.   A galeria subversiva tornou-se ela própria uma obra de arte.

PATRICIA FAUSTINO

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ARTE E CRÍTICA ...   O Milagre de Glasgow foi o termo usado pelo curador Hans Ulrich Obrist em 1996 para descrever o aparecimento de uma forte comunidade artística na cidade que tornou Glasgow um dos mais dinâmicos centros artísticos europeus dos anos 90.   No final dos anos 80 um grupo de jovens artistas aproveitou um dos tantos espaços vazios que existiam pela cidade para aí abrirem uma galeria, a Transmission. À frente do projecto estava Douglas Gordon. A galeria servia como laboratório, para experimentarem novas ideias e abordagens artísticas. Alguns artistas viajavam pela Europa a dizer às pessoas para virem estudar para Glasgow, o que acabou por resultar, muitos vieram e o nome da Glasgow School of Art espalhou-se pelo mundo. Aos poucos por toda a cidade surgiram espaços e galerias geridos por artistas, exposições DIY (do it yourself) em apartamentos, montras e outros espaços não convencionais que tornaram a cidade fervilhante a nível artístico.   A artist run culture lançou Glasgow para o mundo da arte contemporânea, produzindo artistas de renome internacional como Douglas Gordon, Jim Lambie, Karla Black, Martin Boyce, Richard Wright e Simon Starling que continuam a viver e trabalhar na cidade. ...   Acções deste tipo são importantes pelo seu carácter independente e alternativo, ao revigorarem os padrões existentes permitindo novas realidades artísticas.


Ilustração Pad Ell Rey

MOVIMENTOS

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ARTE E CRÍTICA   Para a arte da performance, o corpo é talvez a matéria pela qual o artista, em primeiro lugar, realiza a sua criação. Ao longo da indefinida história desta disciplina, observamos hoje, numa panóplia de documentos, uma linguagem em que o artista plástico, o bailarino, o cantor, o ator, o músico, realiza experiências mediadas pela ação do corpo, muitas vezes com determinados objetos. O corpo é um arquivo de movimentos ; nos corpos ficam também memorizadas as sensações e as consequências que os movimentos provocam. A título de exemplo, lembro como a rotina de caminhar pela cidade de Hildesheim, por vários dias consecutivos, traçou um encontro para a realização de uma performance . É desta performance que vos vou falar, para apresentar uma pequena reflexão sobre a deslocação de um corpo, posicionando-me, e posicionando-vos, espero, dentro das inquietações, que mudar um corpo de lugar pode provocar.   A rotina previa observar o movimento das pessoas na cidade e encontrar alguma coisa sobre a qual valesse a pena refletir artísticamente. Num antiquário da cidade, uma senhora deslocava todos os dias uma estante para fora do interior da loja. E, todos os dias, os mesmos livros eram colocados na estante. Mas haveria alguma razão que levasse aquela senhora a esta prática, além dos efeitos comerciais previsíveis? Aquele corpo-estante tinha rodas, a constituição do seu corpo previa a sua mobilidade.

Mas qual a probabilidade desse corpo-estante se deslocar também para outros lugares? Estas questões surgiam do meu caminhar e processo de observação, mas também da experiência de mobilidade que eu vivera até aí, daí que aquela estante talvez tivesse provocado em mim o desejo de a ver deslizar para outro lugar.   Várias conversas com a senhora possibilitaramme conhecer a realidade daquela prática e daquela estante. A estante era um objeto querido. Tinha sido construída pelo seu marido para esse fim, e não era possível qualquer relação com a estante que não fosse, além daquela que era a sua função, mostrar fora os livros que se encontravam no interior da loja com a finalidade da venda. As motivações emocionais da senhora impossibilitavam o meu encontro com a estante além do que era a sua função, e nada fazia prever que a estante me seria entregue por um dia apenas, de modo a cumprir o meu desejo artístico: observar a deslocação da estante para outro lugar da cidade e registar o seu caminho.   A relação entre o corpo-estante e o corpo da senhora era comandada e nutrida pelo afeto do seu marido, o que continuava a provocar em mim uma curiosidade imensa. Mas na realidade eu estava a entrar numa relação, e não fazia ideia das consequências possíveis da minha insistência. O meu desejo artístico traduzia-se em querer conhecer mais perto, atraída pelos movimentos


encontra TERESA LUZIO em potência do corpo-estante. Com uma certa persistência e garantia, ao fim de três dias consegui que a estante me fosse finalmente emprestada. Qualquer que fosse o percurso da estante pela cidade aumentaria o risco deste objeto sofrer um movimento estranho à sua condição física seca e irregular, o que a colocaria claramente dependente de um outro corpo, ou corpos. O corpo-estante não se movimenta sozinho, teria de ser guiado por uma força exterior, o que definia à partida o posicionamento do meu corpo na ação.   Eu estaria agora numa relação de proximidade com o objeto; mas como cumprir o meu desejo de observar? De modo a ser possível observar a estante, eu teria de ficar de fora, o meu corpo não era o elemento pelo qual eu criava a acção, mas a minha presença distanciada, e o corpo e os corpos seriam apenas um meio para essa finalidade.   A performance foi registada com um olhar documental a fim de mostrar a ação tal como aconteceu, e no dia seguinte a estante foi devolvida. Mas os livros não.   Estudo sobre Elasticidade prevê o deslocamento de um corpo e a tensão contida nesse movimento. A estante regressou ao seu lugar e com ela o efeito da sua função de estante querida. Os livros tinham sido vendidos. FICHA TÉCNICA Teresa Luzio, Studie über Elastizität, 2006 2’42’’, super 8 Frame 4 Frame 7

FICHA TÉCNICA Teresa Luzio, Studie übe 2’42’’, super 8 Frame 4 Frame 7

MOVIMENTOS

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HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO ARTE E CRÍTICA

