Fagulhas II ORGANIZAÇÃO Paula Venâncio
____________________________________________________________ Fagulhas II /Organização de Paula Venâncio – São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2016. Referências Bibliográficas ISBN 978-85-61343-17-0 1. Teatro brasileiro. 2. Trupe Sinhá Zózima ____________________________________________________________
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Realização cultural TRUPE SINHÁ ZÓZIMA www.sinhazozima.com.br contato@sinhazozima.com.br (55 11) 9.8053-0652 Edição e organização_Paula Venâncio Arte e projeto gráfico_Deborah Erê Ilustrações_ Deborah Erê e Lucas Lopes Fotografia_Christiane Forcinito, Danilo Dantas e Priscila Reis
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Ah, se eu tivesse um sonho, força, vontade, Ah, se eu pudesse e quisesse e ousasse e voasse e cantasse e ouvisse e quisesse e pudesse Que bom seria...
Os minutos que se vão com o tempo trecho da dramaturgia criada por Cláudia Barral, em processo colaborativo com os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima
Os minutos que se vão com o tempo | Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito 4 | FAGULHAS II
Itinerários possíveis
– Os artistas na lata rodante e os minutos que se vão com o tempo | Paula Venâncio – 7 – Dia um_Caderno de bordo | Priscila Reis – 9 – A Arte de Gestar, Parir e Cuidar | Tatiane Lustoza – 12 – Dia dois_Caderno de bordo | Priscila Reis – 15 – A ideia é filha esperançosa do caminhar | Anderson Maurício – 16 – Dia três_Caderno de bordo | Priscila Reis – 19 – A Música de Os minutos que se vão com o tempo | Luiz Gayotto – 20 – Dia quatro_Caderno de bordo | Priscila Reis – 24 – Os narradores sobre rodas | Maria Alencar e Tatiana Nunes Muniz – 26 – Os que nos deram as mãos ao longo do percurso | Maria Alencar e Tatiana Nunes Muniz – 34 – Dia cinco_Caderno de bordo | Priscila Reis – 37 – Relato de construção poética: Imaginário e Teatro no ônibus | Andrea Cavinato – 38 – Dia seis_Caderno de bordo | Priscila Reis – 40 – A deslimitação da experiência do tempo | Lucas Lopes – 43 – Poéticas de uma jornada em busca da experiência| Anderson Maurício – 44 – Dia sete_Caderno de bordo | Priscila Reis – 46 – Tecendo fios para uma nova dramaturgia | Cleide Amorim e Junior Docini – 47 – Dia oito_Caderno de bordo | Priscila Reis – 52 – A Dramaturgia de Os minutos que se vão com o tempo | Cláudia Barral – 53 – Dia nove_Caderno de bordo | Priscila Reis – 55 – Os minutos que se vão com o tempo_sinopse – 56 – Dia dez_Caderno de bordo | Priscila Reis – 57 – Os minutos que se vão com o tempo_ficha técnica – 59 – Dia onze_Caderno de bordo | Priscila Reis – 60
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Eu não sou terminal A princípio eu trago Coxinha com trabalho Pão de queijo com suor Café com bacon Poluição Duas salsichas Sanitário Esfiha com cigarro Bituca no chão Um grego suculento Com perfume do centro Trago coentro trago vento Trago mundo violento Trago tudo e consumo Trago tudo levo e trago A pessoa amada na marra Eu trago a força levo e trago Eu não sou terminal_letra de Priscila Reis
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Os minutos que se vão com o tempo, com Junior Docini Trupe Sinhá Zózima_ foto Danilo Dantas
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Os artistas na lata rodante e os minutos que se vão com o tempo
[Paula Venâncio¹]
Ah, essa Trupe é um caso sério. Quem se aproxima, quem
desafia a lógica do tempo e embarca de peito aberto no ônibus estacionado no Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, se encanta e começa, aos poucos, a se deixar levar pelo movimento. Movimento da arte onde ela parece impossível. Movimento da própria vida que se transforma com olhares e respirações compartilhados. Um dia eu entrei nessa lata rodante (gosto desse apelido carinhoso criado por eles) e, desde então, tenho a honra de acompanhar esses artistas-pesquisadores nessa trajetória sobre rodas. Pois saibam que, desde 2007, o ônibus é o espaço de investigação da Trupe Sinhá Zózima. Um ninho, uma casa em movimento onde artistas embarcam em busca da arte do encontro sem fronteiras. E mais, desde 2009, esses artistas-pesquisadores, desbravadores de latas rodantes, fazem do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, por onde circulam diariamente mais de 200 mil pessoas, um ponto de partida. A semente, a primeira residência no Terminal, foi plantada em 2009, quando a Trupe criou em parceria com a São Paulo Transportes (SPTrans), o projeto Arte Expressa – Mostra de teatro no ônibus, que promoveu pela primeira vez no transporte público uma sequência de apresentações artísticas: doze grupos de teatro foram convidados a encenar peças curtas em ônibus que circulam no Complexo Viário Expresso Tiradentes, num percurso que vai do centro da cidade ao bairro Sacomã e região de Heliópolis, a maior comunidade periférica de São Paulo. Intervenções cênicas foram apresentadas para mais de 4.500 pessoas durante uma semana. Em 2014, a Trupe lançou a ação Toda Terça Tem Trabalho, Tem Também Teatro!, mais um braço do ____________________ 1Paula Venâncio_ jornalista responsável pelo conteúdo, redação e assessoria de imprensa da Trupe Sinhá Zózima.
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projeto Arte Expressa, com intuito de promover a cidadania artística, o encontro, a humanização do transporte, o diálogo com os trabalhadores. Uma residência-resistência, já que é preciso vencer constantemente os desafios e as burocracias. E é importante ressaltar que, desde 2009, a Trupe realiza uma pesquisa de trajetória que traz apontamentos relevantes para a escolha dos novos caminhos. No primeiro ano foi constatado que 75% das pessoas entrevistadas que usavam o transporte municipal nunca tinham tido contato com as artes cênicas. Mas foi mais surpreendente que 95% escolheriam para se locomover um ônibus onde houvesse encenações teatrais. Nesse mesmo ano foi levantado que 8% das pessoas entrevistadas que nunca haviam assistido a um espetáculo teatral estiveram no ônibus da Trupe Sinhá Zózima. Número que, no primeiro semestre de 2014, subiu para 15%. Em 2012 a pesquisa foi realizada em dias e horários em que não aconteciam ações artísticas. Foram entrevistados trabalhadores que transitavam pelo terminal. A partir da pergunta “quantas vezes você já foi ao teatro?”, a Trupe levantou que 31% nunca havia ido e 78% não iam ao teatro há mais de um ano. Essa questão reforçou para a Trupe a necessidade de aproximação das artes ao ambiente do trabalhador, indicou caminhos de pesquisa e ações, como o Toda Terça Tem Trabalho, Tem Também Teatro! – que embora tenha surgido com teatro no nome, contempla atividades das mais diversas áreas. Em relação ao trabalho da Trupe, em 2014, 31% dos entrevistados já haviam participado das ações no ônibus em outro momento. Número que em julho de 2015 já subiu para 51%. Ou seja, muitos tiveram contato com o teatro pela primeira vez no ônibus da Trupe Sinhá Zózima e voltaram para mais uma experimentação. E essas moças e rapazes ainda carregam muito mais em suas bagagens. Durante os anos de pesquisa (que em breve serão 10!), a Trupe desenvolveu diversos projetos que culminaram na criação e realização dos espetáculos: Cordel do amor sem fim (2007) – de Cláudia Barral, apresentado mais de 450 vezes em vários estados brasileiros e também encenado no continente europeu, Valsa nº 6 (2009) – de Nelson Rodrigues, O poeta e o cavaleiro (2010) – livre inspiração na obra literária de
Pedro Bandeira e contemplado com o Prêmio Myriam Muniz da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE), Dentro é lugar longe (2013) – de Rudinei Borges; e dos projetos: 1º Mostra de Teatro no Ônibus (2009) e Plantar no ferro frio do ônibus o ninho – Residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras (2012/2013) – contemplado pela 20ª edição do Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Foi um dos grupos selecionados para representar o Brasil no I Mercado de Indústrias Culturais dos Países do Sul (Micsul), em maio de 2014. Em junho de 2014, a Trupe iniciou as ações do projeto Os minutos que se vão com o tempo: da imobilidade urbana ao direito à poesia, à cidade e à vida, contemplado pela 24º Edição da Lei de Fomento. E, aqui, os artistas-pesquisadores-danados (e eu os acho danados mesmo, danados de bom), se lançaram para mais um desafio, para uma ousadia sonhada: ao invés de abrirem as portas de seu ônibus (e é bom que fique claro que conquistar este ônibus não foi e ainda não é tarefa fácil), eles decidiram caminhar de peito aberto e pedir licença para embarcar ao lado dos que voltam para suas casas depois de um dia de labuta. Eles, com o convite firmado com o olhar, embarcaram no ônibus de linha. Esses meninos, essas meninas, lançaram linhas ao vento e teceram um lindo bordado, inventando novos itinerários poéticos no caos da cidade. Nesta revista, você leitor encontrará fagulhas, centelhas desse processo que não finda, relatos, escritas e investigações desses artistas-pesquisadores-danados-gente trabalhadeira e seus companheiros de percurso. Os minutos continuam e continuarão (ainda bem) seguindo com o tempo, a Odisseia dessa Trupe segue e seguirá (ainda bem) seu rumo pelo mar de asfalto cinza, fazendo do ferro frio, da lata rodante, do cansaço do dia: poesia. Essas moças e rapazes carregam consigo a gentileza, a humildade e a beleza no olhar necessárias para o encontro sincero com o outro. Pois continue sua leitura, crie seus itinerários, embarque em algum ponto, desça em outro (se o tempo não lhe permitir seguir até o fim da viagem de única vez), mas se deixe levar pelo movimento e se prepare para um encontro sem fronteiras.
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito 8 | FAGULHAS II
Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Manoel de Barros
Os minutos que se vão com o tempo, com Priscila Reis Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia um
A criação do mundo segundo as mulheres Segunda-feira ouvimos a história da Odisseia contada pelas filhas da Noite, as Moiras, tecelãs do destino. Cantamos a jangada de Dorival Caymmi e preenchemos o espaço do ônibus com imagens da Odisseia. Me senti representada pelas personagens, Nix, as Moiras, Helena, Atenas, Leocotéa. Feliz por perceber tantas mulheres que abrem os caminhos da humanidade. No dia das mulheres até fiz um mural para guardar o nome delas.
Eva Lenir Ribeiro Atenas Lídia Zózima Perséfone Rebeca Salatiel Chica da Silva Tatiane Lustoza Afrodite Isis Penélope Marisa Oliveira Elisa Lucinda Maria Alencar Circe Waleska Mattos Andromeda Viviane Mosé Flávia Rybakov Elza Soares Chiquinha Gonzaga Cassia Reis Edith Piaf Clarice Lispector Hilda Hilst Claudia Barral Deméter Sara Kane Andrea Cavinato Iemanjá Graciane Pires Nix Dilma Iansã Tatiana Nunes Maria Bonita Elis Regina Moira Nereidas Paula Venancio Maria Madalena Iris Fernandes Noches Ana Luisa Icó Joana Darc Erica Rapu Cleide Amorim Dandara Rita de Cassia Ana Amy Winehouse Roberta Couto Pagu Roberta Forte Luciana Ramin Thaís Diana Pandora Fabiana Jeane Deborah Erê Cecilia Meireles Denise Luis Christane Forcinito Andrea Paula Yaci Susana Oxum Marcela Boni Gaia e a todas mulheres que transformam nossa trajetória na Terra. Um mural para lembrar, somos muitas, somos férteis, somos fortes.
Caderno de bordo_Priscila Reis2 ________________________________________ 2Priscila Reis_cofundadora, fotógrafa e artista-pesquisadora da Trupe Sinhá Zózima
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Os minutos que se vรฃo com o tempo Trupe Sinhรก Zรณzima_ foto Christiane Forcinito
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A Arte de Gestar, Parir e Cuidar [Tatiane Lustoza 3]
Os minutos que se vão com o tempo, com Tatiane Lustoza | Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
“Para o todo, para terra e para que cada um de nós sejamos melhores.” Lídia Zózima4
Falar da produção da Trupe Sinhá Zózima é refletir sobre o tempo. Tempo este que está cada vez mais acelerado. Me acelera, acelera o outro. As pessoas produzem cada vez menos para si. O tempo está cada dia mais curto para limpar a casa, fazer comida, cuidar do filho, fazer uma visita ao amigo ou parente querido. Mas o sábio tempo vem me ensinando a apreciar a beleza da calmaria e a entender e respeitar os ciclos da vida. E me pego sempre pensando em como reverter essa lógica imposta e me tornar a senhora do meu tempo. O desafio de produzir os trabalhos da Trupe está em realizar ações de forma artesanal, com cuidado, respeitando a delicadeza, a fragilidade e as potencialidades do lugar que habitamos. Lugar este que é constituído de uma grande lata rodante que foi construída para transportar pessoas de forma espacial. O trabalho da Trupe consiste em ir sempre mais além. É deslocar o campo imagético de cada ser que vivencia ou ouve algo sobre o que desenvolvemos, é fazer brotar uma sementinha no concreto cinza da cidade, é trabalhar bem a terra, é regar com alegria, é ter paciência e disciplina para que essa semente receba amor e se sinta segura para germinar no ventre da mãe-terra, é rezar para que ela fique forte, floresça e se torne uma bela árvore para enfeitar essa selva de pedra e alimentar aqueles que tem fome. Fome de arte, fome de encontro, fome de afeto, fome de lazer, fome de um olhar, fome de tantas outras coisas. 12 | FAGULHAS II
A produção do projeto Os minutos que se vão com o tempo, da Trupe Sinhá Zózima, tem muitas peculiaridades por se tratar de algo artístico realizado num lugar “não-artístico”. Usarei esse termo “não-artístico” apenas para tentar elucidar uma linha de raciocínio mais objetiva, porque o termo realmente não pode ser esse, pois somos a prova viva que qualquer lugar pode ser artístico. Insisto em explicar o termo “não-artístico”, porque temos que lidar o tempo todo com diversas instituições e pessoas para realizarmos as nossas ações com maestria. Temos que ter alegria no olhar para juntos construirmos um mundo melhor, transformar aquele mundo do Terminal Urbano Parque Dom Pedro ll, denominado por muitos como um submundo escuro e fétido por abrigar pessoas em situação de rua, alcóolatras, drogaditos, seres perdidos, pessoas que vão e voltam para a casa, para o trabalho e para a escola, diariamente num corre-corre automático que é quase impossível pará-las. Como fazêlas enxergar um lindo arco-íris de poesia? Essa pergunta povoa nosso mar-imaginário de indagações. Esse projeto teve duração de 21 meses, o tempo exato da gestação de um elefante indiano que é considerado o símbolo da boa sorte, da sabedoria, da persistência, da determinação, da solidariedade, da sociabilidade, da amizade, do compa_________________________
3 Tatiane Lustoza_ cofundadora, produtora e artista-pesquisadora
da Trupe Sinhá Zózima 4 Lidia Zózima_ artista, professora de teatro, mestre inspiradora e que dá nome à Trupe Sinhá Zózima. Lidia virou luz em janeiro de 2016.