SUICIDAS P ORTO, DERIVA, 2013

JOSÉ RICARDO NUNES

Suicidas, o mais recente livro de Henrique Manuel Bento Fialho, reúne 51 textos que nos remetem para outros tantos escritores que optaram por pôr termo à vida. A lista inclui nomes como os de Antonin Artaud, Ernest Hemingway, Lúcio Aneu Séneca, Paul Celan ou Virginia Woolf e, entre os portugueses, Antero de Quental, Manuel Laranjeira ou Mário de Sá-Carneiro.   Contrariamente ao que o título pode deixar antever, os textos não se centram nas circunstâncias biográficas dos autores referenciados nem directamente nas suas obras. Não há uma procura das razões que os levaram à morte. As alusões são escassas. Qual, então, a relação que se estabelece? Uma passagem de Ruy Belo, transcrita a final, pode contribuir para nos elucidar: “Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem. […] Ao escrever, mato-me e mato.”   Ler, escrever, morrer. Esta compulsão confere aos textos um clima de elevada tensão emocional. Mais do que assunto ou tema, os títulos e os escritores convocados funcionam como exemplos, como meros separadores numa escrita torrencial cuja emergência radica na criação de uma alternativa a uma vida que surge marcada pelo tédio, um quotidiano baço e angustiante, o cansaço, a ausência de felicidade. A literatura torna-se no espaço onde a existência se consuma verdadeiramente, mas sem deixar de ser sentida como perda. A escrita de Henrique Fialho, obsessiva, circular, vertiginosa, com uma forte componente onírica, recria este movimento.

De entre os magníficos textos do livro destacaria “Alejandra Pizarnik” (pp. 7-8), que abre o volume, e “Emílio Salgari” (pp. 34-35). “Pizarnik” articula amor e desespero; o sujeito recusa-se a interpelar a sua amada, justificando recorrentemente que não pretende “perturbar o seu sono”, para no termo concluir: “Quando se deitava com as chagas ressequidas e uma dor imensa nas costas a distraí-lo da tristeza, a pensar no dia de ontem como quem já não tem amanhã, e se enfiava nos lençóis retomando aquela alegria da infância com que se imaginava enterrando o corpo na neve, e fechava os olhos e orava por um sono descansado, se nesse instante a puxava finalmente para seu lado e finalmente a acordava era só porque não conseguia adormecer”.   Em “Salgari”, um único e extenso parágrafo, há também uma encenação do amor; homem e mulher vão-se fundindo num só: “enquanto ao longe tudo continuava a acontecer, as árvores cresciam, afundavam as raízes na terra, davam frutos, serviam de pouso a pássaros que ali faziam ninho sem a mínima ideia de que no fundo do mais vasto mar vermelho, um mar de sangue, viviam um homem e uma mulher nus, unidos sem lábios nem língua, unidos pelo silêncio, perto um do outro, longe do mundo.”   Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974. Reside em Caldas da Rainha. É licenciado em Filosofia e sobrevive como livreiro. Gosta de tocar guitarra com os Ventilan. Continua a faltar às sessões de catequese.


Ilustração Pad Ell Rey

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PATRIMÓNIO


Luís Guedes

MOVIMENTOS

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PATRIMÓNIO LÚCIA VICENTE

A IDEALIZAÇÃO DE BELEZA, A ACEITAÇÃO DO CORPO E A SUA RELAÇÃO COM UMA VIDA SEXUAL SATISFATÓRIA


MOVIMENTOS

Desde que surgiram as primeiras manifestações artísticas o corpo feminino foi idealizado. A norma da Mulher ideal surgiu na sociedade e passou a ser um objectivo que todas as mulheres desejavam alcançar. E assim foi crescendo a obsessão pelo corpo ideal e sendo restringida a aceitação pessoal. Esta idealização não se restringe apenas ao feminino. Desde cedo que a forma física masculina é idealizada em algumas sociedades, e tal como a feminina, divergindo de época para época. Porque parece esta idealização afectar e restringir mais a vida da Mulher que do Homem? A idealização da Mulher tem como base uma beleza exterior relacionada com proporções físicas. Esta idealização não é baseada na sua aplicação prática, como a aplicada à idealização do corpo masculino, mas sim na idealização imagética da mesma e por isso dificilmente atingível. A idealização do Homem tem como base uma beleza física exterior relacionada com as actividades físicas e profissionais exercidas pelos mesmos e por isso mais facilmente atingíveis. Os ideais de beleza gregos mostram esta ideia, que ao longo dos séculos foi sendo seguida. Um dos grandes inimigos da “liberdade feminina”, para além das próprias Mulheres, é a sexualidade e a sua relação directa com os estereótipos idealizados, e de certa maneira impostos, pela sociedade. Ainda hoje as mulheres sentem a pressão dos media e da indústria da moda, e subsequentemente da sociedade, para perseguirem um ideal de beleza inumano e inalcançável por aquelas que pretendam ter uma vida saudável e longa. Este ideal que é difícil de alcançar afecta psicologicamente as Mulheres e acaba por influenciar as suas vivências pessoais e sociais. Esta busca pela perfeição física traduz-se muitas vezes numa vivência feminina frustrante, tímida, pouco sexual, muitíssimo pouco sensual. Ainda hoje falar de sexo e prazer sexual no feminino é um tabu. Quando frequentei, há uns anos, um curso de estudos de Género era muito defendida a teoria de que a grande revolução feminina chegou com a comercialização livre da pílula. Esta afirmação sempre me pareceu um exagero. Sim, concordo que foi um marco nas lutas feministas de extrema importância. Um momento de viragem. Mas de que nos serve