nheirismo, da memória, da longevidade, do poder. Acho realmente que produzir esse projeto foi e é viver tudo isso. Desde a concepção, tratamos os trabalhos como algo sagrado, mas também como uma gestação de risco. Sempre temos a sensação de que algo pode dar errado. Mas tem uma frase da Cora Coralina que nos encoraja: “É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça. ” Daí seguimos disfarçados de destemidos, com aquele ar de criança aventureira em busca de novas descobertas. Produzir um espetáculo dentro de um ônibus do transporte público, com duração média de 1h20, com público de passageiros comuns, é um mega desafio. A primeira preocupação era como explicar para as instituições a diferença desse projeto para os que havíamos realizado no ônibus da Trupe. Isso não foi nada fácil e nos rendeu grandes surpresas (boas e nem tão boas), mas que se resolveram muito bem. Outro desafio era como envolver esse público que não estava preparado para ver um trabalho teatral dentro do ônibus de maneira que não sentissem seus direitos violados. Queríamos que cada passageiro se sentisse acolhido, bem recebido, envolto num útero gigante. Para isso, tivemos que escolher a dedo a equipe de produção. Essa equipe não poderia ter perfil de trabalho apenas administrativo. Um dos critérios essenciais era gostar de pessoas, era ser carismático, amável, paciente e objetivo no momento adequado. Também tivemos que fazer um estudo para escolher os melhores dias e horários das apresentações para que fôssemos capazes de realizar as apresentações com qualidade. Elegemos, em comum acordo com o elenco e as instituições envolvidas, às terças-feiras, quintas-feiras e sábados, às 20h, como os melhores dias e horário para a realização do espetáculo. Em algumas visitas técnicas às linhas de ônibus constatamos que o excesso de velocidade poderia comprometer fatalmente a qualidade do espetáculo e que informar carinhosamente o fiscal e o motorista sobre a nossa presença dentro do ônibus era imprescindível. Durante a realização de alguns ensaios no Terminal Urbano Parque Dom Pedro ll, éramos abordados por usuários de outras linhas pedindo para que fizéssemos os ensaios em seus respectivos trajetos. Essas abordagens nos fizeram repensar a ideia inicial de fazer apresentações apenas na linha 4313/10, sentido Terminal Cidade Tiradentes. Após muitas dúvidas e questionamentos decidimos nos aventurar por cinco linhas distintas sendo elas: Terminal São Mateus – linha 3141/10, Terminal Santo
Amaro – linha 5111/10, Terminal São Miguel – linha 3301/10, Terminal João Dias, linha 6403/10 e Terminal Cidade Tiradentes – linha 4313/10. Confesso que não é uma logística simples, envolve muitas empresas, pessoas, mas ter a oportunidade de contemplar outros públicos é algo fantástico. O público sempre é o fator principal das escolhas artísticas da Trupe. Estamos sempre dispostos a ouvi-los, porque eles possuem a sabedoria do tempo e da labuta em seus corpos. Ter uma relação de afeto com todos os funcionários das empresas ligadas à SPTrans é primordial, porque eles, muitas vezes, são abordados pelo público e se tornam uma ponte direta entre o trabalho artístico e os espectadores. Mantê-los informados de tudo que fazemos e fazê-los compreender que possuem um papel essencial nesse processo de disseminação de informação contribui significativamente para uma boa comunicação dentro dos terminais. Outra coisa que nos rendeu muitas discussões foi decidir como criar o material de comunicação como flyers, mídias sociais e materiais no site para informar as pessoas com uma linguagem objetiva do que se tratava o audacioso trabalho Os minutos que se vão com tempo, pois as pessoas que estavam acostumadas a frequentar nosso ônibus tinham dificuldade de entender que esse novo trabalho seria realizado no transporte público. A produção artesanal da Trupe Sinhá Zózima nos coloca num lugar de manufatureiros da arte e quebra a barreira do glamour. O que nos preenche é estar e trocar com o público. Não nos preocupamos em escolher um restaurante maravilhoso para irmos após o espetáculo, ficamos felizes com as maçãs e o pão com queijo. Nossa viagem é longa e recheada de boas histórias e encontros. Quando o espetáculo acaba queremos apenas voltar para nossas casas refletindo sobre a experiência transformadora que é fazer teatro no ônibus e com aquela sensação de dever cumprido. A entrega que esse trabalho exige, que beira o esgotamento físico, leva embora toda a vaidade e o ego típico de alguns artistas. Essa produção é como uma colcha de retalhos. Cada pedaço que a compõe tem uma história, tem uma tessitura, tem um alinhavar especial, tem beleza nas suas imperfeições. Trabalhando com a Trupe, desde o seu surgimento, aprendi a dar atenção aos sinais que a vida dá, aprendi a tomar decisões de acordo com a Lua, aprendi a confiar no meu anjo da guarda e na inteligência do universo, aprendi a trabalhar arduamente sem pensar no salário curto no final do mês, aprendi que preciso alimentar meu corpo e alma para ter boa saúde para fazer a lata rodante ir cada vez mais longe. Aprendo diariamente que precisamos melhorar sempre e que mesmo com todas as imperfeições o mais importante é dar o melhor de si. A nossa querida Lídia Zózima, nossa mestramãe, nos ensinou a enxergar a vida com os olhos do amor, nos ensinou a servir, e que quando você serve com amor FAGULHAS II | 13
o universo lhe retribui de uma maneira grandiosamente generosa. Nos ensinou a ver beleza nas pedras do caminho e a compreender que elas fazem parte do nosso aprendizado. Nos ensinou que, às vezes, é preciso parar no meio da jornada, respirar e reorganizar as pedras para deixar um rastro mais belo, mais harmonioso. Podemos sempre melhorar a paisagem. Não devemos desprezar nada, nem ninguém. Cada ser é um mundo e cada mundo é muito
precioso para compor o mistério do universo. Esse é um breve relato de uma produtora-atrizmãe-filha-esposa-amiga e eterna aprendiz que a todo tempo está em busca de entender os mistérios da nossa missão artística. Que busca sempre olhar com simplicidade a complexidade de fazer parte da história e trajetória da Trupe Sinhá Zózima.
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
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Roberto _ foto Christiane Forcinito
Dia dois Encontro marcado
A primeira vez que encontramos o Roberto foi na praça Fernando Costa. Era o ano de 2012. Não pudemos entrar no Terminal, fizemos uma ciranda com panos coloridos, tocamos e cantamos. O Roberto é um moreno alegre, que está sempre vestido de guerra e nunca pergunta quando ou que horário vamos estar no Terminal. Ele sempre aparece. Veio por causa do pandeiro e das músicas. E ele pega o ônibus em todas as apresentações para tocar o pandeiro quando toca o samba.
Caderno de bordo_Priscila Reis
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Se teu coração pudesse viajar, qual seria o seu destino? Pergunta chave, que abre espaço no peito do passageiro viajante. Os minutos que se vão com o tempo, com Anderson Maurício Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
A ideia é filha esperançosa do caminhar5
[Anderson Maurício ]
Tem dias que as pessoas me perguntam como surgiu a ideia de fazer teatro no ônibus e em instantes o tempo/vida se apresenta como resposta. a ideia é fruto da estrada que atravessamos ao caminhar, é lamparina que necessita do querosene, do pavio, do fogo e da escuridão para iluminar. O teatro me foi apresentado como possibilidade de imaginar um outro (corpo/mente/espírito) e junto também o desejo de superar as dificuldades de um ser periférico que sou. Filho de metalúrgico criativo, meu pai, um trabalhador incansável, desde sempre morador do Extremo Leste da Cidade de São Paulo. Minha mãe, carinhosa dona de casa, sempre me encorajou e me deixou teimar. Pois fazer cursos e oficinas gratuitas era vencer a falta de dinheiro para os deslocamentos, criar estratégias para alimentação, buscar espaços onde havia arte, já que na região onde ainda hoje eu e meus pais moramos, não há. O ônibus, na trajetória do ser periférico, é uma casa em movimento que guarda momentos secretos da sua travessia. Lembro quando íamos em nossas viagens, eu e uma amiga querida, que há tempos não vejo, Miriam Eugênia é seu nome. Muitas vezes passávamos por debaixo da catraca para chegar até a Casa de Cultura Alfredo Volpi, que fica na região de Itaquera-SP. Um certo dia, eu tinha o valor da passagem e a Miriam não. Então dei meu dinheiro para ela não precisar passar por debaixo da catraca. Ela pegou o dinheiro, entramos no ônibus, rapidamente passei e sentei no banco. Quando olho ela estava 16 | FAGULHAS II
passando por debaixo da catraca. Não entendi e, assim que ela sentou do meu lado, perguntei: “Por que não pagou a passagem, sendo que lhe dei o dinheiro?” Ela, com sorriso esperto no rosto, me respondeu: “Para comprarmos o lanche no intervalo”. A Trupe Sinhá Zózima é uma fagulha que surge do meu caminhar e também da trajetória dos artistas pesquisadores que arduamente lutam, com olhos de amor para a sua existência. O grupo que nasce do desejo de olhar poeticamente para o espaço do ônibus, como espaço cênico, é uma criança que vem nos mostrando com sorrisos e choros, tombos e descobertas, que a vida é cada dia que se apresenta, e que existir é resistir, é vencer os desafios com pés de coelhos, cara de pau e coragem de herói. Assim dizia nossa Sinhá. Para a Trupe, pesquisar o ônibus urbano, suas possíveis narrativas e o encontro com o outro, foi, primeiro de tudo, descobrir como conseguir este lugar, esta máquina rodante feita apenas para ganhar dinheiro. Foi encarar a questão: Como conquistar este espaço para a construção de outro imaginário? Foi, e ainda é, tentar entender como funciona o sistema desumano de transporte público/privado, este que deveria ser direito de todos que desejam ser cidade e deslocarse por sua arquitetura, por seu corpo cidadão, entender como este sistema nos imobiliza, nos adormece e nos rouba o tempo, este que é vida. É sempre se perguntar como tudo isso funciona em nosso país? Mas também é acreditar que mesmo neste sistema cruel criado por pessoas, também podem existir outras pessoas, que buscam, ____________________ 5Anderson Maurício_cofundador, diretor e artista-pesquisador da Trupe Sinhá Zózima.
Os minutos que se vรฃo com o tempo Trupe Sinhรก Zรณzima_ foto Christiane Forcinito
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minimamente, a possibilidade de modificá-lo. É não desistir. Foi olhar, ouvir e conversar com os passageiros, pois o ferro frio do ônibus tem uma sabedoria silenciada e, ao mesmo instante, ávida por compartilhar as experiências, os sonhos estampados nas janelas de vidro, o cansaço que exala no corredor, às vezes, a decepção pela estrada percorrida e, quase sempre, a fé nos dias que virão. É saber que somos trabalhadores da cultura. Foi perceber o quanto a arte, o teatro ainda é perfume para poucos, é experiência que o trabalhador periférico desconhece, é lugar do centro, essa variedade, efervescência, luta, poder de transformação, o drama, o épico, o pós-dramático, a performance, esse teatro político ou metafísico é quase sempre o teatro para os mesmos que há tempos tem o privilégio de vivenciar. É perceber a luta dos grupos de teatro na cidade de São Paulo em descentralizar e democratizar o acesso às artes. É saber que precisamos lutar. É entender que também somos passageiros periféricos. Foi, principalmente, descobrir como atuar, gerir e parir esse ônibus gigante e tudo que ele exigiria desses artistas pesquisadores em movimento. Pois sempre os estudos, os planejamentos, as estruturas foram insuficientes para lidar com a gestão, produção, criação e circulação dos trabalhos desenvolvidos pela Trupe Sinhá Zózima. É preciso estar atento e ter coragem de presenciar o aqui e agora para lidar com as questões. Lidar com a complexidade que o instante do encontro em movimento propicia. Pois ao nascer a esperança no olhar, ela sempre há de encantar e mover a necessidade de existir, com a certeza de que tudo há de se transformar com o tempo. Acredito que isso sempre nos moveu. Quando estreamos nosso primeiro espetáculo dentro do ônibus em movimento pela cidade, lugar para trinta e dois passageiros em cada sessão, e ficamos meses apresentando para uma, duas ou três pessoas, tanto
na primeira, quanto na segunda sessão; quando ficamos mais de cinco anos sem ser contemplados com nenhum edital; quando, em várias vezes, as empresas interromperam a parceria de emprestar um ônibus para nossas apresentações; quando a garagem onde guardávamos nosso ônibus nos expulsou; quando fomos impedidos de desenvolver nosso projeto do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II; quando tantas e tantas outras dificuldades nos foram apresentadas, nos foi também apresentada a possibilidade de superá-las e de transformar o nosso caminho, foi a necessidade de existir que nos fez resistir e ter a consciência das mudanças necessárias, dos trajetos a percorrer, das escolhas feitas e do entendimento da importância do nosso trabalho, este que nos trouxe a sabedoria dos nossos direitos como cidadãos. Perceber com coragem a travessia sempre transformou a nossa arte, o nosso teatro que busca o encontro sem fronteiras com o outro que também sou eu. Gaston Bachelard escreve: “imaginar é subir um tom na realidade”. Acredito que o ônibus, como possibilidade de encontro com a arte, foi a necessidade de superar o espaço que me foi apresentado. Foi um olhar sensível e honesto com meu caminhar e dos que me antecederam. Pois a possibilidade de olhar e transformar os espaços públicos da cidade é travessia antiga e de muitos. Mesmo tendo contato tardio com grupos e artistas como Teatro da Vertigem, Zé Celso, Satyros, Grupo XIX de Teatro, Teatro Popular União e Olho Vivo do César Vieira e tantos outros que nos inspiram, que interferiram e construíram outro imaginário possível para os espaços na cidade de São Paulo, para o encontro do público com a arte, construção que ultrapassa as fronteiras do tempo e do espaço, contaminando o ar que ilumina a todos, fazendo brotar no espírito a possibilidade de reencenar a cidade e de poder semear o encontro com a arte. A ideia de se fazer teatro no ônibus é fruto, filha esperançosa do caminhar.
Os minutos que se vão com o tempo, com Maria Alencar, Cleide Amorim e Anderson Maurício Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito 18 | FAGULHAS II
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia três O Canto do Encontro
Hoje o Luiz Gayotto viu nossa empolgação com o encontro do menino Richard que apareceu no nosso busão no Toda Terça Tem Trabalho, Tem Também Teatro! Ele estava desaparecido há um mês. Conseguimos localizar a família. Agora ele está em casa. Mas para contar a história foi um bafafá, cada um com sua versão, os ânimos foram a mil. Então o Luiz propôs uma improvisação musical com o tema do encontro. Foi lindo. As mulheres não conseguiam terminar a frase da música com tanto nó na garganta. Saíram algumas pérolas: “Eu quero o mar, eu quero a praia, eu quero a casa, eu quero a rua, eu quero o céu, eu quero brincar.” “No dia em que eu ganhei asas para voar, eu vi um ônibus enorme. Eu pude ver um útero de um tamanho gigante. Que cabe sete filhos, que cabe uma nação. Que cabe um pedaço do meu coração. Eu não quero mais voltar.” “Em todo lugar, alguém, espera alguém voltar. Eu espero que um dia eu tenha alguém assim. Que também possa esperar por mim.”
Caderno de bordo_Priscila Reis
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A Música de Os minutos que se vão com o tempo 6 [Luiz Gayotto ]
Os minutos que se vão com o tempo, com Tatiana Nunes Muniz | Trupe Sinhá Zózima_ foto Danilo Dantas
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Para mim, falar desse processo é um prazer. Considero meu encontro com a Trupe Sinhá Zózima de uma felicidade ímpar. Desde nossos primeiros encontros, ainda na fase de “carpintaria”, percebi que tínhamos um potencial incrível no grupo a ser explorado. Muita disposição e disponibilidade dos atores para nos jogarmos na brincadeira de fazer música. E talento, também, porque senão ficaria mais difícil. Desde o início, através de atividades que incluíam o canto, percussão e violão, fomos desvendando as possibilidades da música aliada ao processo de pesquisa que a Trupe vinha fazendo no Terminal Urbano Parque Dom Pedro II. Os estímulos sempre foram fartos. As histórias daquelas pessoas que passam pelo Terminal são fonte inesgotável de inspiração musical. A construção da dramaturgia também foi nos trazendo um farto material, e composições foram surgindo naturalmente, enquanto íamos apurando questões técnicas em relação ao canto em grupo, abertura de vozes e contato com outras possibilidades de instrumentos musicais como cavaquinho e acordeom, afim de incrementar o que viria a ser a trilha do espetáculo. E, assim, de uma forma muito tranquila, fomos compondo o repertório de músicas para contar a história daqueles personagens tão ecléticos. A nossa experiência musical passou por muitos estilos – nunca foi nossa preocupação definir uma estética única, mas, sim, experimentarmos o máximo possível. Mesmo porque, qual a música que toca naquele Terminal? Todas! Assim surgiram sambas, baladas, baiões, funks, repentes, enfim, uma experiência musical muito rica! Quando saímos dos nossos ensaios no ônibus da Trupe e partimos para “campo”, para ensaiar nos ônibus de linha em direção à Cidade Tiradentes, novos desafios surgiram. Fazer música em um espaço diferente, como o ônibus urbano em movimento ou num terminal, onde tudo contribui para desconcentrar o “ator-músico” sempre foi uma questão a ser trabalhada e que sempre esteve presente a partir daí. Tocar um instrumento ou cantar numa sala fechada ou mesmo numa garagem dentro de um ônibus parado é completamente diferente de tocar um instrumento ou cantar num ônibus em movimento, com passageiros conversando, entrando e saindo, barulho do motor e da rua, portas se abrindo e fechando, etc. Ou mesmo no Terminal Urbano Parque Dom Pedro II onde milhares de pessoas circulam e centenas de ônibus entram e saem sem parar num barulho incômodo e ininterrupto, a tarefa de se fazer música parece coisa de maluco, mas: “viva os malucos!” Esse ingrediente foi uma novidade na minha experiência de pensar a música como parte da dramaturgia num espetáculo teatral. Como realizar a música nessas condições? Como deixar o ator livre e tranquilo para executar a música durante o espetáculo? Como fazer essa música chegar ao público com clareza e qualidade?
Aos poucos, fomos entendendo que a relação da música com aquele ambiente era também a relação do texto, da ação, da encenação. Era um desafio para todos e não só para mim. Através dos ensaios nos ônibus e da relação com os “passageiros-platéia”– cada dia é um dia – nos vinham a percepção dos ajustes necessários, das necessidades técnicas de sonorização e mais ainda de execução daquelas músicas: como cantar, tocar e representar para aquele público, de uma forma que tudo chegasse a eles da forma como pensamos na gênese das ideias. À medida que fomos nos apropriando desse “palco-ônibus” fomos também nos acostumando com algumas situações e adaptando as nossas ideias para essa nova realidade desafiadora. O próprio contato com o público foi amaciando com o tempo e percebemos a grande importância que a Música teve nessa dinâmica. Entendo que a Música nesse espetáculo é o elo entre dramaturgia-atores-público, que possibilita momentos de pausa para reflexão, ou para um descanso na volta daqueles passageiros às suas casas, traz alegria que aquelas pessoas tanto precisam, traz emoção tão necessária naquele ambiente. O mais incrível é que há momentos em que sinto que chegamos a uma opereta urbana, no sentido mais literal em que isso seja possível. A interação atores-textomúsica-público-ônibus-paisagem da cidade nos traz uma sensação de estranhamento e de emoção, de alegria e de incômodo, de prazer e de susto, um espetáculo teatral com elementos de uma instalação artística no meio da cidade. Por fim, tudo isso para um público para quem a cultura deveria ser prioridade número um! Muitos têm contato com o Teatro pela primeira vez e finalmente estão tendo esta oportunidade. Uma realização para nós artistas-criadores. Trupe Sinhá Zózima, “prazer, eu te amo!” _________________________________ 6Luiz Gayotto_ compositor, cantor, arranjador, violonista, percus-
sionista e percussionista corporal. Responsável pela direção musical do espetáculo Os minutos que se vão com o tempo.
Os minutos que se vão com o tempo, com Junior Docini Trupe Sinhá Zózima_ foto Danilo Dantas
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Eu posso ser a praia, a onda, o mar Eu quero ganhar asas e voar Ser a casa, ser o pássaro, o ninho Caminhar, viajar, imaginar Um passo diferente, espaço outro É gerir, parir o ônibus gigante Útero... mãe do trabalhador Que constrói as rugas da cidade Constrói outros rumos Constrói com o coração O tempo e o futuro O mundo e essa canção Útero Gigante letra de Anderson Maurício e Priscila Reis
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desenho_Lucas Lopes
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Dia quatro Sobre linhas e tessituras Depois de muitos anos tivemos uma aula com ela: a Zózima. A Lidia é um fenômeno. Um milagre. Como é rico ficar ao seu lado, ouvindo suas histórias, sua percepção de mundo, aprender com sua sensibilidade e coragem. A Lidia deu uma linha para cada. Fiquei com a de cor rosa, o amor incondicional. Procurei informações e encontrei sobre a Aurora, portadora das brisas matinais, aquela que esparge o orvalho pelos campos e que acorda as criaturas, dando ao mundo as primeiras luzes que guiarão os trabalhos humanos. Cada pessoa recebeu um fio com uma ou mais cores. Essa linha foi utilizada para passar pelo ônibus inteiro, falando trechos do texto. As mãos são o pensamento, importante ficar atento ao trajeto. Depois que passamos nossas linhas pelo ônibus inteiro, ficamos ali observando por uns cinco minutos. O ônibus virou uma grande teia. Para desfazer a teia, tivemos que desfazer os passos, revertendo também as palavras. Exercitar as múltiplas possibilidades da palavra, também a sua dualidade. Vou escrever uma delas: Cada dia nasce um sol Cada rosto um novo olhar Cada olhar esconde um sonho Cada homem tem seu mar Cada noite nasce uma lua Cada rosto um olhar antigo Cada olhar esconde um fato Cada homem tem o seu vazio
Caderno de bordo_Priscila Reis
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Lidia Z贸zima e o menino Theo_ foto Tatiane Lustoza FAGULHAS II | 25
Os narradores sobre7 rodas [Maria Alencar e Tatiana Nunes Muniz ]
registro de caminhada de Priscila Reis_foto Priscila Reis
Caminhada Ato de caminhar Processo, percurso, trajetória Caminhada afetiva Materialidade simbólica do ator
Caminho feito a pé pelos artistas pesquisadores em um período de doze horas, das 7h às 19h, do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II ao Terminal da Cidade Tiradentes. Neste trabalho acreditamos que, em primeiro lugar, podemos destacar “a caminhada”, fio que alinhavou
o processo de construção dos arquétipos, da dramaturgia e da atuação. Além disso, foram extremamente importantes para a trajetória dos atores: a experiência pessoal de cada artista-pesquisador junto ao livro base de pesquisa, A Odisseia, de Homero; bem como as narrativas de história de vida de passageiros. Foram estes os três elementos principais que permearam o processo. O método de pesquisa e criação da Trupe Sinhá Zózima está diretamente ligado ao trabalho desenvolvido com nossa querida e saudosa Lidia Zózima (O nome da ___________________ 7 Maria Alencar e Tatiana Nunes Muniz_artistas-pesquisadoras da Trupe Sinhá Zózima
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Trupe é uma homenagem a ela, preparadora corporal e professora do curso de Teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, SP, Brasil). A pluralidade de cada ser, a pesquisa, a busca de cada ator; como cada artista se relaciona com os símbolos colhidos, com os arquétipos e como cada elemento comunica dentro de uma esfera de crescimento pessoal e artístico. A cena é como a flor, o fruto, que é o resultado de uma gestação, de um processo, a planta se prepara durante um período levando em consideração todos os elementos externos que podem contribuir para seu desenvolvimento. Assim é o ator, a cena, o passageiro. E Lidia Zózima não separava a arte do cotidiano, dos processos naturais da vida e do universo. A respeito da experiência da busca de cada ator, a cami-
nhada “Foi e É” uma fonte inesgotável de material; passado, porque está no nosso imaginário e na memória corporal; presente, pois vários signos foram colhidos pelos atores e suas respectivas experiências estão dentro do espetáculo, e jogamos com isso sempre que apresentamos; futuro, porque a caminhada não modifica e nem reverbera somente no processo artístico, mas também no ser humano. Quando fizemos a caminhada, foi com olhos dos arquétipos que trabalhamos, com os símbolos da Odisseia somados às informações da rotina dos passageiros que fazem todos os dias esse trajeto. Para fazer a travessia seguimos algumas regras: vivenciar o trajeto e codificar a experiência para o estudo dos símbolos utilizando-se
foto Priscila Reis
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de narrativas. Assim como Ulisses teve que caminhar de volta para casa, assim como os passageiros trabalhadores saem de seus lares e regressam depois do trabalho, nós atores também tivemos esse retorno. Esta ação dentro do processo criativo de cada artista pesquisador deu vazão a várias conexões, tanto na pesquisa individual quanto na pesquisa coletiva. O caminho de cada artista foi e é riquíssimo em detalhes, o mesmo caminho foi destinado a todos, mas a experiência e o material colhido foram distintos. O experimento foi muito significativo para a criação das narrativas e a estrutura de cada personagem passando pelos arquétipos da Odisseia. Fiamos fio a fio nossos destinos no processo. A carpintaria (oficina) com a Andreia Cavinato, cujo objetivo foi estudar A Odisseia utilizando diversas formas de narrativas, caminhadas, mapas afetivos, cantigas e cirandas, foi essencial para o entendimento e apropriação dos arquétipos e aproximação do ator com a obra. Durante o processo descobrimos como metaforizar simbolizar e sintetizar; transformar em materialidades, trazer para o real, em objetos as narrativas dos cantos da Odisseia. Cada materialidade apresentada dentro do processo conduzido por Andrea Cavinato teve grande importância na construção dos arquétipos. Mapa, derivas ou narrativa, os fios iam sendo tramados, se encaixando uns aos outros. Muitos davam nós, se embaraçavam, mas depois víamos os trabalhos sendo concluídos. O desafio era entender e corporificar a história do público e tornála universal de forma que aproximasse o outro. Para isso, as diversas formas de narrativas e o estudo da simbologia, por meio do imaginário, foram abrindo caminhos nesse terreno desconhecido. Dentro desse estudo do teatro imaginário o ator narrador carrega muitos símbolos que os conecta com o outro. O narrador é um ser mítico, como aponta Walter Benjamin, O narrador busca dentro da sua vivência, emoldurar a narrativa como experiência de vida. Um narrador assume vários personagens dentro da narrativa. Ele não estuda somente o conto, o passado, mas busca sobrepor informações, atrair o ouvinte, envolver o ouvinte numa trama tramada por ele. O narrador também está imbuído de sua convivência, com o mundo que vive, seu encontro com o ouvinte. Durante todo o trabalho buscamos estabelecer o contato direto com os passageiros, ora o arquétipo ora o ator, dentro desse campo de realidade e fantasia em que as narrativas se encontram. A carpintaria com a Andrea Paula dos Santos (representante do NEHO/USP) e as conversações que ela ministrou sobre História Oral foram de suma importân28 | FAGULHAS II
Pincel, tinta, mapa do trajeto, 1kg de sementes, esse era o peso do meu corpo quando saí de casa às 4h45 da manhã. Quando cheguei ao Parque Dom Pedro II, o cheiro do café era forte e dançava leve com o vento, as filas ainda eram muito pequenas. Fiquei observando e senti vontade de voltar para casa, senti saudade de casa, da minha cama, pensei na minha família. Senti medo de iniciar o meu trajeto. A cidade ainda estava calma. Mas eu tinha que fazer a viagem para poder existir, o trajeto de forma poética e vívida assim como herói Odisseo. A caminhada de cada ser humano só existe se ela for lembrada. A minha viagem foi recheada de símbolos fantásticos, desde o encontro com o “rei das amoras”, um menino chamado Leon que me recebeu em seu pomar, quando já me faltava esperança para continuar, a passagem do rio morto, a casa encantada no deserto dos carros…. Maria Alencar_relatos de uma caminhada, setembro de 2014 (arquétipo: menina abandonada pela mãe, que carrega uma cesta com muitas flores)