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PATRIMÓNIO

ter acesso livre à pílula há mais de quase cinquenta anos se continuamos sem assumir abertamente a nossa vida sexual? Quantas mulheres, que são livres de controlar o seu sistema reprodutivo, são capazes de controlar de forma satisfatória a sua vida sexual? Parece-me que, bastantes vezes, nos meios feministas académicos se confunde vida sexual satisfatória com controlo de natalidade. Ser capaz de controlar a sua própria vida sexual não é só decidir sobre as consequências post acto. É sim saber “controlar” o acto em si. É sim saber aceitar o seu corpo, não ter vergonha do mesmo, controlar a sua vontade de participar num acto sexual e tirar prazer do mesmo. É este controlo que deve ser encarado como uma nova etapa das lutas feministas. O controlo e aceitação do corpo tal como ele é, tal como nascemos. O gostar de ser Mulher no corpo que se tem e tirar todo o prazer desse mesmo corpo. Quando e onde lhes apetecer. É crescer e estar segura de si para poder dizer ao seu/sua parceiro/a: - «Hoje não me apetece fazer amor contigo». E isto sem que sejam necessários constrangimentos e fingimentos. Parece um direito adquirido? Esta é uma imagem que já não acontece? Não, nenhuma pílula trouxe este direito, esta liberdade, esta aceitação. Nenhum soutien queimado acabou com estes estereótipos. Porque para mudar mentalidades muitos anos são necessários. E é preciso querer mudar e aceitar. E é preciso ter força para mudar. É necessário desconstruir com inteligência os moralismos impostos e colocá-los abertamente diante de toda a sociedade. Para que a sociedade dos estereótipos, que gosta de falsamente se assumir feminista, se olhe no espelho “Bon Ton Burlesquers - 365 days ahead of them all.” Poster of U.S. burlesque show, e se veja reflectida nessa mentalidade ridícula 1898, showing a woman in outfit with low e assustadora que impede milhões de mulheres de neckline and short skirts holding a number se amarem, de se sentirem, de se aceitarem com of upper-class men “On the string”. Color todas as condicionantes que disso advêm. lithograph

1. Quando falamos de burlesco neste texto, referimo-nos aos movimentos burlescos a partir do século XIX até aos dias de hoje e não à sua criação original relacionada com as óperas burlescas do século XVII ou as peças de teatro que utilizaram a mesma corrente artística até ao século XIX

PODEM OS MOVIMENTOS DE BURLESCO1 SER UMA VIA PAR A AS LUTAS FEMINISTAS? Sim, os movimentos de burlesco podem ajudar a desconstruir e a valorizar a Mulher e a sua relação com o corpo. É neste sentido que me parece que o movimento burlesco tem contribuído, desde a sua génese, em muito para a alteração das mentalidades moralistas contemporâneas e por conseguinte para a evolução dos movimentos feministas. Esse foi o objectivo das primeiras troupes de burlesco em que as actrizes principais desafiavam os clichés sociais de género. Brincar com os estereótipos, provocar, desmistificar o papel instituído de falsa santa que se pretendia que fosse o papel da Mulher na sociedade oitocentista. É visível nas performances de variadíssimas bailarinas de burlesco contemporâneo a problematização das questões do corpo. A última performance de Lady Lou mostra uma mulher


2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Strap-on_dildo 3. boy = rapaz. Boylesque é o nome dado ao novo movimento de burlesco em que Homens utilizam as mesmas técnicas e elementos de dança que as bailarinas burlescas em palco.

que se revolta contra os “véus” de beleza impostos pela sociedade e que, partindo simbolicamente um espelho, se liberta da vergonha do corpo que não é perfeito. Mad Kate sobe variadíssimas vezes ao palco para desconstruir nas suas performances os estereótipos sexuais. Na sua última performance brinca em palco com um strap-on2 simulando uma cena de masturbação. Em Berlim, e um pouco por todo o mundo, é uma temática que preocupa variadíssimas bailarinas burlescas e as faz falar sobre o tema nas suas aulas, com as suas alunas. Nestas aulas as alunas são encorajadas a gostar do seu corpo, independente da forma e tamanho do mesmo, e a tirar partido das suas características físicas dominantes. As Mulheres que participam nestes workshops regra geral frequentam estas aulas com este mesmo objectivo: aprender a brincar e a aceitar o seu corpo. Ao contrário do que se poderia prever, na grande maioria das vezes, o público nos espectáculos de burlesco é maioritariamente feminino, mostrando a evolução de mentalidade envolvida neste meio artístico. Se verificarmos fotos e vídeos das décadas de cinquenta do século XX, este mesmo público feminino estava presente em menor número e quase sempre com um olhar depreciativo e inconfortável. O facto de cada vez mais existirem artistas de burlesco masculinos, boylesque3, mostra a evolução deste movimento artístico e a sua vertente de desconstrução de estereótipos sociais e sexuais. Estas comunidades artísticas burlescas têm um papel importante e interventivo na sociedade, contribuindo em muito para a alteração de uma mentalidade instituída e restritiva das liberdades femininas.

[Portrait of Lois de Fee, Club Nocturne, New York, N.Y., ca. July 1948]

O QUE PENSAM OS ARTISTAS DE BURLESCO SOBRE ESTA TEMÁTIC A? Ao ser convidada para tratar este tema não quis deixar fugir a oportunidade de ouvir algumas bailarinas de burlesco sobre a temática. Vejamos o que responderam à questão: burlesco é feminismo?

Bunny Pistol - Bailarina internacional de burlesco residente em Alameda no estado da Califórnia Estados Unidos da América

MOVIMENTOS

Burlesco ** É ** feminismo. É a celebração da forma da mulher. Sua liberdade de expressão através da dança. Seja sensual, sexy, triste ou engraçada. Burlesco é o fórum onde uma mulher pode trabalhar, através da sua jornada pessoal, a sua vida. É através do burlesco que eu me expresso como mulher. Eu sou poderosa, sexy e orgulhosa.