cia para o trabalho, como fonte de pesquisa nesse projeto da Trupe. Não só enriqueceram o trabalho como também valorizaram os “atores do cotidiano”, que são os passageiros do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II e que ficamos estudando, analisando, colhendo olhares, gestos, frases, palavras e histórias. Nesse processo mais do que em qualquer outro o público é fundamental não só como plateia, mas também como fonte. O teatro acontece quando existe a troca entre plateia e a cena teatral, nesse espetáculo não existe plateia, o público faz parte do espetáculo e interfere diretamente no desenvolvimento da cena, isso no sentido poético, visual e de sincronicidade. Os atores invadem a cena cotidiana e o público passageiro invade o espaço cênico, ou melhor, dividem o mesmo espaço. Uma vez dentro do ônibus, somos atores passageiros e temos que abrir espaços ao invés de invadir o espaço do outro, assim, a atuação se aproxima do cotidiano. Ficamos um bom tempo nos debruçando sobre as questões: Qual seria a melhor maneira de cativar, conquistar, motivar e emocionar essas pessoas? Sabendo que boa parte desse público-passageiro nunca teve contato com o teatro, quais cuidados devemos tomar ao adentrar seu espaço? A plateia é plural, distinta em termos de status social, idade, sexo e renda, e está impregnada de suas
A vontade de “buscar” o ponto final venceu todas as barreiras… muitos seguem na vida buscando por alguém ou alguma coisa, que as vezes, nem se sabe o que é… a vida é como uma estrada longa, que vai deixando para trás um tanto de passos dados, e que tem pela frente mais um tanto de passos para dar… para saber o que tem pela frente, é preciso ter coragem e seguir… ainda que a jornada termine no meio do caminho… qual é o meio do caminho de cada um? Qual é o fim? Cleide Amorin_ relatos de uma caminhada, agosto 2014 (arquétipo: mulher que não está)
experiências culturais e religiosas. Diante disso, o ator necessita entender as diversas formas de aproximação, buscando respeitar os limites que o outro indica verbal ou corporalmente. Com isso a materialidade do ator, vista como a experiência artística colhida no processo, é colocada em questão em função da cena. E dentre várias experiências e encontros que tivemos com passageiros do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, destacamos um: Fizemos uma entrevista por algumas horas com um frequentador do terminal chamado Aguinaldo Lago. Ele nos emprestou alguns de seus diários, que serviram de inspiração dentro do processo. A entrevista foi elaborada em forma de diálogo, de forma que o entrevistado não fosse tratado como um “mero informante” da pesquisa, mas sim um colaborador atuante e imprescindível no projeto. Nesse trabalho onde o ponto de apoio principal é o encontro, a carpintaria de História Oral levantou as técnicas necessárias para iniciar esse trajeto. A conversa, o sentar em um local e ficar segundos, minutos ou horas com alguém, ato que está se perdendo dentro das urgências e necessidades que o homem cria. O narrar uma história, conversar com alguém é como criar um bordado, é algo delicado e simples, é um processo artesanal que exige outro tempo, o tempo do outro. O narrar uma história, conversar com alguém é como criar um bordado, é algo delicado e simples. Os pontos, as linhas se encontram para criar um desenho, é um processo artesanal que exige outro tempo, o tempo do outro. A parceria com o NEHO - Núcleo de Estudos de História Oral, em especial com a Prof° e Dra Andrea Paula, nos fez refletir sobre as diversas formas de entrevistas, como um gênero oral que privilegia a experiência de vida daqueles que narram suas histórias e que buscam
as singularidades das trajetórias pessoais. A experiência citada com o Aguinaldo e com outros passageiros reflete diretamente no entendimento do que é atuação dentro desse espetáculo. Somos atores narradores e temos um público que também é. O ator narra sua experiência e dá voz ao passageiro para protagonizar sua história. A teatralidade do público-passageiro e do ator encontra-se na troca, na cumplicidade, na simpatia e na empatia que se cria com os arquétipos, em conexão com as narrativas de vida expostas dentro do ônibus. A pesquisa de história oral se renova a cada apresentação e modifica o ator. O ator narrador carrega muitos símbolos que os conecta com o outro. Como pesquisadores e atores, temos que analisar e entender os diversos tipos de público que ali se encontram, para assim, poder criar uma relação de troca que possibilite o encontro, a conversa, na qual a pesquisa de atuação está inteiramente ligada. Os arquétipos da Odisseia foram se assemelhando a arquétipos sociais presente dentro do terminal, com isso surgiram os arquétipos cotidianos que nos aproximaram dos passageiros e possibilitaram a troca, o diálogo e a identificação. A voz não é somente dos atores, um ponto importante deste trabalho é dar voz aos passageiros, criar espaço para que eles protagonizem suas próprias histórias. O trabalho de atuação de cada ator, é transformar essa ação em uma experiência teatral, de forma que o passageiro, que é o público, vivencie esse trajeto e que essa experiência reverbere em suas camadas e que, de alguma forma, o modifique, assim como Ulisses que não deixou de viver sua jornada e se modificar. Esse trabalho se renova a cada dia, assim como nosso público e espaço. Atuar é estar em ação, e para desenvolver o trabalho dentro do ônibus é preciso compreender e jogar com uma tríade de movimentos: o movimento da cena em relação ao público, o ônibus em relação à cidade e a cidade em relação ao ônibus. Nisso, o ator precisa sintetizar esses pontos e todos os seus desdobramentos para poder estabelecer uma relação com o espaço externo, os signos urbanos, com o ônibus e com os passageiros. Atuar dentro do ônibus é também atuar com a cidade, que pode estabelecer uma relação direta ou
Existe algo mais próximo num personagem criado a partir da História Oral, há uma cumplicidade, um reconhecimento. Cleide Amorim_artista-pesquisadora da Trupe Sinhá Zózima
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indireta, que dialoga com a cena de diversas formas. Além disso, a apresentação não chega da mesma maneira para todos, jogamos com uma dramaturgia e encenação fragmentada. Por exemplo, existem alguns fatores, como ruídos externos, o barulho do motor, o ambulante que entra vendendo suas mercadorias, entre outras coisas, e para se fazer entender, algumas vezes as falas são duplicadas pelos atores. Em momentos o ônibus fica lotado, o público não consegue ver toda ação, apenas a escuta. E com isso cada um tem sua experiência e entendimento particular. Para nós, quando um passageiro é inserido na ação, essa passa a ser um elemento surpresa, mas já esperado. Essa situação nos tira da zona de conforto, o espaço já nos tira da zona de conforto. Quando o passageiro é inserido de forma direta na cena, o improviso torna-se ferramenta fundamental para o andamento da cena, é um jogo de ação e reação, momentos de comunhão da cena entre as partes. Como a narrativa individual pode ser coletiva e como a narrativa coletiva modifica a cena, são várias camadas que se criam, alguns passageiros se doam mais na fala, outros no olhar, e cada passageiro cria uma narrativa diferente que dialoga com os arquétipos. No espetáculo Os minutos que se vão com o tempo temos o público que vai nos assistir, o público/ passageiro que vai do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II aos outros terminais e o público que embarca e desembarca no meio do caminho. Com o embarque e desembarque dos passageiros ocorrem rupturas durante toda a apresentação. Essa é uma das particularidades do espaço que exige observação e coloca o ator em ação, em atuação, pois a criação de estados e aberturas de espaços para este público precisa ser constante, nesse sentido o ator necessita identificar esse público que se renova e estabelecer relação. Não chegamos na casa do vizinho abrindo a geladeira e montando a mesa para o café da manhã, para atingir esse estágio temos que passar de nível: de vizinhos para amigos. Existe um ritual: chegamos, pedimos licença e nos apresentamos. Depois desses passos é que começa a troca. Assim segue o trabalho da Trupe. Para entrar no ônibus, que é o nosso barco e, ao mesmo tempo, a casa passageira do trabalhador, residimos no terminal que é o espaço que acolhe esse ônibus. Trabalhamos com apropriação na área externa e interna, pensando no terminal e no ônibus, isso requer diferentes tipos de apropriação de espaço e de relação. Como entender esses espaços que se transformam a cada minuto? Como ocupá-lo cenicamente? Como se fazer escutar? Como escutar o outro? Como dar um colorido ao ferro frio e poder distrair e modificar olhares de um povo cansado? São questões que 30 | FAGULHAS II
Quando tomo a palavra e assim faço nascer o discurso, não é só o “meu” discurso que aí se apresenta, mas o discurso do outro. No caso, o discurso do ônibus pesquisado em simbiose com o discurso teatral. Alexandre Lindo_ ator e pesquisador em Resiliência. Rizoma. Reminiscência
se renovam em cada apresentação, pois estamos em um espaço que se transforma a cada minuto. Descobrimos nesse projeto que a música é de suma importância, por ser um instrumento de aproximação com o público. Durante os ensaios, principalmente os que fizemos no próprio transporte, cada vez mais percebíamos a potência na música na cena. Foram observadas as relações entre cena e música, entre música e público, e analisadas as dificuldades encontradas, bem como as escolhas efetuadas e suas consequências com relação ao nosso trabalho no contexto da encenação. As canções do espetáculo vieram de experiências que tivemos no terminal, dos arquétipos, da caminhada, de frases e palavras dos passageiros e dos diários do Aguinaldo. A exemplo, a música Prazer, eu te amo, que foi criada de forma coletiva, a partir de uma situação ocorrida no terminal com um frequentador em estado de rua, que chegou até a artista-pesquisadora Tatiana Nunes e lhe presenteou com a frase, num momento oportuno para a construção da personagem contendo nas palavras ditas a essência do arquétipo trabalhado.
Prazer eu te amo, você pode ser meu noivo? Eu preciso de um abraço, de um amasso e uma conchinha. Pra aquecer as noites frias, lembrar que eu existo, e esquecer a dor do dia. Enfim! Trecho da música Prazer, eu te amo
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Conversação As vigas do heroísmo: reflexões sobre A Odisseia, de Homero com Gilberto Figueiredo Martins_foto Priscila Reis
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Conversação Passageiros em trânsito com Andrea Paula dos Santos_foto Priscila Reis
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Conversação Urbanismo, Moradia e Transporte com Raquel Rolnik_foto Priscila Reis
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Os que nos deram as mãos ao longo do percurso [Maria Alencar e Tatiana Nunes Muniz]
Conversação A invenção do cotidiano de Michel de Certeau com Rodrigo Leite Morais_foto Priscila Reis
Durante o processo, a Trupe Sinhá Zózima contou com a participação e contribuição de diversos artistas e pesquisadores que trouxeram suas reflexões e provocações. Foram realizados três tipos de ações: as carpintarias, as conversações e as partilhas de vivência. Mas, antes que você fique de cabelo em pé por conta desses nomes, nós explicamos. Para a Trupe a carpintaria é, sobretudo, um movimento que rompe com o limiar entre teoria e prática. Artistas-pesquisadores se debruçam sobre as questões e depois vão para as ruas colocar em prática suas inquietações iniciais, por meio de intervenções artísticas, e voltam para o espaço da reflexão. A carpintaria é coordenada por artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima com a participação de pesquisadores convidados. São reinvenções do espaço e da memória, em que a nossa vida e a dos outros, aqueles de quem ouviremos histórias e lembranças, serão reinventadas em gestos, variações da voz, desenhos, cantoria e poemas. Estiveram conosco nas carpintarias desse projeto: Andrea Cavinato, Andrea Paula dos Santos e Luiz Gayotto. Sobre esses três processos discorremos ao longo da revista. Tivemos também muitas conversações, espaços de conversa e debates, abertos ao público. As rodas são meios de conversação com a comunidade e um modo de entendimento sobre as questões intrínsecas à ideia de teatro do encontro sem fronteiras desenvolvida em ônibus na cidade de São Paulo. Os encontros não se restringem à procura de respostas, mas vislumbram a problematização da pesquisa realizada pelo grupo. E nesse projeto estiveram conosco: Andrea Paula dos Santos, APE – Estudos em Mobilidade, Eduardo Okamoto, Gilberto Figuei34 | FAGULHAS II
redo Martins, Marcos Ferreira Santos, Raquel Rolnik, Rodrigo Leite Morais e Ruy Braga. Para citar alguns exemplos das conversações, como complemento ao estudo sobre A Odisseia, de Homero, recebemos no ônibus da Trupe, Gilberto Figueiredo Martins, doutor em Literatura Brasileira. Tivemos uma conversa gostosa e simples e a oportunidade de entender melhor a obra com que estávamos trabalhando, falar sobre sua simbologia e analisar trechos do livro, o que permitiu que fizéssemos um contraponto com a realidade e que entendêssemos melhor o porquê da trajetória do herói. Já Marcos Ferreira Santos trouxe Gaston Bachelard e A poética do espaço. Foi uma conversação rica em poesia, significado e ressignificação de espaço; o espaço que se torna “lugar”. Assim como naquela noite o ônibus da Trupe se tornou um lugar, buscamos também transformar de espaço em lugar o ônibus do transporte coletivo. Foi uma noite regada de poesia, imaginação e sensibilidade, sensações que buscamos passar aos passageiros do transporte, a fim de que, durante sua viagem no coletivo, mesmo envoltos no ferro frio, eles pudessem encontrar um ninho provisório até a chegada em seus destinos. Já as partilhas de vivência vêm do movimento de partilhar experiências de criação e, sobretudo, de vida. Decorrem do objetivo de conversar com artistas e grupos de teatro que desenvolvem pesquisas e que podem contribuir com o projeto da Trupe Sinhá Zózima. As partilhas de vivências são conversas cênicas, práticas, ou seja, os grupos e artistas convidados realizam uma intervenção, performance ou apresentação. Dessa forma
Conversação A invenção do cotidiano de Michel de Certeau com Rodrigo Leite Morais_foto Priscila Reis