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PATRIMÓNIO

Sim! Eu acho que artistas burlescas podem ser feministas. O feminismo é algo que é sentido e vivido, é experimental no sentido de que a pessoa escolhe ser feminista por causa de uma experiência do mundo, em geral, não porque lhe é dito que está na moda ou é cool. Eu acho que todos os bailarinos, profissionais do sexo, artistas, toda e qualquer pessoa pode ser feminista. Ser feminista é algo que é auto-identificado e tem o seu próprio contexto particular. O sentido de capacitação e feminismo para uma Mulher pode ser para outra “velho” ou “tradicional” ou “sem poder”. Mas ninguém tem o direito de dizer a outra pessoa o que é e o que não é “poderoso”. Estamos todos em nossas próprias viagens para um futuro mais fortalecido. Como isso se relaciona com desempenho, eu gosto de pensar numa grande citação de Kazuo Ohnos, “dá à luz ao que está vivo dentro de ti” ... Para mim, isso significa a dança, o que sinto no meu coração, vagina e coragem. Deixa isto sair da maneira mais adequada para ti. Se o que estás fazendo não te faz sentir bem ou não te está a libertar, então talvez algo não esteja certo naquele momento na tua performance. Não quer dizer que nunca será a certa para ti ou para uma outra pessoa. Mas permite que possas decidir. A coisa mais poderosa é a intenção - se pretendes ser poderosa e sentir-te poderosa no palco, não é assim tão importante o que vestes, o teu guarda-roupa ou o que te chamas a ti mesma (dançarina burlesca, stripper ou artista ou algo mais). O importante é como tu te sentes. Isto também diz respeito a uma mensagem feminista. Se pretendes ter uma mensagem feminista, sente o feminismo em ti mesma e sê fiel a ti mesma e ao teu corpo, a tua “mensagem” vai brilhar, vai chegar ao público, ainda que seja muito abstracta. Mad Kate - Performer, música, escritora e bailarina de burlesco internacional residente em Berlim

Esta é a contribuição do novo movimento burlesco cada vez mais em expansão e dando cada vez mais expressão à libertação do corpo feminino e por consequência ajudando os novos movimentos feministas na sua luta de emancipação, aceitação, libertação das Mulheres contemporâneas e do seu corpo.


Ilustração Ricardo Norte

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PATRIMÓNIO RICARDO SILVA

Casével, no Concelho de Santarém, é uma terra desde há muitos séculos dedicada à agricultura, como atividade económica, mas a isso não se reduz. É local de histórias e lendas, com um lugar dentro da história mais ampla e de maior sentido, que para todos nós tem um superior significado, como é o caso da História de Portugal.   Aqui, as origens da presença da Pauperes Commilitiones Christi Templique Salomonis perdem-se no tempo, naquele ponto que nem sempre é fácil alcançar e que só a revelação da tinta no papel, ou um acaso que possibilite a atividade arqueológica, nos poderá desvelar. Os comumente designados por Templários têm no nosso território algumas das suas primeiras possessões no Mundo, como se comprova com o caso de Soure.   Em Casével, sua comenda, ligada a Tomar, ícone mundial e internacionalmente conhecida como símbolo vivo desta já extinta ordem, podemos encontrar, como seu testemunho, belas Cruzes Páteas, gravadas nas rochas calcárias, que talhadas têm duplo significado funerário. Primeiro, são o resultado da mistura de rocha com os restos de animais, ligadas, para formar o conjunto desta qualidade de pedra sedimentar. Em segundo, ao serem esculpidas, tornam-se na marca, que perdura no tempo, do que fica do seu destinatário final. Então, exposto o que o artista pretende, ao retirar o que está a mais, ficam os símbolos das crenças, religião e lavor, de quem partiu, mas que deixou, no mundo dos vivos, a sua marca. Esta marca é a estela funerária, material em pedra que é enterrado, parcialmente, na terra e tem inscritos, neste caso, na época medieval, quase exclusivamente, símbolos. Esses símbolos são, na sua maioria, geométricos, como pentagramas ou hexagramas, as mais variadas cruzes e elementos vegetais. Podemos encontrar ainda representações


de ofícios, epigrafadas, sem leitura e não gravadas ou sem leitura possível. Mas todas estas são menos representadas que as do primeiro conjunto indicado.   Das quarenta e oito estelas conhecidas em Casével, quinze têm inscritas a conhecida Cruz dos Templários, usada por estes cavaleiros no Reino de Portugal. Infelizmente, as estelas encontradas estão todas descontextualizadas, sobretudo como material de enchimento ou a compor um muro antigo, hoje subterrado, e são identificadas, na sua maioria, nas obras realizadas no interior da Igreja de Santa Maria de Casével, no ano 2000, na quantidade de vinte e uma, e vinte e cinco, nas obras do adro da referida igreja. Conhecemos outras duas, na posse de privados. Além da Cruz Pátea, encontramos representações dos já referidos pentagrama e hexagrama, que apontam para um contexto da presença templária aqui, em Casével.

É aqui que se encontra o lugar da Comenda, que corresponde à unidade administrativa da Ordem, onde era costume encontrar uma Igreja ou Convento, assim como a casa do Comendador e dos que aí residiam. A Comenda era, geralmente, entregue ou adquirida, sendo que no primeiro caso, em troca de proteção, material ou espiritual, desta ordem. Quando o local tinha grande potencial económico, poderia ser comprado ou trocado por outro, para que do seu esforço houvesse um retorno financeiro, para subsistência dos seus cavaleiros e obra, assim como os excedentes eram investidos nas lutas contra os inimigos de fé. Sobre estas unidades administrativas, William de Tyre escreve que “não existe neste momento uma região no mundo cristão que não tenha transferido uma parte das suas riquezas para estes irmãos”, testemunhando a expansão e incrível força dos Templários no seu tempo. O administrador da comenda era o Comendador. Em conjunto com os seus irmãos espirituais de Cister, eram bons conhecedores de técnicas agrícolas, que aplicavam após o estudo do solo onde estavam, realizando as

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(Cruz Pátea presente numa estela funerária encontrada na Comenda, Casével)