somos também chamados a dialogar, tecendo movimentos de conversação verdadeira, em que todos aprendem. Os grupos e artistas convidados foram distribuídos em três eixos: Moradia em Movimento_ Brava Companhia, Grupo Esparrama, Pombas Urbanas e Teatro Documentário; Transporte em Movimento_ Cia Auto Retrato, Coletivo Estopô Balaio, Grupo XIX de Teatro e OPOVOEMPÉ; Cultura em Movimento_ Avoá Núcleo Artístico, Cine Favela, Grupo OPNI, Eduardo Nogueira e Slam da Guilhermina. Com o grupo OPOVOEMPÉ partimos do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II e seguimos sentido Cidade Tiradentes. O grupo realizou uma intervenção chamada Pausa para respirar, que originalmente é feita nas ruas ou em lugares abertos e de grande circulação. Iniciaram a ação fora do ônibus, ainda na fila. Usavam jaleco branco, estetoscópio, carregavam algumas placas com frases nas mãos. A ideia do grupo foi de grande sensibilidade e beleza. De forma simples, propuseram para
as pessoas que ali estavam, um momento de pausa no cotidiano corrido, cansado e estressante. Um momento de pausa para respirar, nos fazendo lembrar que somos seres vivos, que respiramos e que precisamos disso para sobreviver. As frases que estavam escritas nas placas, como por exemplo: “Ficar em silêncio”, “Dar um sorriso?”, “Abraça alguém?”, “Pausa para respirar”; elas, por si só, já diziam muitas coisas e propunham, aos que assistiam à intervenção, questionamentos sobre seus hábitos, bem-estar e modo de vida. O grupo propôs ao público/passageiro sentar, controlar a respiração e ouvir o coração fazer a poesia, dando a entender para o corpo que ele podia voltar a ter sintonia. O que será que o coração dizia, a cada um que a ele ouvia? O que cada um esperava? Que música ele tocava? Enquanto isso, olhares curiosos apontavam dentro do ônibus, pois o que víamos era a imagem de médicas transitando. O uso do símbolo, da imagem sintetizada é extremamente importante dentro desse processo, FAGULHAS II | 35
quando a imagem também é narrativa, o passageiro faz sua leitura. Pensando no estudo do símbolo, do mito, elementos que sempre estiveram no processo desde o início, pensando também na caminhada, no estudo da Odisseia junto ao teatro e imaginário com a Andrea Cavinato, pudemos perceber dentro desse contexto da intervenção de OPOVOEMPÉ o bom uso de símbolos urbanos e sociais e como eles comunicam. Os tipos sociais presentes no espetáculo, como a criança abandonada pela mãe, a velha cega, a mulher que já não está, o maluco de rua, a adolescente grávida, a noiva abandonada e o funcionário dos correios representam núcleos que estão no cotidiano de cada cidadão, encontramos esses tipos em cada esquina. O uso da imagem, do símbolo dentro do processo de atuação é extremamente delicado, pois é algo que está entre o cotidiano e fantástico, trabalhamos uma abordagem mais delicada, que passa primeiro por uma relação de confiança, de empatia com o outro e segue uma linha do cotidiano para o extra cotidiano. Em outro momento dessa nossa trajetória e pesquisa, agora não mais recebendo grupos nos ônibus, mas sim indo ao encontro deles, fomos até o grupo Esparrama, que se apresenta em uma janela voltada para o Elevado Costa e Silva, o Minhocão. O público assiste ao espetáculo de cima do viaduto, que fica fechado para os carros aos finais de semana. Quem poderia imaginar que, entre tantas janelas que ficam a cerca de cinco metros de distância do viaduto, poderia surgir a ideia de colorir, dialogar, ressignificar esse local tão sem vida, degradado, sujo e barulhento? Pois o grupo Esparrama exibe seus trabalhos cênicos em duas janelas de apenas alguns metros cada, mas que se tornam gigantes aos olhos de quem passa. Nesse lugar não usual para tais fins, vemos a poesia se esparramando pela janela desse apartamento, que é moradia de dois integrantes do grupo. Apartamento no qual nós, da Trupe Sinhá Zózima, pudemos adentrar para um gostoso bate-papo. Não mais olhando de fora, mas, sim, dentro das coxias e do palco. Pudemos ver a desmontagem do espetáculo e os móveis do apartamento voltando para o lugar. Durante a conversa, uma das perguntas que fizemos foi: “Como surgiu a ideia?” E nos foi respondido que a vontade era antiga, pois eles sentiam a necessidade de dar àquelas pessoas que têm seus lares invadidos pelo Minhocão a possibilidade de um encontro com a poesia e com a arte. O desejo do grupo é falar sobre a relação com o viaduto e como eles poderiam subvertê-la. Fazendo agora uma relação entre essa experiência e a pesquisa para esse novo processo da trupe, Os minutos que se vão com o tempo, muitas coisas vão surgindo e outras ficando pareadas com vontades e pensamentos. Dentre elas, a mais óbvia é a utilização de lo36 | FAGULHAS II
cais não convencionais de se fazer teatro (já que usamos o ônibus urbano como espaço de pesquisa), a ressignificação e a humanização, entre tantas outras coisas. Pensando nessas questões, lembramos de uma vez em que fomos fazer uma apresentação no interior de São Paulo e, ao chegar, fomos recebidos pela produtora do evento que notoriamente não havia entendido o sentido do nosso trabalho. Depois de explicarmos nossas necessidades técnicas, pois não estávamos com nosso ônibus e nem com nosso motorista, ela, não com estas palavras, mas dando a entender que era isso que se passava em sua cabeça, disse que não entendia porque os grupos inventam esse tipo de coisa já que seria mais fácil usar o teatro convencional. Ainda bem que nem todos pensam dessa forma, porque, se pensassem, um bairro afastado e carente daquela cidade teria ficado sem a experiência do contato com a arte. Especialmente um menino que assistiu as três sessões que aconteceram naquele dia e, que na última delas, já sabia cantar as músicas do espetáculo. Ao final, sua mãe (que tinha assistido também, entre sorrisos e lágrimas) veio falar conosco e disse que não via o filho sorrir daquela forma havia meses, pois ele havia perdido um irmão que morreu durante uma brincadeira. São em situações como essa que vemos que, mesmo com a má vontade e falta de sensibilidade de uns, a arte transforma, modifica, contagia e encanta quem tem os olhos e o coração sensíveis. E se todos pensassem como aquela produtora? Os passageiros do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, os moradores e frequentadores do Minhocão, a comunidade do Pombas Urbanas, os vizinhos do Teatro Documentário e tantos outros não poderiam prestigiar e se envolver num universo cheio de poesia e respeito para com o outro que frequentemente e até contra a vontade, são sufocados por uma metrópole enlouquecedora. Com nosso trabalho, sem dúvida, podemos e devemos levar arte, plantar nesses locais áridos florestas e flores, trazer a sensibilidade e a brandura aos corações de tantos. Nessas situações, nossas vontades ganham força e insistimos em ficar, mesmo que nem sempre os cenários sejam favoráveis. Devemos, sim, criar novas formas de se fazer e assistir teatro, abusar das possibilidades de uso da cidade, fazer apropriações de espaço, pois a arte está em todo canto. É só tirar a venda dos olhos e enxergar. Quem foi que disse que a arte tem fronteira?
Dia cinco
Encontrando o eixo dos minutos Materialidades Levei um colar de flores vermelho. Molhar o colar de flores. Mudança de estado. Junior: música do Zeca Pagodinho Maria: sementes Tati Nunes: lenço transparente branco Andrea Cavinato sonhou que estava nos ínferos, pessoas mortas lhe davam conselhos. Se sente pronta para o fazer da Odisseia. Ela, uma menina que andava na biblioteca com suas botas ortopédicas, atrás da leitura de Homero. Andrea reforça o símbolo da Axis Mundi. É o momento que Ulisses está no seu eixo, no centro e seus cantos estão protegidos. É representado pela cama feita de árvore, uma madeira que ele criou com as próprias mãos. Jesus era carpinteiro. Moisés em sua primeira visão, viu uma árvore pegando fogo e não se consumia. Axis Mundi quer dizer Kabalah, centro, eixo, cerne, âmago, núcleo, sustentação, coluna, uma linha imaginária que sustenta o corpo.
Caderno de bordo_Priscila Reis
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Relato de construção poética: Imaginário e Teatro no ônibus [Andrea Cavinato8]
Diário de Aguinaldo Lago e registro poético da caminhada de Júnior Docini_foto Priscila Reis
Sê bem vida, ó vida! (James Joyce) O processo de criação do espetáculo Os minutos que se vão com o tempo a partir do estudo poético-imaginativo da Odisseia de Homero foi um encontro, uma ressonância entre desejos e necessidades. Desde criança desejei ler a Odisseia que só pude ler quando me mudei para São Paulo, para fazer faculdade, aos dezoito anos. Quando comecei a dar aula de teatro e de artes elaborei trechos para contar o episódio do encontro de Ulisses com as sereias, Caríbds e Cila, com a participação das crianças, muitos tecidos, do modo como aprendi a fazer no grupo Ventoforte. Desenvolvia processos com alunos, em diferentes escolas e a cada encontro buscava exercitar o ponto de vista de um narrador, que eu escolhia dentre os personagens da história, associava por analogia do tema uma brincadeira da cultura popular, eram cirandas e brincadeiras de roda e as crianças se apaixonavam pela história. Assim, quando fui convidada para o projeto da Trupe Sinhá Zózima eu já tinha estudado a Odisseia antes e em muitas versões, essa proximidade com a história fez com que, dessa vez, eu pudesse me aprofundar na mitopoiética, uma leitura das metáforas, em aproximação com a pesquisa que tenho feito sobre Imaginário e olhar para a trajetória de Ulisses como um tratado simbólico e arquetípico da aventura humana. O fio condutor escolhido foi a metáfora das fiandeiras do destino, as moiras tecedeiras, Cloto, a que fia e podemos fazer uma aproximação com o nascimento, o início, Láquesis, a que tece, o meio, e Átropos, a que corta 38 | FAGULHAS II
o fio, o fim. As moiras eram uma unidade que na Odisseia de Homero passa a ter o valor tríplice. O feminino que tece a tapeçaria do destino é imagem de Penélope, que adia o futuro o quanto pode tecendo de dia e desmanchando a noite. Os episódios eram narrados por mim, transformados em jogo, em brinquedo, com as cirandas e brincadeiras da cultura popular, depois improvisados pelos atores e atrizes. A estrutura metafórica e simbólica foi dividida em cardar a tessitura de caminhos, fiar e preparar os fios, tecer, ou seja, entrelaçar os fios da narrativa. Os encontros foram transformados em rituais, na busca pelo sagrado no teatro, extraindo essas imagens das palavras de Homero, nas palavras-asa, palavras-sonho que reverberavam nos atores e atrizes em suas materialidades sobre as improvisações. Ulisses ferido e perdido, buscando sua Ítaca e ainda assim aproveitando sua jornada fez com que nos identificássemos: somos todos Ulisses, passageiros indesejados, utilizando o transporte público na grande metrópole. ______________________
8Andrea Cavinato_Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Autora do livro “Processos de Criação: Teatro e Imaginário” publicado pela Editora CRV em 2015. Professora pesquisadora de Teatro, Atriz e Contadora de histórias atua com o grupo Caixa de Fuxico desde 1999. Mestre e Especialista em Arte Educação pela ECA/ USP.
E, na chegada à casa, na narrativa do reencontro dele e de Penélope, tivemos a epifânia, da experiência do eixo, do centramento, a axis mundi, a Alma do Mundo, “a integralidade do mundo e da harmonia que representa sua marca” (DURAND, 1994, pág. 105). Na narrativa, vista como esse tratado de iniciação filosófica, a descida de Ulisses aos ínferos, seu encontro com os mortos, essa morte simbólica faz com que ele se transforme, se humanize. Os temas da catábase (descida) e da anábase (subida) foram improvisadas em metáfora da alquimia, no cadinho do corpo foram misturadas as imagens da vida e da morte. Para a alquimia, a nigredo, a cor preta, garante o renascimento da matéria numa forma mais perfeita e purificada que, reunidas seria capaz de promover o equilíbrio destas em outros corpos. Trabalho este, feito no ônibus da Trupe, que ficava estacionado na garagem da SPTrans. O espaço é fundamental para o processo de criação e ali estava um dos cernes das questões da Trupe que, no seu fazer teatral, sempre investiu em estar fora do espaço do teatro. O ônibus foi o espaço escolhido por eles para garantir a acessibilidade. Essa escolha implicou também na linguagem estética muito próxima da cultura popular. Das intrincadas metáforas sobre o destino, do tempo que passa, fizemos experimentações e o exercício da deriva poética do espaço, de se relacionar com a cidade no Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, um dos maiores terminais de ônibus de uma cidade como São Paulo, que somando seu entorno chega a cerca de 20 milhões de habitantes. Desse processo de criação fecundo nasceram muitas cenas, materialidades, personagens que, posteriormente, lapidadas pela dramaturgia, se mantiveram no espetáculo, “Afinal, imaginar um cosmos é o destino mais natural do devaneio” (BACHELARD, 1988, pág. 24). Não há muitos outros caminhos para se chegar a um simbolismo profundo, senão o da experimentação que seja reflexiva e coletiva. Quanto mais nos aprofundamos, surgem imagens originais, plurissignificativas que se comunicam com os passageiros do ônibus de muitas formas. Trazer a criança que fomos à tona é a forma mais
delicada e poética de transformação que o teatro pode proporcionar. É preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma consciência de raiz. Toda árvore do ser se reconforta. Os poetas nos ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, imóvel. (BACHELARD, 1988, pág. 21-21) Para nutrir essa topografia poético-imaginativa, a aproximação simbólica da Odisseia, metáfora do caminho, da transformação de Ulisses foram utilizados como âncora e alicerce, textos de Ítalo Calvino, de Walter Benjamin, Adélia Bezerra de Menezes, Joseph Campbel e embasados pela filosofia de Gilbert Durand, meu companheiro de muitas jornadas. O espetáculo, agora pronto, depois de longo processo de criação, de quase dois anos, é a própria metáfora da axis mundi, a alma do mundo que traz “cura”, harmonia e Beleza. Ao aproximar, de pessoas que não escolhem ver o espetáculo, mas são surpreendidas por ele, partindo do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II para cinco linhas da periferia de São Paulo, faz uma clara divisão do bem simbólico, com humildade e coragem. Promove o encontro dessas pessoas, do público com a poesia; ultrapassa as dificuldades e a dimensão do real fazendo florescer um mundo sensível na universalidade dos destinos de todos os seres humanos. Bibliografia BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. DURAND, Gilbert. A Fé do Sapateiro. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1995. FERREIRA-SANTOS, M. Profundidade da Argila: exercícios plásticos e práticos da mitohermenêutica. In: Lúcia Maria Vaz Peres. (Org.). Imaginário: o “entre-saberes” do arcaico e do cotidiano. Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2004, p. 71-89. SOUSA, Eudoro de. Catábases: estudos sobre viagens aos infernos na Antiguidade. São Paulo: Annablume, 2013.
Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
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Os minutos que se vão com o tempo Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia seis Portais para a entrada dos minutos “Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto.” Leonardo Boff A noite estava fria de congelar os miolos da gente. Recebemos uma missão da Carol (do Teatro Documentário) de conhecer uma casa na rua Maria José. Ela nos deu o mapa e deixou que procurássemos a casa de uma costureira. Estávamos inquietos. Ainda falando sobre o banquete, ríamos e andávamos despreocupados. Então, surgiu ali, do lado esquerdo da rua Maria José, um oratório azul, com mais de cem santinhos. Ficamos petrificados. Hermes imediatamente deu um passo para entrar na casa, mas Tirésias advertiu. Eu, como adoro um mistério, fui com Hermes, acreditando ser uma casa de encantamentos, por encontrar na porta (que estava aberta) muitas espadas de São Jorge. Súbito, uma chuva fina de cortar garganta caiu. Athenas e Tirésias entraram. Hermes me chamou. Era um portal. Na entrada da casa misteriosa havia um quadro do Arcanjo São Miguel. O mesmo que escolhi para colocar no meu diário. Meus olhos brilharam com essa descoberta. O que viria a seguir? Abriu a porta uma moça velha de óculos, meias e chinelos. - O que é aqui – adianta Hermes - É uma pensão. – diz a moça velha - Ahhh, eu nunca entrei numa pensão, posso conhecer? – o intruso joga a rede - Claaro. Entrem! Entramos na casa misteriosa do Oratório Azul 40 | FAGULHAS II
figurino_funcionário dos correios desenho Lucas Lopes
figurino_a mulher que já não está desenho Lucas Lopes
com cem santinhos. Tinha laranja, café e uma senhora sentada no sofá. Era Dona Inácia, benzedeira mais antiga do Bairro Bexiga e mãe da moça velha. Sentamos no sofá, tomamos café e ouvimos histórias de vida e de morte, de renascimento, do além. Dona Inácia pagou promessa para o marido que morreu apunhalado. E ele voltou para agradecer. Parece mentira, né!? Tudo verdade verdadeira. Estava a Trupe lá comigo para dizer que o que digo é certo. Olha, me arrepia só de lembrar. Contou do caso do moço que mora na pensão há cinquenta anos e não conversa com ninguém. Contou do caso da espinhela do rapaz que estava pela hora da morte. Daí Athena interferiu na conversa. De espinhela Athena era entendida, conversa de vó Muritense. Lá foi Athena pedir para medir espinhela. E num é que a bichinha estava fora do eixo? Reza para reverter o caso. Quando viu, tinha fila para reza. Foi Hermes, foi Tirésias e eu fui que não sou boba. Quero minha parte em benção. Tomei minha primeira benzedura. Banho de arruda mais água benta, ô coisa boa. Saímos de lá (já tinha passado a hora) com o coração tranquilo, sorriso no rosto, alegria, ânimo, boas novas. Então preparamos uma cena sobre o que vimos e ouvimos. Já estava certa do caminho. E domingo fiz a canção, que é uma mistura dessas vivências deliciosas. Aproveitei essa semana para dar um pulinho na festa do Divino Espírito Santo no Espaço Cachuera, que também me ajudou a encontrar o ritmo da oração que, a princípio, é um pedido de licença para entrar na “casa-ônibus”4313 do outro.
figurino_criança abandonada pela mãe desenho Lucas Lopes
Caderno de bordo_Priscila Reis
figurino_maluco de rua_desenho Lucas Lopes
figurino_adolescente grávida_desenho Lucas Lopes
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figurino_a velha que n達o quer ver desenho Lucas Lopes
figurino_noiva abandonada desenho Lucas Lopes
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“Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.” “Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” - João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.
A deslimitação da experiência do tempo 9 [Lucas Lopes ]
A natureza dos processos criativos da Trupe Sinhá Zózima dialoga diretamente com campos que considero extremamente vitais, mas muito fragilizados. Campos físicos, sensíveis e humanos dessa malha complexa que chamamos de cidade. Linhas, postes, asfalto, sinaleiro, carro, fumaça, céu, nuvem, capinha pra celular, tomada, carregador, fones de ouvido, plástico, embalagem, relógio, coceira no olho, dor de dente, ansiedade, pressa. Desejo. Desejo de quando entrar encontrar um lugar rápido pra sentar. A fragilidade que o texto se refere é a do espaço coletivo, ambientes em que passamos diariamente e que por pouco, ou por quase nada, se pode romper a trama fina dos acordos sociais e libertar a bruta agressividade presa e sufocada através dos dias, do grito não dado, do choro contido, da falta de tempo, da conta não paga, da vida não vivida. Ao mesmo passo em que também temos nesses ambientes formas de controle cada vez mais eficientes, que determinam e orientam nossos trânsitos pela cidade, nosso consumo, nosso tempo. Determinam até quais os sonhos que devemos esquecer, e quais aqueles que devemos acreditar serem nossos. É a partir e com esse contexto que percebo o trabalho da Trupe em dois eixos propulsores: - na necessidade de compreensão do mundo ao redor. - na problematização dos valores e práticas estabelecidos no contexto urbano. para então desenvolver seu trabalho, abrindo na dimensão concreta e unidimensional frestas para criar experiências positivas e poéticas na cidade e reafirmar, de maneira muito sensível, a prática ativa de aprendizado e troca com o espaço e com o outro.
Nessa perspectiva o projeto Os minutos que se vão com o tempo é para mim um convite para voltar a si, essa casa que cada um chama de eu, e que no correr da vida por vezes se torna tão distante. Muito tem se falado desse momento contemporâneo em que somos arremessados para o futuro, e ficamos sem passado nem presente. E até nossas relações se tornam um “líquido que escorre pelo vão dos dedos” como citou Bauman. É na fragilidade de nossa condição que o projeto, com coragem e crença no humano, se propõe a abrir mais essa fresta no concreto da cidade para falar do tempo, nosso bem mais precioso. O espetáculo é muitas coisas, mas pode ser também a imagem de como cuidar para que a vida não nos escorra completamente pelo vão dos dedos, pode ser ainda a lembrança de que o trajeto é vida, de que o tempo é vida, e que a vida reside no coração. É importante dizer aqui que o espetáculo conta com três percursos: o primeiro da linha de ônibus pela cidade, o segundo proposto pela Trupe a partir do primeiro, e o terceiro, que com nossa permissão, pode acontecer dentro da gente. Quando o espetáculo passa pelo terceiro percurso é quando se percebe essa vida que extrapola relógios e calendários, e assim o lugar de chegada não será mais o mesmo de antes. Mas será o único e infinitamente possível. _________________________
9Lucas Lopes_ artista plástico, arte-educador de fotografia no Programa Fábricas de Cultura. Cofundador do Projeto Nau-frágil – Qual a sua solidão? Cofundador do Coletivo Borboletra. Cocriador na Revista Transvista (edição e elaboração do material visual). Possui dois livros infantis publicados com ilustrações de sua autoria [Poesia dos olhos e Menina Aluada]. Responsável pela direção de arte e ilustrações do espetáculo Os minutos que se vão com o tempo.
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Poéticas de uma jornada em busca da experiência [Anderson Maurício]
desenho Lucas Lopes
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Caminhada do percurso entre o Terminal Urbano Parque Dom Pedro II e o Terminal Cidade Tiradentes, em 12 horas, das 7h às 19h, da aurora ao anoitecer, em aproximadamente 33 km de caminhada a pé. O artista em busca de experimentar no corpo a viagem, o tempo, a cidade. Um encontro com os minutos que se vão com o tempo. Os pássaros anunciam que o dia é imenso e misterioso. O vento e o céu cinza avisam que não será fácil a travessia. O corpo necessita da caminhada, é a jornada da alma que se faz presente. Na multidão que corre, encontro um jovem sorriso. Sempre iremos encontrar nossos pares. Existem tantas maneirar de chegar, até quando inesperadamente mudamos o caminho, mesmo quando já estávamos perto do destino. O ofício do dia não acolhe o homem, nem acaricia o cidadão saudoso do colo da mãe, por essa razão é que ele dorme no balançar dos ônibus, nas histórias de ninar que as janelas contam quando passam pelas rugas da cidade, ele torna-se semente, o ônibus útero gigante. O percurso já se torna familiar, ele já faz parte de mim. Há tempo não tenho uma estrada, um dia inteiro para mim, uma aventura. Encontro flores tantas, o tempo se faz presente quando me pego contemplando suas cores, a névoa cinza da cidade desaparece, a estrada, às vezes, também some. Atravesso a rua, distante já não percebo as flores no matagal verde sem fim, as flores necessitam de proximidade para existir. São tantos carros, sempre achei que as formigas cresceriam para se vingar dos homens. Procuro os espaços para caminhar longe dos carros, não encontro. Até dentro das casas eles adormecem. Pergunto a moça se o trajeto a pé até o Terminal Parque Dom Pedro é longe, ela se faz ausente, sorri e diz que nunca caminhou para saber. Meus ouvidos cansam mais do que meus pés. Não ouço as pessoas, somente as máquinas gritam, e às vezes me pego acelerando o passo. Nesta travessia encontro os rios que se escondem, serpenteiam silenciosamente, não é possível escutar seu rastejar, penso que talvez apenas neles os carros não dominem seu horizonte, logo percebo que não há pessoas em seu corpo liquido. Só os Urubus brincam sob sua imagem. Para quem o aguardava, neste instante ele surge: O sol. Logo procuro a sombra. Nunca estamos satisfeitos com o que se apresenta. Eu sei a tempos que posso te perder, mas sei que nunca irei desistir de te reencontrar. O gato que assombrava meu caminho, hoje eu o encontrei morto. Sinto vontade de deitar no banco dessa praça, onde me encontro sozinho, perto do rio...longe surge um estranho, como temos medo de nós mesmos, desisto e sigo olhando para trás. Olha o rio que corre, pela sua alegria e ansiedade, acredito que busca chegar em casa. Vejo uma montanha de árvores, vejo uma montanha de cupim, vejo onde os homens habitam que não há árvores e nenhum cupim, vejo uma montanha de lixo onde os ratos se alimentam. Foi desesperador, durante eternos cinco minutos a calçada cessa em uma longa curva da avenida Aricanduva, e para continuar a viagem humana é necessário enfrentar o monstro do medo de andar na avenida da morte onde os carros, ônibus, motos e caminhões urram e atropelam o vento. Tonto e com as pernas bambas, ando olhando para trás, me sinto pequeno. Fome de estudo, entro na biblioteca de Milton Santos. Me peguei olhando para os bancos dos pontos, olhando para os ônibus, olhando para os seus destinos e por fim me perguntando. Por que não paramos quando sentimos vontade? Sentei no pé da árvore e imaginei todos vocês passando por aqui, imaginei até quem eu não conheço passando por aqui, e lembrei da saudade de sentar no pé de uma árvore. Promessa para mim sempre foi dívida, e dívida eu procuro pagar, custe o que custar. As praças sempre abandonadas pelas crianças, pelos casais de namorados, pelos moradores de rua, pelo governo. Se eu tivesse uma praça aonde eu moro, eu nunca abandonaria. Essa avenida Aricanduva, poderia ter um apelido, Ary. Buscando o humor para continuar. As calçadas representam o amor ao próximo, é triste, é assustador. Encontrei a santa, Atenas, a minha mãe/mestre que sempre há de estar por perto. Encontrei nossa senhora que sempre protegerá a mulher que já não está. Encontrei São Miguel Arcanjo que protegerá tu, que cantou a ele, tu que deu a luz ao mar. Encontrei Santa Luzia, a santa padroeira do nordestino Luiz Gonzaga. Encontrei Cosme Damião, os irmãos gêmeos que protegem as crianças. Encontrei São Francisco de Assis, que acompanha aquele que caminha. Encontrei Santo Antônio, o santo casamenteiro. Encontrei Jesus o mensageiro de Deus. Tem momentos que você só pensa em chegar em casa. Agora eu digo. Eu só busco um lugar onde eu possa descansar, eu só busco um lugar que eu possa pertencer. Sinto que o vento me empurra, gratidão é o que sinto. Cheguei e faz tempo que não vejo uma noite tão estrelada. Penso que a morte deve ser bonita. Diário da caminhada feito pelo diretor e ator no dia 8 de março de 2016.
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Os minutos que se vão com o tempo, com Cleide Amorim Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia sete
Do encontro como método de existência Existem experiências extra-cotidianas, encontros felizes, desencontros felizes, encontros infelizes e experiências transcendentais. Quando conheci meu amor foi uma experiência transcendental. A gente se falava pela internet, nos encontramos numa noite sem marcar e quando nos beijamos pela primeira vez o céu se iluminou com fogos de artifícios e nem era ano novo. A gente ria e se beijava, porque sabia o que estava acontecendo. Tratava-se de um encontro de almas. Hoje, na volta, a Paula estava extasiada. Contou-nos sobre sua experiência transcendental entre ela e a Maria, sua filha. Quando a Maria nasceu, o bico do peito da Paula estava invertido e a Maria não conseguia sugar. Muitas pessoas falavam: “Nem adianta, ela não vai mamar em você.” A Paula tirava leite do peito, colocava a Maria para mamar, para sugar o peito e nada. Dois momentos bem difíceis. Ela chegou a doar litros de leite, porque tirava dos dois lados para não empedrar. Certo dia, a Maria procurou o seu peito, sugou com toda força e mamou. O milagre do encontro. O amor e a dor num só momento. O seio ficou em carne viva, mas o amor foi mais forte que superou. As lágrimas, o leite, o suor, o sangue, todos os líquidos vitais numa mistura de sensações se fez presente num instante. Uma experiência transcendental é um renascimento.
Caderno de bordo_Priscila Reis 46 | FAGULHAS II
Tecendo fios para uma nova dramaturgia 10 [Cleide Amorim e Junior Docini
]
Os minutos que se vão com o tempo, com Priscila Reis e Tatiana Nunes Muniz | Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
“… Somos massa bruta, massa que cresce com o aplicar do fermento, cheirando gente, chocolate, tapioca e café quente...” Junior Docini, em Os minutos que se vão com o tempo Uma aranha comum, daquelas que vivem dentro de casa, construindo teias em brechas de madeira, cantos das casas ou até mesmo nas árvores de pequenos jardins, pode construir até quatro tipos de teia. A mais conhecida é a de caça que, em média, ela leva de 20 a 30 minutos para criar. A aranha solta um líquido pegajoso que, em contato com ar, se torna um fio tão fino e delicado como um fio de seda. Qualquer chuva ou vento pode destruir seu gradeado, por isso a aranha volta a construir e construir por toda sua vida. Nós, artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima, assumindo a posição de escritores, escrevedores de nossos anseios, tecedores de nossos fios de reflexões, buscamos, cotidianamente, maneiras de aprimorar nossa escrita poética. Descobrimos que escrever é uma arte muito complexa e requer muito treino, ou seja, escrever, escrever e experimentar. Assim como aquele ser minúsculo vai fazendo do tecer a sua própria vida, porque de fato é. A trama vai sendo construída e dando sentido a sua existência. Se dar ao direito e ao trabalho de colocar no papel as ideias, imprimir a situação que corresponda a tudo aquilo que pesquisamos e sentimos, é complexo. Em nosso processo de pesquisa, contamos com parceiros de labuta que nos ajudam, nos estimulam e nos provocam. Assim, aos poucos, vamos vencendo as dificuldades e medos. O que escrever? Como escrever? Como selecionar nossas palavras e ordenar de forma que nos agrade e faça sentido? Difícil para uns, fácil para outros.