(Paisagem da Comenda, Casével)

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PATRIMÓNIO

tarefas necessárias para atingir boas produções, algo que era uma arte avançada para o mundo Cristão de então. Ainda hoje podemos encontrar, espalhados pelos terrenos de Casével, o cultivo de cereais, de olival e videira, que poderá ser uma reminiscência das culturas praticadas nesses tempos.   Sobejamente conhecido foi o seu fim, que foi traumático para a Europa, e que deixou marcas profundas, que demoraram tempo a sarar. Mas, por inspiração e maestria, o rei português, D. Dinis, vê mais longe, e percebe que o seu fim trágico não lhe servia, nem aos interesses do país, com a agravante de ver perder as vastas possessões da ordem para outros donos, o que enfraqueceria este então jovem, mas ambicioso, reino. Consegue o rei Poeta que o Papa João XXII aceite a criação da Ordo Militae Jesu Christi, que se transforma na herdeira material e espiritual da Ordem no Templo em território nacional. A Comenda de Casével transita assim para este novo dono e nasce uma nova era da história deste local. Aqui estiveram, como Comendadores, figuras ilustres do panorama nacional, sendo que um dos mais famosos foi D. Gastão Coutinho, que aqui deixou sepultura, com pedra tumular de grande beleza, que pode ser observada na Igreja de Santa Maria de Casével.   E que tem os seguintes dizeres:   “Aqvi iz do gasta covtinho filho/q foy de code do goncalo q foy de m alva e comendador q foi de Casevel/e faleceu anno de 1533”. Pedra tumular de D. Gastão Coutinho


A casa Coutinho era uma das mais importantes da época e de grande influência política.   Mas, recuando um pouco no tempo, no ano de 1443, na bula Etsi Suscepti, o Papa Eugénio IV permite que D. Henrique, e os mestres que lhe sigam, adquiram para a Ordem de Cristo bens móveis, imóveis e padroados de igrejas com os privilégios e termos existentes na Igreja de Santa Maria de Casével.

Não se tratando aqui de um trabalho de investigação histórica e arqueológica, não faz sentido um estudo mais exaustivo, mas apresentar algumas linhas que mostrem um pouco do que foi e é a história deste local, com tanta potencialidade e que pede uma atenção mais próxima.   Nota: desenho da Igreja de Santa Maria de Casével cedido, gentilmente, pela A rquiteta Helena Zemankova.

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Este é por si só um indicador da grande importância e prestígio que terá gozado a Comenda e Igreja de Casével, mas não é o único. Uma associação local, a Associação de Arqueologia da Região de Casével (AARC) tem vindo a desenvolver e a ajudar quem se queira dedicar a estes estudos, pese embora existir ainda um largo caminho a percorrer. Umas das últimas atividades da AARC tem sido a organização de Percursos Pedestres e Peddy Papers onde é possível a população e todos os interessados aprenderem e aprofundarem os seus conhecimentos sobre a cultura e património locais, assim como aguçar o espírito para que, cada vez mais, haja pessoas atentas e interessadas em conhecer e investigar os mistérios que a história deixou por desvendar em Casével.

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LITERATURA


Luís Guedes

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LITERATURA Longas tardes passa o gato a meditar no sofá (onde quer chegar o gato não é fácil lá chegar). A manhã toda passada a anular movimentos (uma ervilhita pelo chão o lacinho de um presente) coisas que façam barulhos ou se movam insistentes no seu território: não. Tudo céu à sua volta. Silêncio (dentro do silêncio). O próprio gato parado para ser por exemplo. JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES


Por vezes não sabemos o que fazer – hoje apenas resta esta frase, a sinalizar uma falha, rasgante. – a esperança que dela possa irradiar cornucópia de luz em direcção de braseiro na treva mais negra. Assalta-nos a dor de uma falha, rasgante. Ficamos imobilizados no mundo sem contornos ou profundidade. Sem mão ou palavra para levantar. Alguma coisa se afasta de nós, irremediavelmente. CARLOS ALBERTO MACHADO Setembro de 2013

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LITERATURA Decerto partir no tempo Não é uma despedida Na medida em que o tempo É a sombra comovida.

Caminhe por entre o nada Ou por infinito pântano Terei sempre mais que nada Outro rio galopante.

Para ter opinião De que serve a verdade? É mais que opinião Sabedoria, mas tarde...

O meu deus não é o tempo Mas confio-lhe a vida. Decerto partir no tempo Não é uma despedida.

É causa do movimento, Com ela não finda a terra. É aquele movimento No cômoro de quem erra.

JOEL HENRIQUES

A morte não me retira De onde me encontro agora. A promessa não me tira Do instante que é a hora. Parto na gravitação Do mundo, e não esquiva Na outra gravitação Da minha própria missiva. Respira Cronos em mim E por isso é mais clemente Que em voo sobre mim Misericórdia rente


Somando tudo já dei um par de vezes a volta ao mundo agora outra vez enamorada outra vez desengomada e tão de veludo e tensa e tenra e outra vez um muito semelhante cansaço de urgência impossível não comparar este relato de me deslocar até ti com um poema de amor de há dezasseis anos escrito em turbilhão e certeza onde maldizia de avaro e com que ironia hoje o tempo

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e pensar isto é pensar que muito se medita mas já se prevê que não é desta que termina a correria é Outono outra estação outro país outra idade tu falas outra língua tens a pele anilada que herdaste de pais que vieram da Índia e esta carruagem que me leva já vem do Canadá há o Hudson que bordeja em serpentina sem eucaliptos nem igrejas desta vez como num sonho crepitante há folhas de ácer lembrando nos três dedos patas de asas curtidas em peles secas e ocres e rugiriam se pisadas embora condiga a paisagem com mais doces imagens de resto que perfeito isto até o frio cá dentro não se sente e coa-se o ocaso e eu deslizo para ti e um outro continente há tantas horas viajo que quase tudo esqueci menos o quanto abençoadamente menos esta ternura coberta de fadiga mesmo se suspeite que sub-reptícia mova a vertigem e o impossível não dure e de repente tenho vinte e um anos outra vez há pouco tempo sou outra vez maior visto que chego esta noite e tudo indica que faremos amor voei sobre a água até ti suporto este atrito até ti devoro as copas do ácer no Outono para me deitar junto de ti contanto desta vez adivinhe – ou já percebi – que são lindas promessas mas dificilmente nos perseguimos