O domínio da palavra requer sensibilidade, tanto quanto atuar ou cantar. Quando se elimina a sensação inicial de desconforto ao visualizar a teia presa nos galhos é possível acompanhar a beleza da delicadeza dos fios tramados e iluminados pela luz do sol. Ali, um instante de contemplação. Assim como quando se lê um texto escrito a partir de reflexões profundas e sinceras, tecido delicadamente diversas e diversas vezes.
“(...) E assim meu pensamento voa, a eles ecoam, unindo a nós ao menos por um instante. É algo que não se vê, é algo que não se toca, mas que de alguma forma nos atravessa. Quem sou eu? Sou vários, sou este, sou eles. E estou entre nós. Eu sou quem já fui, eu sou quem quero ser, eu sou ele que busca, eu sou ele que chora, eu sou ele que volta, eu sou ele que tem saudades, eu sou ele que cansado se encontra, eu sou... Eu sou... Eu sou eles...Eu sou eles... E estou entre nós (...)” _________________________ Tatiana Nunes_artista-pesquisadora da Trupe Sinhá Zózima
_________________________ 10Cleide Amorim e Junior Docini_artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima
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Os minutos que se vão com o tempo, com Cleide Amorim Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
A complexidade de uma trama só é compreendida quando visualizamos a feitura do princípio, quando enxergamos os primeiros fios sendo puxados delicadamente, depois quando observamos a feitura das ligações ponto a ponto. Tranquila e sem pressa, a aranha constrói uma estrutura de sobrevivência. O que é interessante imaginar, quando se observa uma teia, é: Por onde começou? Qual foi o primeiro fio tencionado pela aranha? Quantas vezes essa aranha refez sua teia até conseguir algo mais 48 | FAGULHAS II
duradouro? E assim vamos também construindo, tecendo e refletindo sobre nosso processo, sobre a coragem de escrever. Tanto escrever sobre o que fazemos, como escrever o que faremos. Nos interessa a construção de uma dramaturgia, a dramaturgia da/para a Trupe Sinhá Zózima. Dramaturgia, em linhas gerais, é criar um texto para ser representado. No caso da Trupe essa construção
parte e deve considerar a todo instante diversos elementos: o ônibus, o público, a história oral, as experiências pessoais, o ponto de partida (como A Odisseia, de Homero – e isso significa que, nem sempre, se parte de forma calma e tranquila), a cidade, o Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, outros autores que compõem a pesquisa da Trupe como: Gaston Barchelard, Martin Buber, Michel de Certeau, Paulo Freire, dentre tantas outras vozes poéticas e musicais.
A partir da obra A Odisseia, de Homero, que apoiou o universo que pesquisamos nesse projeto, surgiram textos, músicas, poesias e questionamentos. Fomos, todos juntos, artistas-pesquisadores e Cláudia Barral (quem assina a dramaturgia do espetáculo), tecendo e buscando essa construção dramatúrgica. E, essa dramaturgia em processo, é muito desafiadora, pela própria construção: ela é complexidade desfragmentada, como as histórias/cantos sobre a volta de Ulisses para a casa repleta de símbolos e misticismo. Nem sempre as coisas que surgem em um processo têm um sentido para aquele trabalho e/ou o sentido acaba sendo alterado e/ou, mesmo a pesquisa sendo um indício, muitas coisas acabam se perdendo. Mas existe uma liberdade de fazer e refazer, de “tecer”, que, por vezes, textos fechados não oferecem. Também existe o estímulo à criação e lacunas a serem descobertas e preenchidas. Toda apresentação é como se a teia/texto que criamos estivesse pronta para ser destruída. Outras poéticas interferem na estrutura e criam novas imagens e situações; temos que construir/reconstruir essas situações diárias e a organização/reorganização dessa dramaturgia é o maior desafio. Quando essas interferências ocorrem é como se a dramaturgia fosse realinhada, dentro do jogo de cena, e isso ocorre em tempo real de improviso. Enxergamos a dramaturgia como um processo de alquimia, misturamos os ingredientes e criamos algo novo; experimentamos e não gostamos, misturamos novos ingredientes e pronto! Então, tudo o que vivenciamos nos processos de carpintarias nos serviu de estímulo para a criação de um texto, ou seja, todo esse material passou por vários processos e escolhas antes de vir a ser uma estrutura. Alguns artistas convidados que estiveram conosco nesta empreitada colaboraram com o aprimoramento das ferramentas para a colheita deste material criativo: Andrea Paula, que participa do Núcleo de História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO/USP), veio para continuar um processo de lapidação da História Oral que teve início na criação de Dentro é lugar longe11, trabalho anterior da Trupe Sinhá Zózima. Nesta nova etapa, descobrimos o “passageiro”: novas vozes para a criação dramatúrgica. Descobrimos Aguinaldo, um amigo muito querido que a andança da Trupe nos trouxe. Ele, gentilmente nos cedeu cinco diários que representam cinco anos de sua vida: parte de sua história foi compartilhada conosco, através de seus escritos e de uma conversa de mais de três horas, numa sala tranquila da administração do terminal. A princípio, queríamos pesquisar vários passageiros, mas, com todo 11Para saber mais sobre o processo de Dentro é lugar longe, consultar Revista Fagulhas: http://issuu.com/trupesinhazozima/docs/fagulhas-online
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o processo à frente, percebemos que aquele material já era o suficiente, pois precisaríamos de tempo para lapidar merecidamente todas as histórias colhidas. Guina (Aguinaldo Lago) nos presenteou carinhosamente com sua amizade, chocolates e um pedacinho de sua vida. E ao ouvir a sua história, nos sentimos menos sós. A beleza do trabalho com as narrativas de história de vida, com a História Oral, está na construção realizada pelo narrador, está na subjetividade, nos discursos reveladores de identidades e identificações, nos silêncios, nas escolhas. E, como elucida Marcelo Soler em sua dissertação, Teatro documentário: a pedagogia da não-ficção, “no depoimento, vivência de outrora compartilhada agora, passa a ser uma experiência repleta de significado a ser reelaborada pelo aluno/ ator, que, por sua vez, a compartilhará com a plateia, surgindo, assim, uma nova experiência igualmente significativa” (2008, pág. 71). Nesse projeto de fomento, Os Minutos que se vão com o Tempo, escrevemos cenas, letras de músicas, criamos a partir de uma caminhada de 12 horas, vivenciamos o terminal. Sob a orientação da artista-pesquisadora Andrea Cavinato improvisamos em jogos dramáticos e jogos populares A Odisseia, entendemos no corpo a trajetória do herói Ulisses, seus processos de transformação, buscamos o mito como ferramenta para a criação do universo imaginário. Criamos cenas a partir do entrevistado Aguinaldo Lago, abrimos diálogos com os profissionais convidados para conversarmos sobre a cidade, a trajetória do herói, sociologia do trabalho, partilhamos experiências com a mestra Lidia Zózima, experienciamos idas e vindas para Cidade Tiradentes, participamos de partilhas com grupos convidados. Coletamos e entregamos todo o material para a dramaturga Cláudia Barral, que esteve presente em muitos momentos, e que foi lapidando e transformando aquilo que já existia em estrutura. Surgiram novos textos, poesias, músicas. Criaram-se outros caminhos que, por vezes, retornaram ao início. Recorrência de uma ladainha. Criamos nossa dramaturgia coletivamente e, nesse processo, Cláudia Barral filtrou, provocou e propôs modificações textuais. Todas as informações que apresentamos, ela nos devolveu em um novo texto, às vezes, redirecionando o sentido da cena com uma palavra, um questionamento, uma ideia nova; mudando o peso que a cena possuía, a qualidade, a poética. E a teia continuou a ser construída. A encenação interferiu diretamente na construção textual, ela foi responsável por criar a desfrag50 | FAGULHAS II
01 de outubro, sexta feira, 2004 Ainda é um sonho, mas, às vezes, parece um pesadelo. Depois que a gente cai no chão, desperta e vê que, muitas vezes, não é nada. Tudo se supera. Tudo passa. Hoje eu tive que pedir dinheiro para ir votar no domingo. Minha amiga Zóia me arrumou o dinheiro e eu pude ficar tranquilo apesar de estar com a cabeça cheia. Estou de saco cheio com vontade de sumir. Tomei um chope com ela num botequim muito legal na Alameda Santos. Às 21h15 ela me deixou em casa. Fiquei vendo televisão. Oh Senhor!... Aguinaldo Lago_diário de 2004
mentação dos monólogos apresentados e as relações dos personagens que, até então, não possuíam uma relação direta. O intertexto, aquele que fica nas entrelinhas, constrói neste novo espetáculo a sustentação para outras leituras das mesmas histórias/personagens. Os arquétipos que se apresentaram originalmente não possuíam relação alguma um com o outro, mas, pelo simples fato de estarem viajando dentro do mesmo ônibus é como se estivessem interligados. O espaço que estamos apresentando e para quem estamos dizendo essas palavras, constrói um tipo de linguagem a ser trabalhada. E é na prática que descobrimos boa parte dos novos caminhos. E sempre voltamos a refletir: “Como tudo isto chegou/chega/chegará até o público?” A nossa experiência enquanto artistas-pesquisadores hoje é criar uma abertura de espaço para troca com o outro. Vivemos neste processo momentos intensos, críticos e de muitas dúvidas. Afinar a escuta, entregar nossa atenção ao outro, aos ajustes do tempo, a fricção com o público, a sujeira naturalmente paulistana do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II também é dar voz a uma nova narrativa. Então faltar não é esquecimento, faltar é ausência; é deixar de ser percebido como algo de suma importância. Quando se cria a partir de eixos, naturalmente o olhar se volta para as coisas que se aproxi-
“(...) Na bolsa, pasta e escova de dente, roupa de troca, dinheiro contado, calendário pra medir o tempo que se vai… bilhete de ônibus, o almoço do dia seguinte, seguindo os minutos e as horas, à espera e procura (...)” Cleide Amorim_artista-pesquisadora
mam e que mais se relacionam; é um fator natural. Aparentemente tudo que está nos cercando é dramaturgia, uma história a ser representada no nosso espaço cênico. Tudo tem sentindo e muitos significados cognitivos e simbólicos. Tudo conta uma história, o corpo, cada gesto, um olhar, os adereços, a interpretação traz uma carga muito grande de emoção, sensações e vivências. E essas histórias se perpetuam nos espaços em que esses corpos estão inseridos, no ônibus. E novos narradores, quando bem instigados, também contam histórias e constroem a dramaturgia do dia, essas histórias também possuem sua carga emocional. Elas modificam o espaço e constroem novas energias. O corpo no espaço constrói uma narrativa. O interessante de ter um texto sendo criado é que sempre é possível mudar, readequar ao momento. Mas é sempre muito sofrido. Correr este risco é a vantagem e também uma desvantagem; se acertamos a mão teremos algo que nos represente e isso será autêntico, único. Outras pessoas terão acesso e poderão se utilizar disso. Criar um texto para ser encenado é uma grande alquimia. O movimento de descobrir uma dramaturgia da Trupe é um projeto de existência, de pertencimento. É tentar entender nossa identidade textual, nossos dizeres. E entender isso é um grande desafio. Nos lançamos a descobrir um novo tecido, jamais visto. Precisamos de tempo, precisamos sentir necessidades, ser provocados para sairmos do estado de atores para sermos coautores e dizer aquilo que sentimentos, ir ao encontro do tecido na natureza humana e buscar a nossa própria fala. Já não é a nossa primeira vez em contato com a criação de um texto. Estamos a cada dia nos familiarizando com a escrita. Tear precisa de mãos, suor e o corpo para dar certo. Todos os dias estamos lançando fios no espaço de pesquisa – o ônibus. Mas o que seria a dramaturgia da Sinhá Zózima, senão um encontro de muitas coisas? Aquilo que chamamos de espaço criação - o ônibus -, o trajeto, a relação com o passageiro, o Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, a escuta, o ator, o ruído, quem sabe, o silêncio, a música, e, por fim, a palavra. Quantas coisas se tornam dramaturgia dentro do nosso processo de criação. São muitas vozes que ecoam durante um longo período e ficam ecoando até mesmo depois de feito. A nossa dramaturgia se assemelha à construção de uma teia de aranha. Carrega consigo a beleza da necessidade de existir para existirmos. Uma trama que fio a fio vamos tecendo sob a luz do sol, observando a delicadeza dos fios. A dramaturgia da Trupe Sinhá Zózima, precisa de tecelões-aranhas que lançam o primeiro fio ao trabalho e vão tencionando de uma ponta a outra, crian-
Quando tomo a palavra e assim faço nascer o discurso, não é só o “meu” discurso que aí se apresenta, mas o discurso do outro. No caso, o discurso do ônibus pesquisado em simbiose com o discurso teatral. Ou seja, em “Os minutos que se vão com o tempo”, é constatável por meio dos aspectos formais da encenação — a estrutura do rizoma[...] É o uso das breves narrativas entrecortadas das personagens em analogia com “as personagens” que nos deparamos cotidianamente em ônibus e/ou trem, elas compartilham histórias, vendem músicas, balas, água, chocolate e pulam fora de um vagão para outro em dois tempos[…] Deste modo o rizoma impele o trabalho subjetivo de reordenamento das imagens dadas já que a encenação é muito fraturada, cabendo aos passageiros completar as lacunas, criar pontes. Alexandre Lindo_ ator e pesquisador em Resiliência. Rizoma. Reminiscência
do um “tecido/fio” para que ganhe firmeza e sustente outros pesos, outras pessoas dentro do mesmo processo. Este primeiro fio tencionado possivelmente não será um fio pronto, talvez seja refeito e desfeito, tantas vezes for necessário, como uma aranha refaz sua teia quando destruída: ele será investigado, passará pelo crivo criativo dos autores, será analisado. Depois haverá o tempo, que nos dirá se esse fio resistirá à chuva, ao vento, se nos levará ao caminho sonhado. Os fios, tecidos, teias e os minutos que se vão com o tempo. “(...) Ei passageiro de passo ligeiro, que passa sem perceber a passagem, que paga com a vida a própria viagem, que carrega na bagagem o ser estrangeiro, mensageiro das vias, dos dias, das rugas da cidade, do percurso que traça a vida, do preço que custa cada passada calçada e moldada. Ei passageiro que é feito dos lugares por onde passa: Não se espante, nem estranhe minha fala confusa e poetizada, a intenção é pedestre para que encontre outros sentidos, por isso ouça: plante os pés descalços nesta travessia, desdobra as brancas velas de teu mastro e embarque neste percurso; rumo a casa, lugar que todos desejamos chegar, rumo ao sopro do destino que te levará a outros caminhos possíveis, caminhos para encontrar a morada, está que habita dentro de nós mesmos (...)” Anderson Maurício_artista-pesquisador e diretor da Trupe Sinhá Zózima
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Os minutos que se vão com o tempo, com Priscila Reis Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia oito
Descobertas e procederes Dentro é Lugar Longe, assim como o Cordel do Amor Sem Fim e Valsa n° 6, é um espetáculo realizado em um ônibus preparado para receber o público. Já com a ação Toda Terça Tem Trabalho Tem Também Teatro! adentramos o Terminal Urbano Parque Dom Pedro II apresentando no nosso ônibus parado para os trabalhadores que voltam para as suas casas. Os minutos que se vão com o tempo no transporte público reinventa o espaço e propõe um encontro inusitado. Para isso, é preciso aproximação, generosidade, escuta, desenvolvimento e uma constante articulação com o público. Há sempre passageiros chegando, cansados do trabalho, ouvindo música, assistindo televisão, fatigados da pressão que o tempo traga. Pessoas com crenças e pontos de vistas diversos. Esse desconhecido nos intimida e, ao mesmo tempo, nos atrai, nos coloca em investigação e prática contínua, em estado de alerta e descoberta para novas relações intra e interpessoais. Precisamos lidar o tempo todo com todas as informações possíveis para desenvolver espaços de relação com o público. A cada apresentação descobrimos um novo significado e um novo contato com o público, entendendo que a maior riqueza do trabalho é esse “entre”, essa fenda, esse interstício no qual nos conectamos uns aos outros e eu me reconheço no outro e vice e versa. Procedimento 1 O objetivo do procedimento é mostrar que a relação acontece quando nos abrimos para ela. A e B ficam de frente para o outro. O objetivo é se encontrarem no meio. Mas os dois pensam previamente se vão ou não dar as mãos ao se encontrar. Alterna com beijo/abraço/tapa Procedimento 2 O objetivo é abrir o outro para a escuta. Em duplas, A conta cinco minutos da sua vida sem parar. B não pode interromper A. Depois B conta cinco minutos de sua vida. A não pode interromper B.