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LITERATURA até ao fim sequer a nós próprios porque a viagem tem esta coisa de nos provar que já não somos o que fomos e porque haveríamos de ser separados de vidas anteriores e colocados em lados contrários do globo – amor que tudo move como iludes na verdade – quero perscrutar pelo grande vidro deste vagão a noite e descubro o meu reflexo sedentário mas já não sou quem podia não ter usado o bilhete na bifurcação além deixei-o para trás e se compreendo o que antigamente era é agora à luz da América e de ti amor com desenlace iminente e de todos os registos e testemunhos e gritos de vidas por esse exigente caminho fora sem tréguas mas com contemplações se compreendo isto é porque compreendo dizia talvez o tempo aqui por esta faísca em frente no espaço: é preciso contar ao pormenor e repetidamente o que vivemos e por que ansiámos e onde chegámos pois é na medida em que nos movemos que mudamos e basta deslocarmo-nos para divergirmos tu soubeste antes de mim – evidência que me surge com algum choque – quando voltaste para aí depois da proposta que foste fazer-me onde eu estava tiraste-me de lá amor e respiraste-me ao ouvido Vai fazendo com isso logo com que um pouco eu te perdesse e será assim para sempre repetir constantemente por onde passámos quem foram os nossos pais e quem julga neste momento Vossa Majestade que eu sou quem não seremos jamais eu envelheço falta-me a mão para escrever e para errar quanto mais viver importa portanto esta noite ir-te amar vá o pensamento com o movimento e o cansaço e algum frio que se levantou desde há bocado não haja aspereza de palavras ou pedidos se


o que escrevo a cada quadrado de janela não fica se modifica e passa se expira a intensidade e o vazio a agarra – tanto mais acerbo quanto ela for real – insisto por ti por amor que me movi em quatro sentidos seja total a graça à noite e nós no final um pouco após a luz ainda unidos Somando tudo já dei um par de vezes a volta ao mundo agora outra vez enamorada outra vez desengomada e tão de veludo e tensa e tenra e outra vez um muito semelhante cansaço de urgência impossível não comparar este relato de me deslocar até ti com um poema de amor de há dezasseis anos escrito em turbilhão e certeza onde maldizia de avaro e com que ironia hoje o tempo

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e pensar isto é pensar que muito se medita mas já se prevê que não é desta que termina a correria é Outono outra estação outro país outra idade tu falas outra língua tens a pele anilada que herdaste de pais que vieram da Índia e esta carruagem que me leva já vem do Canadá há o Hudson que bordeja em serpentina sem eucaliptos nem igrejas desta vez como num sonho crepitante há folhas de ácer lembrando nos três dedos patas de asas curtidas em peles secas e ocres e rugiriam se pisadas embora condiga a paisagem com mais doces imagens de resto que perfeito isto até o frio cá dentro não se sente e coa-se o ocaso e eu deslizo para ti e um outro continente há tantas horas viajo que quase tudo esqueci menos o quanto abençoadamente

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LITERATURA menos esta ternura coberta de fadiga mesmo se suspeite que sub-reptícia mova a vertigem e o impossível não dure e de repente tenho vinte e um anos outra vez há pouco tempo sou outra vez maior visto que chego esta noite e tudo indica que faremos amor voei sobre a água até ti suporto este atrito até ti devoro as copas do ácer no Outono para me deitar junto de ti contanto desta vez adivinhe – ou já percebi – que são lindas promessas mas dificilmente nos perseguimos até ao fim sequer a nós próprios porque a viagem tem esta coisa de nos provar que já não somos o que fomos e porque haveríamos de ser separados de vidas anteriores e colocados em lados contrários do globo – amor que tudo move como iludes na verdade – quero perscrutar pelo grande vidro deste vagão a noite e descubro o meu reflexo sedentário mas já não sou quem podia não ter usado o bilhete na bifurcação além deixei-o para trás e se compreendo o que antigamente era é agora à luz da América e de ti amor com desenlace iminente e de todos os registos e testemunhos e gritos de vidas por esse exigente caminho fora sem tréguas mas com contemplações se compreendo isto é porque compreendo dizia talvez o tempo aqui por esta faísca em frente no espaço: é preciso contar ao pormenor e repetidamente o que vivemos e por que ansiámos e onde chegámos pois é na medida em que nos movemos que mudamos e basta deslocarmo-nos para divergirmos tu soubeste antes de mim – evidência que me surge com algum choque – quando voltaste para aí depois da proposta que foste fazer-me onde eu estava tiraste-me de lá amor e respiraste-me ao ouvido Vai fazendo com isso logo com que um pouco eu te perdesse


e será assim para sempre repetir constantemente por onde passámos quem foram os nossos pais e quem julga neste momento Vossa Majestade que eu sou quem não seremos jamais eu envelheço falta-me a mão para escrever e para errar quanto mais viver importa portanto esta noite ir-te amar vá o pensamento com o movimento e o cansaço e algum frio que se levantou desde há bocado não haja aspereza de palavras ou pedidos se o que escrevo a cada quadrado de janela não fica se modifica e passa se expira a intensidade e o vazio a agarra – tanto mais acerbo quanto ela for real – insisto por ti por amor que me movi em quatro sentidos seja total a graça à noite e nós no final um pouco após a luz ainda unidos MARGARIDA VALE DE GATO

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LITERATURA El autobús que nos lleva al metro pasa en su trayecto por un parque. A cada lado de la carretera nos escolta una fila de árboles que cada día asisten a la misma escena: mi hija desayunando las galletas yo viendo con la misma tristeza cómo mi hija desayuna frente a extraños, en un autobús. Giro la cabeza y ahí están, los árboles. Tristes y dignos como profesores prejubilados que han de callarse lo que saben. No conozco sus nombres ni cómo se llaman los viajeros con los que coincido cada día. Sólo sé que los árboles con su tronco negro por el humo me están susurrando: nuestro sitio no es éste.

O autocarro que nos leva ao metro passa por um parque no seu trajecto. De cada lado da estrada escolta-nos uma fila de árvores que assistem cada dia à mesma cena: minha filha mastigando as bolachas eu vendo com a mesma tristeza a minha filha a comer na frente de estranhos, num autocarro. Volto a cabeça e lá estão, as árvores. Tristes e dignas como professores pré-reformados que hão-de calar-se com aquilo que sabem. Não lhes sei os nomes nem como se chamam os passageiros com quem viajo todos os dias. Sei só que as árvores me sussurram, com seus troncos escurecidos pelo fumo: não é este o nosso lugar.

Antes de morir, mi madre me dijo mamá, ven mientras me miraba sin verme; yo dije mamá, quédate abrazando su cuerpo diminuto envuelto en pañales y olor a talco; mi hija dijo mamá, no llores y me acarició la cabeza consolándome. Cuando mamá murió, durante unos segundos no tuvimos muy claros los lazos que nos unían no supimos quién se había ido y quién se había quedado ni en qué momento de nuestras vidas estábamos viviendo o muriendo.

Antes de morrer, minha mãe disse-me mamã, vem enquanto me olhava sem ver-me; eu disse mamã, fica abraçando o seu corpo diminuto envolto em panais e cheiro a talco; minha filha disse mamã, não chores e acariciou-me a cabeça a consolar-me. Quando mamã morreu, por momentos não eram claros os laços que nos uniam não sabíamos quem tinha partido e quem tinha ficado nem em que momento das nossas vidas estávamos vivendo ou morrendo.


Tú pones la comida para los gatos callejeros; pero no sabes si son las ratas las que dejan el plato vacío.

Al dios de todo lo imperfecto yo le pido que a las gotas de sabiduría que transporto a duras penas en el cuenco de las manos no las seque el sol inclemente del cinismo.

Tu deixas comida para os gatos vadios; não sabes é se são os ratos que esvaziam o prato.

Ao deus do imperfeito eu peço que as gotas de sabedoria que levo a duras penas na concha das mãos não as seque o sol inclemente do cinismo.

ANA PÉREZ CAÑAMARES (Santa Cruz de Tenerife, 1968) Lic. Filologia, Universidad Complutense de Madrid, reside em Madrid. Contista (En días idénticos a nubes, Baile del Sol, 2009) e poeta: La alambrada de mi boca (Baile del Sol, 2007), Alfabeto de cicatrices (Baile del Sol, 2010), Entre paréntesis (La Baragaña, 2013). Várias vezes premiada. (Selec. e trad. dos poemas: A.M.)

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LITERATURA É cavalo, em ti, louco estranho com palha em lume na boca e montaria ambígua, preciosa como o coice, a dentadura alva, o olhar eh lá e sardónico: as apostas fervem à galope, tornam vistas as donas frementes, sensibilizadas onde mais lhes convém. Os raios crepitam na trovoada distante: falo na luz emergente, distância húmida, exangue na meta pretendida. Lê como quiseres mas não ofendas a garupa, podes sempre gritar os poemas que guardas no aulete: é cavalo louco, manso e louco, o que te atreves a guardar entre as pernas, no centro do universo. Só por isso cais, morres no teu abismo sempre verde, gravilha e terra, patas erguidas, a alma rápida, espontânea. Passa lá a esponja, não dês mais feno, ó fauno, à boca ávida deste poder. Um par de coices, se faz favor, mostra à evidência que há ferreiros competentes, mesmo pobres. No fumo das manhãs, só a crina dos cavalos te protege, te alimenta de metáforas justas: absurda corrida, condição aguda em que vives, melhor se te largares. MANUEL FERNANDO GONÇALVES