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Os minutos que se vão com o tempo, com Maria Alencar e Anderson Maurício | Trupe Sinhá Zózima_ foto Danilo Dantas
A Dramaturgia de Os minutos que se vão com o tempo 12 [Cláudia Barral ]
O início do meu trabalho com a Trupe Sinhá Zózima, o nosso primeiro encontro, se deu por volta de 2003, através de Cordel do Amor sem fim – texto de minha autoria que a Trupe montou dentro do ônibus, nessa pesquisa que sempre considerei interessante e fértil. Em Os minutos que se vão com o tempo o maior desafio, a priori, era também o grande encantamento: o transporte público. Dessa vez, além do desafio do ônibus em si (sua instabilidade, seu movimento), a Trupe teria que lidar com o passageiro comum. O espetáculo é para o passageiro, esse espectador desavisado que precisa ser seduzido com respeito. Se por um lado era possível trazer uma atmosfera de encantamento para esse cenário tantas vezes árido que é o transporte público, por outro lado era preciso cuidado para não invadir o espaço de quem realiza a viagem cotidianamente. O ambiente designou os contornos da dramaturgia. Considerando que nossos espectadores entrariam e sairiam do ônibus (e do espetáculo, portanto) a todo e a qualquer momento, como fazer com eles acompanhassem a nossa história? Ou deveríamos lhes dar pílulas de histórias, pedaços que fizessem sentido por si só, e que se juntando a outros fossem ressignificados? Optamos por esse caminho. Nossas narrativas se encontram e desencontram, através da apresentação e desenvolvimento desses personagens que surgiram vindos de muitos caminhos distintos (a Odisseia, a narrativa oral, a extensa pesquisa dos atores nas vivências do terminal) e que se aglutinaram em desejos, arquétipos e conflitos. Todos querem chegar a algum lugar, a algo. São como os passageiros do ônibus,
são como a humanidade. Nosso objetivo se tornou embalar (colorir, povoar) a viagem de volta à casa. Interferir, mas não desnortear. Acolher, para que também fôssemos acolhidos. Era preciso abraçar o registro extra-cotidiano, mas não impor essa experiência a quem não desejasse tê-la. Foi na linha entre o teatro, a performance, o happening que os atores da Trupe tiveram que se equilibrar. E a dramaturgia junto com eles. Por fim, conseguimos chegar num lugar ao qual chamamos de casa, o que no teatro pode significar encurtar o espaço que há entre eu e o outro, travar algum contato, promover alguma mudança. _______________________
12Cláudia Barral_ escritora e psicanalista. Publicações em poesia incluem O Coração da Baleia (Ed. P55, 2011) e Primavera em Vão (Ed. Penalux, 2015). Suas peças de teatro contam com numerosas premiações e montagens, no Brasil e em países como Alemanha, Itália, Portugal e Peru. Responsável pela dramaturgia do espetáculo Os minutos que se vão com o tempo.
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Os minutos que se vão com o tempo, com Tatiane Lustoza Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
Dia nove
Pessoa como fonte de Encontro Cessa o teu canto Cessa, que, enquanto O ouvi, ouvia Uma outra voz Como que vindo Nos interstícios Do brando encanto Com que o teu canto Vinha até nós. Ouvi-te e ouvi-a No mesmo tempo E diferentes Juntas a cantar. E a melodia Que não havia, Se agora a lembro, Faz-me chorar. Fernando Pessoa
Caderno de bordo_Priscila Reis
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Os minutos que se vão com o tempo, com Anderson Maurício Trupe Sinhá Zózima_ foto Danilo Dantas
Os minutos que se vão com o tempo – a viagem rumo à casa
teatro | livre | aprox. 120 min | espetáculo em ônibus de linha em movimento E se cada minuto fosse uma semente, quantas florestas teríamos perdido? Embarcar rumo à casa, esse lugar dentro de si, é atravessar imensidões, internas e externas, imensidões marítimas, urbanas, íntimas e passageiras. O tempo é vida preciosa, travessia que pode nos ensinar a semear cantigas d’alma, colher sons que vem do coração, cantar a música dos nossos dias. O espetáculo é um caminho que se propõe a acompanhar os passageiros em seus variados destinos. Uma jornada de trajetos afetivos e geográficos, proposto por figuras que alteram as bordas do cotidiano no transporte coletivo, local onde é encenada a peça, onde encontramos seres humanos em construção como tantos, em falta, como todos nós. Temporada realizada de 15 de março à 30 de abril de 2016, com apresentações às terças, quintas e sábados, às 20h, partindo do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II Linhas atendidas: linha 4313/10_sentido Terminal Cidade Tiradentes, linha 3141/10_sentido Terminal São Mateus, linha 5111/10_sentido Terminal Santo Amaro, linha 3301/10_sentido Terminal São Miguel, linha 6403/10_sentido Terminal João Dias.
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Dia dez Pensando a Coletividade O ônibus é o lugar onde podemos viver essa multiplicidade coletiva. Cada ser é um ser múltiplo, com suas razões, memórias, culturas, religião. E em cada lugar ou com cada pessoa nos manifestamos de uma forma diferente. Entender que as pessoas estão em mudança e podem se relacionar de formas diferentes é um processo fundamental para nosso contato com o público do transporte.
Reconhecer e dar visibilidade
A escuta é primordial para reconhecer a voz do outro. É nesse momento que me silencio e ouço o que do outro o que foi saudade, é presente, é utopia. Reconhecer não é uma tarefa fácil, porque já sabemos o que queremos ouvir. É preciso estar vazio e pleno, atento e aberto para encontrar a fresta que nos emparelha e dar voz a ela, reverberar como forma de corporificar o encontro.
Transformar o sentido da conexão em São Paulo
Quando damos voz e corpo às conversações que estabelecemos entre o público passageiro do transporte, o encontro começa a acontecer. Porque o ator, que é pessoa, passa a ser passageiro e outros passageiros se reconhecem na história que se ouve. Essa identificação gera uma conexão social, transformando o espaço do ônibus em um espaço de troca e convivência.
Caderno de bordo_Priscila Reis
Os minutos que se vão com o tempo, com Priscila Reis Trupe Sinhá Zózima_ foto Christiane Forcinito
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Os minutos que se vรฃo com o tempo, com Cleide Amorim e Maria Alencar | Trupe Sinhรก Zรณzima_ foto Christiane Forcinito 58 | FAGULHAS II
Os minutos que se vão com o tempo – os ofícios que vem do coração Encenação_ Anderson Maurício Dramaturgia (em processo colaborativo)_ Cláudia Barral Direção Musical_ Luiz Gayotto Direção de Arte e Ilustrações_ Lucas Lopes Artistas Pesquisadores_ Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Maria de Alencar, Priscila Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza Trilha Original_ Trupe Sinhá Zózima Confecções de Objetos Cênicos_ Thamata Barbosa Preparação Corporal_ Lídia Zózima Produção Geral_ Tatiane Lustoza Produção Executiva_ Thais Polimeni Assistência de Produção_ Érica Santos Equipe técnica_ Paula Barison, Adriano Antony, Victor Alves de Matos Fotografia_ Christiane Forcinito e Danilo Dantas Documentarista_ Luciana Ramin Teaser do espetáculo_ Cinefoto Colapso Assessoria de Imprensa_ Paula Venâncio Designer Gráfica_ Deborah Erê Web Master_ Danilo Peres Pesquisadores Convidados para Conversações Lembranças dos passageiros em trânsito_ Andrea Paula dos Santos Mobilidade Urbana_ APE – Estudos em Mobilidade Eldorado – Os pequenos acontecimentos poéticos do cotidiano_ Eduardo Okamoto As vigas do heroísmo – reflexões sobre A Odisseia, de Homero_ Gilberto Figueiredo Martins A poética do espaço de Gaston Bachelard_ Marcos Ferreira Santos Urbanismo, Mobilidade e Transporte_ Raquel Rolnik A invenção do cotidiano de Michel de Certeau_ Rodrigo Leite Morais A Sociologia do Trabalho_ Ruy Braga Pesquisadores convidados para Carpintarias Poética da Cidade_ Andrea Cavinato Passageiros em Trânsito_ Andrea Paula dos Santos e Marcela Boni representantes do NEHO/USP Paisagens Sonoras_ Luiz Gayotto Grupos e artista convidados para Partilha de Vivências Moradia em Movimento_ Brava Companhia, Grupo Esparrama, Pombas Urbanas e Teatro Documentário Transporte em Movimento_ Cia Auto Retrato, Coletivo Estopô Balaio, Grupo XIX de Teatro e OPOVOEMPÉ Cultura em Movimento_ Avoá Núcleo Artístico, Cine Favela, Grupo OPNI, Eduardo Nogueira e Slam da Guilhermina São Paulo, 2016 FAGULHAS II | 59
Dia onze Urano, Cronos e os minutos que se vão com o tempo Como abrir o céu do passageiro com o olhar?
Como planejar trânsitos no interior da alma?
Qual é o canto da passagem entre nós?
Quando tocar e permitir a troca?
O que comunica o silêncio?
Haja luz. Uma das frases mais conhecidas, dentro de um livro antigo para referirse à criação. Os gregos mencionam no Céu como o deus Urano, pai de Chronos, o deus Tempo. Será esse mesmo Tempo que é preciso respeitar para abrir o Céu do passageiro trabalhador que carrega o peso de uma guerra diária e volta cansado para a casa? Tempo, um dos deuses mais lindos. E um dos mais avassaladores também. Aquele que rasga as vísceras do Céu pela liberdade, mas que devora seus filhos em nome do poder. Céus, do grego Ouranos, é aquele que encobre, envolve. Da mesma forma, nossos olhos quando encontram a menina dos olhos do outro, habita entre nós um etéreo envolvimento. É ali que fazemos morada. Como planejar trânsitos no interior da alma? A gente se planeja para tudo. Para o dia que segue, para o próximo mês, para o futuro a longo prazo, para o filho que vai nascer. Como diz a pesquisadora de Teatro e Imaginário, Andrea Cavinato “é necessário um conjunto de estratégias, como um caminho a ser trilhado, aberto ao imprevisível” (2013, p.17). Para planejar trânsitos no interior da alma é necessário deixar-se envolver, criar conexões, ser múltiplo. “Cada vida que você ouve, é uma camada da sua própria vida” (Andrea Paula Kamensky, 2013) Se o seu coração pudesse fazer uma viagem, qual seria o seu destino? Numa dessas viagens, conheci a Jose, uma morena dos olhos jabuticaba. Ela de primeiro responde: “Ao Maranhão, terra aonde está minha mãe.” Peço a carta ao mensageiro e ela vem com a pergunta se ela já havia perdido alguém. Ela responde firme: “Sim, meu pai me deixou quando minha mãe estava grávida de seis meses.” Essa história encontra a história da personagem que está grávida e perdida. Ela estava ali, do meu lado no banco e se tornou uma camada da vida da personagem que espera. “Saudade da minha mãe que já se foi”; disse a senhora ao mensageiro. “A saudade tem começo, mas não tem fim” poetiza a mulher com lágrima nos olhos.
Caderno de bordo_Priscila Reis
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Os minutos que se vรฃo com o tempo, com Tatiane Lustoza Trupe Sinhรก Zรณzima_ foto Christiane Forcinito FAGULHAS II | 61
A Trupe Sinhá Zózima é um grupo de teatro que, desde 2007, pesquisa o ônibus urbano como espaço cênico, espaço de descentralização e democratização do acesso às artes. Ao longo dos anos de pesquisa muitas conquistas, frutos da resistência-persistência-vontade. Eles, artistas-pesquisadores, dia a dia, despertam olhares curiosos, acendem fagulhas no Terminal Urbano Parque Dom Pedro II (por onde circulam mais de 200 mil pessoas diariamente e onde eles decidiram residir artisticamente desde 2009), promovem encontros, plantam sementes no asfalto cinza, colhem flores, fazem arte onde parece impossível. Durante o projeto Os minutos que se vão com o tempo: da imobilidade urbana ao direito à poesia, à cidade e à vida, contemplado pela 24º Edição da Lei de Fomento, os artistas-pesquisadores contaram com a participação de diversos grupos, artistas e pesquisadores que trouxeram suas reflexões e provocações com intuito de fazer da ousadia sonhada realidade. E a realidade tornou-se concreta: a criação de um espetáculo teatral no ônibus de linha. Um espetáculo em temporada, percorrendo cinco linhas de ônibus, partindo do Terminal Urbano Parque Dom Pedro II para outros cinco terminais, ligando os extremos da cidade de São Paulo. Teve muito teatro no ônibus. E, aqui, nesta revista, algumas das fagulhas, das belas reflexões sobre o processo, sobre as conquistas, sobre caminhos, sobre a utopia, sobre a arte do encontro sem fronteiras.
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