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LITERATURA GONÇALO FONSECA

Ao início fora apenas uma ligeira impressão, quase imperceptível. O prenúncio de que algo estava para acontecer, apesar de não o ter conseguido perceber. Por vários dias D.ª Antónia sentiu uma presença indefinida, um formigueiro que se sacode e desaparece mas que acaba por regressar. Intermitente, teimoso. E uma tarde essa sensação forasteira deixou-se ficar, como alguém sentado a um canto e em quem ninguém reparara até se tornar incomodativo. Primeiro foi uma névoa, branca, espessa, que lhe nublou a visão. No princípio era a luz. Uma cortina que só permitia descortinar formas e contornos grosseiros. Estranhamente lembrou-se das manhãs junto ao mar. Logo de seguida o corpo deixou de lhe obedecer. Contorceu-se, distorceu-se, voltou a torcer-se. Convulsivo, desordenado. Algo que dentro de si se revoltava e ela tentava combater, expulsar. E distendeu-se, rígido como um pedaço de madeira seca, para no fim amolecer, extenuado e sem vigor. Quando tentou chamar, gritar, a sua língua ficou presa, sentiu-a dormente. Depois veio o verbo. As sílabas juntaram-se e articuladas formaram palavras que não chegaram a ser proferidas. De D.ª Antónia nada se ouviu, murmúrios ou sons, e na casa também nada se ouvia, excepto as horas sem descanso marcadas pelo relógio do corredor. Mas D.ª Antónia nunca soube por quanto tempo ali permaneceu, de corpo inanimado e mente confundida. Repentinamente, num movimento contínuo, fole que se recolhe, o cortinado foi arredado para o lado e o dia atravessou a grande janela, encheu o quarto, e D.ª Antónia deu por si novamente a contemplar o limite do mar onde ondulavam pequenos diamantes e uma criança chapinhava na água e ria-se, ouviu o cacarejar das gaivotas e as vozes arrastadas para longe pela brisa da tarde. Desse dia em diante, D.ª Antónia ficou enclausurada num casulo de carne, ossos e pele. Muda e quieta. E os dias do seu silêncio passaram a ser preenchidos pela procura atenta de sinais que lhe devolvessem o sentido daquela divisão: um toucador de mogno com espelho onde a sua figura se reflectia, a cadeira onde a sentavam, a pintura de uma cena bucólica, uma cómoda de madeira escura com a fotografia de um jovem, quem seria?, a cama larga, demasiado larga para o seu corpo mirrado e por cima o Cristo crucificado na parede. Uma intuição incerta dizia-lhe ser aquele o seu quarto, ser aquela a sua casa. Procurava também sentido para as pessoas. Reconhecia-lhes a existência física, ouvia-lhe as conversas, mas estas não tinham significado para si. Palavras ditas numa língua esdrúxula. Sentia-lhes o aproximar ao quarto, ainda antes de lhes ouvir os passos, sentia-lhes o olhar caloroso e o afecto que se desprendia do seu toque. Do modo como diziam o seu nome, de como depositavam nas suas mãos pequenos objectos. Mas ela gostaria de lhes perguntar o que fazia ali, deitada naquela cama, sentada naquela cadeira de frente para uma grande janela com um cortinado translúcido que alguém religiosamente abria num movimento contínuo, sempre a mesma pessoa, a primeira que lhe entrava no quarto, dando-lhe a ver a copa de uma grande árvore, telhados e ao fundo o recorte preciso das montanhas, mas através da qual ela, estranhamente, ouvia o mar nos dias de horizonte escasso. Gostaria que as pessoas que a rodeavam, comportando-se como se toda a vida a tivessem conhecido, que se substituíam ao seu lado, algumas com funções concretas, está na hora de levantar, agora é hora de almoçar, outras limitando-se a estar, a tecer conversas e a tentar sondar sinais de si, deixando escapar será que nos ouve?, hum…não sei, e conhecer-nos-á?, lhe dessem explicações. Mas ela, D.ª Antónia, nem sequer lhes identificava os nomes nem os parentescos, enervava-se impotente, raios, maldição, é claro que vos oiço, criaturas!, por mais que lhe fossem repetidos, lhe ressoassem na cabeça, por mais que viessem ter consigo e dissessem esta é a Maria, sua neta, e a menina sorria, e este outro é o João, seu neto, e o menino não sorria mas dizia olá.


E desse dia em diante, sobraram-lhe os estilhaços da memória. Que eram muito corpóreos. Vivos e inteiros, dizia para si arregalando os olhos. Se lhe dessem oportunidade, descrevê-los-ia em pormenor, distingui-los-ia pelo toque, pelo cheiro da pele. E se lhe falassem deles, pois ainda os conheço, exclamava muda, continuo a lembrar-me dos seus nomes, ruminava por fim em silêncio com vontade de praguejar, poderia encontrar uma ligação para com os que a rodeavam, mas nunca ninguém lhos descreveu, nunca ninguém os chamou para o interior daquela casa. O que perdemos é o que todos nós guardamos, várias vezes ouviu esta frase que parecia conter a nitidez das clarividências ainda escondidas. Quem lha teria dito? No fundo sabia que nunca obteria respostas. Quem vivia na casa era tão incomunicável, na verdade, quanto os que lhe haviam ocupado as memórias. A estes, tratava-os com familiaridade mas tinha dificuldade em dispô-los ao longo da sua vida. Ordená-los num puzzle desfeito para o qual não havia modelo. Por vezes irrompiam imagens concretas, mas efémeras, de lugares que desconhecia ou de que não se lembrava. E o mar era uma recorrência. Neles reconhecia as suas presenças. Estranhamente vestidos com roupas que não via às pessoas da casa, chapéus de aba, fatos completos com colete e relógios de bolso, vestidos de folhos compridos e sombrinhas e usando palavras desusadas e gestos cerimoniosos. Chamava-os por nomes a que, rapidamente descobriria, diferentes rostos respondiam. Era um jogo de ilusões, um baile de máscaras. Interrogava-os: quem é quem? Começou então a perceber que estas pessoas lhe escapavam, escorregadias, as suas faces tornavam-se vagas e confundiam-se entre si, misturando-se inclusive com as de quem vivia na casa. Figuras indistintas na cabeça de um ébrio. Nos primeiros tempos isso causou-lhe ansiedade, depois vontade de contrariar, de resistir. De seguida entregou-se ao desespero. Muda e quieta. E por fim à resignação. Que trazia o aroma do mar. A sua última imagem foi a do jovem da fotografia. Pareceu-lhe mais velho, mas era ele. De certeza, afirmou. Sim, reconheço-lhe os traços. A face magra, encovada e agora sem bigode, acobreada do sol, fustigada pelo sal, o cabelo negro, a boca larga que murchava nos cantos, os olhos escuros já não tão brilhantes como na fotografia, eram melancólicos, e o sorriso diáfano, de água. Paradoxal. Um rosto severo e cansado, pensou, mas que denunciava um espírito contemplativo. D.ª Antónia interrogou-se da razão daquela presença. Sempre fora apenas um rosto anónimo, impresso numa fotografia, confinado a uma moldura de prata, e uma frase várias vezes por ela ouvida surgiu novamente a crepitar no ar quente do quarto, alguém de quem nada se sabe, continuou, somente que um dia tinha sido retratado. E encolheu os ombros.

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LITERATURA


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Nuno Fragata


LITERATURA Nuno Fragata


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Nuno Fragata

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